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Contornando o proibidão : quando não dizer é dizer

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Academic year: 2021

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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE

INSTITUTO DE LETRAS

PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS DA LINGUAGEM

MARCIO GUIMARÃES RAMOS VALENÇA

CONTORNANDO O PROIBIDÃO:

QUANDO NÃO DIZER É DIZER

Niterói

2014

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MARCIO GUIMARÃES RAMOS VALENÇA

CONTORNANDO O PROIBIDÃO: QUANDO NÃO DIZER É DIZER .

Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Estudos da Linguagem da Universidade Federal Fluminense – UFF, como parte dos requisitos necessários para a obtenção do título de Mestre em Estudos da Linguagem. Orientadora: Prof.ª Dr.ª Vanise Gomes de Medeiros

Niterói Setembro de 2014

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Ficha Catalográfica elaborada pela Biblioteca Central do Gragoatá

V152 Valença, Marcio Guimarães Ramos.

Contornando o proibidão: quando não dizer é dizer / Marcio Guimarães Ramos Valença. – 2014.

70 f.

Orientadora: Vanise Gomes de Medeiros.

Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal Fluminense, Instituto de Letras, 2014.

Bibliografia: f. 56-57.

1. Análise do discurso. 2. Funk (Música); aspecto social. 3. Censura. 4. Mulher: aspecto social. I. Medeiros, Vanise Gomes de. II. Universidade Federal Fluminense. Instituto de Letras. III. Título.

CDD 401.41

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MARCIO GUIMARÃES RAMOS VALENÇA

CONTORNANDO O PROIBIDÃO: QUANDO NÃO DIZER É DIZER .

Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Estudos da Linguagem da Universidade Federal Fluminense – UFF, como parte dos requisitos necessários para a obtenção do título de Mestre em Estudos da Linguagem.

BANCA EXAMINADORA

___________________________________________________________________ Profª Drª Vanise Gomes Medeiros (orientadora)

Universidade Federal Fluminense

___________________________________________________________________ Profª Drª Lucília Maria Sousa Romão

Universidade Federal de São Paulo – Ribeirão Preto

___________________________________________________________________ Profª Drª Silmara Dela Silva

(5)

SUPLENTES

___________________________________________________________________ Profª Drª Beatriz Fernandes Caldas

Universidade Estadual do Rio de Janeiro

___________________________________________________________________ Profª Drª Bethania Sampaio Corrêa Mariani

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Agradecimentos

Agradeço à minha família pelo apoio e compreensão, sobretudo à minha mãe, cujo o amor e dedicação sempre serão maiores do que eu posso retribuir.

À minha orientadora, Vanise Medeiros, pela confiança depositada em meus esforços e pela orientação sempre tão generosa e dedicada, que transformou esse percurso tão conturbado em alegria e conhecimento.

À Juliana Marins, por me apoiar sempre. Mãe, irmã e amiga: são palavras mais próximas encontradas para definir a nossa conexão.

A todos os meus amigos do LAS, em especial Alexandre, Diego, Lívia, Paula, Raphael e Thaís, não só pelo apoio e troca acadêmica, mas também pelo afeto e pelas risadas na UFF e fora dela.

Aos professores Alexandre Ferrari e Silmara Dela Silva, pelas contribuições oferecidas de maneira tão atenciosa.

E, finalmente, a todos que, de alguma forma, contribuiram pela realização desse trabalho.

(7)

RESUMO

Neste trabalho, sob a luz da Análise de discurso francesa, investigaremos as letras do grupo Gaiola das Popozudas cantadas pela Mc Valesca Popozuda. As letras escolhidas para nossas análises apresentam duas versões: uma proibida e outra legitimada juridicamente. Num primeiro momento, surgem nos bailes funks as versões proibidas. Nessas letras, há o comparecimento dos palavrões e, também a exaltação do erotismo. Após terem alcançado sucesso nos bailes, que, em geral, ocorrem dentro de favelas, é feita uma versão com base nessa letra proibidas, ocorrendo, assim, nessa nova formulação, a substituição dos palavrões e trechos obscenos. Desse modo, surge, a versão para ser veiculada pela grande mídia, isto é, a letra comercial legitimada juridicamente. Iremos promover uma reflexão sobre a relação existente entre essas duas versões. Uma das nossas questões é: em que medida dizer algo por meio da substituição, no caso, através de uma versão legitimada, não é uma forma possível de significar, dentro dessa interdição, aquilo que não pode ser dito, ou seja, os sentidos censurados na versão proibida? Outro objetivo desta pesquisa é refletir sobre a posição feminina nesta cultura funk, e pensar isso nos direciona para a noção de formação discursiva , proposta por Pêcheux (2009), correspondendo a um determinado domínio do saber, constituído de enunciados discursivos, que mostram de algum modo que a ideologia regula “o que pode e deve ser dito”. Será que a existência de uma M.C. como ValescaPopozuda que assume, por meio da música que canta, a representação de uma puta, uma cachorra ou piranha, está de algum modo inserida em uma formação discursiva machista? Em que medida incorporar esse machismo não é uma forma de subvertê-lo, pois podemos pensar: sou dona do próprio corpo e, também,livre para exercer minha sexualidade. Assume-se o discurso machista para rompê-lo? Em síntese, temos como foco de nosso trabalho as letras do funk proibidãoe a versão produzida pela mídia legitimada. Os objetivos são: a) analisar as formas de substituição nas letras sugeridas; b) investigar a posição feminina nas letras do proibidão; c) observar até que ponto essa posição sujeito inscreve-se em uma formação discursiva machista.

PALAVRAS-CHAVE: ANÁLISE DE DISCURSO, FUNK-PROIBIDÃO, CENSURA, FEMININO.

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ABSTRACT

In this workguided through the French Discourse Analysis we investigate the lyrics of the Gaiola das Popozudas group sang by MC ValescaPopozuda. The lyrics chosen for our analysis show two versions: a strongly prohibited one, called proibidão in Portuguese, and another legally legitimized. At first, the prohibited versions arise at funk parties [baile funk]. In these lyrics, there is the appearance of swearing and also the exultation of eroticism. After reaching success at the funk parties that usually occur within slums [favelas], a version is made based on the prohibited lyrics, thus occurring, in this making, the replacement of swearing and obscene excerpts. In this way arises the version to be conveyed by mainstream media, that is, the legally legitimized commercial lyrics. We will promote a reflection on the relationship between these two versions. One of our questions is: to what extent saying something through replacement, through a legitimized version, in the case,is not a possible way of meaning what cannot be saidfrom within the interdiction, i.e. the censored meanings of the prohibited version? Another objective of this investigation is to reflect on the feminine position in this funk culture, and pondering about that guides us to the notion of discursive formation proposed by Pêcheux (2009), corresponding to a particular field of knowledge constituted by discursive enunciations that somehow show that ideology determines “what can and must be said”. Is the existence of a MC as Valesca Popozuda, who assumes in her music the representation of a whore or a bitch, somehow inserted in a sexist discursive formation? To what extent incorporating this sexism is not a way of subverting it?As we may consider: I am my own body‟s owner and I am also free to exercise my sexuality. Is the sexist discourse assumed in order to be broken? In summary, in this work we focus on the lyrics of the proibidão funk and on the version produced by the legitimized media. The objectives are: a) to analyze the ways of replacement in the suggested lyrics; b) to investigate the feminine position in the

proibidão lyrics; c) to observe to which extent this position of the subject is inserted in a

sexist discursive formation.

KEYWORDS: DISCOURSE ANALYSIS, CARIOCA FUNK (PROIBIDÃO), CENSORSHIP, FEMININE.

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SUMÁRIO

CAPÍTULO 1– GLAMOUR X MAZELAS SOCIAIS ... 10

1.1 Introdução ... 10

1.2. A gaiola da popozudas: entre o proibido e o legitimado ... 12

1.3. A posição sujeito funkeira ... 18

CAPÍTULO 2 – PRESSUPOSTOS TEÓRICOS ... 19

2.1. O silêncio como instância significativa ... 27

2.2. A historicidade do funk ... 31

2.3. Resistir para significar ... 36

CAPÍTULO 3 – O QUE DIZEM AS LETRAS? ... 38

3.1. A constituição do corpus... 38

3.2 A análise das letras ... 39

CONSIDERAÇÕES FINAIS ... 53

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ... 56

ANEXOS Anexo 1 – Letras proibidas ... 58

Anexo 2 – Letras legitimadas ... 62

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CAPÍTULO 1 – GLAMOUR X MAZELAS SOCIAIS

1.1 Introdução

O movimento denominado funk existente, hoje, no Brasil surgiu por meio de uma modificação da soul music norte americana. Segundo Yúdice (2004 apud AMORIM 2009), a base existencial do movimento está ligada à música negra norte americana da década de 1960, mais especificamente aos lamentos do blues, posteriormente, rhithm‟n‟blues (marcação rítmica mais vigorosa do blues) e do soul (estágio em que o blues apresenta uma melodia emprestada da música gospel norte-americana). Chegou ao Brasil no final da década de 1960. Apresentava uma batida bem mais suave que a existente na atualidade, tinha como enfoque os dilemas amorosos e expressou-se de forma mais acentuada nas periferias da cidade do Rio de Janeiro.

Atualmente, o funk produzido na periferia do Rio de Janeiro, segundo Vianna (1988), assemelha-se ao movimento cultural1 presente nos bairros pobres da cidade de Miami (Estados Unidos) chamado Miami Bass. Segundo Essenger (2009), Miami Bass (também conhecido como som de Miami) é um tipo de hip hop que se tornou popular nos EUA nos anos 80 e 90. Ele é conhecido por usar a batida continuada da caixa de ritmos Roland TR-808, batida de dança acelerada e, algumas vezes, pelo conteúdo sexualmente explícito das letras. Foi base do chamado funk carioca.

O ponto de partida para a construção de sentidos possíveis para o funk carioca ancora-se, inicialmente, na identificação com o Miami Bass. Consideramos que essa identificação ocorre, segundo Essinger (2009), pela semelhança das condições sócio-culturais entre essas cidades. Tanto a periferia do Rio de Janeiro, quanto os bairros pobres da cidade Miami são redutos de exclusão sócio-cultural: negros e migrantes

1

Vianna (1988) caracteriza o funk como um movimento cultural popular.

Um ponto bastante questionável, nos estudos que abordam o funk, é saber qual o lugar que esse movimento ocupa. É um movimento cultural? É um movimento social? Qual nomenclatura utilizar para defini-lo?

Diante disso, consideramos importante trazer a lei que intitula o funk como um movimento cultural. A força do jurídico comparecerá, principalmente, quando apontarmos, mais adiante, as interdições realizadas nas versões proibidas. A lei se encontra no anexo.

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nordestinos, no caso do Rio de Janeiro, e população afro-americana e imigrantes de origem latina, no caso de Miami.

Lançando mão de Indursky (2008:11), podemos pensar esse processo identitário do funk “(...) como uma tomada de posição a favor de certos saberes que pré-existem ao seu dizer (...)”. Assim, no que diz respeito ao funk, há uma memória discursiva (Miami

bass) em que se filiam sentidos para o funk. No caso específico do funk proibidão2, foco de nossa pesquisa, há, primeiramente, uma inscrição na memória do funk identificada com que ocorre musicalmente na periferia das duas cidades citadas (Miami e Rio de Janeiro) em que se apontam as condições sociais desses locais. Porém, essa memória do

funk da periferia, existente em ambas as cidades, desloca-se para outro sentido possível

referente ao funk: o lugar da erotização.

Ritmicamente, tanto funk como Miami bass apresentam uma batida mais acelerada, com letras marcadas por protestos contra o tratamento dado pela sociedade aos moradores dessas regiões, além de apresentar um erotismo mais acentuado nas letras e no modo de dançar.

É no imaginário feminino que o funk carioca atual possui grande expressão. Seja pela pouca roupa utilizada pelas funkeiras e/ou pela excessiva erotização corporal, o movimento ganha cada vez mais espaço no cenário musical brasileiro. Comparece também, no funk proibidão, a erotização masculina. Porém, com os homens, o que é erótico se dá em outra ordem. Compete à posição sujeito funkeiro masculino reproduzir alguns sentidos já postos sobre o imaginário machista, isto é, o homem comparece como dominador e a mulher ocupando uma posição inferior e submissa.

Justificamos a nossa escolha pelo funk como objeto de pesquisa por, hoje, ser de grande expansão mercadológica, ao mesmo tempo em que existe uma resistência muito forte por partes dos intelectuais e uma parcela da população. Segundo Amorim (2009):

O que tem chamado atenção no movimento é o fato de ele, em determinados momentos, ser exaltado pela grande mídia e em outros ser “rechaçado” por ela: a cultura funk” (denominação frequentemente utilizada por estudos de cunho “antropológico e sociológico) encontra-se presente em eventos de grande porte, como o São Paulo Fashion Week, o Tim Festival, mas também em reportagens e debates que tratam das mazelas sociais, do caráter “vulgar/esdrúxulo” que permeia as letras das músicas e a dança, do modo como a mulher se apresenta nos bailes e programas de televisão. Essa relação paradoxal (glamour x

mazelas sociais), no que diz respeito ao funk, evoca diferentes

posicionamentos discursivos que ora se cruzam, ora se chocam,

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mas que também contribuem para sua configuração enquanto movimento musical/social. As modificações que ocorreram e ainda ocorrem no funk são inerentes aos movimentos musicais/sociais: quase todos sofrem alterações devido às influências que recebem de outros movimentos e/ou de outras manifestações culturais. (AMORIM: 2009:19)

Embora sejam consumidas pela sociedade, as letras são alvo constante de críticas. Temos, então, um jogo contraditório (também expresso na relação paradoxal: glamour x mazelas sociais). Esse outro jogo contraditório consiste em: consumir aquilo que se critica.

Resistir ao funk, na medida em que se critica representa, de algum modo, uma tentativa de impossibilitar que a periferia alcance determinada posição ou que a mesma ocupe um lugar outro sempre distante. Uma de nossas questões é: inscrever a posição sujeito funkeira ora no lugar da erotização, ora ao que remete à miséria social, não representa, de algum modo, resistir à possibilidade de existir outros sentidos possíveis, isto é, sentidos que podem ocupar posições discursivas que vão além do paradoxo erotização x miséria?

1.2 A gaiola das popozudas: entre o proibido e o legitimado

O material do nosso trabalho é funk pornô ou proibidão, como muitos chamam. De acordo com Essinger (2005), o proibidão é um estilo de funk carioca surgido durante a década de 1990 nas favelas do Rio de Janeiro. Por ele ser considerado um subgênero do funk carioca, ainda vem sendo muito pouco divulgado fora das favelas pela grande mídia. Existem duas vertentes do proibidão: uma que faz apologia ao crime e outra que exalta a pornografia. No estilo de funk ligado ao crime, estão materializados os feitos dos traficantes da favela contra a polícia e uma defesa da eliminação dos policiais. Exaltadas, também, as facções criminosas existentes no estado do Rio de Janeiro, tais como: Comando Vermelho, Terceiro Comando, Terceiro Comando Puro e Amigo dos Amigos. PCC (Primeiro Comando Capital) de São Paulo também é citado nas letras. Já no funk de viés erótico, percebemos um imaginário de alto teor de apelo sexual, bem como palavrões referentes a essa erotização. Nos cantores, verificamos uma posição-machista na qual encontra-se expresso o modo como tratar as mulheres no ato sexual,

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cultuando ao próprio membro sexual masculino. Já nas cantoras, notamos uma posição-feminina que traz um dizer sobre como eram maltratadas, pregando a infidelidade e promiscuidade como forma de libertação.

Se direcionarmos o nosso olhar para o próprio termo proibidão, vemos a presença do afixo-ão. O afixo descrito, segundo Said Ali (1971 apud SANTOS 2010), é um produtivo formador de aumentativos em língua portuguesa, sendo este seu principal valor semântico nas gramáticas. Contudo, há outras significações possíveis além do valor aumentativo. Nos concentraremos, aqui, em apenas duas dessas possibilidades significativas: intensificação e coletividade .

Pensando discursivamente o afixo-ão presente no vocábulo proibidão, vemos que o seu acréscimo serve justamente para intensificar o que é da ordem do proibido, isto é, o proibidão é algo mais do que proibido. No que tange ao que é da ordem do coletivo observamos que o termo proibidão se refere ao conjunto letras de músicas filiadas ora ao que é da ordem do erótico, pornográfico, ora filiadas ao crime. Com isso: o termo proibidão se inscreve de modo intensificado na coletividade pornográfica e/ou criminal.

Concentraremos nosso corpus nas letras3 da cantora/Mc Valesca Popozuda, atual vocalista do grupo “Gaiola das Popozudas”. O nome “Gaiola das Popozudas” surgiu4

por escolha do empresário do grupo que inspirou-se no filme franco- italiano “La cage folles”, conhecido no Brasil como “Gaiola das loucas”. O objetivo era trazer a ideia de um universo glamouroso para os bailes funks cariocas, isto é, inscrever aquela materialidade discursiva almejada, presente no filme, em condições de produção outras. Nesse processo de escolha do nome, há um trabalho de forças que operam entre o já-dito e o novo. A inspiração no filme franco- italiano nos conduz a pensar o jogo existente entre a paráfrase e a polissemia. Para Orlandi (2009):

a paráfrase representa o retorno aos mesmos espaços do dizer.” Ao passo que na polissemia “...o que temos é deslocamento, ruptura de processos de significação.” Desse modo, temos“...nesse jogo entre paráfrase e polissemia, entre o mesmo e o diferente, entre o já dito e o a se dizer que os sujeitos e os sentidos se movimentam, fazem seus percursos, (se) significam.(ORLANDI 2009:36)

3

Ver no anexo as letras escolhidas para o trabalho.

4

Pela dificuldade em encontrar material acadêmico sobre o grupo, recorremos ao site da cantora Valesca para obter essas informações.

(15)

Através da paráfrase, temos a retomada do enunciado Gaiola das loucas para o surgimento do nome Gaiola das Pozudas. Por outro lado, não há uma associação óbvia entre o novo (Gaiola das Popozudas) com o já dito (Gaiola das loucas), comparecendo, então, o processo polissêmico, isto é, quando pela criatividade, segundo Orlandi (2009:37), faz “... intervir o diferente, produzindo movimentos que afetam os sujeitos e os sentidos na sua relação com a história e com a língua. Irrompem assim sentidos diferentes.”

Em outras palavras, a expressão Gaiola das Popozudas opera entre o lugar do já dito com o novo e, também, do possível com o diferente.

A escolha pela cantora e seus proibidões, se justifica pelo seu comparecimento em posições discursivas contraditórias, como aponta Amorim (2009), pois, embora ocupe o lugar das mazelas sociais (favela, baile funk), o funk proibido, também comparece na grande mídia5 (por exemplo, o São Paulo Fashion Week), ocupando, então, uma posição discursiva outra, posição esta que pode ser apontada como glamourosa.

Trataremos o funk como um movimento musical cultural integrado pela música. Não há como não considerar que o movimento tem uma construção de sentidos própria, que o distingue e o afasta de outras manifestações da música negra, como o rap e o hip-hop.

Para Amorim (2009), o rap e o hip hop consideram, na maioria das suas letras, o resgate da dignidade humana por meio da expressão musical como uma espécie de “missão” a ser cumprida. Podemos observar essa tentativa de resgate na materialidade da língua, isto é, pela constante presença das palavras consciência e auto-estima nas letras produzidas, como se vê na letra “Hip Hop por aqui!”, composta por Mc Buddy e Mano Gera, nos versos: “Hip Hop apareceu: consciência coletiva valoriza a auto-estima, aqui vai a resposta do que aconteceu!”

Por outro lado, já o funk, na maioria das suas letras, não apresenta como objetivo primeiro fazer o sujeito contestar e refletir as condições sociais em que ele se encontra inscrito. Em outras palavras, o funk:

(...) não vislumbra de imediato uma bandeira desse tipo, uma luta a ser seguida, uma manifestação que reivindique direitos

5

Atualmente, no universo do funk, Valesca é a artista que tem a maior repercussão na grande mídia. Participou de um reality show (A Fazenda, 2011), posou nua para uma revista masculina (Revista Playboy 2009) e, com certa frequência, participa de programas vespertinos de televisão.

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iguais, uma consciência das ações pretendidas (...) (AMORIM 2009:24)

No caso das letras de funk proibidão em foco neste trabalho, ainda não encontramos, na materialidade discursiva, um imaginário referente ao resgate da dignidade humana como se vê no hip hop. Um exemplo, no funk, para essa suposta ausência de uma posição discursiva que reivindique a consciência das ações pretendidas ou que reivindique direitos iguais, teríamos uma letra interpretada por Valesca Popozuda, com o título “Um otário pra bancar”, em (1) abaixo:

(1) “O amigo deu um papo que é muito interessante Ele disse que o homem tem que ter uma amante Se liga aí amiga, no que a Gaiola vai falar Mulher de verdade quer um otário pra bancar...”

Diferentemente do hip hop, conforme afirma Amorim (2009), em que está em jogo a reflexão e a contestação das condições sociais em que o sujeito está inscrito, no trecho acima, tem-se uma posição feminina que fala a outra posição feminina, subvertendo padrões já inscritos numa memória discursiva. Em outras palavras, já que cabe a posição masculina machista bancar a mulher, por que não a mulher tirar proveito dessa situação? Há, então, um deslocamento da posição feminina já cristalizada na memória para uma posição outra que subverte a ordem.

De acordo com Yúdice (2004 apud Amorim 2009), movimentos musicais como rap, hip hop e funk são denominadas tradições afro-diaspóricas. Esses movimentos são uma tentativa de resgatar a auto-estima de etnias africanas que vivem marginalizadas em grandes centros urbanos, além de evidenciarem os prazeres e problemas existentes no cotidiano dessas comunidades excluídas socialmente.

Observamos ainda que o funkeiro geralmente se apresenta na posição sujeito da favela que gosta de cantar e dançar de forma própria, despojada, como aquele que fala de um determinado lugar da periferia.

Uma primeira observação feita, ao debruçarmos sobre o funk probidão que opta por exaltar a erotismo, é notar a existência de outra versão para uma mesma música, o que produziria um outro funcionamento discursivo, pela inscrição do funk em outras

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condições de produção. Primeiramente, surgem, nos bailes funk6, as primeiras versões com palavrões. Após terem alcançado um sucesso dentro da favela, é feita outra versão na qual há a substituição dos trechos obscenos por outros, digamos assim, possíveis. São várias as formas de substituição. Um dos nossos objetivos nesse trabalho é nos debruçar sobre algumas letras e observar o funcionamento das substituições existentes. Tomamos como exemplo de substituição para ilustrar o exposto acima, os seguintes títulos7: “Agora eu sou piranha” que se tornou “Agora eu sou solteira” e “Solta essa

porra” que virou “Solta esse ponto”.

No dia 19/12/2012, o portal R7 da internet publicou uma notícia com o seguinte enunciado: “Autora de funks proibidões, Valesca Popozuda comanda formatura de

colégios religiosos no Rio.” A reportagem versava sobre o fato de a cantora ser

contratada como atração principal para os formandos do terceiro ano do ensino médio de duas das tradicionais escolas católicas do Rio de Janeiro: Santo Inácio e Notredame. Perguntada sobre o limite de suas apresentações, cantora responde que

Se falarem que eu posso ficar à vontade, vou mandar meus proibidões. Os moleques deliram. Se pedirem para eu ser mais light, aí eu não falo o palavrão, só puxo o refrão e eles completam. (Portal R7, 19/12/2012)

Portanto, cria-se uma versão sem palavrões para atender a um determinado intuito comercial, mas basta a cantora puxar o refrão que o público (no caso do Notre Dame e do Santo Inácio, escolas religiosas) completa com a versão originária do baile

funk. Em outras palavras, por meio da versão com palavrões, há a criação de uma versão

sem palavrões para fins mercadológicos específicos, distintos do mercado do proibidão. Vale ressaltar que a versão proibida não é legitimada juridicamente devido a presença do alto teor pornográfico, sendo comercializada de forma ilegal. Por exemplo: o funk

proibidão é vendido em mídias piratas no centro da cidade do Rio de Janeiro. Já a

versão comercial produzida em grande escala, isto é, aquela que é legitimada juridicamente, é operada pela mídia reguladora, por uma empresa gravadora e difusora de música. A nova versão formulada com base no proibido define, então, aquilo que

6De acordo com Essinger (2009:12), “o baile funk é uma festa de música feita pela e para a comunidade,

por MCs (...) que são o orgulho de sua área e de muitas outras áreas da cidade, dependendo da fama que conquistam. Uma fama que se faz na força dos gestos e das palavras, nesse circuito subterrâneo que poucas vezes chega à grande mídia. E que, quando chega, vê seus ídolos serem tratados como artistas de segunda classe, um exotismo local, uma sensação que não emplaca outro verão”.

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pode ser dito ou vinculado na sociedade. Em princípio, estes são modos de funcionamento do proibidão e das versões.

O mercado musical formal, então, tenta encaixar os sentidos possíveis do funk

proibidão aos seus interesses comerciais por meio da lei. Lançando mão de Zoppi

Fontana (1997), em seu artigo sobre o comércio ilegal realizado pelos camelôs em Campinas, há no discurso jurídico-administrativo uma tentativa de produzir um efeito estabilizador de sentidos. A autora aponta que, através lei, criou-se a terminologia ambulante para designar as atividades realizadas pelos camelôs. No entanto, o

efeito de estabilização identifica como ambulante um conjunto de instalações de diferentes tipos, dentre as quais nenhuma se adapta apropriadamente às atividades desenvolvidas pelos camelôs. Silenciam-se (Orlandi 1992) enunciados que definem camelôs enquanto atores sociais específicos e diferenciados. Nesse sentido, pela força institucional do direito, os camelôs não só são apagados, mas são condenados à inexistência jurídica- administrativa. (ZOPPI FONTANA 1997:208)

Em nosso trabalho, notamos um funcionamento muito semelhante como o apontado acima: o mercado formal legitima a interdição de determinados sentidos utilizando, também, a força do jurídico.

Com Lecomte (1981 apud ORLANDI 2007), podemos pensar que as interdições apontam para “o que não se pode dizer”. Uma questão nossa é: dizer algo por meio da substituição não é talvez a forma possível de significar, dentro dessa interdição, aquilo que não pode ser dito? Indo adiante: o que é preciso dizer para trazer o não dizer?

Em breves palavras, na versão sem palavrões, intervém a censura que as impede de significar do modo como foram criadas. No entanto, elas (as versões proibidas) estão presentes e são ditas, não pela cantora que faz uma apresentação para alunos de um colégio religioso, mas pelo próprio público do colégio. Interdita-se o dizer, mas ao dar voz ao público, este diz aquilo que não poderia se dizer. Assim, ressaltamos que a análise do funcionamento do dizer que traz o não dizer é, também, um dos nossos objetivos.

Um outro objetivo desta pesquisa é refletir sobre a posição feminina nesta cultura funk, e pensar isso nos direciona para a noção de formação discursiva8, proposta por Pêcheux (2009), correspondendo a um determinado domínio do saber, constituído

(19)

de enunciados discursivos, que mostram de algum modo que a ideologia regula “o que pode e deve ser dito”. Será que a existência de uma Mc como Valesca Popozuda que assume, por meio da música que canta, a representação de uma puta, uma cachorra ou piranha, está de algum modo inserida em uma formação discursiva machista? Em que medida incorporar esse machismo não é uma forma de subvertê-lo, pois podemos pensar: sou dona do próprio corpo livre para exercer minha sexualidade e, assim, assume-se o discurso machista para rompê-lo?

Em síntese, temos como foco de nosso trabalho as letras do funk proibidão e a versão produzida pela mídia legitimada. Os objetivos são:

a) Investigar a posição feminina nas letras do proibidão;

b) Observar até que ponto essa posição sujeito inscreve-se em uma formação discursiva machista;

c) Analisar as formas de substituição nas letras sugeridas.

1.3 A posição sujeito funkeira

A posição sujeito9funkeira, ao assumir, através da letra de uma música, a escolha

dos seus parceiros sexuais, permite, de algum modo, equiparar-se a um imaginário, ainda vigente, da posição sujeito machista, isto é, aquele que se crê ocupando uma posição de dominação. Por outro lado, essa posição acaba por reproduzir sentidos referentes a um estereótipo de erotização feminina vista por uma determinada posição-masculina.

Podemos pensar esse estereótipo em sua reprodução dos padrões estabelecidos pela formação discursiva machista, isto é, a mulher sendo significada como um mero objeto sexual. Interdita-se qualquer outro sentido que fuja ao imaginário da posição sujeito machista, passando, então, a identidade feminina a funcionar como um mero fantoche dos anseios do homem. Por outro lado, conforme Orlandi (1988), não cabe ver apenas o estereótipo sob a ótica coerência e unicidade. A autora vê a existência de um funcionamento contraditório no uso do estereótipo, pois o considera, também, como uma forma possível de resistência: nesse sentido, a mulher joga “o feitiço contra o feiticeiro”. Desenvolvendo melhor, recorremos à Orlandi (1988) quando, em seu artigo sobre o jornalismo feminino, afirma que:

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as mulheres fazem um “uso social” dos estereótipos. Isto é, apresentam palavras, comportamentos, imagens estereotipadas, para consumo imediato, enquanto elaboram em outro lugar práticas sutis de diferenciação. Dada a formação discursiva dominante que as categoriza de antemão de incapazes de crítica, as mulheres jogam com esse preconceito, desconstruindo essa falta pelo próprio fato de responder ao estereótipo com estereótipo (ah! então tá). Os outros sentidos terão outro lugar, não o confronto direto com o discurso dominante. Quer dizer, a relação da mulher com o estereótipo não é direta nem unívoca. Vai depender da contextualização e do funcionamento do estereótipo numa complexidade de elementos que constituem, em seu conjunto, o processo de significação desencadeado pela leitura de um texto qualquer. (ORLANDI:1988:99)

A pergunta que fazemos é: até que ponto a posição funkeira, inscrevendo-se no discurso da erotização e da suposta vulgaridade feminina, insere-se na formação discursiva machista, que faz significar a mulher como objeto sexual? Ou, por outro lado: até que ponto a posição sujeito funkeira joga com a formação discursiva machista, fazendo uso dela para provocar algo que a desestabilize?

Determinadas posturas e atitudes talvez ocupem a mesma posição sujeito machista, é o que iremos analisar. Investigaremos se equiparar-se à posição masculina fará com que uma posição-feminina, com esses dizeres masculinos, migre para um lugar outro, levando o já dito dominante consigo. A nossa hipótese é de que a inscrição na formação discursiva machista é uma tentativa de romper e subverter com o já dito dominante.

Outra hipótese levantada é a de que a interdição do funcionamento de determinados sentidos constitui-se em uma manifestação da censura em forma de opressão. Assim sendo, o que ocorria com os trechos substituídos nada mais é do que uma tentativa de proibir certos lugares (mesmo que, algumas das vezes, ilusoriamente) a determinados sujeitos, para que estes não utilizem determinados sentidos para ocupar certas posições.

CAPÍTULO 2 - PRESSUPOSTOS TEÓRICOS

Para a nossa reflexão sobre as letras do funk proibidão, utilizaremos como ancoragem teórica a Análise de discurso (PÊCHEUX ; ORLANDI ).

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Michel Pêcheux, com o pseudônimo de Thomas Hebert, escreve o seu primeiro texto “Reflexões sobre a situação teórica das ciências sociais, e especialmente, a

psicologia social.” Nesse artigo, Hebert–Pêcheux mostra interesse em fornecer

instrumentos científicos capazes de abrir uma fissura teórica no campo das ciências sociais, pois as considerava ainda posicionadas num estado pré-científico. Para Pêcheux (2010:15) toda ciência é:

produzida por uma mutação conceitual num campo ideológico em relação ao qual esta ciência produz uma ruptura através de um movimento que tanto lhe permite um conhecimento dos trâmites anteriores quanto lhe dá garantia de sua própria cientificidade. (...) num certo sentido, toda ciência é, antes de tudo, a ciência da ideologia com a qual rompe. Logo o objeto de uma ciência não é um objeto empírico, mas uma construção. Além do mais, tal objeto não pode se destacar, através do jogo de um questionamento aleatório, da natureza que progressivamente o delimitaria tornando visíveis suas características. (PÊCHEUX 2010: 15)

É com o intuito de produzir uma ferramenta que possibilite, como exposto nos parágrafos acima, uma ruptura no campo das ciências sociais, que Michel Pêcheux nos mostra um caminho inicial que pretende seguir em 1969 com a obra

Análise Automática do Discurso. A respeito disso, Maldidier (2003) afirma que:

Esta primeira maquinaria discursiva, como dirá Michel Pêcheux bem mais tarde, desempenhará ao mesmo tempo para ele o papel do momento quase mítico da fundação e do protótipo remodelado sem cessar, criticado, corrigido, finalmente abandonado, mas sempre presente. A expressão AAD69 designará posteriormente este polo original. (MALDIDIER 2003: 19)

Ainda para a autora:

Análise automática do discurso é um livro original que chocou lançando, a sua maneira, questões fundamentais sobre texto, leitura e sentido. (MALDIDIER, 2003: 19)

Este pensar discursivo proposto por Pêcheux, para Orlandi (2006), constituiu-se numa relação entre três diferentes campos de saber: a linguística, o marxismo e a psicanálise. A associação entre essas diferentes áreas de conhecimento proporcionou uma ruptura com o pensamento linguístico vigente até meados do século XX. Não se tratava apenas, de adição ingênua desses três domínios disciplinares, mas sim, do

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surgimento de uma disciplina de entremeio. Procurando refletir e repensar essas diferentes áreas, a Análise de discurso faz um particular desenho disciplinar de si mesma. Assim, segundo Orlandi (2006):

A Análise de discurso se faz entre a linguística e as ciências sociais, interrogando a linguística que pensa a linguagem, mas exclui o que é histórico-social e interrogando as ciências sociais na medida em que estas não consideram a linguagem em sua materialidade. A Análise de discurso vai colocar questões da linguística para a linguística assim como vai colocar questões das ciências sociais para as ciências sociais, interrogando-as, pois, no campo mesmo em que elas se constituem. (ORLANDI: 2006:14)

A Análise de discurso tem como objeto, como próprio nome diz, o discurso, teorizado por Pêcheux (2009) como “efeitos de sentido entre interlocutores”. Por meio desses efeitos de sentido, temos que considerar a possibilidade dos sentidos se moverem, não cabendo concebê-los apenas sob a perspectiva de algo acabado, fechado e estático. De outro modo, refletindo sobre seus efeitos, há a chance de um determinado dizer dialogar com dizeres outros, podendo retornar ao lugar do já-dito ou permitindo, até mesmo, como consequência da heterogeneidade da língua, o surgimento de um novo dizer.

Em relação à língua, o primeiro aspecto a se observar é que a Análise de discurso não desassocia língua e sujeito, pois considera que ambos constituem a produção de sentidos, materializados na língua e pela língua. Pensar em materialidade linguística, para a Análise de discurso, já pressupõe um sujeito inscrito num campo sócio–histórico–ideológico. Em outras palavras, não se considera o sujeito como algo exterior à língua como conceitua a linguística formal. Assim sendo, não se pode considerar a língua como um sistema de regras exterior ao sujeito, mas sim como uma parte, também, constituída pelos sujeitos em determinadas condições dadas. Como afirma Orlandi (2009):

Para a teoria do discurso a língua tem sua unidade, sua própria ordem, com a diferença que não é um sistema perfeito, nem uma unidade fechada: a língua é sujeita a falhas e é afetada pela incompletude. Ela é, como diz P. Henry (1975) “relativamente autônoma”. Como tenho dito muitas vezes, o lugar da falha e da incompletude não são defeitos, são antes a qualidade da língua em sua materialidade: falha e incompletude são lugar do possível. Daí a diferença, a mudança o equívoco.(ORLANDI

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2009:12)

A autora vai diferenciar língua imaginária de língua fluida. A língua imaginária é:

a língua sistema, a que os analistas fixam em suas regras e fórmulas, em suas sistematizações, são artefatos (simulacros) que os analistas de linguagem têm produzido ao longo de sua história e que impregnam o imaginário dos sujeitos na sua relação com a língua. Objetos-ficção que nem sempre por isso deixam de ter existência e funcionam com seus efeitos no real. São as línguas-sistema, normas, coerções, as línguas-instituição, estáveis em sua unidade e variações. São construções. Sujeitas a sistematização que faz com que elas percam a fluidez e se fixem em línguas imaginárias. A língua-mãe (UrSprache),a língua ideal (a lógica), a língua universal (o esperanto), a língua standart (o português oficial normatizado) etc. A língua gramatical. (Orlandi 2009:18)

Por língua fluida, compreende-se:

A língua fluida, por seu lado, é a língua em movimento, mudança continua, a que não pode ser contida em arcabouço e fórmulas, não se deixa imobilizar, a que vai além das normas. A que podemos observar quando focalizamos os processos discursivos, através da história de constituição de formas e sentidos, nas condições de sua produção, na sociedade e na história, afetada pela ideologia e o inconsciente. A que não tem limites. Fluida.(ORLANDI 2009:18)

Pensar a fluidez da língua, presente em nossas letras analisadas, também é algo a ser considerado em nosso trabalho. Uma vez que está em jogo a substituição de palavras, e, também, alguns trechos das letras, notamos a existência desse funcionamento sobre o que não se deixa imobilizar e que vai além das normas, ou seja, a língua fluida.

A noção de discurso para a Análise de discurso, em seu cerne, afasta-se da forma como o esquema elementar de comunicação proposto por Jakobson (1971), define o que é mensagem. Este esquema de Jakobson constitui-se do seguinte modo: emissor, receptor, código, referente e mensagem. E com ele, temos: o emissor transmite uma mensagem (informação) ao receptor, mensagem essa formulada em um código referindo a algum elemento da realidade - o referente. Para a Análise de discurso, não há a linearidade proposta por esse esquema, em que se considera um indivíduo dizer algo e o outro decodifica. Este esquema implica aceitar a ideia de uma unicidade para sentido e

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considerar a linguagem como algo sempre estável e completo, não passível de mudança e transparente.

Toda vez que o sujeito, através de um determinado dizer, utiliza um determinado sentido, há uma mobilização do funcionamento discursivo, funcionamento este que remete às formações imaginárias. Segundo Pêcheux (2010), o discurso produzido por um sujeito pressupõe um destinatário que se encontra num lugar determinado na estrutura de uma formação social. Tal lugar aparece representado no discurso por formações imaginárias que designam o lugar que o sujeito e o destinatário se atribuem mutuamente, ou seja, a imagem que fazem de seu próprio lugar e do lugar do outro. Assim sendo, em nossa pesquisa, não caberia pensar as letras proibidas sob a perspectiva de Jakobson, pois estaríamos deixando de lado sentidos outros possíveis para as letras significarem-se em condições diversas. Os processos de significação não estão separados de modo estanque, pois as situações de comunicação entre os sujeitos de uma língua, muitas vezes, escapam da ilusão do óbvio, do já esperado, e desse modo, os sentidos e os dizeres tem condições de produção, e estes poderão ser variados, existindo possibilidade de ocorrer, por exemplo, algum equívoco na comunicação. À luz disso, temos a definição do que é discurso, como foi já dito: é o “efeito de sentidos entre interlocutores” (PÊCHEUX 2009).

O conceito de sujeito, na Análise de discurso, difere de um ideal de transparência de sujeito onipotente, controlador e articulador do seu dizer. Desprender-se dessa concepção é desfazer o mito de se crer fonte deste seu discurso, quando, na realidade, o sujeito nada mais é do que o suporte e o efeito. Em outras palavras, crer-se como senhor de si mesmo é considerar a „ilusão do sujeito enunciador capaz de escolhas, intenções e decisões‟ (AUTHIER-REVUZ 1990:28).

Partindo dos pressupostos psicanalíticos lacanianos, a Análise de discurso apoia-se na concepção da existência de um dizer fundamentalmente heterogêneo e da existência de um sujeito dividido. O inconsciente surge como um elemento que atravessa o discurso, ou seja, um dizer já habitado por outros dizeres, evidenciando na materialidade discursiva a existência de uma negociação com falares outros. Desse modo:

essa concepção do discurso atravessado pelo inconsciente se articula àquela do sujeito que não é uma entidade homogênea exterior à linguagem, mas o resultado de uma estrutura complexa, efeito de linguagem: sujeito descentrado, dividido, clivado, barrado. (AUTHIER-REVUZ 1990:28)

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Em outras palavras:

O sujeito é capaz de uma liberdade sem limites e uma submissão sem falhas: pode tudo dizer, contanto que se submeta à língua para sabê-la. Essa é a base do que chamamos assujeitamento. (ORLANDI 2010:10).

Desse modo, consideramos em nossa pesquisa que, nas letras investigadas, a possibilidade de dizeres enunciados não apenas significando o já-dito evidente da ordem da vulgaridade, mas poderá haver, também, a existência de outros sentidos possíveis a serem interpretados, escapando por meio de um já dito vulgar ao suposto controle total do sujeito.

Chamamos de formação discursiva, conforme Pêcheux (2009), “aquilo que, numa formação ideológica dada, isto é, a partir de uma posição dada numa conjuntura dada, determina o que pode e deve ser dito.” (PÊCHEUX 2009:147). Assim, as palavras e expressões recebem seu sentido da formação discursiva na qual são produzidas. Ainda segundo o autor,

os indivíduos são interpelados em sujeitos- falantes (em sujeitos de seu discurso) pelas formações discursivas que representam na linguagem as formações ideológicas que lhes são correspondentes. (PÊCHEUX 2009:147)

Essa interpelação, citada acima, ocorre pela forma-sujeito. Segundo Althusser (1978 apud PÊCHEUX 2009: 150), a forma-sujeito “... é a forma de existência histórica de qualquer indivíduo agente de práticas sociais.” Pêcheux (2009) nos mostra, também, que a interpelação pela forma-sujeito se efetua pela identificação do sujeito com a formação discursiva que o domina, fazendo o sujeito tomar uma posição. Essa tomada de posição consiste em:

um retorno do “Sujeito” no sujeito, de modo que a não-consciência subjetiva que caracteriza a dualidade do sujeito/objeto, pela qual o sujeito se separa daquilo que toma consciência “toma consciência” e a propósito do que ele toma posição, é fundamentalmente homogênea à coincidência-reconhecimento pela qual o sujeito se identifica consigo mesmo, com seus “semelhantes e com o “Sujeito”. O “desdobramento do sujeito como “tomada de consciência” de seus objetos” – é uma reduplicação da identificação. (PÊCHEUX 2009:147)

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Na concepção de Indursky (2008), para Pêcheux, existem três modalidades para a tomada de posição: identificação, contra identificação e desidentificação.

A identificação remete ao que, segundo Indursky (2008),

Pêcheux designou de superposição entre o sujeito do discurso e o sujeito universal da formação discursiva. Tal superposição revela uma identificação plena do sujeito do discurso, caracterizando o discurso do “bom sujeito” que reflete espontaneamente o Sujeito. Esta superposição entre o sujeito do discurso e a forma do sujeito revela a unidade imaginária do sujeito. (INDURSKY 2008:12)

O conceito de contra-identificação

ocorre quando o sujeito do discurso, através de uma tomada de posição, se contrapõe à forma-sujeito que organiza os saberes da formação discursiva com a qual o sujeito do discurso se identifica... a contra identificação que a forma sujeito não é dotada de unicidade e isto permite de com ela identificar-se e subjetivar-se ocorram. Quando o sujeito do discurso, ao subjetivar-se, não se superpõe totalmente à forma sujeito, ocorre uma identificação parcial que não permite a reduplicação plena do saber da forma sujeito. (INDURSKY 2008: 13)

Palavras como puta e piranha, por exemplo, observadas apenas sob a ótica da formação discursiva machista, são da ordem do estereótipo e do preconceito. Será que, na forma como são significadas na posição sujeito funkeira, contra identificam-se, de algum modo, com a formação discursiva dominante? Se assim constatarmos, em nossas análises, isso significará dizer que se intitular puta tem uma posição discursiva outra, que talvez provoque uma tensão na base da formação discursiva machista.

Já desidentificação é

uma tomada de posição não subjetiva, que conduz ao trabalho de transformação- deslocamento da forma sujeito. Ou seja, o sujeito do discurso desidentifica-se de uma formação discursiva e sua forma-sujeito para identificar-se com outra formação discursiva e sua forma-sujeito.(INDURSKY2009: 14)

Em relação à desidentificação, lançamos a seguinte indagação: até que ponto a posição mulher funkeira estar contra-identificada não é um movimento inicial que poderá acarretar, posteriormente, no rompimento com a formação discursiva em que está inscrita? como, então, classificar, em relação aos dizeres expostos nas letras, essa

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linha tênue entre contra- identificação e desidentificação?

Os sentidos têm condições de produção. O conceito de condições de produção pode ser pensado como: o de sentido estrito e o de sentido amplo (Orlandi: 2010). As condições de produção no sentido estrito consistem na afirmação de que o contexto imediato de comunicação, ou seja, a circunstância comunicativa atual possibilita ao sujeito pronunciar um determinado enunciado. Já as condições de produção em sentido amplo inclui observar o contexto sócio-histórico e ideológico em que um enunciado foi pronunciado. Ressaltamos que, para compreender as condições amplas de produção de sentidos, é necessário o resgate de elementos sócio-históricos e ideológicos pela memória discursiva, pois assim será possível observar a forma como um determinado enunciado, no decorrer do tempo, fez e/ou faz sentido.

Observamos que os sentidos surgem de algo já construído discursivamente. Para Pêcheux (2009):

o sentido de uma palavra, de uma expressão, de uma proposição etc., não existe “em si mesmo” (isto é, em relação com a sua materialidade significante), mas ao contrário, é determinado pelas posições ideológicas que estão em jogo no processo sócio- histórico no qual as palavras, expressões ou proposições são produzidas (isto é, reproduzidas). Poderíamos resumir essa tese dizendo: as palavras, expressões, proposições etc., mudam de sentido segundo as posições sustentadas por aqueles que as empregam (...)” (PÊCHEUX 2009:146)

Para o nosso trabalho, supomos que uma Mc mulher cantar, hoje, o funk

proibidão, ocorre pela existência de uma condição passível para uma certa

posição-feminina, do lugar de funkeira expressar-se.Assim, o sentido surge por meio de uma condição para sua existência, ou seja, há uma necessidade de um contexto propício para sua ocorrer.

A memória discursiva é aquilo que fala antes, em lugar outro, independentemente da vontade do sujeito. O conceito de interdiscurso pode ser definido como um sinônimo da memória discursiva. Em outras palavras, segundo Orlandi (2010), interdiscurso consiste em:

como aquilo que fala antes, em outro lugar, independentemente (...) um saber discursivo que torna possível torna possível todo dizer e que retorna sob a forma de pré-construído, o já-dito que está na base do dizível, sustentando cada tomada da palavra. O interdiscurso disponibiliza dizeres que afetam o modo como o

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sujeito significa em uma situação discursiva dada. (ORLANDI 2010:31)

Assim sendo, o interdiscurso consiste numa relação entre o já-dito e o que se está dizendo, considerando que para algum dizer fazer sentido é necessária a existência de conexão entre esses dizeres.

A Análise de discurso, segundo Orlandi (2010), reterritorializa a noção de ideologia, dando-lhe uma definição discursiva. Para essa corrente teórica, “não há sentido sem interpretação, e diante de qualquer objeto simbólico o indivíduo é levado a interpretar”(ORLANDI: 2010: 45). Por o sujeito já existir no mundo do já-dito, tem a ilusão de que os sentidos são transparentes, pois o sujeito interpreta sem se dar conta da interpretação, ofuscando, então, para si mesmo, o próprio ato interpretativo. Em outras palavras, naturalizam-se os sentidos existentes acreditando-se que eles sempre estiveram postos ali.

Pensando em nosso trabalho, podemos indagar: será que as mulheres sempre estiveram num lugar possível para cantar letras eróticas na sociedade brasileira ou tivemos uma construção possível para hoje cantarem funk proibidão na posição-feminina da favela?

Por fim, a ideologia produz a ilusão de uma evidente transparência dos sentidos para os sujeitos. Isto se dá devido ao apagamento de outros sentidos provocado pela ideologia, que faz com que o sujeito se perceba dono de si e do seu dizer, de sua interpelação em sujeito pela ideologia. Desse modo, podemos afirmar que a ideologia é a condição para constituição do sujeito e dos sentidos.

2.1 O silêncio como instância significativa

Nessa seção, iremos refletir sobre o silêncio, silêncio este que rege os processos de significação aos quais os sujeitos estão expostos. Tomamos como base, para o nosso pensar acerca do tema, o livro “As formas do silêncio - no movimento dos sentidos” de Orlandi (2007). A autora, em suas reflexões, aponta que, tradicionalmente, não consideramos o silêncio como uma materialidade significativa, isto é, associa-se o silêncio à ausência de sentido pela não presença das palavras, como um coadjuvante e mero complemento do dizer. Afastando-se dessa concepção tradicional, Orlandi (2007)

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define o silêncio como:

a própria condição da produção de sentido... O silêncio não é o vazio, ou o sem sentido; ao contrário, ele é o indício deu a instância significativa. Isso nos leva à compreensão do “vazio” da linguagem como um horizonte e não como falta. (ORLANDI 2007:68)

A autora também considera importante, também, fazer uma distinção entre o silêncio e o implícito, pois, embora sejam próximos, são de naturezas distintas.

Orlandi (2007) recupera o conceito desenvolvido por Ducrot (1972) em que a conceituação do implícito se dá através de um recorte entre “o dito e o não dito.” Nessa relação entre o dizer e não dizer, há uma clara dependência do não-dito com o que é dito. Dito de outro modo, o implícito é significado pelo já-dito, possuindo uma conexão direta com o mesmo.

A distinção entre silêncio e implícito em Orlandi (2007) é de ordem distinta. Consiste em:

o silêncio não ter nenhuma dependência do dizer para significar, o sentido do silêncio não deriva do sentido das palavras.

Essas observações se fazem necessárias porque é preciso considerar a relação fundamental das palavras como o silêncio, sem, no entanto, reduzir este a um complemento da palavra.(ORLANDI 2007:66)

A autora ainda acrescenta que

legibilidade do silêncio só é tornada possível quando consideramos que a materialidade significante do silêncio e a da linguagem diferem e que isso conta nos distintos efeitos de sentido que produzem. (ORLANDI 2007:67)

Vale ainda ressaltar que, o que interessa em nosso trabalho, não é, conforme Orlandi, o silêncio como uma qualidade física, mas como sentido e história, como matéria significante. Em outras palavras, de acordo com Orlandi,

o silêncio de que falamos é o instala o limiar do sentido. O silêncio físico não nos interessa, assim como, para o linguista, o ruído enquanto matéria física não se coloca enquanto objeto de reflexão. (ORLANDI 2007:68)

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funcionamento do silêncio: o silêncio fundador e a política de silêncio. O fundador, segundo a autora, é aquele que torna toda a significação possível, e a política de silêncio versa sobre as cisões entre o dizer e o não dizer.

O silêncio fundador é garantido pela forma como os movimentos de sentidos se significam, sendo um movimento necessário e não originário. Trabalha com o funcionamento da língua com a ideologia, porque sempre se diz algo a partir de uma possibilidade histórica-social-ideológica, sendo este o local onde são produzidas as representações do mundo, as crenças e os conhecimentos.

De outro modo, segundo Orlandi (2007)

Se o silêncio não tivesse um sentido em si mesmo, uma vez categorizado, esse sentido seria definitivo. A língua extenuar-se-ia na usura das palavras, torna-se extenuar-se-ia pura invenção.(ORLANDI 2007:71)

Há ainda a consideração de duas formas de organização do silêncio fundador: a forma organizada e a forma não organizada. O lapso10 consiste na forma não organizada e a censura na forma organizada.

Por fim, em relação ao silêncio fundador, consideramos que:

Se os sentidos e as palavras não estivem limitados pelo silêncio, o sentido das palavras já há muito teria dito tudo o que se pode dizer...Isso porque o silêncio não é categorizável. Ele é condição da linguagem, mas absoluto, intemporal e ilimitado e sua extensão. Assim, talvez pela compreensão do discurso, etimologicamente como o que retorna, podemos estabelecer o modo apropriado de compreender o silêncio em seu movimento contínuo. (ORLANDI 2007:72)

Antes de apresentarmos os conceitos existentes na política do silêncio, é importante mostrar a diferença entre o silêncio fundador e a política de silêncio. De acordo com Orlandi (2007:73),

A diferença entre o silêncio fundador e a política do silêncio é que a política do silêncio produz um recorte entre o que se diz e o que não se diz, enquanto o silêncio fundador não estabelece nenhuma divisão: ele significa em (por) si mesmo. (ORLANDI 2007:73)

10Para Orlandi (2007:71), “..o lapso coloca em relação os dois lados da polissemia: comete um excesso

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A política de silêncio é subdividida em: silêncio constitutivo e silêncio local. O silêncio constitutivo indica que, para dizer, é preciso não-dizer, e que é a inserção dos sujeitos discursivos nas formações discursivas historicamente determinadas é o que dá sentidos ao dizer. “Ao dizer algo, apagamos outros sentidos possíveis, mas indesejáveis, em uma situação discursiva dada” (ORLANDI 2007:73). Aprofundando o já exposto acima, a autora considera que:

o silêncio constitutivo pertence à própria ordem de produção do sentido e preside qualquer produção da linguagem. Representa a política do silêncio como um efeito de discurso que instala o antiimplícito: se diz “x” para não deixar dizer “y”, sendo este o sentido a se descartar do dito. É o não-dito necessariamente excluído (ORLANDI 2007:73)

Há, então, um funcionamento do silêncio que se efetua nos limites do das regiões de sentidos, isto é, nas formações discursivas, determinando os limites do dizer. Isso evidencia que o que é dito e o que é silenciado são elementos da linguagem inseparáveis.

Em nosso trabalho, observamos uma recorrente substituição de palavras, nas letras de funk, numa tentativa de não inscrição explícita no que é da ordem do subversivo. Um exemplo disso é a criação de outro título para uma música da Valesca Popozuada chamada “Agora eu virei puta”, trocando-se a palavra “puta” por “absoluta”. Com essa troca, o título no mercado musical legal torna-se o “Agora eu virei absoluta”. Desse modo, com base no silêncio constitutivo, temos o apagamento por meio da nomeação, isto é, a nova nomeação (“absoluta”) apagando não dito inadequado (“puta”). Porém, o que é inadequado comparece de outro modo. Em síntese, consideramos que:

toda denominação apaga necessariamente outros sentidos possíveis, o que mostra que o dizer e o silenciamento são inseparáveis: contradição inscrita nas próprias palavras... Presença e silêncio se cruzam no mesmo acontecimento da linguagem. (ORLANDI 2007:74)

Ao lado do silêncio constitutivo, como parte da política de silêncio, temos uma manifestação mais explícita dessa política: o silêncio local.

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enfraquecimento dos sentidos. Em outras palavras, o silêncio local não permite dizer o que se pode dizer. Há uma assumida interdição dos sentidos possíveis.

Uma das formas de atuação do silêncio local é a censura. Orlandi (2007) aborda a censura não como forma linguística, que visa classificação, detecção de marcas e coleta de dados. A autora busca analisar a censura como fato da linguagem que produz efeitos no que é dito e no próprio silêncio. Segundo Orlandi (2007)

a censura pode ser compreendida como a interdição da inscrição do sujeito em formações discursivas determinadas... funciona do lado da opressão. Mas isso não tem nenhum mistério: proíbem-se certas palavras para se proibirem certos sentidos... ao se proceder desse modo, se proíbe ao sujeito ocupar certos lugares, ou melhor, proíbem-se certas posições do sujeito.(ORLANDI 2007:76)

Em nossa pesquisa, observamos o funcionamento da censura quando são interditados os palavrões nas letras comerciais da grande mídia. Há um apagamento do que é considerado vulgar. A nossa suposição é que essa proibição de inscrição do sujeito em outros lugares afeta a posição sujeito funkeira, fazendo-a significar-se num lugar outro e de outra forma.

2.2 A historicidade do funk

Com o intuito de compreender melhor esse funk erótico feito, hoje, por mulheres, buscaremos traçar um breve histórico desse movimento musical, especificamente, na cidade do Rio de Janeiro. Tomaremos como base para a construção desse histórico os trabalhos de Vianna (1988), Essenger (2005) e Amorim (2009).

A história do funk no Brasil iniciou-se no final da década de 1960 com uma performance bem diferenciada da atual. Segundo Essinger (2005), os primeiros bailes

funk, conhecidos como “bailes da pesada”, foram realizados na década de 1970 no

Canecão, zona sul carioca, organizados por Big Boy, locutor da Rádio Mundial, e por Ademir Lemos, discotecário e admirador do soul de James Brown11. O som do soul e do

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rock estavam presentes nessas noites de domingo e chamavam a atenção de jovens de diferentes classes sociais. Desse modo, diferentes posições sujeitos identificavam-se com o imaginário musical do funk apresentado nos bailes. Esses bailes proporcionaram a criação de equipes de som que tocavam em pequenas festas, dentre elas se destacaram: Black Power, Revolução da Mente, Las Vegas, Cash Box, SoulGrand Prix, Furacão 2000, Pop Rio.

Os bailes no Canecão cessaram com a transformação do local em cenário da música popular brasileira (MPB). Com isso, os bailes promovidos por grupos de som passaram, em princípio, a não ter local fixo; posteriormente, se tornaram constantes em clubes da Zona Norte e Zona Oeste do Rio de Janeiro. Eles criaram raízes na periferia da cidade, com o Black-Rio, referência aos integrantes do movimento (todos eles afrodescendentes), e passaram a constituir um movimento típico do subúrbio carioca. O objetivo do Black-Rio, segundo seus admiradores, era desenvolver um trabalho de conscientização social junto aos frequentadores dos bailes, constituídos em sua maioria por afrodescendentes e pessoas de baixa renda.

É interessante pensar que, inicialmente, o funk, no Brasil, surgiu como um elemento capaz de atrair jovens de diferentes classes sociais. Com o passar dos anos, essa possibilidade de comparecer em diferentes grupos sociais foi, de algum modo, cessada. Apresentar o funk como um movimento que comparece na periferia foi uma associação óbvia construída pelas grandes mídias. Com isso, o funk é visto, até hoje por grande parte da população, como um movimento típico do subúrbio carioca no qual comparecem sujeitos afrodescendentes de classes menos abastadas. Essa inscrição do

funk no subúrbio apresenta-se como um sentido dominante que circula de forma

repetida e constitui uma de suas memórias discursivas. À luz disso, lançamos mão de Indursky (2011: 71) afirmando que:

se há repetição é porque há retomada/ regularização de sentidos que vão constituir uma memória que é social, mesmo que esta se apresente ao sujeito do discurso revestida da ordem do não sabido. São os discursos em circulação, urdidos em linguagem e tramados pelo tecido sócio- histórico, que são retomados, repetidos, regularizados. (Indursky 2011: 71)

Vianna (1988), em seu livro O mundo funk carioca, afirma que o ritmo conhecido no Brasil como soul, na década de 1970, já era conhecido nos Estados Unidos como funk, devido às modificações sofridas nas batidas e nas letras das músicas.

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Nessa época, cantores como Tony Tornado e Tim Maia passaram a integrar o funk brasileiro, embora as propostas vindas dos Estados Unidos chamassem mais a atenção dos integrantes do movimento. Além das batidas pesadas, o ritmo ganhou também uma versão mais lenta que passou a ser conhecido como charme.

Segundo George Yúdice (2004 apud AMORIM 2009), em 1975 o Soul Grand Prix iniciou uma nova fase que o autor denomina cultura funk do Rio. Essa nova fase foi rotulada pela polícia de “Rio Negro” pelo fato de introduzir a cultura negra através de dançarinos, nomes de destaque do meio musical e esportivo.

Mas, de acordo com Vianna (1988), é a partir da década de 1980, com os chamados melôs, que o funk passou a ganhar maior expressão no cenário musical, apesar de os integrantes desse movimento ainda sofrerem preconceitos e críticas da sociedade carioca. Os melôs surgiram como uma forma de diálogo entre os Djs e o público, tendo em vista a dificuldade dos participantes do movimento em pronunciar o nome de muitas músicas que eram executadas nos bailes, pois a maior parte delas era em língua inglesa. Ainda na década de 1980, de acordo com o autor, os melôs receberam versões nacionais, como o Melô da mulher feia, título original Do wah diddy, do grupo Live Crew. A partir de então, surgem os melôs propriamente com letras em português, conforme a música apresentada em (2) abaixo:

(2) Meu patrão é o maior mala / Quem vacila vai para vala / O terror só pega leve / Na hora do rala-rala / Ôôô frankestein é o terror / Ôôô o vampiro é o terror / Ôôô lobisomem é o terror / Aí seu segurança, não vem que não tem / Eu sou filho de Deus, sei que tu não é também / Eu vim aqui no baile pra poder me dar bem / Já tomei muita porrada do inspetor na funabem / Pode passar o rodo e me mandar embora / Que eu vou ficar dançando lá do lado de fora / A gente somos colegas / É tudo gente amiga / Por isso é que nós se porra/ Por isso que a gente briga / Só tem neguinho fera zoando nesse trem /Quero ver toda a galera aqui semana que vem.12

De acordo com Essinger (2005), na década de 1980, os frequentadores dos bailes, sujeitos geralmente oriundos dos grandes aglomerados da Zona Norte e da Zona Oeste andavam em grupos pelas ruas Do subúrbio do Rio em busca de bailes funk que cobravam preços condizentes com a condição social deles. O grande atrativo dos bailes eram as equipes de som, com todo o aparato de luzes e alto-falantes. O DJ era tratado como uma figura secundária ao baile, pois ele se apresentava de costas para o público; posteriormente, passou a ser o ponto central do baile.

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Marlboro, Regina Case, Hubert: Melô do terror. Fonte:www.letras.terra.com.br/dj-marlboro/762342/

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