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Tribunal da Relação de Lisboa Processo nº 3196/08.0TDLSB.L1-9 Relator: GUILHERMINA FREITAS Sessão: 25 Fevereiro 2010

Número: RL

Votação: UNANIMIDADE

Meio Processual: RECURSO PENAL Decisão: PROVIDO

ABUSO DE CONFIANÇA CONTRA A SEGURANÇA SOCIAL

DESCRIMINALIZAÇÃO

Sumário

Não tem aplicação em sede de crime de abuso de confiança contra a segurança social o limite de € 7.500 estabelecido no nº 1, do artº 105º, do RGIT, na redacção dada pela Lei nº 64-A/2008, de 31 de Dezembro.

Texto Integral

Acordam, em conferência, na 9ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa

I. Relatório

1. Nos autos com o nº 3196/08.0TDLSB foram os arguidos “J.., Ldª”, e A…

acusados da prática de um crime continuado de abuso de confiança em relação à segurança social p.p. pelas disposições conjugadas dos artºs 11º e 12º do C. Penal, 6º, 7º nºs 1 e 3, 107º e 105º nº 1, da Lei 15/2001 de 5 /6, com a nova redacção dada pela Lei nº 53-A/2006 de 29/12.

O Instituto da Segurança Social, IP. deduziu nos autos pedido de indemnização cível contra os arguidos, requerendo a sua condenação no pagamento da

quantia de € 1 335,99, acrescida dos juros de mora, vencidos e vincendos, calculados de acordo com a legislação especial de que beneficia a Segurança Social, constante do artº 3º nº 1 do Dec. Lei 73/99 de 16/3, até integral

pagamento.

Distribuídos os autos ao 3º Juízo Criminal da Comarca de Lisboa, foi proferido,

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em 2/9/2009, o despacho judicial de fls. 170 a 172, que considerou

descriminalizada a conduta dos arguidos, nos termos do disposto nos artºs 105º nº 4 e 107º nº 1 do RGIT e declarou extinta a instância cível por impossibilidade de continuidade da lide.

Inconformados com a decisão, dela recorreram o Ministério Público e o demandante cível Instituto da Segurança Social, IP..

2. Da respectiva motivação extrai o MºPº as seguintes (transcritas) conclusões:

Por despacho de 10.9.2009, o tribunal a quo declarou extinto o procedimento criminal instaurado contra os arguidos que vinham acusados da prática de um crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, na forma continuada, previsto e punido pelos art.°s 30.°, n.° 2, do Código Penal e 27.° do RJIFNA, actualmente, 107.°, n.° 1 do RGIT.

Fundamentou tal decisão na aplicação da alteração efectuada ao disposto no n.° 4 do art.° 105.° do RGIT, introduzida pela Lei n.° 64/08, de 31.12, na parte em enuncia: "só são criminalmente puníveis as dívidas referentes a prestações tributárias com valor igual ou superior a € 7.500,00 Euros".

A Jurisprudência dos Tribunais Superiores tem sido controvertida: No sentido da aplicação do disposto no art.° 105.° do Regime Geral das Infracções

Tributárias ao artigo 107 n.° 1 do Regime Geral das Infracções Tributárias (RGIT) e, consequentemente, a descriminalização das condutas atinentes ao crime de abuso de confiança à Segurança Social de valor igual ou inferior a 7500,00 €, pugnou o Acórdão da Relação de Lisboa, de 25.02.2009 proferido no processo 102/04.4TACLD.L1-3.

4. Defendendo o inverso, isto é, que a conduta prevista no art.° 107.°, n.° 1, do RGIT, cujo valor de cada prestação seja igual ou inferior a 7500,00 € não está descriminalizada, uma vez que a letra do art.° 105.° n.° 1 do RGIT decorrente da Lei 64- A/2008, de 31.12, não se aplica ao disposto no artigo 107.°, n.° 1 do mesmo diploma - Acórdão da Relação de Coimbra, de 4.3.2009 (processo n.°

257/03.5TAVIS.C1) e o Acórdão da Relação do Porto de 25.3.2009 (processo n.

° 1131/01.5 TASTS).

5. Da leitura do disposto no art.° 107.°, n.° 1 do RGIT, sobressai, desde logo, a ideia de que a remissão efectuada reconduz-se, apenas, à moldura penal a aplicar.

6. A previsão e estatuição da norma do art.° 107.° do RGIT estão

integralmente reguladas nesse mesmo artigo: As entidades empregadoras que, tendo deduzido do valor das remunerações devidas a trabalhadores e membros dos órgãos sociais o montante das contribuições por estes

legalmente devidas, não o entreguem, total ou parcialmente, às instituições de segurança social .... ".

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7. Apenas a sanção se encontra regulada por remissão - são punidas com as penas previstas nos nºs 1 e 5 do artigo 105º.

8. Das alterações introduzidas pela Lei 64- A/2008, de 31.12, no seu artigo 113.° não se encontra a alteração ao artigo 107.° do RGIT.

9. Sendo o art.° 107.°, n.° 1 do RGIT uma norma autónoma do art.° 105.° do RGIT, as alterações previstas no art.° 113.° da Lei 64-A/2008, de 31.12, no que se refere aos elementos do tipo do art.° 105.°, n.° 1 do RGIT não lhe são

aplicáveis.

10. Neste sentido pronunciou-se o Acórdão do TRC, de 4.3.2009, onde se lê: "0 artigo 107. º, n.º 1, do RGIT define integralmente o tipo de abuso de confiança contra a segurança social e apenas remete para as penas previstas no art.°

105. °, n.° 1 e 5 e não para os elementos do tipo ou condições de procedibilidade do art.° 105.°, n.° 1 e 5.

O tipo legal de crime de abuso de confiança contra a segurança social encontra no n.° 1 do art.° 107.° do RGIT a completa descrição da matéria proibida e de todos os outros requisitos de que depende em concreto a

punição que torna objectivamente determinável o comportamento proibido e objectivamente dirigível a conduta do cidadão sem necessidade de recurso ao artigo 105.° do RGIT para tal efeito."

11. Os bens jurídicos tutelados pelas normas do art.° 105.° e 107.° do RGIT são diversos.

12. O art.° 105.° dirige-se ao não pagamento de impostos directos e

indirectos, obrigações fiscais de periodicidade mensal, trimestral ou anual das obrigações declarativas e de entrega das importâncias de IVA e IRS.

13. Por seu turno, o disposto no art.° 107.° do RGIT, regula as obrigações perante a Segurança Social, ou seja, a obrigação declarativa de entrega de declarações de remunerações e pagamento das respectivas contribuições, cuja regularidade é sempre mensal.

14. Além disso, o RGIT remete sempre para os valores que devem constar de cada declaração (art.° 105.°, n.° 7 do RGIT), o que significaria que, admitindo a descriminalização de omissões de entrega de contribuições iguais ou

superiores a € 7.500,00 Euros, ficaria vazio de conteúdo a penalização por tal ilícito criminal, na medida em que cada contribuição mensal para a segurança social raramente assume tais valores.

15. Acresce, ainda, que a diferente natureza dos bens jurídicos justifica a inserção das normas protectoras destes em diferentes capítulos e esclarece que a tipologia objectiva e subjectiva dos ilícitos em causa tem de

forçosamente ser diferente.

16. Daí admitir-se que o legislador efectuou remissão para a moldura penal aplicável mas já não para os elementos objectivos e subjectivos dos tipos em

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causa.

17. Tal entendimento encontra absoluto acolhimento na própria interpretação sistemática da Lei n.° 64-A/2008, de 31.12, e com ele se harmoniza.

18. A própria inserção sistemática da alteração acima mencionada é

demonstrativa de que a mesma não se aplica ao crime de abuso de confiança contra a segurança social.

19. De facto, "o art.° 113.° da Lei n.° 64-A/2008, de 31.12 (Lei do Orçamento de Estado para 2009) integra-se na sua secção II - "Procedimento e Processo Tributário" do Capítulo XI - "Procedimento, Processo Tributário e outras

Disposições", enquanto as alterações legislativas que contempla para o regime da Segurança Social se inserem no seu capítulo V - "Segurança Social" (art.°

55.° e seguintes) e, nesta parte é que poderia - deveria - caber qualquer alteração aos crimes contra a segurança social."

20. Cumpre destacar que, no RGIT não estão regulamentadas as contra- ordenações contra a segurança social.

21. Tal matéria vem regulada no Decreto-Lei n.° 64/89, de 25.2, que

estabelece o regime sancionatório da Segurança Social e define as contra- ordenações contra a Segurança Social. Da análise de tal diploma legal, resulta concluir que não existem quaisquer contra-ordenações por falta de entrega das contribuições à Segurança Social.

22. Admitir a despenalização nos termos supra ditos e defendidos pelo despacho ora em crise, "cria-se um espaço de absoluta impunidade para comportamentos bem mais censuráveis do que aqueles que são tipificados como contra-ordenações contra a Segurança Social" in Acórdão da Relação de Coimbra de 04.03.2009.

23. Em nosso entender, o que resulta da letra da lei é que nos termos do

disposto no art.° 107.°, n.° 1 do RGIT não está previsto qualquer limite mínimo para o quantitativo da prestação social em dívida.

24. E, consequentemente, a Lei do Orçamento do Estado - Lei 64-A/08, de 31.12- não operou relativamente a este artigo qualquer alteração, não lhe sendo aplicável o determinado no art.° 105.°, n.° 1 do RGIT.

25. O despacho recorrido violou o disposto no art.° 107.°, n.° 1 do RGIT, devendo, consequentemente, ser revogado.

Termos em que deve ser dado provimento ao presente recurso, revogando-se o despacho recorrido e, consequentemente, substituí-lo por outro que determine o prosseguimento da acção penal contra os arguidos pela prática do crime de abuso de confiança contra a Segurança Social.

Este o nosso entendimento.

V. Exas., porém, decidirão de Justiça!

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3. Por sua vez o Instituto da Segurança Social, IP. extrai da sua motivação as seguintes (transcritas) conclusões:

O objecto do recurso prende-se com a seguinte questão: O Tribunal " a quo ", após ter declarado a extinção do procedimento criminal instaurado contra os arguidos, e em consequência determinado o arquivamento dos autos, atento o principio da adesão plasmado no artigo 71° do CPP, declarou extinta a

instância cível por impossibilidade de continuidade da lide, tendo o ora Recorrente deduzido pedido de indemnização civil nos autos.

Ora, salvo o devido respeito pelo entendimento sufragado pela decisão

recorrida, entendemos que o Tribunal " a quo " fez uma errada interpretação da lei substantiva e processual aplicável ao caso em apreço.

Desde logo, preceitua o Artigo 71° do Código de Processo Penal que:

" O pedido de indemnização civil fundado na prática de um crime é deduzido no processo penal respectivo, só o podendo ser em separado, perante o tribunal civil, nos casos previstos na lei ".

Trata-se do chamado princípio da adesão obrigatória da acção cível de

indemnização à acção penal, com as excepções previstas no Artigo 72° do CPP.

Por um lado, há razões de economia processual a recomendá-lo, pois que num mesmo e único processo se resolvem todas as questões que envolvem o facto criminoso, bem como, a causa de pedir integra os mesmos pressupostos do crime imputado aos arguidos.

O facto do Tribunal declarar extinto o procedimento criminal instaurado contra os arguidos e determinado o arquivamento dos autos, nem por isso se encontrava arredada a possibilidade de ressarcimento dos danos na acção penal, atento o disposto no Artigo 377° n.° 1 do CPP, o qual prevê que:

"A sentença ainda que absolutória, condena o arguido em indemnização civil, sempre que o pedido respectivo vier a revelar-se fundado ".

Face ao Artigo 377° n.° 1 do CPP, verifica-se a autonomia entre a

responsabilidade civil e a responsabilidade criminal, mas isso não impede que, mesmo no caso de absolvição da responsabilidade criminal, o Tribunal não

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conheça da responsabilidade civil, que tem necessariamente a mesma causa de pedir, ou seja, os mesmos factos que são também pressuposto da

responsabilidade criminal.

O douto despacho impugnado não deu cumprimento ao disposto no assento n.°

7/99 do STJ, que fixou a seguinte jurisprudência:

"Se em processo penal for deduzido pedido cível, tendo o mesmo por

fundamento um facto ilícito criminal, verificando-se o caso previsto no artigo 377.°, n.° 1, do Código de Processo Penal, ou seja, a absolvição do arguido, este só poderá ser condenado em indemnização civil se o pedido se fundar em responsabilidade extracontratual ou aquiliana, com exclusão da

responsabilidade civil contratual "- D.R. I-A, n.° 179, de 03-08-99.

Assim, no processo penal deve ser arbitrada indemnização não só quando os factos preenchem os requisitos da responsabilidade criminal, mas ainda quando, não existindo responsabilidade criminal, os factos preenchem os requisitos da responsabilidade civil conexa, de âmbito menor.

10°

No caso dos autos, verificando-se a descriminalização das condutas dos

arguidos, sendo extinta a sua responsabilidade criminal, ao demandado passa a ser aplicável o estatuto de parte civil, sendo que o ora Recorrente viu ser atingida a tutela das suas expectativas legitimas.

11°

Do mesmo modo, atente-se no n.° 1 do artigo 73.° do CPP, que refere:

" O pedido de indemnização civil pode ser deduzido contra pessoas com responsabilidade meramente civil e estas podem intervir voluntariamente no processo penal".

12°

Por outro lado, refira-se que o Despacho ora recorrido viola ainda o acórdão de fixação de jurisprudência n.° 3/2002 do STJ, que estabeleceu a seguinte jurisprudência: " Extinto o procedimento criminal por prescrição, depois de proferido o despacho a que se refere o artigo 311° do Código de Processo Penal mas antes de realizado o julgamento, o processo em que tiver sido deduzido pedido de indemnização civil prossegue para conhecimento deste".

13°

O citado acórdão de fixação de jurisprudência aplica-se igualmente a outros casos de extinção do procedimento criminal, que não assentem

exclusivamente na prescrição, o que se verifica nos presentes autos, sendo que o despacho ora recorrido determinou a extinção do procedimento criminal instaurado contra os arguidos, e o consequente arquivamento dos autos.

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14°

Por outro lado, vem sendo entendido pelo nosso STJ, mormente no aludido Acórdão de Fixação de Jurisprudência n° 3/2002 (DR 1-A Série de

05/03/2002), que o facto de, entretanto, ser declarado extinto o procedimento criminal nos autos, isso não impede (antes se impõe), que se conheça do

pedido de indemnização civil entretanto já deduzido nos autos.

15º

Da mesma forma, encontra-se igualmente inobservado o n.° 3 do artigo 445.°

do CPP que dispõe

"A decisão que resolver o conflito não constitui jurisprudência obrigatória para os tribunais judiciais, mas estes devem fundamentar as divergências relativas à jurisprudência fixada naquela decisão".

16°

Ora, no caso dos autos, o Tribunal " a quo " não atentou no acórdão de fixação de jurisprudência n° 3/2002 do STJ, bem como, não fundamenta porque

diverge do STJ, violando o n.° 3 do artigo 445.° do CPP.

17°

Impõe-se pois, no nosso entendimento que o douto despacho impugnado seja revogado, e substituído por outra que ordene o prosseguimento dos autos para julgamento da acção civil enxertada no processo penal, uma vez que está em causa responsabilidade civil extracontratual por factos ilícitos ( crime de abuso de confiança contra a Segurança Social ), nos termos do artigo 483° do C.C.

18°

Encontram-se violados no douto despacho impugnado proferido pelo Tribunal

"a quo " os seguintes preceitos legais: Artigos 71°, 73° n.° 1, 311°, 377° n.° 1 e 445° n.° 3 todos do Código de Processo Penal; Artigo 483° do Código Civil, o Assento n.° 7/99 do STJ e o Acórdão de Fixação de Jurisprudência n° 3/2002 (DR I-A Série de 05/03/2002)

Nestes termos, em face da motivação e das conclusões atrás enunciadas, deve ser dado provimento ao presente recurso, e em consequência, ser revogado o douto despacho recorrido e ordenado o prosseguimento da instância para julgamento do pedido civil, assim se fazendo por VOSSAS EXCELÊNCIAS, serena, sã e objectiva

JUSTIÇA

4. Os arguidos não apresentaram resposta aos recursos, os quais foram admitidos por despacho de fls. 219 dos autos.

5. Nesta Relação o Digno Procurador Geral Adjunto apôs o seu visto, nos

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termos e para os efeitos do disposto no artº 416º do C.P.Penal.

6. Procedeu-se à conferência, cumprindo, agora, apreciar e decidir.

II. Fundamentação

1. Delimitação do objecto dos recursos

É pacífica a jurisprudência do S.T.J. no sentido de que o âmbito do recurso se define pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, sem prejuízo, contudo, do conhecimento das questões oficiosas (artº 410º nº 2 e 3 do C.P.Penal).

Assim sendo, as questões a apreciar por este Tribunal ad quem, são:

- Saber se a alteração introduzida pelo artº 113º da Lei 64-A/2008 de 31/12, que aprovou o Orçamento Geral do Estado para 2009, ao nº 1 do artº 105º do RGIT (abuso de confiança fiscal) é igualmente aplicável ao crime de abuso de confiança contra a segurança social p.p. pelo artº 107º do mesmo RGIT, sendo certo que, na afirmativa, a conduta dos arguidos está descriminalizada,

conforme considerou a decisão recorrida.

- Saber se, uma vez extinto o procedimento criminal por considerar-se a conduta dos arguidos descriminalizada, os autos devem ou não prosseguir para apreciação do pedido de indemnização cível neles tempestivamente deduzido pelo Instituto da Segurança Social, IP.

2. A decisão recorrida

É do seguinte teor o despacho recorrido, que, de seguida, se transcreve:

“Os arguidos J… Lda, e A…, vêm acusados da prática de um crime de abuso de confiança à segurança social na forma continuada p. e p. pelos artigos 27°B do RJIFNA e 107°, n°s 1, do RGIT, com referência ao artigo 105°, n° 1, do mesmo diploma.

Segundo consta da acusação durante o mês de Dezembro de 2004, a sociedade arguida não entregou mensalmente à Segurança Social as contribuições deduzidas dos salários dos trabalhadores.

O prazo para pagamento das mesmas é o estipulado na lei, isto é, até ao dia 15 do mês seguinte aquele a que diziam respeito.

O tipo de crime aqui em causa "realiza-se com a não entrega dolosa das prestações tributárias deduzidas pelo agente que, desta forma, lesam o património do Estado" (cfr. Susana Aires de Sousa, " Os Crimes Fiscais, Análise Dogmática e Reflexão sobre a Legitimidade do discurso

Criminalizador" pág. 21).

Sendo certo que cada contribuição não paga constitui uma conduta isolada afigura-se, atento os termos em que se encontra redigida a acusação, que os arguidos terão praticado uma única conduta criminosa não enquadrável no conceito de continuação.

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Analisando a acusação na parte relativa às contribuições em dívida, verifica-se que apenas existe uma referente ao mês de Dezembro de 2004, no valor de 1.335,99 euros.

Ora, acontece que a Lei n° 64-A/2008 veio dar nova redacção ao n°4 do artigo 105°, do RGIT, considerando que só são criminalmente puníveis as dividas referentes a prestações tributárias com valor superior a 7.500,00 euros.

Anteriormente estabelecia o n° 6, do artigo 105° do RGIT, revogado pela referida Lei, que " se o valor da prestação a que se referem os números anteriores não exceder €2.000, a responsabilidade criminal extingue-se pelo pagamento da prestação, juros respectivos e valor mínimo da coima aplicável pela falta de entrega da prestação no prazo legal, até 30 dias após a

notificação para o efeito pela administração tributária."

Nos termos do disposto no n°7, do artigo 105° do RGIT, aplicável ex vi n° 2, do artigo 107°, apenas se deve ter em conta o valor que deveria constar de cada uma das declarações que o contribuinte estava obrigado a declarar.

Nos termos do disposto no n° 1, do artigo 107°, do RGIT, " as entidades empregadoras que, tendo deduzido do valor das remunerações devidas a

trabalhadores e membros dos órgãos sociais o montante das contribuições por este legalmente devidas, não o entreguem total ou parcialmente, às

instituições de segurança social, são punidas com as penas previstas nos n°s 1 e 5, do artigo 105°."

Importa ainda referir que o n° 2, do artigo 107 do RGIT determina a aplicação ao abuso de confiança contra a segurança social do disposto nos n°s 4, 6 e 7 do artigo 105° pese embora aquele tenha sofrido alteração.

Fazendo uma análise das normas legais aplicáveis afigura-se que a intenção do legislador foi estabelecer para os crimes de abuso de confiança fiscal e abuso de confiança contra a segurança social, o mesmo regime punitivo.

Assim, perante esta realidade afigura-se que, onde a lei não distingue, não caberá ao intérprete fazê-lo.

Como consta do acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 25.02.09, "A não criminalização do não pagamento das quantias devidas à Segurança Social até ao montante de €7.500,00 não significa que tais quantias não continuem a ser devidas, devendo elas ser cobradas pelos meios processuais próprios para o efeito.

Foi o próprio Estado que entendeu desinteressar-se criminalmente falando, das quantias devidas até €7.500,00, tendo-o feito, é certo, antes de se

conhecer a extensão da crise (...) tal limite de €7.500,00 já existia para o crime de fraude contra a segurança social, conforme já se referiu, pelo que

entender-se agora que esse limite se verifica também para o crime de abuso contra a segurança social, nada tem de completamente novo."

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Decorre do disposto no artigo 2°, n° 2 do Código Penal que o facto punível segundo a lei vigente no momento da sua prática deixa de o ser se uma lei nova o eliminar do número das infracções.

Aplicando tal artigo à situação concreta aqui em análise, verifica-se que a conduta dos arguidos deixou de constituir crime, pelo que atento o exposto, declaro extinto o procedimento criminal aqui instaurado contra os arguidos e, em consequência, determino o oportuno arquivamento dos autos.

*

Atento o princípio da adesão plasmado no artigo 71°, do C.P.P., declaro extinta a instância cível por impossibilidade de continuidade da lide. Notifique. DN”

3. Apreciando

Comecemos por analisar o recurso interposto pelo MºPº até porque, a

proceder o mesmo, perde razão de ser o conhecimento do recurso interposto pelo demandante cível.

A questão suscitada no despacho recorrido está a gerar duas posições antagónicas ao nível da jurisprudência das Relações.

De um lado aqueles que entendem, à semelhança da decisão recorrida, que tem aplicação em sede de crime de abuso de confiança contra a segurança social o limite de € 7 500 estabelecido no nº 1 do artº 105º do RGIT, na

redacção dada pela Lei nº 64-A/2008 de 31/12 (Lei que aprovou o Orçamento Geral do Estado para 2009), pelo que, consideram descriminalizadas as

condutas descritas no artº 107º do RGIT, anteriores à alteração introduzida pela referida lei, quando estejam em causa contribuições iguais ou inferiores a esse limite.

Vejam-se neste sentido, entre outros, os Acórdãos desta Relação de

28/10/2009, de 17/11/2009 e de 3/12/2009, proferidos, respectivamente, no âmbito dos Proc. 77/08.0TDLSB.L1-3, 2676/02.5TDLSB.L1-5 e

7133/07.0TDLSB.L1-9, todos eles disponíveis in www.dgsi.pt.

Do lado contrário, ou seja, aqueles que entendem que tal limite não tem aplicação quando está em causa o crime de abuso de confiança contra a segurança social, temos, entre outros, os Acórdãos desta Relação de

21/10/2009, de 28/10/2009 e de 15/12/2009 proferidos, respectivamente, no âmbito dos Proc. 7136/07.5TDLSB.L1-3, 6857/07.7TDLSB.L1-3 e

11110/05.8TDLSB.L1-5.

Neste sentido se pronunciou de igual forma o Supremo Tribunal de Justiça no Acórdão de 17/12/2009, proferido no âmbito do Proc. 331/01.2TAVCD.S1, disponível igualmente in www.dgsi.pt, pese embora, ao que se julga, com um voto de vencido.

Por nós, propendemos para sufragar esta última posição, pelas razões que, de seguida, se explanarão.

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Em primeiro lugar porque entendemos que se o legislador quisesse introduzir qualquer alteração ao artº 107º do RGIT o teria feito expressamente.

Se o não fez é porque entendeu que em relação aos crimes de abuso de confiança contra a segurança social não se justificava a imposição de um limite mínimo a partir do qual a conduta deve ser considerada como crime.

Compreende-se que assim seja, atenta a diferente natureza dos bens jurídicos que cada um deles visa proteger, e que sempre justificou a autonomização dos tipos legais, apenas com convergência no que respeita à punição.

Como se refere no Acórdão do STJ, supra citado, “Enquanto que no ilícito de abuso de confiança fiscal os bens jurídicos a proteger se cifram na

arrecadação de receitas do Estado, em cumprimento de uma das raras obrigações públicas incidentes sobre as pessoas, mas e também, já o vimos, repartir mais justamente os rendimentos, a riqueza e a atenuação das

desigualdades entre os cidadãos, através da afectação a fins não específicos, já no ilícito de abuso de confiança relativamente à Segurança Social as

prestações se destinam a fins muito específicos seus, de que beneficiam apenas certas e determinadas pessoas, os seus contribuintes, como

contrapartida de uma relação sinalagmática assente nas quotizações dos trabalhadores, obrigados à contribuição geradora da contraprestação –cfr.

Prof. Casalta Nabais, in o Financiamento da Segurança Social em Portugal, Estudos em Memória do Conselheiro Nunes de Almeida, Coimbra 2007, págs . 638 a 642 .

(…) Razões, pois, se perfilam para fazer repercutir dissonantemente as

alterações legais num e noutro, consoante a entidade credora das prestações, por serem diferentes as finalidades de cada um dos sistemas, visando

objectivos distintos.

Não é desprezível o argumento histórico, a “ ocasio legis “, a situação de crise social, pública e notoriamente incidente entre nós, que implica a

disponibilidade em crescendo de fundos para ocorrer a situações crescentes de dificuldade, incompatível com um tratamento benéfico dos infractores, além de que a difícil sustentabilidade do regime de protecção social, tão apregoada, também se não harmoniza com um regime de nítido favor e abrandamento penal, em termos de, concludentemente, se mostrar lesado o princípio da igualdade consagrado no art.º13.º , da CRP.

(…) O reconhecimento da dificuldade de sustentabilidade do regime de Segurança Social dita, para dissuasão dos potenciais infractores, o reforço punitivo do abuso de confiança, em nada colocando em crise o princípio da unidade do sistema, que postula a ausência de incoerências, um

entrelaçamento harmónico das regras legais, onde se não concebem normas em colisão, quais corpúsculos estranhos, de conciliar.

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E na verdade a ser inteiramente coincidente o regime punitivo entre os ilícitos em causa, ficaria sem compreender-se como no caso de fraude fiscal só a vantagem patrimonial ilegítima superior a 15 000 € cai na alçada penal

enquanto que para a fraude à Segurança Social se estabelece o limite de 7.500

€ -art.ºs 103.º n.º 4 e 106.º n.º 2 , do RGIT- , diversificando o legislador regimes, severizando a fraude à Segurança Social , com o que se mostra

inteiramente conciliável a não aplicação de maior favor do art.º 105 .º, n.º 1 do RGIT .

E pese embora os regimes jurídico-penais de ambos os ilícitos terem corrido em paralelo, nada impede, numa interpretação actualista, ditada por aquelas considerações, impondo que se fixe uma interpretação, baseada nos elementos teleológico e histórico -art.º 9.º n.º 1, do CC- que se destaque daquela

alteração, na diversidade dos próprios bens jurídicos a proteger, além de que a tese da descriminalização não encontra qualquer apoio no elemento literal, aquele de que deve partir –se em primeiro lugar para definir o sentido e alcance da lei .”

Em segundo lugar, há que ter em atenção, que o abuso de confiança fiscal relativamente à falta de entrega de prestações não superiores a € 7.500 continua a ser punível como contra-ordenação (art.º 114.º nº 1 do RGIT), enquanto que a falta de entrega de contribuições devidas à segurança social não vem prevista em nenhum diploma legal como contra-ordenação.

Ora, como bem se refere no Acórdão da RL de 21/10/2009, supra citado, “Não é aceitável entender-se que o legislador pretendeu deixar totalmente impune essa falta de entrega nos casos em que não ultrapasse aquele limite, quando se trata de comportamento bem mais censurável do que outros que vêm tipificados, nomeadamente no Decreto-Lei n.º 64/89 de 25/2, como contra- ordenações contra a segurança social.”

Por outro lado, a entender-se que o limite de € 7 500, previsto para o crime de abuso de confiança fiscal, é também aplicável ao crime de abuso de confiança contra a segurança social, passaria a existir, incompreensivelmente, um

mesmo limite para a fraude e para o abuso de confiança contra a segurança social, enquanto que para os crimes fiscais o limite para a fraude é de € 15 000, ou seja, o dobro do previsto para o abuso de confiança fiscal.

Do exposto, há que concluir, que não foi intenção do legislador aplicar ao crime de abuso de confiança contra a segurança social, previsto no artº 107º do RGIT, o limite de € 7 500 a que alude o nº 1 do artº 105º do mesmo RGIT, na redacção que lhe foi introduzida pelo artº 113º da Lei 64-A/2008 de 31/12.

Razão porque se considera não descriminalizada a conduta dos arguidos, procedendo o recurso interposto pelo Ministério Público.

A apreciação do recurso interposto pelo Instituto da Segurança Social, IP.

(13)

mostra-se prejudicada, na medida em que, o prosseguimento do processo crime faz cair por terra o argumento, considerado na decisão recorrida, da impossibilidade da continuação da lide para apreciação do pedido cível conexo.

Contudo, sempre se dirá que, ainda que se considerasse despenalizada a conduta dos arguidos, a extinção do procedimento criminal não teria como consequência a impossibilidade superveniente da lide cível, face ao disposto no nº 1 do artº 377º do C.P.Penal e à jurisprudência fixada pelo STJ no Acórdão de 17/1/2002, publicado no DR Iª série, de 5/3/2002.

III. Decisão

Pelo exposto, acordam os Juízes na 9ª Secção Criminal da Relação de Lisboa, em conceder provimento ao recurso interposto pelo MºPº, revogando-se o despacho recorrido, o qual deverá ser substituído por outro que, nada obstando, ordene a normal tramitação processual, ficando, destarte,

prejudicada a apreciação do recurso interposto pelo Instituto da Segurança Social, IP.

Sem custas.

Lisboa, 25 de Fevereiro de 2010

Processado e revisto pela relatora, a primeira signatária, que assina a final e rubrica as restantes folhas (art. 94.º, n.º 2 do CPP).

Guilhermina Freitas Calheiros da Gama

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