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REPRESENTAÇÕES DO FEMININO NO CINEMA: uma análise semiológico-psicanalítica de filmes de Lars Von Trier MESTRADO EM COMUNICAÇÃO E SEMIÓTICA

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Academic year: 2018

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA SÃO PAULO

PUC/SP

Elisangela Miras

REPRESENTAÇÕES DO FEMININO NO CINEMA: uma análise semiológico-psicanalítica de filmes de Lars Von Trier

MESTRADO EM COMUNICAÇÃO E SEMIÓTICA

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA SÃO PAULO

PUC/SP

Elisangela Miras

REPRESENTAÇÕES DO FEMININO NO CINEMA: uma análise semiológico-psicanalítica de filmes de Lars Von Trier

MESTRADO EM COMUNICAÇÃO E SEMIÓTICA

Dissertação apresentada à Banca

Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de MESTRE

em Comunicação e Semiótica – Signos e

significações na mídia, sob a orientação da Profª, Drª Leda Tenório da Motta

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BANCA EXAMINADORA

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_________________________________

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AGRADECIMENTOS

Agradeço meus amigos queridos, sem os quais, este trabalho não teria sido possível, pelo dom que têm do entendimento do texto e da escrita, sobretudo pelo uso generoso que fazem desse dom: Cristina Bassi e Adriano Messias

Pelo carinho e companheirismo de tantos anos: Luciana Goldman Pela paciência, trabalho, dedicação e parceria: Orivaldo Sotei Kaio

Pelas mudanças e crescimentos que tive na vida: à minha mãe e ao meu filho Arthur Pelo acolhimento, gentileza e exemplo de maestria: Professor Jorge Albuquerque Pelos apontamentos e orientação: Juan Droguett e Fabio Caim

Pelas longas discussões e amizade: Fabricio Addeo Ramos, Paula Moureau e Daisy Oliani

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RESUMO

A presente pesquisa tem como objetivo principal examinar a representação do feminino no cinema de Lars Von Trier. Debruçando-se, mais detidamente, sobre Dançando no Escuro, Dogville e Melancolia, corpus que recobre o período de 2000 a 2011, buscamos indicar as estratégias de construção do sentido aí em jogo. Teoricamente, o trabalho requisita a semiologia barthesiana, notadamente o conceito clássico de “mito”, e a psicanálise freudiano -lacaniana em torno do feminino. A primeira embasa a análise fílmica. A segunda, a análise das personagens femininas. Acrescentam-se, a essas bases de apoio, outras, oferecidas por bons comentadores de Freud e de Lacan e, ainda, por estudiosos do cinema e da obra de Lars Von Trier. Em consonância com tais perspectivas, joga-se aqui com a hipótese de que, na figuração do feminino, nada se agarra à natureza, mas é sempre construção histórica e discursiva. A relevância do trabalho está ligada à quase total inexistência, entre nós, de leituras barthesianas sobre o cinema e, ainda, à raridade de enfoques semiótico-psicanalíticos da mídia que levem Barthes em consideração.

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ABSTRACT

This research has as main proposal to make an analysis of the representation of women in films by Lars Von Trier. After a more close glance on Dancer in the Dark, Dogville and Melancholy, a corpus that covers the period from 2000 to 2011, I sought to indicate the strategies of meaning construction that interact here. Theoretically, this work requires the support of Barthes’ semiology, notably his classical concept of “myth”, as well as the Freudian-Lacanian psychoanalysis around women and female questions. The first one is a base for film analysis. The second helps me to analyse female characters. I added to these supports contributions of excellent thinkers about Freud and Lacan works, and also contributions of film scholars and analysers of Lars Von Trier masterpieces. Consistent with these perspectives, I launched here the following hypothesis: in the figuration of the feminine, nothing is linked to the so-called “nature”, rather to a historical and discursive construction. The relevance of the work is related to the almost total absence of Barthesian readings in the cientific Brazilian literature, specifically on films, and also to the rarity of media semiological and psychoanalytic approaches related to Barthes’studies.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO...

CAPÍTULO I – O FEMININO, A SEMIOLOGIA E O CINEMA... 1.1 Crítica e Semiologia...

1.2 Eisenstein semiólogo………

1.3 Tarkovski………..

1.4 Carl Dreyer………...

1.5 Berthold Brecht……….

CAPÍTULO II – O CINEMA DE LARS VON TRIER...

CAPÍTULO III – ANÁLISE FÍLMICA...

CAPÍTULO IV – CINEMA E PSICANÁLISE...

CONSIDERAÇÕES FINAIS...

BIBLIOGRAFIA...

APÊNDICE...

ANEXOS... 8

13 24 31 32 34 36

38

51

63

91

94

101

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INTRODUÇÃO

Lars Von Trier é um dos nomes mais polêmicos de nossa época e, segundo ele mesmo, o “melhor cineasta do mundo”. Tomado, muitas vezes, como um charlatão vaidoso, Trier também encaixa-se perfeitamente no papel de “(...) gênio errático, enigmático, atormentado, arrogante, inseguro e visionário” (STEVENSON, 2005, p. 14). Formulador de uma estética cinematográfica pós-moderna, crítico arguto dos sistemas políticos, do modo de produção industrial do cinema e do próprio homem, o cineasta questiona o mundo atual e propõe, por meio de suas protagonistas, figuras de mulher que portam o mal-estar contemporâneo e respondem a ele com a coragem própria de uma Medeia. Por isso, sua obra certamente oferece um caminho extremamente oportuno para se refletir sobre a representação do feminino no contemporâneo, tema central deste trabalho, que aborda a mulher no cinema, a partir de análises fílmicas.

O primeiro capítulo faz uma digressão sobre a crítica feminista do cinema e sobre a mulher no cinema, cujos corpos, principalmente no cinema hollywoodiano, passam a ser animados por uma aura de mera aparência, sendo os corpos do cinema, como comenta Baecque (2008), tributários dos espetáculos ao vivo da Belle Époque, que expunha monstros humanos ao vivo para um grande público avido de espetáculos do corpo. E foi a partir da década de 1930 que Holywood passou a fazer séries tanto de terror dos corpos como do glamour, causando repulsa e desejo. O corpo passa a ser domesticado pelas regras do próprio cinema, o que o autor chama de savoir-vivre hollywoodiano:

(...) não olhar para a câmera, ser bastante aterrorizadoras, mas não demais para alguns, suficientemente apetecíveis, sem porém ultrajar as poderosas ligas da virtude para os outros, filmar rápido e bem, passar pelas mãos dos maquiadores, das figurinistas e dos chefes operadores do estúdio, respeitar os códigos da narração. (BAECQUE, 2008, p. 485)

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O primeiro capítulo recorre também à semiologia, mais precisamente, ao conceito de mito, tal como foi desenvolvido por Roland Barthes, cujo conceito Santaella (2010) aproxima de mythos, que é uma narrativa poética e legendária, ou seja, histórias e fragmentos de histórias metafóricos. Os antigos mitos se desenvolveram nas tradições religiosas e literárias da cultura e os novos mitos desenvolvem-se nos meios de cultura de massa; neste sentido, o cinema é um grande criador de mitos. Barthes, em seu artigo Os Romanos no Cinema, faz uma análise sobre os signos presentes no filme Júlio Cesar (1953) de direção de Joseph Leo Mankiewcz (1909-1993). O autor pontua, por exemplo, sobre a presença de franjas na testa dos personagens como signo que opera abertamente associado à romanidade, mas, ao juntar a figura do gângster-xerife à franja romana, pode-se ter uma gag: “É que para nós (franceses), o signo funciona em excesso, e ele perde a credibilidade ao deixar transparecer a sua finalidade” (BARTHES, 2010, p.30). Nesse sentido, no cinema de Lars Von Trier, temos a mulher como mito desvelado.

Para tanto, Lars Von Trier lança mão da teoria de Berthold Brecht que, nos anos 1930, fazia uma discussão estética pautada no marxismo criticando os modelos realistas presentes no teatro e no cinema. Stam (2011) comenta que essa crítica foi retomada nos anos de 1960 e 1970 após a apresentação da As performances da mãe coragem e seus filhos (1956), no Teatro das Nações de Paris, bem como pelos ensaios escritos por Roland Barthes e Bernard Dort. O autor afirma que a crítica brechtiana influenciou teóricos e cineastas ao redor do mundo e que os conceitos de Brecht para o teatro podem ser igualmente aplicáveis ao cinema, como, por exemplo: criação do espectador ativo, rejeição ao voyeurismo e à convenção da quarta parede, a crítica aos abusos da empatia e do pathos, arte como um chamado à práxis, modificação do mundo, fratura do mythos (como no music hall ou vaudeville, antiaristotélico e baseado em esquetes), o distanciamento na interpretação do ator como se estivesse falando em terceira pessoa, interpelação do espectador que no cinema pode ser feito pela própria câmera etc.

No entanto, corre-se o risco de negar os prazeres convencionais do cinema como a narrativa, a mimese, a identificação – levando o espectador à deriva:

Para ser eficaz, um filme deve oferecer a sua cota de prazer, algo para se descobrir, ver ou sentir. O distanciamento brechtiano, ao fim das contas, somente pode ser eficaz se houver algo – uma emoção, um desejo – de se distanciar. Limitar-se a lamentar o deleite das audiências com o espetáculo e a narrativa trai uma postura puritana com respeito ao prazer

cinematográfico. De pouco vale os filmes serem “corretos” se ninguém está

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Lars Von Trier alia a técnica de distanciamento de Brecht às influências do teatro sueco de August Strindberg, do cinema de Ingmar Bergman e, sobretudo, de seu conterrâneo Carl T. Dreyer, com quem estabelece um diálogo e, neste trabalho, mais especialmente na cena de morte da protagonista de Dançando no Escuro, com o martírio de Joana D’Arc, portanto, a obra de Dreyer também será considerada para as análises aqui apresentadas.

Ao mesmo tempo, seria impossível estudar Trier sem considerar a influência que Andrei Tarkovski exerceu sobre ele. Para manter a coerência com o conceito de “ligação orgânica”, de Tarkovski, para quem toda obra deve ser plasmada a partir do material biográfico de seu autor, será introduzida, no segundo capítulo, uma pequena biografia de Trier, abordando sua infância, a passagem pelas escolas de cinema e sua cinematografia.

O terceiro capítulo apresenta o estudo dos filmes do corpus, escolhidos a partir da cronologia de lançamento do ano 2000. Serão destacados os seguintes filmes de cada trilogia proposta pelo diretor: Dancer in the Dark (Dançando no Escuro, 2000), Dogville (2003) e Melancholia (Melancolia, 2011).

O quarto capítulo dedica-se à análise específica das protagonistas, a saber, Selma (Dançando no Escuro), Grace (Dogville) e Justine (Melancholia), a partir de conceitos psicanalíticos, mais especificamente, do conceito de gozo feminino, de Jacques Lacan.

Foi no século XV que surgiu o termo gozo como designação jurídica do uso de um bem a fim de tirar dele satisfações que ele supostamente pudesse proporcionar, neste contexto está ligado à noção de usufruto, ou seja, o direito de gozar de um bem pertencente a terceiros. Em 1503, esse termo foi estabelecido a partir de uma ideia hedonista, portanto, ligada ao prazer, à alegria ou ao grande prazer dos sentidos. Lacan retoma, em seu seminário de 1972, a noção de usufruto ao dizer: “O usufruto quer dizer que podemos gozar de nossos meios, mas que não devemos enxovalhá-lhos. [...] O que é o gozo? Aqui ele se reduz a ser uma instância negativa. O gozo é aquilo que não serve para nada” (LACAN, 1972-1985, p. 11).

Zalcberg (2007) afirma que Lacan, ao distinguir a sexualidade masculina da feminina, coloca o gozo fálico do lado masculino, portanto, um gozo com limite, e a mulher do lado do gozo mais além e sem limite, ou seja, um gozo além do falo, ou gozo suplementar. Freud fundamenta, a partir de Totem e Tabu, a proibição do incesto no mito de Édipo e, com isso, defende a história individual de cada sujeito como a repetição da história da própria humanidade.

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fálico, limitado, porque submetido à ameaça de castração. Não houve para as mulheres algo similar, ou seja, ao menos um que tenha escapado à castração:

(...) o gozo do Outro, gozo esperado, aguardado e fora do alcance desse pai originário, embora igualmente impossível para a mulher, não é, todavia, atingido pela proibição da castração. O gozo feminino, portanto, é diferente

e, acima de tudo sem limite. É, pois, um “gozo suplementar (ROUDINESCO & PLON, 1997, p. 300).

A diversidade estética da obra de Trier marca um estilo difícil de ser classificado e coloca sua arte dentre aquelas que não se encaixam em gêneros. Há mesmo uma excentricidade nas figuras femininas, que mesclam o sacrifício, o devotamento, a bondade, a graça e a dignidade com lados profundamente sombrios. Eis porque a obra do cineasta mostrou-se tão propícia a alimentar a discussão sobre a feminilidade. Jorge Forbes, em seu livro Você quer o que você deseja? (2003), aborda uma nova histeria que atenta contra todos os semblantes da civilização, da cultura, havendo um gozo irrefreável. Com isso, ele nomeou a nova histérica de Medeia, aquela que não para diante de nada e que Lacan chamou de “verdadeira mulher” por sua postura de estar disposta a tudo. Lacan também examina o caso da mística adotando o critério de júbilo do sujeito: “E poderíamos fazer uma série: o júbilo da heroína, o júbilo da militante, o júbilo da mística [...] saber sacrificar certo número de coisas pelo que se considera de ordem superior” (LAURENT, 2012, p. 64). As personagens de Lars Von Trier parecem trilhar este caminho.

O cinema moderno questionou e modificou as estruturas e as linguagens. A Nouvelle Vague, por exemplo, é abordada por Manevy (2011) como um movimento que criou condições para uma definição radical dos padrões e maneiras de filmar e de se compreender o cinema:

O Parricídio geracional desencadeado pelos jovens turcos afirmou no âmbito local, a ruptura com o cinema de estúdios francês e, no plano da história das formas, a consciência avançada da representação. A consciência alojaria tanto a inocência criativa quanto o descrédito do cinema, propiciando o abandono da janela estável e transparente do ilusionismo clássico (MANEVY, 2011, p. 221).

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“aquele” feminino, “este” ou “aquele”masculino, mas a mulher que representa o “gozo”, em sentido lacaniano, de modos diferentes e singulares, carregando paixões universais como sacrifício, melancolia, determinação.

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CAPÍTULO I - O FEMININO, A SEMIOLOGIA E O CINEMA

No início do cinema, ainda no final do século XIX, as protagonistas eram as vedetes do teatro. Porém, a partir de 1913, surgiu, nos Estados Unidos e na Europa, a figura da estrela, de modo que as atrizes passaram a se sobrepor às suas personagens, transformando-se em verdadeiros mitos. Segundo Morin (1989), Mary Pickford, conhecida como Little Mary, encarnava a mocinha frágil, que necessitava de proteção; Francesca Bertini personificava a mulher possuída de amor; Théda Bara simbolizava a imagem da vamp, cujo termo, segundo Baecque (2008), surgiu por causa do título original do filme em que a dinamarquesa Theodosia Goodmann atuou pela primeira vez, passando, então, a se chamar Theda Bara. O título do filme baseava-se no primeiro verso da peça The Vampires, do anglo-indiano Rudyard Kliping. São características da Vamp:

(...) olhar fascinante, efeito de olheiras, atuação nos antípodas do natural, vestuário luxuoso, sensualidade orientalista, exibicionismo de poses e magnificência das cerimônias, pérolas e bijuteria em abundância, culto do amor, destino fatal para as vítimas desse amor (BAECQUE, 2008, p. 490).

A partir de 1918, Cecil B. de Mille entrou no cenário, para criar o mito da “mulher bela”. Já no período entre guerras, surgiu a femme fatale e “a mulher que sofre por amor”, exalando beleza desse sofrimento. Segundo Morin, Greta Garbo seria a maior representante da categoria: “Garbo presente-ausente entre nós, testemunha hoje a grandeza passada das estrelas. Grande demais para o cinema que se tornou muito pequeno. (...) sobrevivente do crepúsculo dos deuses, seu mistério e sua solidão permitem medir a amplitude que eles atingiram” (MORIN, 1989, p. 11).

O fascínio pela sedução exercida através desses artifícios da Vamp tenta apagar as lembranças da guerra. A mulher fatal pôde então concorrer com os horrores da guerra. Neste mesmo período, tem-se na Itália o fenômeno das divas: “ Diva é mais sofisticada, mais delirante, mais artista, mais literária, mais melodramática ainda que sua irmã do outro lado do Atlântico” (BAECQUE, 2008, p. 491).

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A partir da década de 1930, com o advento do som, os filmes ganharam maior complexidade. Se o primeiro cinema tinha algo de plebeu, o novo cinema passava a introjetar os valores burgueses. Uma das maiores expressões desse fenômeno foi, sem dúvida, os musicais, nos quais o canto e a dança substituíam a introspecção feminina.

Entre as décadas de 1940, 1950 e 1960, a mulher, bastante erotizada, tornou-se a síntese do bem e do mal. Exemplificam essa nova figura feminina as atrizes Lauren Bacall, Rita Hayworth e Marilyn Monroe. São as pin-ups, cujo sex-appeal não tinha mistérios. Por meio das ações de vestir-se, banhar-se, despir-se, dançar, apresentavam um erotismo desinibido, em correspondência com o desejo masculino de corpos femininos voluptuosos: bocas, olhares e gestos provocantes. Segundo Baecque (2008), se o sonho da Primeira Guerra era a mulher fatal, exótica, sofisticada, mulher-diabo, o da Segunda Guerra obedecia ao American way of life através da boa moça bochechuda e de grandes nádegas.

Dessa forma, o cinema clássico hollywoodiano conferiu à mulher a conotação de mito, enquanto representação do que o discurso estruturado pelo patriarcado determinava como desejável para o homem. Essa característica marcante fez surgir, a partir de 1970, uma segunda crítica feminista, que identificou, nesse tipo de produção cinematográfica, o reflexo da cultura patriarcal na qual as mulheres estavam inseridas. Stam (2011) aborda duas ondas feministas no século do cinema, sendo “(...) a primeira ligada à luta pelo sufrágio universal e a segunda originada no interior dos movimentos políticos liberacionistas dos anos 1960” (STAM, 2011, p. 193). Tanto o feminismo, de modo geral, como o feminismo ligado ao cinema, tomaram como ponto de partida as ideias de Virginia Woolf e Simone de Beauvoir, sobre as quais faremos, em seguida, uma breve explanação.

Em 1920 em reposta a Desmond MacCarthy (com o pseudônimo de Falcão Afável), que havia escrito uma resenha à New Stastesman sobre os ensaios de Bennett, Virgínia Woolf preconiza suas opiniões sobre a mulher:

O fato, sobre o qual penso que concordemos, é que as mulheres, desde a antiguidade até o tempo presente, geraram toda a população do universo. Essa ocupação tomou-lhes muito tempo e força. Também as colocou em sujeição ao homem, e incidentalmente – se é que isto é relevante – incutiu-lhes as qualidades mais amáveis e admiráveis da raça humana (WOOLF, 1920/1996 p.12).

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É preciso que as mulheres tenham liberdade de experimentar, que sejam diferentes dos homens, sem medo, e que expressem estas diferenças livremente (pois não concordo com Falcão Afável que homens e mulheres sejam semelhantes); que toda atividade intelectual seja bastante estimulada da forma que sempre haja um núcleo de mulheres que pensem, inventem, imaginem e criem tão livremente como os homens, e com tão pouco medo do ridículo ou de condescendência (WOOLF, 1920/1996 p.14).

Em 1931, em discurso para a National Society for Women’s Service, V. Woolf termina deixando àquelas mulheres que já haviam ganhado liberdade, já estavam no mercado de trabalho, as seguintes questões:

Vocês ganharam seu próprio espaço na casa até agora possuída exclusivamente por homens. Vocês são capazes, embora não sem grande trabalho e esforço, de pagar o aluguel. Vocês estão ganhando suas 500 libras ao ano. Mas esta liberdade é apenas um começo; o cômodo é de vocês, mas ainda está vazio. Como vocês vão mobiliá-lo, como vocês vão decorá-lo? Com quem vão dividir e em que termos? Estas são questões de maior importância e interesse. Pela primeira vez na história vocês são capazes de colocá-las; pela primeira vez vocês são capazes de decidir por si mesmas quais poderiam ser as repostas (WOOLF, 1931/1996, p.30).

Simone de Beauvoir inicia sua obra O Segundo Sexo, ao questionar se haverá mulher, ou, ainda, o que uma mulher, postula que todo ser humano do sexo feminino não é necessariamente mulher e que à mulher cumpre participar do que chama “(...) realidade misteriosa e ameaçada que é a feminilidade” (BEAUVOIR, 1980, p. 7).

Todos os mitos da criação exprimem essa convicção preciosa do macho e, entre outras, a lenda da gênese, que através do cristianismo, se perpetuou na civilização ocidental. Eva não foi criada ao mesmo tempo que o homem, não foi fabricada com substância diferente, nem com o mesmo barro que serviu para moldar Adão: ela foi tirada do flanco do primeiro macho. O seu nascimento não foi autônomo; Deus não resolveu espontaneamente criá-la com um fim em si e para ser por ela adorado em paga: destinou-a ao homem. Foi para salvar Adão da solidão que ele lha deu, ela tem no marido a sua origem e seu fim; ela é o seu complemento no modo do não essencial. E assim ela surge como uma presa não privilegiada. (BEAUVOIR, 1980, p. 181).

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afirmaria em se opondo” (BEAUVOIR, 1980, p. 13). Vivem dispersas entre os homens, ligadas a eles pelo trabalho, habitat, interesses econômicos; não se reivindica como sujeito. O homem constitui a mulher como Outro e a mulher não reclama a reciprocidade do homem por se comprazer no lugar de Outro, instância constituída nas mais primitivas sociedades. Nenhuma sociedade se forma e se reconhece sem o comparativo com outra. Para Beauvoir, o laço que une a mulher a seu opressor é incomparável a qualquer outro:

A divisão entre os sexos é, com efeito, um dado biológico e não um momento da história humana. É no seio de um mitsein original que sua oposição se formou e ela não a destruiu. O casal é uma unidade fundamental cujas metades se acham presas indissoluvelmente uma à outra: nenhum corte é possível na sociedade por sexos. Isso é que caracteriza fundamentalmente a mulher: ela é o Outro dentro de uma totalidade cujos dois termos são necessários um ao outro (BEAUVOIR, 1980, p. 13-14).

A autora cita Lévis-Strauss quanto a seu estudo sobre sociedades primitivas, no qual afirma que o poder, a autoridade pública ou social sempre pertenceu aos homens. Mesmo as narrativas homéricas, como a de Andrômeda e Hécuba, que tratam de um reinado feminino, são apenas mitos. Portanto, a mulher sempre teve seu lugar estabelecido pelos homens: “A sociedade sempre foi masculina; o poder político sempre esteve nas mãos dos homens” (BEAUVOIR, 1980 p. 91).

A autora retoma na história as posições que as mulheres tinham, fazendo uma digressão à idade do ferro, acentua que nessa época a reprodução para a mulher era uma desvantagem. Conta-se que as amazonas mutilavam seus seios durante as guerras, pois recusavam a maternidade, enquanto que para as não amazonas havia uma diminuição da capacidade de trabalho, ficando condenadas a longos períodos de impotência na gravidez, parto e menstruação. Nesse período, também a mulher desconhece o orgulho da criação. Ela “(...) sente-se o joguete passivo de forças obscuras e o parto doloroso é um acidente inútil e até importuno” (BEAUVOIR, 1980, p.98).

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Quando o homem atribui a si próprio a posteridade, quando se desvencilha do domínio da deusa mãe que era um Outro por sua fecundidade, ligada à natureza, então ele conquista o domínio do mundo. A mulher, despojada do prestígio místico, fica com as tarefas secundárias, “(...) não passa desde então de uma serva” (BEAUVOIR, 1980, p. 116).

Com a origem da propriedade privada, há o senhor dos escravos e da terra e o homem passa a ser o proprietário da mulher. A isso Engels chamou de “a grande derrota do sexo feminino” (BEAUVOIR, 1980, p. 74). Com o aparecimento da família patriarcal baseada na propriedade privada, a mulher é oprimida por ser apreendida no projeto de enriquecimento e expansão. Beauvoir diz que a tese de Engels de que, em uma sociedade socialista, não haveria mais homens e mulheres e, sim, trabalhadores iguais entre si, não se sustenta:

O materialismo racionalista pretende em vão menoscabar esse caráter dramático da sexualidade: não se pode regulamentar o instinto sexual; não é certo que não carregue em si uma recusa à sua satisfação, dizia Freud. O certo é que ele não se deixa integrar no social porque há no erotismo uma revolta do instante contra o tempo, do individual contra o universal (BEAUVOIR, 1980, p. 79).

Acrescenta que nos regimes totalitários, pode-se declarar que os dramas individuais não existem quando se está integrado na coletividade; no entanto, o erotismo é uma experiência na qual a generalidade é avivada pela individualidade. Portanto, para conhecer a mulher, “(...) é preciso ir além do materialismo histórico que só vê no homem e na mulher entidades econômicas” (BEAUVOIR, 1980, p. 80). Porém, ela diz que certas passagens do materialismo histórico, em Hegel, sobretudo no que tange à relação do senhor com o escravo, podem se aplicar muito bem à relação do homem com a mulher:

O privilégio do senhor, diz, vem de que afirma seu espírito contra a vida pelo fato de arriscar a sua vida; mas, na realidade, o escravo vencido conheceu o mesmo risco, ao passo que a mulher é originalmente um existente que dá a Vida e não arrisca sua vida: entre ela e o macho nunca houve combate (BEAUVOIR, 1980, p. 85).

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Em dois momentos da civilização humana, Simone de Beauvoir pontua uma melhora na sorte das mulheres, o primeiro é o regime espartano, comunitário, que tratava a mulher em pé de igualdade com os homens. As meninas na antiga Esparta eram educadas como os meninos; as esposas não eram confinadas aos lares, não havia herança, noção de adultério e os filhos pertenciam à pólis. Assim, o cidadão que não possuía bens próprios, nem uma descendência singular, não possuía também uma mulher. O segundo momento se dá no século XVII, quando aparecem mulheres que se destacam intelectualmente, pois, não tendo em que se empenhar na construção do mundo, “(...) passam a ter lazeres para se dedicarem à conversação, às artes, às letras; a sua instrução não é organizada, mas através de reuniões, de leituras, do ensino de professores particulares, chegam a adquirir conhecimentos superiores aos dos seus maridos” (BEAUVOIR, 1980, p. 134).

Historicamente, a mulher se constituiu como Outro, condição que servia aos interesses dos homens, mas, também, pelo fato de sua afirmação como sujeito, já que é necessário um Outro, uma realidade que ele não é. No entanto é a existência dos outros homens que faz o homem afirmar sua existência. Para Beauvoir, os homens detiveram os poderes concretos e mantiveram as mulheres em sua dependência. Pelo fato de um homem nunca ter tido uma vida de plenitude e repouso diante da natureza, tentou dominá-la e, desta forma, se apropriar dela, consumindo-a e destruindo-a, o que continua a deixá-lo só. Então, diante do outro (sendo o outro aquele que é ele próprio diante de si), passa a realizar a verdade de seu ser, Para isso, reduz esse outro à escravidão. Na dialética do senhor e do escravo, o segundo com o trabalho, ao sentir medo, vê-se “(...) como essencial e em virtude de uma reviravolta dialética é o senhor que se apresenta a ele como inessencial”(BEAUVOIR, 1980, p. 180).

Beauvoir dedica um capítulo inteiro de O Segundo Sexo sobre o mito, ou a mulher como mito, assunto que nos interessa neste trabalho, por defendermos a ideia de que a mulher se constitui como dado histórico, mítico ou como semblante, sendo este último o conceito de Lacan sobre os discursos. Nesse sentido, podemos retomar Barthes com sua teoria sobre mitos, na qual ele afirma ser o mito um discurso. O que Barthes chama signo é, para Lacan, o semblante.

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Claude Lévi-Strauss nos explica de que modo se forma o mito. Sendo ele advindo do discurso, dá-se a conhecer pela palavra. “O mito se define como um sistema temporal que combina as propriedades dos dois outros (língua e palavra)” (LÉVI-STRAUSS, 2003, p. 241). O mito tem uma ambiguidade fundamental: dá-se em um tempo passado e forma uma estrutura permanente. Ele tem caráter histórico e não histórico; torna-se mesmo, como diz Barthes, uma naturalização. Lévi-Strauss acentua que o mito é o oposto da poesia: “A poesia é uma forma de linguagem sumamente difícil de ser traduzida para uma língua estrangeira, e qualquer tradução acarreta múltiplas deformações. Ao contrário, o valor do mito como mito persiste, a despeito da pior tradução” (STRAUSS, 2003, p. 242).

O sentido do mito está na maneira como os elementos que o constituem se combinam. Ele provém da ordem da linguagem, é parte dela. Utilizada no mito, tem propriedades específicas, natureza mais complexa do que as que se encontram numa expressão linguística de qualquer tipo. O mito é formado por grandes unidades constitutivas ou mitemas, elementos provenientes de suas particularidades. O mito é, ao mesmo tempo, sincrônico e diacrônico, reversível e irreversível.

Nas tragédias da Grécia antiga, tem-se a representação de mulheres cuja realização se dará no casamento e na maternidade. Estudiosa das mulheres gregas, Nicole Louraux diz que elas até eram livres para se matar, mas não para saírem do espaço de suas casas. Matavam-se, com maior frequência, por um homem ou para ele, o que reafirmava na morte a relação com o casamento ou a maternidade. Neste sentido, a mulher sempre esteve excluída, seja por uma interpretação de que o corpo feminino carrega algo temível, seja por ter capacidade biológica inferior aos homens, o que também limitava sua produção de trabalho, por sua fragilidade. Para Simone de Beauvoir, isso se deve ao fato de o homem não reconhecer na mulher um semelhante, pois ela tem formas diferentes de trabalhar e pensar. Daquele que reconheceu semelhante, ele fez de escravo por ter uma mão-de-obra mais eficiente que a da mulher, o que fez com que ela perdesse o papel econômico na tribo, mas, protegida pelo tabu da fecundidade, no entanto, quando o homem pode atribuir a si a posteridade, a mulher passa a ser uma simples serva.

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É bem conhecida a afirmação de Beauvoir:

“Ninguém nasce mulher: torna-se mulher.” Nenhum destino biológico,

psíquico, econômico define a forma que a fêmea humana assume no seio da sociedade; é o conjunto da civilização que elabora esse produto intermediário entre o macho e o castrado que qualificam o feminino”.

(BEAUVOIR, 1980, p. 9).

Tendo-a em mente, perguntamos aqui: como a civilização elabora hoje esse “produto intermediário” que é a mulher? E qual seria o papel do cinema nessa elaboração?

Neste aspecto, temos a contribuição da psicanálise, que também foi utilizada como referência por outras teorias feministas. Se a primeira teoria, como abordou Stam, centrava-se em objetivos práticos de conscientização e na denúncia das imagens negativas da mulher, bem como as preocupações mais teóricas (cf. STAM, 2011, p. 195), a segunda reelaborou e adaptou a combinação de marxismo, semiótica e psicanálise, a partir da crítica ao ingênuo essencialismo do primeiro feminismo, e deslocou o foco do biologismo para a identidade de gênero:

Em lugar de centrar o foco na “imagem” da mulher, as teóricas feministas

transferiram sua atenção para a natureza genérica da própria visão e para o papel do voyeurismo, do fetichismo e do narcisismo na construção de uma visão masculina da mulher. Essa discussão levou os debates para além de uma simples tarefa corretiva de indicar as falsas representações e estereótipos, a fim de investigar a forma como o cinema dominante constrói o seu espectador (STAM, 2011, p. 195).

Mesmo com o surgimento do cinema moderno , bastante influenciado pelo neorrealismo, portanto, longe do espetáculo hollywoodiano, inclusive crítico em relação a esse espetáculo, a crítica feminista continuou a apontar essa visão masculina da mulher, assim, cabe introduzir aqui também sobre o desenvolvimento do neorrealismo, e outras influências que culminaram na Nouvelle Vague.

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De ação rarefeita, se comparado aos acontecimentos espetaculares do cinema holywoodiano, o neorrealismo contava com poucos meios e escapava às regras instituídas pelas superproduções americanas e italianas de antes da Segunda Guerra:

O neorrealismo repõe o homem no centro do quadro, destitui o rosto da persona holywoodiana, devolve à locação sua dimensão ontológica, refaz de forma convincente o pacto entre espectadores e imagens, que se perdera nas mentiras da guerra, na publicidade e na megalomania do espetáculo. A Nouvelle Vague faria seus filmes também com o preto e branco de Rossellini, muitas vezes encontrando, dentro dos filmes, a estilização “à americana”. As cores do luto revela um cinema feito de austeridade moral

da reconstrução de um país após a segunda guerra mundial. Mas, na Nouvelle Vague, o luto encontra um esforço notável de ressurreição formal, em boa medida baseado no repertório de soluções visuais de Hitchcock e Ray (MANEVY, 2006, p. 238).

Outro movimento que influenciou a Nouvelle Vague foi a pop art, cuja maior expressão encontra-se em Andy Warhol e Roy Lichtenstein. Pressupondo uma marca industrial e não artesanal, a pop art destinava-se ao mercado e referia-se à incerteza da sobrevivência da rotina de consumo e lazer padronizados, nos quais imperavam o tédio e o entretenimento. A Nouvelle Vague, então incorporou o neorrealismo, a pop art, bem como o teatro épico brechtiano, a literatura e a filosofia, para criticar o cinema comercial e as mitologias da sociedade de consumo, apresentando ao mercado cinematográfico um novo e independente perfil de produção.

No pós-guerra, a modernização do cinema encontrava-se relacionada a uma refundação ética, uma vez que elevava ao primeiro plano a luta pela sobrevivência. Tanto Fellini, em La Dolce Vita (1959), quanto Godard, em À bout de Souflle (1959), entraram na rota da pop art. Fellini inspirou-se na fotografia, na TV e na publicidade; criou closes, justaposições e colagens nos moldes da pop Art. Já Godard fez uso ostensivo de modelos da cultura de massa, criticando as convenções literárias e teatrais:

À Bout... incorpora esquemas narrativos do filme B norte-americano e recorre a enquadramentos e cortes abruptos que remetem às técnicas reprodutivas gráficas. Assim o filme traz o discurso cinematográfico a um patamar de contemporaneidade e de autonomia frente à linguagens tecnologizadas e programadas para o consumo de massa (MARTINS, 1996, p. 323).

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francesa, como o fez a partir de um discurso mais autônomo, se comparado aos modelos que o antecederam.

No âmbito do cinema moderno, Alfred Hitchcock, Fritz Lang, Haward Hawks, Jean Renoir e Nicholas Ray afastaram-se do classicismo holywoodiano, rompendo com seu funcionamento excessivamente articulado. Para Dubois (2004), esse cinema resultou do entrelaçamento de três gerações de cineastas. A primeira, a das grandes individualidades fundadoras (Roberto Rossellini, Robert Bresson, Orson Welles, Ingmar Bergman, Jacques Tati, Alain Renais). A segunda, a das forças agrupadas (o cinema italiano de Michelangelo Antonioni, Federico Fellini, Pier Paolo Pasolini; a Nouvelle Vague, de François Truffaut, Jean-Luc Godard, Eric Rohmer, Claude Chabrol, Jacques Rivette; o novo cinema alemão, de Rainer Werner Fassbinder, Win Wenders, Werner Herzog). A terceira geração ficou com os “mais jovens” (Philippe Garrel ou Chantal Akerman).

Dubois chama o cinema moderno de “plano”, porque, nele, tudo está por ver. Ao contrário do que acontecia na dramaturgia clássica, não há nada a esconder. O diretor dá lugar ao autor; a mise-en-scène cede espaço à escrita:

Algo do cinema primitivo impregna assim o cinema moderno: um certo gosto pela experiência, um certo sentido da inocência – ambos atravessados em todo o caso, por um saber (e um desejo) do cinema “clássico”: a cinefilia, a citação, o fetichismo dos “pais”. O cinema moderno, em suma,

como um misto de inocência e saber, rigor e incerteza, radicalidade bruta e cultura sutil (DUBOIS, 2004, p. 148).

Tal como os diretores da Nouvelle Vague, Lars Von Trier coloca-se contra o artificial e o acadêmico. Embora tenha realizado o manifesto denominado Dogma 95, no qual criticou o movimento francês, muitas de suas estratégias devem-se a ele. Apesar de seu manifesto postular de que a figura do autor estava proibida de aparecer, a partir da trilogia Coração de Ouro, Trier romperá com essa regra.

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O aspecto ideológico das produções de Trier e da nouvelle vague encontram pontos de afinidade. Além da crítica às fórmulas aplicadas sobre os produtos culturais de consumo de massa como os filmes de gênero norte-americanos, ambos utilizam, em suas produções, o distanciamento crítico do teatro épico de Brecht.

Distante do mito criado na dramaticidade clássica holywoodiana, o cinema moderno representa a mulher de inúmeras maneiras, segundo o estilo de cada cineasta. Segundo Marianne Höök, estudiosa de Bergman, o cineasta retrata a mulher como essencialmente sexual e cheia de vida, com exceção da mulher intelectualmente emancipada, cuja concepção moderna de seu papel a torna frígida, neurótica e infeliz.

No entanto, o próprio Bergman discorda dessa interpretação. Nos filmes do cineasta, as mulheres levantam o debate sobre o papel dos sexos. Ao longo de sua carreira, a concepção feminina foi mudando. A mocinha dócil e fisicamente frágil de seus primeiros filmes deu vez a personagens como Cecília, No limiar da vida (Nära livet, 1958), criada pela atriz e roteirista Ulla Isaksson. Na primeira versão do roteiro de O Silêncio (Tystnaden, 1963), a personagem Ester era um homem. Diante disso, nada pode provar que a mulher emancipada é mais neurótica ou mais frígida.

Algumas jovens dinâmicas de esquerda criticaram Persona (1966), sob o argumento de que as mulheres eram retratadas de forma reacionária. O diretor sueco Kjell Grede dissuadiu-as dessas críticas, alegando que o assunto do filme não era, especialmente, as mulheres, mas a moral puritana, que havia, inclusive, permeado toda a infância do próprio Bergman. Na verdade, o cineasta afirma não ter uma concepção metódica sobre a mulher nem diferenciar, de forma especialmasculino e feminino: “Eu não tenho uma concepção acabada sobre a mulher” (BJÖRKMAN, 1977, p. 18).

Em Hitchcock, aparece a mulher criminosa, a mãe dominadora, a esposa traidora, a secretária ladra, a loira gelada, enfim, uma série de representações que fizeram o diretor, muitas vezes, ser acusado de agir de forma sádica não apenas com suas atrizes, mas também com suas personagens. Ele foi bastante atacado por feministas, sobretudo por Tania Modleski, que escreveu o livro As mulheres que sabiam demais (The women Who knew too much, 2005)1. Já Laura Mulvey vê em Hitchcock a subjugação sádica da mulher enquanto objeto de poder, sustentada pela certeza de um direito legal sobre ela, sobre quem pesa a culpa, por ser a representante da castração do ponto de vista psicanalítico (cf. MULVEY, 1983).

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Tendo como referência Bergman e Hitchcock, os autores da nouvelle vague, como Godard e Truffaut, faziam filmes para mulheres. Isso levou Emmanuel Laurent, autor do documentário Godard, Truffaut e a Nouvelle Vague (2009), a afirmar que a mulher foi inventada pelo movimento e que, nos tempos dos Cahiers du Cinéma, todos adoravam Brigitte Bardot, considerada uma mulher livre. Para o diretor, Godard sempre fez filmes para mulheres, o filme Acossado nasceu para o rosto de Jean Seberg. Quando o cineasta conheceu a atriz dinamarquesa Anna Karina, que se tornou sua esposa, seus filmes passaram a ser uma declaração de amor a ela2.

Na nouvelle vague, pela primeira vez, passou-se a falar da mulher moderna, ativa, independente, que rompe com a antiga imagem romântica. Em Truffaut, as mulheres são sempre elogiadas e fetichizadas. Por isso, no lançamento de O homem que Amava as Mulheres, o cineasta foi acusado de misógino. No entanto, para Toubiana & Baeque:

Suas personagens representam uma concepção tradicional da mulher. As mulheres de seu filme correspondem particularmente, em sua diversidade, a seus fantasmas e gostos fetichistas: saia larga acompanhando as ondulações do caminhar, pernas de preferência com meias negras, sapatos altos, roupas intimas de seda (TOUBIANA & BAECQUE, 2008, p. 234).

Portanto, não se trata de uma representação misógina da mulher-objeto, mas de uma visão ultrapassada da feminilidade, datada dos anos 1950, período em que Truffaut era jovem. Assim, pode-se acusá-lo de assumir uma posição retrógrada, mas não negativa da mulher. No filme seguinte, Amor em Fuga, que dá continuidade à saga do herói Antoine Doinell as figuras femininas, nas palavras do diretor, eram “jovens de seu tempo”.

A mulher que Trier delineia em seus filmes, muitas vezes, apresenta características herdadas de cineastas como Bergman, Dreyer e Tarkovski, que elevam o sacrifício a um ponto privilegiadamente alto.

1.1 Crítica e Semiologia

Segundo E. Ann Kaplan, estudiosa do feminino no cinema, a primeira safra de críticas feministas baseou suas análises no ponto de vista sociológico, abordando o papel

2Disponível em: <

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sexual ocupado pela mulher nas artes clássicas e de entretenimento. Nos anos de 1970, os progressos alcançados pela teoria do cinema levaram a crítica feminista a precisar suas próprias limitações.

Influenciada pela semiologia e pela psicanálise, essa crítica passou a valorizar a forma como os significados eram produzidos nos filmes e a observar a relação entre os processos psicanalíticos e o cinema. O considerável corpo teórico que as feministas produziram sobre o assunto conta com trabalhos estimulantes, que tornaram possível inaugurar um novo campo de pesquisa dentro dos estudos cinematográficos.

Depois dos anos de 1970, quando as metodologias sociológicas e políticas deixaram de ser hegemônicas, a crítica feminista adotou a psicanálise, a semiologia e o estruturalismo. Segundo Kaplan, as análises sociológicas, ligadas ao estudo das pessoas na sociedade, levaram ao uso de uma terminologia relacionada aos papéis sexuais (como os das extremadas virgem e vamp). Já o método semiológico, por estar ligado à ciência dos signos, valeu-se de uma terminologia linguística. Nesse sistema significativo, a mulher funciona como signo (KAPLAN, 1995, p. 34).

Embora tome a psicanálise como ferramenta para o estudo das recorrências edipianas nas artes, Kaplan entende que a relevância de Freud encontra-se circunscrita ao enquadre vigente nos séculos XIX e XX. A organização social e industrial dessa época teria precisado criar o cinema, para liberar o inconsciente, e a psicanálise, para compreender os distúrbios causados por uma estrutura social restritiva.

Assim, a autora usa a psicanálise para desconstruir os mitos patriarcais do cinema clássico que posicionaram a mulher no lugar do outro, do enigma, do mistério eterno e imutável. O melodrama, gênero em que esse mito ganhou sua forma mais acentuada, põe à mostra as restrições e limitações que a família nuclear capitalista impôs à mulher e apresentou-lhe como naturais e inevitáveis. Por isso, o interesse explícito do gênero pelas questões edipianas (o amor ilícito; as relações entre mãe e filho; marido e esposa; pai e filho), matéria-prima ausente nos filmes de gângster e do faroeste.

A cineasta e crítica inglesa Laura Mulvey também vê no melodrama as questões edipianas e as amarguras e desilusões recônditas do público feminino, cujo apreço pelo gênero originou-se justamente no fato de encontrar expostas, nesse tipo de produção, as questões edipianas da menina. Mulvey observa, no entanto, que, curiosamente, embora dedicado à mulher, o melodrama nunca a beneficia.

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o significado no filme, ao contrário da semiologia aplicada ao cinema, capaz justamente de rever como o significado é produzido e comunicado ao público.

Em decorrência disso, assinala a importância de Roland Barthes para a teoria cinematográfica; por ter ele sido capaz de revelar que nosso mundo se compõe por toda uma série de sistemas significativos (vestimentas, hábitos alimentares, gestos) sobre os quais a linguagem predomina, “(...) funcionando, a maior parte do tempo, no nível do mito, o cinema constituiria um sistema de signos desconectado de qualquer referência ao mundo real (KAPLAN, 1995, p. 34-35).

O método semiológico não utiliza a terminologia sociológica, a qual enquadra a mulher no cinema, por exemplo, em tipos ou gêneros, como a Vamp, a virgem, a fatal, e, sim, toma o cinema como um sistema que produz significações e a mulher como signo (imagem, palavra) que podem ter usos conotativos (sugestivos e associativos), ou seja, aquilo que se denota, se faz ver e se mostra como natural pode ter conotações, sentidos subjacentes.

Segundo Ismail Xavier, para Emilio Garroni o valor do cinema moderno estaria justamente em romper as regras tradicionais, obrigando o espectador a considerar o conjunto das imagens como um código próprio, que ainda precisa ser desvelado. Assim, Garroni concorda com o conceito de desnaturalização, proposto por Roland Barthes: “É preciso “desnaturalizar” a linguagem, deste modo sabotando uma das bases de visão de mundo burguesa: a ideia do espelhamento linguagem-mundo articulada à transformação do discurso dominante no bom senso universal baseado na ‘ordem natural das coisas’ (XAVIER, 2008, p. 145).

O cinema sofre interferências de significantes cinematográficos e não cinematográficos. Roland Barthes batizou-os de “códigos”, que designam campos associativos e encontram lugar essencialmente cultural. Portanto, o filme traz, implícitas, configurações anteriores de significantes, mas não em precedência. Ao se implicitarem em um filme, o significante e suas configurações transformam-se em outro texto, que também será preciso explicitar e assim por diante (cf. AUMONT, 2011).

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Nesse sentido, Roland Barthes acentua que, por ter movimento, o cinema cria uma impressão de realidade maior do que a fotografia. A foto dá a impressão de “um isso foi”, de um “outrora”. Sua apreensão não intervém no espetáculo do movimento, ao contrário do cinema, que se forma por grandes unidades significantes. O espectador não é livre para fechar os olhos diante da tela, pois, ao reabri-los, já não encontra a mesma imagem. Barthes denomina voracidade contínua essa impossibilidade de apreender cada fotograma, tal como ocorre na fotografia: “Todavia, o cinema tem um poder que, à primeira vista, a fotografia não tem: a tela (observou Bazin) não é um enquadramento, mas um esconderijo; o personagem que sai dela continua a viver: um “campo cego” duplica incessantemente a visão parcial” (XAVIER, 2008, p. 86).

Em um dos vários artigos e ensaios compilados no livro Mitologias, Barthes declara haver, no cinema, uma escuridão tumular. Tal como acontece na caverna de Platão, o expectador, por meio de uma nesga de luz que se agita acima dele, percebe a verdade das imagens oferecidas “como uma graça celeste” (BARTHES, 2005, p. 13). Já na crítica ao filme Le Beau Serge, de Claude Chabrol, ele comenta que, no cinema, “o monstruoso é viável” e considera que a vanguarda experimenta a contradição de lidar com “signos verdadeiros”, cujo “sentido é falso” (BARTHES, 2005, p. 89).

Para Barthes, não existem histórias inocentes. Todas elas traduzem a moral e a ideologia do cineasta, a quem cabe a responsabilidade de explicar-se. Barthes lamenta os jovens talentos não lerem Brecht, autor no qual encontrariam a imagem de uma arte “(...) que sabe fazer um problema começar exatamente no ponto em que acreditam tê-lo terminado” (BARTHES, 2005 p. 33). Isso significa que a arte deveria ser pautada pelo mesmo distanciamento existente no teatro épico.

Em O problema da significação no cinema (1960), Barthes oferece o roteiro de uma análise semiológica do filme, como um campo privilegiado para a semiologia. Ainda que não possa ser restrito a uma gramática de signos, o filme alimenta-se deles, conforme a organização disposta pelo autor, que emite a mensagem pelo argumento geral e estilo pessoal, inventando signos inteligíveis.

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(...) existe na memória do espectador, e o significante apenas o atualiza, tem sobre o significado, um poder de apelo, não de definição; aliás, é por isso que em Semiologia não é totalmente correto postular uma relação de equivalência entre significante e significado; não se trata de uma igualdade de tipo matemático, mas sim de um processo de tipo dinâmico ( BARTHES, 2005, p. 43).

O significado fílmico transcende o filme e precisa atualizar-se nele. Em Unidades Traumáticas, publicado em 1960, Barthes descreve a pesquisa cinematográfica como um exercício que privilegia a imagem de natureza dinâmica e total:

(...) em primeiro lugar, o filme é vivenciado pelo espectador como um dado, ao passo que ele é na realidade um produto e pode ser, por conseguinte, submetido a variações intencionais; em segundo lugar, a imagem pode ser repetida, sem deixar, porém, de ser vivenciada a cada vez – a experimentação é possível, por assim dizer, in vivo, e o vivenciado é aqui ao mesmo tempo situação corrente e situação de laboratório. (BARTHES, 2005, p. 51).

A análise fílmica precisa detectar e classificar as unidades significantes e entender como formam a significação, como se relacionam ao seu significado, se são descontínuas ou se tudo no filme significa, já que o cinema não constitui uma linguagem, mas um logos.

A fotografia legendada, a publicidade anunciada, o cinema falado, as histórias em quadrinhos nunca se encontram privadas da palavra. Incorreremos em erro, se não nos basearmos no objeto original que Barthes chama de comunicação logoicônica, ou seja, a imagem acompanhada de linguagem. Sobre isso, Barthes afirma o seguinte em Visualização e Linguagem (1966):

Já disse e redisse que entramos numa civilização da imagem. Mas há quem esqueça que praticamente nunca há imagem sem palavras, seja na forma de legenda, de comentário, de subtítulo, de diálogos etc. Prefiro acreditar que a humanidade viveu até agora a pré-história da linguagem articulada, e que entramos finalmente numa civilização em que a linguagem será realmente conhecida e explorada (BARTHES, 2005, p. 97).

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mim: coalescente (seu significante e significado bem fundidos), analógica, global, impregnada: é um logro perfeito” (BARTHES, 1980 p. 124).

O espectador adere à ideologia, à naturalização da cena. Afinal, pergunta Barthes, quem pode escapar desse logro, desses estereótipos que sabem cativar? O lugar comum oferece o espelho da relação narcisista e maternal, do qual é difícil descolar-se. O que pode desfazer a hipnose do verossímil? Os recursos como o efeito brechtiano de distanciamento, a vigilância ideológica e a cultura do espectador.

Mas o autor também propõe outra maneira de ir ao cinema, que seria deixar-se fascinar pela imagem e seus arredores, estabelecendo uma distância amorosa e não intelectual:

Como se eu tivesse dois corpos ao mesmo tempo, um corpo narcisista que olha, perdido no espelho próximo, e um corpo perverso, pronto a fetichisar não a imagem, mas precisamente o que a excede: o grão do som, a sala, o escuro, a massa obscura dos outros corpos, o raio de luz, a entrada, a saída: enfim, para distanciar, “decolar”, eu complico uma “relação” por

uma “situação” (BARTHES, 1980, p. 124).

Assim, Barthes propõe uma análise em que as imagens e as palavras não sejam atacadas, mas recebidas. Sobre esse traço teórico marcante, Leda Tenório da Motta, em seu livro Roland Barthes uma biografia intelectual, comenta:

Outra de suas marcas inconfundíveis é a capacidade de recepcionar as imagens sem precisar resguardar-se na iconoclastia novecentista, tal como se faz representar na França, ao longo do decênio de 1960, por intervenções rumorosas como as de Guy Débord (A sociedade do espetáculo, 1967) e Jean Baudrillard (O sistema dos objetos, 1968), que, segundo alguns,

assume caráter de “cruzada”, enquanto Barthes mantém-se firme em seu

propósito de fugir à “denúncia piedosa”. Perto disso, as bem- humoradas análises barthesianas do texto visual passam por amorosas decifrações de hieróglifos que parecem ter sido feitos para os caprichos de um contemplador sereno (MOTTA, 2011, p. 178)

Nos textos colecionados no livro Mitologias, Barthes analisa, sempre com extrema erudição, ironia e bom humor, a propaganda, os best-sellers, a publicidade, ou seja, uma amplitude de assuntos que, de tão cotidianos, poderiam passar desapercebidos, não fosse seu olhar crítico e profundo.

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naturalmente. Enquanto ideologia e ciência histórica, a mitologia pertence tanto à Semiologia, quanto à ciência das formas, o mito:

(...) é um discurso que se desprega ou se desdobra no plano denotativo para o plano das ultrassignificações conotativas, ou um sistema segundo, clandestinamente narrativo, em que a significação torna-se a expressão de um outro conteúdo, ambos os estratos se imbricando para formar uma significação outra, que é ao mesmo tempo extensiva ao primeiro sistema e estranha a ele (MOTTA, 2012, p.116).

Santaella & Nöth (2010), ao abordarem o signo mítico, acentuam que Barthes e outros teóricos discutiram sobre os significados mitológicos sem diferenciá-los de conotações simples ou ideológicas e no intuito de não haver essa ambiguidade os autores aproximam o signo mítico de mythos:

(...) que significa “uma narrativa poética e legendária”, em oposição a um

relato histórico: mito nesse sentido, é uma narrativa com um nível secundário de significado, em adição a um significado primário. Refere-se assim a estórias e fragmentos de estórias com uma dimensão metafórica. Há velhos e novos mitos. Os antigos se desenvolveram dentro das tradições religiosas e literárias da cultura. Os novos estão sendo criados pelos meios de massa, inclusive a publicidade (SANTAELLA & NÖTH, 2010, p. 64).

O biógrafo de Barthes, Loius-Jean Calvet, acrescenta que o texto que marca a entrada de Barthes na semiologia é o posfácio O mito hoje, do livro Mitologias e que os textos que o precedem entre 1952 e 1956 são de outro gênero. O autor reagia e denunciava a naturalização daquilo que é profundamente natural, se impacientava diante daquilo que confundia natureza e história e assim denunciava o abuso ideológico escondido pelo encobrimento da realidade:

Deste modo, o mito deve ser encarado em dois sentidos: primeiramente como o deseja sua etimologia grega, uma lenda, um relato simbólico da condição humana, e depois como uma mentira, uma mistificação, que nos artigos que se sucediam a cada mês Barthes mostrava a propósito de um filme, uma publicidade, um discurso, uma mentira social, um travestimento ideológico [...] mito é um desvio do signo, cuja função é denotar, pois a conotação aí se torna parasita da denotação (CALVET, 1990, p. 144).

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1.2 Eisenstein semiólogo

Sergei Eisenstein foi considerado o precursor da semiologia aplicada ao cinema, tanto por causa de sua teoria do cinema como metáfora, como pela abordagem quase semiológica da imagem cinematográfica como ideograma. Eisenstein compara o processo de montagem do cinema com a escrita japonesa.

Maria Bystrzycka concorda com algumas formulações de Eisenstein para sua proposta de cinema intelectual:

Ela vai ressaltar a importância dos estudos sobre a representação ideogramática como instrumento útil na elucidação de problemas no nível da história do pensamento, dado que o ideograma articula a

interdependência entre o “mundo das coisas e aparências” e o mundo de “experiências” e “significados” (XAVIER, 2008, p. 138).

Para Eisenstein, a arte não se reduz à imitação da natureza. Ela é o conflito entre a representação de um fenômeno, sua compreensão e o sentimento que se tem dele. O conflito da forma orgânica e da forma racional é também a escritura dos sonhos sonhados pelo artista. O cineasta entende o pensamento como uma montagem e a cultura humana como o resultado desse processo de montagem, na qual o passado não desaparece, mas é reincorporado e reinterpretado no presente.

O cineasta associa o todo da obra de arte à escrita do sonho, sobretudo o cinema que, para ele, tem uma forma superior e muito próxima à linguagem: “(...) a montagem é uma ideia que nasce da colisão de planos independentes – planos até opostos um ao outro: o principio “dramático” (EISENSTEIN, 1990, p. 52).

A partir da justaposição de dois pedaços de filme, de dois fatos, dois fenômenos ou dois objetos, surge um conceito, pois costuma-se fazer uma síntese dedutiva cada vez que se colocam, lado a lado, dois elementos isolados. A imagem se dá a partir da construção de uma cadeia de representações, realizada inteiramente por meio da montagem.

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Embora herdeiro dessa tradição estética do realismo soviético, Tarkovski, avança na teoria do cinema e em suas produções não se interessando pela narrativa, mas pelo acontecimento que comunica o indizível.

1.3 Tarkovski

Também não posso aceitar o ponto de vista segundo o qual a montagem é o principal elemento de um filme, como os adeptos do ‘cinema de montagem’ afirmavam nos anos 20, defendendo as ideias de Kuleshov e Eisenstein, como se um filme fosse feito na moviola. (TARKOVSKI, 1990, p.135).

Para Tarkovski, a criação artística não se sujeita a leis absolutas e válidas para todas as épocas, mas liga-se ao objetivo de conhecimento do mundo, devendo, portanto, contribuir para a compreensão plena do significado da existência do homem. Sob esse aspecto, o cinema mostra-se a mais verdadeira e poética das artes.

Tarkovski entende que a principal característica do material cinematográfico consiste em permitir que se exponha a lógica do pensamento de uma pessoa. Por isso, propõe o raciocínio poético, que se encontra mais próximo da vida do que a lógica do drama tradicional.

A lógica comum da sequência linear assemelha-se de modo desconfortável à demonstração de um teorema. Para a arte, trata-se de um método incomparavelmente mais pobre do que as possibilidades oferecidas pela ligação associativa , que possibilitam uma avaliação não só da sensibilidade, como também do intelecto. E é um erro que o cinema recorra tão pouco a esta última possibilidade, que tem tanto a oferecer (TARKOVSKI, 1990, p. 18).

Para Tarkovski, artistas como Mandelstam, Pasternak, Chaplin, Dovjenko e Mizoguchi seriam capazes de perceber as características que regem a organização poética da existência e de ultrapassar a lógica linear, exprimindo a verdade e a complexidade profunda das ligações imponderáveis. Sem isso, o autor não teria como obter qualquer credibilidade, qualquer autenticidade, qualquer verdade interior.

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afirmou que a ambientação da cena que apresenta o carregamento de maçãs e os cavalos molhados pela chuva, cintilando sob sol não provocou nele qualquer emoção estética. Para um filme ser bem sucedido, a textura dos cenários e das paisagens deve provocar recordações precisas e associações poéticas.

O diretor revela ainda que os quatro sonhos apresentados no filme citado baseiam-se em associações pessoais. Quando o personagem de um desses sonhos diz: Mamãe, veja ali um cuco!, repete uma de suas primeiras recordações de infância, aos quatro anos de idade. A criação de O Espelho veio da ideia de que as propriedades da memória podem servir de base para um filme construído dos pensamentos, lembranças e sonhos do protagonista.

Lars Von Trier assistiu ao O Espelho por volta de vinte vezes. Tanto que a música e a coloração de seu Befrielsesbilleder (Imagens de um Liberação, 1982) baseiam-se nele. Em Melancolia, aparece o cavalo muito usado em Tarkovski tanto em A Infância de Ivã como em Solaris. O mesmo acontece com o quadro de Brueghel (Caçadores na Neve, 1565) presente no filme Solaris, assim como a recorrência de olhares para o céu. Em O Anticristo, filme dedicado a Tarkovski, lança mão dos próprios sonhos e lembranças para fazer o filme.

Para Tarkovski, a arte que não se dirige ao consumidor como mercadoria, tem por objetivo, explicar a existência ou propor a questão ao artista e de quem vive ao redor dele. Assim, arte e ciência são meios de assimilação do mundo. No entanto, enquanto, na ciência, essa assimilação ocorre por meio de uma verdade objetiva específica, na arte, se dá mediante uma experiência subjetiva, ligada a uma verdade e a uma energia espirituais que impregnam a obra e o artista. Esse último, entendido como um servidor, precisa pagar pelo dom que lhe foi concedido, já que “(...) a verdadeira afirmação do eu só pode se expressar no sacrifício (...)” (TARKOVSKI, 1990, p.41).

Lars Von Trier parece concordar com isso ao afirmar que o sacrifício confere algum sentido à existência. Morrer torna-se mais fácil, quando em nome de alguma convicção3. Assim são seus personagens. Lutam para dar sentido ao seu tempo na Terra. Nesse ponto, Trier aproxima-se de Tarkovski, para quem o objetivo de toda arte não é outro senão arar e cultivar a alma do ser humano, tornando-o capaz de voltar-se para o bem e de preparar-se para a morte. O artista, para Tarkovski, só expressa o ideal ético de seu tempo, tocando nas feridas e, ao mesmo tempo, sentindo-as abertas em sua própria carne. Amor e o sacrifício: eis os pontos cruciais da arte e dos atos do artista.

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Outro autor de grande influência na obra de Lars Von Trier é seu conterrâneo Carl Theodor Dreyer, que também adere ao mote sacrifício, sobretudo em suas personagens femininas que têm no sacrifício o ato de amor ou de conduta moral.

1.4 Carl Dreyer

Precursor de Lars Von Trier, Carl Dreyer representa o nome mais importante do cinema dinamarquês. Bazin e Eisenstein consideravam-no um cineasta cuja obra se iguala às obras-primas da pintura, em dignidade, nobreza e poderosa elegância, não só porque nelas se inspirou, como “(...) porque redescobre os seus segredos em profundezas estéticas comparáveis” (BAZIN, 1989, p. 18).

Lars Von Trier tinha, em Dreyer, uma inspiração, um herói, um modelo, um mito. Nas grandes ocasiões, trajava-se com o smoking comprado por Dreyer, em 1926, em Paris, durante a pré-produção de seu clássico A Paixão de Joana D`arc.

A aproximação dos dois se dá tanto no âmbito diegético e formal, como nos questionamentos metacinematográficos. Para Dreyer, o realismo do filme consiste sempre em um realismo psicológico. A verdade é arrancada da vida vivida, purificada, filtrada dos detalhes inúteis pela alma do artista. Não se trata de realidade, porque, nesse caso, não seria arte.

Para Dreyer, o cinema deve mostrar as mais profundas experiências psicológicas, uma verdade aliada ao espírito e à alma do ser humano. Enquanto cultura de massa, o cinema não poderia produzir o inefável, a obra de arte autoral. Por isso, ele rejeitava a utilização de efeitos ou detalhes exagerados, sobretudo no cinema sonoro, pois Dreyer viveu o cinema mudo também, que deve se ater ao conteúdo psicológico. Como Dreyer, Trier busca a verdade na personagem. Eis porque o cinema deve ser despojado de excessos de recursos tecnológicos.

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Bordwell (2011) questiona como se pode fazer filmes contemporaneamente a partir da obra de Dreyer. Para ele, os filmes contemporâneos são excêntricos, não se enquadram em gêneros nem merecem ser chamados de experimentais ou de vanguarda. Tal como se dá em Dreyer, a obra de Trier apresenta forma difusa, anacrônica e um tempo-espaço psicológico. Dreyer é, para muitos críticos, um realista em busca do conhecimento humano, característica que o aproxima novamente de Trier.

O mesmo instinto de morte presente nos filmes de Dreyer aparecem nos filmes de Trier. O instinto de morte masculino e a afirmação de vida do feminino estão em Melancolia, Dogville e Dançando no Escuro, em que os personagens masculinos morrem. Enquanto Bill pede para ser morto, John se mata e Tom é assassinado por Grace. As mulheres mesmo diante do trágico e até porque por causa dele, voltam-se para a vida.

Outro fator presente nos filmes de Dreyer é a relação com o divino. Já que se está condenado a ser humano, que seja mais próximo ao divino. É assim com Justine que, deprimida, encontra a tranquilidade na relação com o planeta. É assim com Selma, sobretudo na última cena, quando é enforcada e encontra, pela morte, a redenção que a eleva aos céus.

Além da morte das heroínas, sempre motivada pelo sacrifício, há outro ponto importante de afinidade, retratado nas faces dessas protagonistas: é o contraste entre a personagem e o ambiente, dissonância e estranhamento claramente representados por Grace, de Dogville. Outra marca importante de Dreyer é o antagonismo entre realismo presente nos elementos na cena e o expressionismo desenvolvido por meio de ângulos de tomadas de câmera e das composições de montagem, responsáveis pela tensão que explica o dilema psicológico das protagonistas e a tensão do cotidiano que pode vir à tona.

Segundo Bazin, em O Martírio deJoana D’Arc, Dreyer usa muitos closes, atendendo a dois propósitos complementares: misticismo e realismo.

A história de Joana, tal como nos é mostrada por Dreyer, apresenta-se despojada de qualquer incidência anedótica; é o puro combate das almas, mas essa tragédia exclusivamente espiritual, onde todo o movimento é interior, expressa-se cabalmente por intermédio dessa parte privilegiada do corpo que é o rosto (BAZIN, 1989, p. 18).

Trier retoma esse recurso em Dançando no Escuro, pois a protagonista expressa-se muito com o rosto. Sua expressão facial e seu canto marcam pontualmente seu sacrifício final.

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