EXECUÇÕES JUDICIAL E EXTRAJUDICIAL
NO SISTEMA FINANCEIRO DA HABITAÇÃO:
LEI Nº 5.741/71 E DECRETO-LEI Nº 70/66
Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de MESTRE em Direito, área de concentração, Direito das Relações Sociais, sob a orientação do Professor Doutor Donaldo Armelin.
Banc a Examinadora
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À inesquecível memória do meu pai, JOÃO DENARDI, e à minha mãe, AMÉLIA BEAL DENARDI, pelo exemplo de honestidade, humildade e amor que souberam
transmitir com suas atitudes.
À minha mulher e dedicada companheira, VERA “DALVA” BORGES DENARDI, que brilha intensamente na minha vida.
AGRADECIMENTOS
As lições e a orientação do professor Donaldo Armelin foram decisivas na elaboração e desenvolvimento do tema proposto. À sua experiência e admirável cultura imputo a responsabilidade pela contenção do ingênuo impulso no desenvolvimento de variados temas que redundaria em uma obra volumosa, porém incompleta. Por isso, agradeço-lhe pela seriedade, competência e conhecimento que emprestou na realização deste trabalho.
RESUMO
O desenvolvimento do tema execuções judicial e extrajudicial no Sistema Financeiro da Habitação, disciplinadas na Lei nº 5.741/71 e no Decreto-lei nº 70/66, respectivamente, tem como objetivo fundamental tratar das questões polêmicas que envolvem esses procedimentos, criados em época de regime de exceção com o escopo de promover o desenvolvimento econômico e social.
Embora muito mais célere do que os procedimentos judiciais tradicionais, atingindo o tão almejado escopo por forma alternativa ágil na resolução de conflitos, a execução extrajudicial ainda desperta controvérsias na doutrina e na jurisprudência, mesmo depois de quase 40 anos da promulgação do Decreto-lei nº 70/66. Não obstante a posição favorável assumida pelo Supremo Tribunal Federal, ainda são discutidos os aspectos constitucionais desse procedimento, surgindo daí questões relacionadas ao princípio do devido processo legal, do qual decorrem o do contraditório, o da imparcialidade e o do juiz natural.
Não menos efetivo o procedimento estabelecido na Lei nº 5.741/71, destinado à execução especial hipotecária dos contratos firmados no âmbito do Sistema Financeiro da Habitação, diferenciando-se do procedimento comum do Código de Processo Civil em face da supressão de alguns atos executivos, como pela limitação da responsabilidade patrimonial do mutuário à excussão do bem hipotecado no contrato de mútuo garantido por hipoteca.
ABSTRACT
The development of the topic judicial and extra-judicial executions in the Housing Financial Systems, governed by Law No. 5741/71 and by Law-Decree No. 70/66, respectively, has as main object to deal with the polemic issues involving these procedures, created under a regime of exception with the purpose of promoting the economic and social development.
Although much quicker than the traditional legal procedures, reaching the so much desired scope by means of an alternative and quick way of solving conflicts, the extra-judicial execution still arises controversies in legal scholarship and case law, even over nearly 40 years after the enactment of Law-Decree No. 70/66. Notwithstanding the favorable standpoint taken by the Federal Supreme Court, the constitutional aspects of this procedure still are under discussion, thereby originating issues related to the due process of law, from which issues related to contestation, impartiality and natural judge are derived.
No less effective, the procedure established by Law No. 5741/71, destined to the special mortgage execution of contracts entered into within the Housing Financial System, differentiating it from the common procedure of the Civil Procedural Code in face of the suppression of some execution acts, as well as of the limitation of the borrower’s equity liability to the excussion of the property mortgaged in the loan contract collateralized by a mortgage.
ÍNDICE GERAL
INTRODUÇÃO ... 5
1. O AMBIENTE POLÍTICO E ECONÔMICO DO MOMENTO DA EDIÇÃO DE VÁRIAS LEIS QUE TRATAM DE CONTRATOS BANCÁRIOS, COM DESTAQUE PARA O SISTEMA FINANCEIRO DA HABITAÇÃO 1.1. A utilidade do enfoque ... 11
1.2. O período de 1961 a 1985 ... 13
1.3. O período posterior a 1985 ... 21
1.4. O crédito bancário e a sua importância para a economia... 32
1.5. A política de habitação ... 40
1.5.1. O Sistema Financeiro da Habitação (SFH) e o Banco Nacional da Habitação (BNH) ... 42
1.5.2. O escopo econômico e político da ação governamental no setor habitacional ... 48
1.5.3. O interesse social como principio norteador da política habitacional ... 54
2. TUTELA JURISDICIONAL E OS CONTRATOS DE CRÉDITO BANCÁRIO 2.1. Tutela jurisdicional ... 59
2.2. Tutela jurisdicional diferenciada e efetividade do processo, com ênfase para os procedimentos voltados à recuperação do crédito bancário ... 64
2.3. A demora na recuperação do crédito. Visão econômica ... 75
2.4. A necessária cautela na criação de tutelas diferenciadas e formas alternativas de solução de litígios ... 88
3. O CONTRATO FIRMADO NO ÂMBITO DO SISTEMA FINANCEIRO DA HABITAÇÃO 3.1.Características ... 92
3.1.1. A compra e venda ... 94
3.1.2. O mútuo ... 95
3.1.3. Contrato de adesão ... 98
3.2. A garantia hipotecária ... 106
3.3. A cédula hipotecária ... 109
4. A EXECUÇÃO EXTRAJUDICIAL DO DECRETO-LEI Nº 70, DE 21 DE NOVEMBRO DE 1966
4.1. O Decreto-lei nº 70, de 21 de novembro de 1966 ... 115
4.2. Procedimento da execução ... 119
4.2.1. O requerimento do credor formulado ao agente fiduciário ... 122
4.2.2. A notificação do devedor ... 125
4.2.3. A alienação forçada do imóvel e as questões relacionadas à avaliação ... 127
4.2.4. A (ir)responsabilidade pelo saldo devedor remanescente na hipótese de arrematação por preço inferior ao valor do saldo devedor ... 132
4.2.5. A purgação da mora ... 134
4.2.6. A ação do arrematante para a imissão na posse ... 138
4.2.7. Legítima ativa e passiva para a ação reivindicatória ... 149
4.3. A (in)constitucionalidade da execução extrajudicial prevista no Decreto-lei nº 70/66 ... 150
4.3.1. A posição dos Tribunais sobre a (in)constitucionalidade da execução extrajudicial estabelecida no Decreto-lei nº 70/66 ... 151
4.3.2. O polêmico personagem diretor da execução: o agente fiduciário ... 162
4.3.3. Ainda sobre o agente fiduciário. A imparcialidade ... 170
4.3.4. O devido processo legal ... 179
4.3.5. O princípio do contraditório ... 183
4.3.6. O contraditório e o processo de execução ... 185
4.3.7. Os atos executivos. Necessidade de controle jurisdicional ... 195
5. A EXECUÇÃO ESPECIAL HIPOTECÁRIA DA LEI Nº 5.741, DE 1º DE DEZEMBRO DE 1971 5.1. A Lei nº 5.741, de 1º de dezembro de 1971 ... 200
5.2. A execução processada na forma do Código de Processo Civil, fundada em causa que não a falta de pagamento ... 205
5.3. O Código de Processo Civil e a execução especial hipotecária ... 207
5.4. Limitação da responsabilidade patrimonial ... 214
5.5. A petição inicial da execução especial hipotecária ... 216
5.5.1. O título da dívida devidamente inscrito ... 218
5.5.2. A indicação do valor das prestações vencidas e encargos e do saldo devedor ... 221
5.5.3. Os avisos regulamentares e a prova do inadimplemento ... 223
5.5.4. O valor da causa ... 230
5.6. Necessidade do vencimento de três prestações para o ajuizamento da execução ... 232
5.7. A citação do devedor e do seu cônjuge ... 233
5.9. O registro da penhora ... 242
5.10. A desocupação do imóvel hipotecado ... 245
5.11. Avaliação do bem penhorado ... 249
5.12. A arrematação ... 253
5.13. A adjudicação obrigatória do imóvel ... 258
5.14. A remição do imóvel penhorado e o convalescimento do Contrato ... 261
5.15. Concurso de credores e o crédito hipotecário ... 262
6. OS MEIOS DE DEFESA DO EXECUTADO EM FACE DA EXECUÇÃO HIPOTECÁRIA ESPECIAL DA LEI Nº 5.741/71, DE 1º DE DEZEMBRO DE 1971 6.1. Generalidades ... 269
6.2. Os embargos do devedor na execução fundada na Lei nº 5.741/71 ... 271
6.2.1. Da legitimidade para embargar ... 272
6.2.2. O prazo para os embargos ... 274
6.2.3. O efeito dos embargos ... 277
6.2.4. A cognição nos embargos à execução especial hipotecária ... 287
6.2.5. O procedimento dos embargos na execução especial hipotecária ... 289
6.2.6. A apelação nos embargos. Efeitos ... 291
6.2.7. Os embargos de segunda fase ... 294
6.3. A exceção de pré-executividade ... 296
6.3.1. Matérias da exceção de pré-executividade ... 298
6.3.2. O momento da argüição da exceção de pré-executividade ... 302
6.3.3. Argüição antes da decisão que ordena a citação ... 304
6.3.4. Argüição antes da citação ... 305
6.3.5. Oferecimento com penhora já realizada ... 305
6.3.6. Aplicação das penas dos arts. 22 e 267, § 3º do Código de Processo Civil (custas de retardamento) ... 306
6.3.7. O último momento em que a exceção de pré-executividade pode ser argüida ... 307
6.3.8. Exceção de pré-executividade e suspensão da execução ... 308
6.3.9. O recurso cabível da decisão que julga a exceção de pré-executividade ... 308
6.4. Ações autônomas de conhecimento ... 309
6.4.1. A relação entre a ação autônoma de conhecimento e a executiva ... 313
6.4.2. Conexão ou continência. Execução e ação de conhecimento ... 313
6.4.3. Conexão por prejudicialidade ... 316
6.4.4. Prejudicialidade ... 317
6.4.5. O momento da propositura da ação autônoma ... 319
6.4.6. Ação autônoma proposta antes da execução ... 319
6.4.8. Ação autônoma proposta depois do prazo dos embargos sem que
eles tenham sido oferecidos ... 321
6.4.9. A relação entre a ação autônoma de conhecimento e os embargos à execução ... 322
6.4.10. Ação autônoma proposta na pendência dos embargos ... 328
6.4.11. Ação autônoma posterior ao julgamento dos embargos ... 329
6.4.12. Propositura da ação autônoma depois da extinção da ação executiva ... 330
6.4.13. A suspensão cautelar ou por antecipação de tutela da execução ... 331
6.4.14. Ação anulatória (art. 486 do CPC) ... 337
CONCLUSÕES ... 343
INTRODUÇÃO
A Declaração Universal dos Direitos do Homem, o Pacto Internacional
dos Direitos Econômicos, a Convenção Americana de Direitos Humanos
(Pacto de San José da Costa Rica) e a Declaração sobre Direito ao
Desenvolvimento são alguns exemplos da preocupação com a moradia como
direito fundamental do homem.
No ordenamento jurídico brasileiro, o artigo 6º da Constituição Federal,
na sua redação primitiva, inserido no Capítulo II, arrolava como direitos
sociais a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a
previdência social, a proteção à maternidade e à infância e a assistência aos
desamparados. Pela Emenda Constitucional nº 26, de 14 de fevereiro de 2000,
o rol foi ampliado para incluir a moradia entre os direitos sociais. Ainda no
Capítulo II, a Constituição Federal elege como direito dos trabalhadores
urbanos e rurais um “salário mínimo, fixado em lei, nacionalmente unificado,
capaz de atender a suas necessidades vitais básicas e às de sua família com
moradia...”.
Os chamados “Direitos Sociais” estão localizados na Constituição
Federal no Título II, que trata “Dos Direitos e Garantias Fundamentais”.
Alexandre de Morais assinala que esses direitos caracterizam-se como
de vida aos hipossuficientes, objetivando a realização da igualdade social
consagrada no art. 1º da Constituição Federal como pressuposto do Estado
democrático1. São direitos imbricantes ao da igualdade2. Celso Ribeiro Bastos
esclarece que, enquanto os direitos individuais têm por característica um não
fazer ou abster-se do Estado, nos sociais, a Constituição impõe ao Poder
Público a prestação de atividades cujo escopo é “o bem-estar e o pleno
desenvolvimento da personalidade humana, sobretudo em momentos em que
ela se mostra mais carente de recursos e tem menos possibilidade de
conquistá-los pelo seu trabalho”, passando a ser um dever do Estado prestar a
assistência necessária 3.
Outrossim, a Emenda Constitucional nº 31, de 14 de dezembro de 2000,
ao criar o Fundo de Combate e Erradicação da Pobreza, determinou o
direcionamento de recursos para a nutrição, habitação, educação etc., visando,
inclusive, atender ao que estabelece o artigo 3º, inciso II, da Constituição
Federal que consagra um dos mais nobres objetivos da República Federativa
do Brasil: "erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades
sociais e regionais", de que decorre o princípio da dignidade da pessoa humana. É impossível recusar que os objetivos estabelecidos no art. 6º são
imbricantes com aqueles do art. 3º, inciso II, da Constituição Federal, pois
têm por finalidade a redução das desigualdades sociais.
1Direito constitucional, p. 202.
A Constituição Federal, ao tratar dos Princípios Gerais da Atividade
Econômica, no art. 170, inciso VII, também consagra postulado que se liga
diretamente aos princípios dos arts. 3º e 6º, quando estabelece que, “a ordem
econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa,
tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da
justiça social, observados os seguintes princípios: ... VII – redução das
desigualdades regionais e sociais”.
Como se disse, desses objetivos fundamentais que visam à erradicação
da pobreza e à diminuição das desigualdades, decorre o mais nobre de todos
os princípios: o da dignidade da pessoa humana. Em função disso,
partindo-se da premissa de que a Constituição Federal criou um Fundo de Combate e
Erradicação da Pobreza, incluindo ali a moradia, pode-se formular a assertiva
no sentido de que as políticas governamentais de habitação devem, sempre,
ter por norte o escopo social.
Por outro lado, não se pode ignorar que, para o atingimento das metas
sociais, não se pode prescindir do desenvolvimento econômico. A produção
de riquezas, o investimento em larga escala, com a conseqüente geração de
empregos, reflete na melhoria das condições de vida da população. Porém,
para que o desenvolvimento econômico seja alcançado, é necessário criar uma
política de crédito eficiente. A construção de moradias, aliás, depende
Para isso, como medida de estímulo, é necessário que sejam concedidas
aos detentores do capital para o crédito certas garantias, inclusive quanto ao
serviço jurisdicional, que deve funcionar adequadamente na recuperação do
crédito inadimplido, proporcionando o retorno rápido do capital investido ao
fluxo do sistema.
Não é tarefa fácil conciliar tantos objetivos: interesse social,
desenvolvimento econômico e eficiência do serviço jurisdicional para a
recuperação do crédito.
O tema proposto tem como uma de suas finalidade a análise dessas
questões, sempre em vista dos procedimentos judicial e extrajudicial
estabelecidos na Lei nº 5.741/71 e no Decreto-lei nº 70/66, destinados à
recuperação dos créditos concedidos no âmbito do Sistema Financeiro da
Habitação.
As críticas que esses diplomas mereceram por terem sido criados
durante o regime militar, especialmente o Decreto-lei nº 70/66, acusado de
conceder privilégios às instituições financeiras, exige a análise do tema sob o
aspecto histórico da época da sua criação para a verificação de suas
verdadeiras causas e objetivos. Também se deve buscar o confronto do
discurso desenvolvimentista daquela época com o atual, na qual também
foram criados modelos processuais e formas alternativas para a recuperação
Em seguida, a análise volta-se para a tutela jurisdicional, sob a
perspectiva das relações bancárias, particularmente quanto à recuperação do
crédito. Procura-se mostrar a exigência moderna, universal, por uma tutela
jurisdicional mais efetiva, para o que são sugeridos modelos diferenciados ou
formas alternativas pelos mais diversos setores da sociedade. Busca-se,
outrossim, retratar a visão dos economistas sobre a necessidade da prestação
de um serviço jurisdicional mais eficiente para estimular o investimento e o
crédito, as suas críticas e propostas, bem como o conflito que pode haver nas
soluções apontadas pelos interessados em uma economia estável e previsível
com os direitos fundamentais do homem.
Resolvidas essas questões, passa-se à análise do contrato de
empréstimo e da cédula hipotecária, firmados no âmbito do Sistema
Financeiro da Habitação, suas características, formação, a garantia hipotecária
e a executividade.
Ao tratar da execução extrajudicial disciplinada pelo Decreto-lei nº
70/66, discorrendo-se sobre o seu procedimento, são analisadas as suas
características, particularidades e a sua conformação com o texto
constitucional, para o que foi necessário realizar uma ampla pesquisa para
Discorre-se, igualmente, de forma minuciosa, sobre o procedimento da
execução especial hipotecária, regida pela Lei nº 5.741/71, mostrando-se as
divergências no âmbito doutrinário e jurisprudencial sobre alguns atos
executivos dela suprimidos, com destaque para as suas especificidades,
sempre em relação ao procedimento de execução por quantia certa contra
devedor solvente previsto no Código de Processo Civil. Aproveita-se, nessa
parte, para uma reflexão sobre a influência que o Projeto de Lei nº
4.497/2004, em trâmite no Congresso Nacional, poderá trazer para a execução
especial hipotecária.
O estudo é concluído com o exame dos meios de defesa ao alcance do
mutuário em face da execução especial hipotecária. Discorre-se sobre os
embargos do devedor, como meio próprio, a extensão da cognição,
legitimidade, efeitos e outras particularidades que lhe impõe a Lei nº
5.741/71. Não foram esquecidos os meios denominados impróprios: a
exceção de pré-executividade e as ações autônomas de conhecimento,
hipóteses de cabimento, momento em que podem ser utilizados e os reflexos
1.O AMBIENTE POLÍTICO E ECONÔMICO DO MOMENTO DA EDIÇÃO DE VÁRIAS LEIS QUE TRATAM DE CON TRATOS BANCÁRIOS, COM DESTAQUE PARA O SIST EMA FINANCEIRO DA HABITAÇÃO
1.1. A ut ilidade do enfoque
A lei é um fenômeno social4 que retrata o momento histórico da sua
criação. Embora a produção legislativa seja monopólio do Estado, as regras
que dele emanam refletem, mais precisamente, a ideologia5 da classe política
dominante à época da sua elaboração.6 Por esse modo de ver, tende-se ao
apoio às acusações de que o governo autoritário militar inaugurado no Brasil
em 1964 foi condenavelmente generoso na criação de textos legais em
benefício das classes dominantes, entre elas as empresas integrantes do
Sistema Financeiro Nacional7. As regras jurídicas dessa época haveriam de
ser vistas com desconfiança8, pois os militares ascenderem ao Poder com o
apoio de grupos econômicos influentes.9
4 Dennis Lloyd, A idéia de lei, p. 3.
5 De acordo com Giuseppe Lumia, “a ideologia pode ser definida como um sistema de idéias, de opiniões e
de crenças, partilhadas pelos membros de uma coletividade, relativas a certos fins que podemos chamar de ‘últimos’, não porque sejam necessariamente pensados como definitivos e absolutos, mas porque não se colocam como relação de meio para atingir fins ulteriores” (Elementos de teoria e ideologia do direito, p. 142).
6 Dennis Lloyd assevera que o direito “é meramente o meio de impor à população o que o setor dominante
considera servir aos seus interesses econômicos” (Ibidem, p. 91).
7 Criticam as edições dos Decretos-lei nºs 70/66 e 911/69 Carlos Alberto Álvaro de Oliveira, Procedimento e
ideologia no direito brasileiro atual, AJURIS - Revista da Associação dos Juízes do Rio Grande do Sul, 33:79-85 e Amilton Bueno de Carvalho, A lei. O juiz. O justo, AJURIS - Revista da Associação dos Juízes do Rio Grande do Sul, 39:132-152. L. A Becker censura o instituto da alienação fiduciária em garantia (p. 165) e a execução extrajudicial do Decreto-lei nº 70/66 (Contratos bancários, p. 318). Esse autor, em toda a sua obra, critica a maioria dos procedimentos instituídos em face dos contratos bancários por terem concedido privilégios aos bancos.
8 Por ser a lei produto da influência da classe dominante, Amilton Bueno de Carvalho afirma que ela
Somente a análise que tenha por parâmetro o contexto histórico dos
últimos quarenta e quatro anos, fixada nas causas e escopos de tão intensa
produção legislativa sobre o assunto dissertado, especialmente na primeira e
nas duas últimas décadas e necessariamente desprendida de preconceitos,
pode dissipar a desconfiança sobre eventuais privilégios concedidos, ou
confirmá-la. Há que se verificar a importância e a necessidade da concessão
de favores e, inclusive sob o aspecto processual, se as inovações introduzidas
no ordenamento jurídico vieram - ou não - em proveito de uma tutela
jurisdicional mais efetiva, mediante a inclusão, no sistema, de modelos
processuais aptos a abreviar a recuperação do crédito bancário com a sua
conseqüente democratização, barateamento e contribuição para o almejado
desenvolvimento econômico e social. Não se pode olvidar, outrossim, o
confronto de idéias, propósitos e atitudes dos heterogêneos grupos que
exerceram o Poder nas últimas quatro décadas, à vista da produção legislativa
sobre o tema que abordamos10.
Promotores e advogados, agentes inconscientes da opressão. Inocentes úteis de um sistema desumano. Não quero dizer que não se possa optar por tal sistema, mas que se assim se fizer, o seja conscientemente” (A lei. O juiz. O justo, AJURIS - Revista da Associação dos Juízes do Rio Grande do Sul, 39:132-152).
9 E qual seria a “classe dominante” da época e de hoje? Fábio Konder Comparato, em entrevista publicada no
Jornal Sem Terra, edição de março de 2001, mostra a variação ocorrida desde o Império: “E o que eu vejo hoje é um fato da maior importância, que é a mudança na composição das classes dominantes. Nós tivemos sempre uma dualidade de classes dominantes, uma mais antiga e outra mais recente.
Durante o Império, praticamente até a Revolução de 30, foram os proprietários rurais e os comerciantes de exportação. Proprietários rurais era a classe mais antiga; os comerciantes de exportação mais recente, a mais moderna.
A partir de 1930, houve uma mudança porque os comerciantes de exportação, importação, aqueles que cuidavam do comércio exterior, cederam lugar para os industriais. A industrialização do país, a partir dali, mudou inteiramente o nosso perfil econômico e social. Acontece que hoje a classe industrial deixou de ser, deixou de estar em primeiro lugar no esquema de dominação e cedeu essa posição para os banqueiros e os empresários do sistema financeiro”.
Convém determinar, desde logo, que não nos estamos colocando de
acordo com o lamentável momento histórico que suprimiu direitos do povo
brasileiro, entre eles, o de eleger os seus principais representantes e, por isso,
não condenamos as críticas feitas aos diversos textos normativos tratados
neste trabalho e criados durante o regime militar iniciado na década de 1960.
Aliás, no respeitante às críticas, em sua maioria, elas foram feitas ainda
durante a ditadura militar, ou logo depois. Esperava-se que, uma vez
reconquistados os direitos políticos e eleitos democraticamente os
representantes populares, houvesse equilíbrio na participação da sociedade,
redimensionando-se a influência de grupos de maior força econômica. Como
se verá adiante, não foi o que aconteceu.
1.2. O período de 1961 a 1985
No período pós Segunda Guerra Mundial o Brasil experimentou um
ciclo de crescimento expressivo. Particularmente no período em que a
industrialização intensificou-se (1956-1962), a taxa média de crescimento
chegou a atingir o significativo percentual de 7,8%11. Essa taxa subiu para
10% em 1961, caiu para 5,3% em 1962, 1,5% em 1963 e, em 1964, estava em
2,4%12.
Esse quadro mostra que a crise política que se instalou no Governo
Jânio Quadros no ano de 1961, como não poderia ser diferente, refletiu
gravemente na economia. O distúrbio, que era político, atingiu profundamente
o desenvolvimento econômico experimentado na década anterior. A
extravagante campanha de Jânio Quadros, marcada simbolicamente por uma
vassoura com a qual varreria a corrupção, somou-se, depois da sua eleição, à
desafiadora aproximação com países socialistas. É bastante lembrar a
polêmica condecoração de Che Guevara com a Ordem do Cruzeiro do Sul.
Pressionado, Jânio renunciou em 25 de agosto de 1961, deixando para a
história a sua famosa carta-renúncia.
As convicções políticas do vice-presidente João Goulart, consideradas
de esquerda, descontentavam as elites detentoras do poder econômico no País,
mas havia aqueles que queriam o cumprimento da Constituição Federal. Por
isso, João Goulart somente tomou posse em 7 de setembro de 1961 depois que
o Congresso Nacional, às pressas, modificou a Constituição Federal para
estabelecer uma república parlamentarista, retirando do Poder Executivo as
funções de chefe do governo.
Sob tais condições, João Goulart assumiu o cargo, mas com o firme
propósito de reconquistar os poderes do Presidente da República em regime
presidencialista, o que conseguiu em 1963 por meio de um plebiscito. Era um
civis e militares ao seu governo por defender idéias populistas em favor dos
trabalhadores e sindicatos e, por isso, acusavam-no de comunista, condição
inaceitável pela sociedade brasileira da época.
A crise econômica, agravada pelo conturbado quadro político, fez com
que o crescimento do país despencasse continuamente, elevando a dívida
externa e a inflação a números nunca antes vistos, fatores que contribuíram
para concretizar a intenção de golpe.
Foi marcante e derradeiro o comício ocorrido na Central do Brasil, no
Rio de Janeiro, em 13 de março de 1964, que desencadeou um vigoroso
protesto de importantes grupos de oposição. No seu inflamado discurso, João
Goulart assegurou a reforma agrária e a nacionalização das refinarias de
petróleo estrangeiras, contrariando os interesses de influentes setores da
sociedade. A reação foi imediata. Poucos dias depois, foi organizada uma
passeata em São Paulo por grupos de oposição, com o apoio do Governo do
Estado, que ficou conhecida como a “Marcha da Família com Deus pela
Liberdade”. Em 31 de março de 1964, João Goulart foi deposto. O presidente
da Câmara dos Deputados, Paschoal Ranieri Mazzilli, assumiu interinamente
a presidência da República até que o supremo Comando Militar apresentasse
o famoso Ato Institucional nº 1, no dia 09 de abril de 1964 para, dois dias
depois, o Congresso Nacional eleger o Marechal Castello Branco o novo
o destino do país passou a ser decidido pelos militares que exerceram o poder
com veemência, instalando uma ditadura militar que durou por mais de 20
anos13.
Nesse ambiente excepcional, apoiado em um discurso
desenvolvimentista e capitaneado na área econômica por Roberto de Oliveira
Campos, foi apresentado o Programa de Ação Econômica do Governo
1964-1966 (PAEG). Resume Wenceslau Gonçalves Neto que:
“O plano, consoante os ideais liberais que nortearam a ação golpista, inicia-se reafirmando o respeito às leis de mercado mas pregando a necessidade da presença governamental para melhorar a distribuição da renda e da riqueza dentro deste mesmo mercado. Como objetivos básicos, enfatiza a necessidade de acelerar o ritmo de desenvolvimento, que fora interrompido nos anos iniciais da década, em virtude do esgotamento do modelo de substituições de importações; a contenção do processo inflacionário; a melhoria das condições de vida da população, procurando diminuir as diversas formas de
13 Escrevendo sobre A democracia no liminar do século XXI, Manoel Gonçalves Ferreira Filho tem o “golpe
militar” de 1964 como uma intervenção preventiva em face dos comunistas que queriam implantar o “socialismo real”. Acusa os intelectuais que desejavam o êxito dessa tentativa de “reescreverem a história para apresentar os que se opuseram a elas como cruéis inimigos da democracia, enquanto os comunistas e seus aliados, que sempre implantaram ditaduras ao chegar ao Poder, como democratas. E, mesmo quando usavam do terrorismo – porque era bom, porque era bom o seu objetivo – enquanto a ‘repressão’ era intrinsecamente má”, retratada sucintamente, a situação do “golpe” de 1964: “Em 1964, estando João Goulart na Presidência da República, os comunistas – disse-o seu chefe – já estavam no Poder. Eram apoiados, inclusive por grupos de subalternos das Forças Armadas, principalmente da Aeronáutica e da Marinha. Anunciava o governo ‘reformas’, em todos os planos, que iriam abrir caminho, primeiro para um sindicalismo à moda de Peron – era o que Goulart desejava – depois para o ‘socialismo real”.
As Forças Armadas – leia-se o Exército – chefiados pelo Mal. Castelo Branco preveniram a realização desse objetivo, com um ‘golpe’ nitidamente preventivo. Assumiu o mencionado Castelo Branco o Poder, com o propósito – que inegavelmente foi o seu até o fim – de, após um período de aplacamento da ‘febre’ política (é verdade que, com um expurgo de líderes comprometidos com o statu quo ante), restabelecer a normalidade democrática.
Isso foi feito, mas vinte anos depois.
desníveis econômicos e sociais (regionais, setoriais, etc.); a garantia de oportunidades de emprego; e a correção dos déficits do balanço de pagamentos, que colocavam em risco a possibilidade de importações e a própria capacidade de crescimento do país.14”
O escopo do plano era retomar o desenvolvimento extremamente
prejudicado nos conturbados primeiros anos daquela década. Para tanto, era
necessário construir uma nova estrutura jurídica que desse mais dinamismo e
segurança ao mercado e garantisse o sucesso do que fora planejado, atingido
setores importantes como a construção civil, incentivando a criação de
habitações, a produção agrícola, o controle do crédito, direcionando recursos
públicos para a infra-estrutura e expressivos investimentos das empresas
estatais. Enfim, compatibilização com uma economia de mercado15.
Para atingir a meta desenvolvimentista traçada, logo nos primeiros anos
daquele Governo Militar veio a reorganização do Sistema Financeiro
Nacional (Lei nº 4.595, de 31 de dezembro de 1964); a criação do Banco
14Estado e agricultura no Brasil, p. 127. Werner Baer acrescenta que: “o novo regime estabelecido em 1964
considerava que o caminho para a recuperação econômica residia no controle da inflação, na eliminação da distorção de preços acumulada no passado, na modernização dos mercados de capitais que produziria um aumento na acumulação de poupança, na criação de um sistema de incentivos que direcionasse investimentos paras as áreas e setores considerados essenciais pelo governo, na atração de capital estrangeiro (tanto privado como público) para financiar a expansão da capacidade produtiva do país e no uso de investimentos públicos em projetos de infra-estrutura e em determinadas indústrias pesadas de propriedade do governo” (A economia
brasileira, p. 89). Afirma-se, ainda, que o governo Castelo Branco plantou os alicerces dos planos que
vieram depois e que desembocaram no “milagre econômico”. Esse governo promoveu “as reformas de fundo (institucionais, constitucionais, legais, administrativas, morais e de mentalidade)...”, “retomou o desenvolvimento econômico; fez a reforma tributária, a reforma administrativa, a reforma bancária, a reforma monetária, a reforma do mercado de capitais, implantou o Fundo de Garantia do Tempo de Serviço e o Banco de Habitação” (Carlos Galves, Manual de economia política atual, p. 466).
15 Para João Bosco Leopoldino da Fonseca, “O Paeg se pautou por ser um plano indicativo, o que se
Nacional da Habitação (BNH) e regulação do Sistema Financeiro da
Habitação (Lei nº 4.380, de 21 de agosto de 1964); a disciplina do Mercado
de Capitais (Lei nº 4.728, de 14 de julho de 1965), que instituiu a alienação
fiduciária em garantia para as operações de crédito bancário que passou,
posteriormente, a ser tratada pelo Decreto-lei nº 911, de 1º de outubro de
1969; a disciplina da cédula hipotecária e a respectiva execução extrajudicial
(Decreto-lei nº 70, de 21 de novembro de 1966); a criação do Fundo de
Garantia por Tempo de Serviço (FGTS), cujos recursos depositados passaram
a ser administrados pelo BNH (Lei nº 5.107, de 13 de setembro de 1966) para
financiar a construção de moradias; a instituição da nota e da cédula de
crédito rural (Decreto-lei nº 167, de 14 de fevereiro de 1967) e da nota e da
cédula de crédito industrial (Decreto-lei nº 413, de 9 de janeiro de 1969); a
execução especial prevista na Lei nº 5.741, de 1º de dezembro de 1971.
Foram criados instrumentos mais simples (v.g., as cédulas de crédito)
para facilitar o fluxo de capitais, o barateamento do crédito e melhores
garantias, como é o caso da inclusão no ordenamento jurídico dos institutos
da alienação fiduciária em garantia pela Lei nº 4.728, de 17 de julho de 1965,
com tratamento processual distinto, previsto no Decreto-lei nº 911/69, que
possibilitou ao credor fiduciário a obtenção de liminar para a apreensão do
bem alienado fiduciariamente para que, com a venda incondicional posterior,
para os imóveis financiados por empresas integrantes do Sistema Financeiro
da Habitação, com todas as conseqüências daí decorrentes, como a imissão do
credor hipotecário na posse do imóvel imediatamente depois da adjudicação,
excetuando-se a hipótese de prova, pelo devedor, do pagamento ou do resgate
da dívida, ou a execução especial prevista na Lei nº 5.741/71, que veio
possibilitar a desocupação do imóvel em 30 (trinta) dias e apenas atribuiu
efeito suspensivo aos embargos se o executado provar que pagou ou resgatou
a dívida16. Da mesma forma as execuções sumárias previstas nos Decretos-lei
nº 167/67 e 413/69, que simplificaram os títulos de crédito e facultaram ao
credor a venda antecipada dos bens dados em garantia.
As novas regras introduzidas no ordenamento jurídico encontraram sua
legitimidade, aos olhos dos detentores do poder, na necessidade do plano de
desenvolvimento atingir os seus objetivos. É a dedução que se extrai das
várias manifestações da época, como aquela da Exposição de Motivos do
Decreto-lei nº 911/69, assinada pelo então Ministro da Fazenda, Antonio
Delfim Netto, para a alternativa processual ali apresentada:
“A importância crescente do crédito ao consumidor está exigindo uma formulação do Instituto da Alienação Fiduciária, que passou a desempenhar função relevante como garantia nas operações feitas pelas financeiras para financiamento ao usuário de bens de consumo ou de produção.
16 Como veremos, a questão relacionada ao efeito suspensivo dos embargos na execução especial hipotecária
Instituto novo, introduzido no direito brasileiro pelo art. 66 da Lei 4.728, de 14.07.1965 (Lei do Mercado de Capitais), a alienação fiduciária não tinha merecido, até o presente momento, uma adequada regulamentação processual. A ausência de normas sobre a matéria tem ensejado divergência jurisprudencial e insegurança nas relações jurídicas que contam com a referida garantia, suscitando-se dúvidas quanto à ação própria a ser intentada pelo adquirente fiduciário contra o alienante. A demora nos processos para reaver bem garantidos do débito tornou-se fonte de encarecimento das operações financeiras realizadas com a garantia da alienação fiduciária. Pretendendo o governo baixar o custo operacional das instituições financeiras, tornou-se indispensável dar solução rápida e eficaz na hipótese de inadimplemento do devedor, justificando-se, pois, a elaboração de um projeto de decreto-lei para atender tais situações.
(...)
A elaboração do projeto, em última análise, visa a dar maiores garantias às operações feitas pelas instituições financeiras, assegurando o andamento rápido dos processos, sem prejuízo da defesa, em ação própria, dos legítimos interesses dos devedores. Obteve-se, assim, um justo equilíbrio e uma conciliação adequada entre as reivindicações dos organismos financeiros, a proteção adequada dos investidores e o resguardo dos direitos dos usuários e adquirentes dos bens de consumo e de produção, mediante a utilização do crédito direto.”
Os procedimentos diferenciados e alternativos então instituídos (v. g.,
busca e apreensão autônoma prevista no Decreto-lei nº 911/69, a execução
instituições financeiras na rápida recuperação dos seus créditos,17 cujo escopo
derradeiro era reduzir os encargos e incentivar os detentores do capital a dele
dispor. O que não parece conclusivo é se esses privilégios foram ou não
deferidos só por se tratar de um regime excepcional ou se havia, na verdade, o
intuito de recuperar uma economia em declínio, à semelhança do que, hoje,
realiza-se com medidas tão equivalentes ou com favores de maior
envergadura e com fundamento no mesmo discurso, como se verá a seguir.
1.3. O período posterior a 1985
Em 15 de janeiro de 1985, embora por um Colégio Eleitoral, foi eleito o
primeiro presidente civil desde 1961, Tancredo de Almeida Neves. A posse,
que estava marcada para o dia 15 de março de 1985, nunca aconteceu, pois,
antes dela, o presidente eleito adoeceu e veio a falecer em 21 de abril daquele
ano. Em seu lugar, assumiu a Presidência da República o seu vice, também
civil, José Ribamar Ferreira de Araújo Costa (José Sarney).
17 Por isso, são veementemente criticados por Carlos Alberto Álvaro de Oliveira, dizendo terem as classes
Sob uma nova perspectiva democrática, com a eleição de uma
Assembléia Nacional Constituinte que veio a elaborar a Constituição Federal
de 1988, posteriormente elegendo-se pelo voto direto o Presidente da
República, o país passou por duros períodos de turbulência econômica e
política, culminando no impeachment do primeiro Presidente eleito pelo voto
popular depois da ditadura militar, Fernando Collor de Mello, assumindo o
cargo o seu vice, Itamar Augusto Cautiero Franco.
Em 1º de janeiro de 1995, outro presidente eleito pelo voto popular,
Fernando Henrique Cardoso, assumiu a Presidência da República,
permanecendo por dois mandatos, entregando o Poder ao candidato de
esquerda vitorioso nas eleições de 2002, Luiz Inácio Lula da Silva, em 1º de
janeiro de 2003.
Nesse segundo período da nossa análise e até 1995, sobre o tema que
abordamos, o fato marcante foi a extinção do Banco Nacional da Habitação
ocorrida em 1986. Depois, somente a partir da segunda metade da década de
1990, novas regras a respeito foram criadas. E as justificativas que se
apresentaram nos posteriores anos de pleno exercício democrático com a
Constituição cidadã de 1988 para deferir-se meios processuais, judiciais e
extrajudiciais, tendentes à facilitação no recebimento do crédito, foram as
distinto. Observa-se que as mesmas razões influenciaram tanto o mais duro,
como o mais democrático dos regimes. É o que se verifica do confronto das
posições assumidas hoje e nas décadas de 1960 e 1970.
Com efeito. As justificativas fundadas nas lições neoliberais que
influenciam a adequação do ordenamento jurídico, inclusive as normas de
processo, aos interesses dos credores e investidores a pretexto de gerar
segurança e desenvolvimento, também se revelou presente na criação do
Sistema Financeiro Imobiliário (SFI), quando foi mostrado o mesmo discurso
propalado na década de 1960 (vide o exemplo da Exposição de Motivos do
Decreto-lei nº 911/69 antes transcrito, de autoria do então Ministro da
Fazenda Antônio Delfim Netto). Criado pela Lei nº 9.514, de 20 de novembro
de 1997, instituiu uma série de garantias de estímulo ao investimento no setor
de construção, entre elas, destacando-se a alienação fiduciária de bens
imóveis e a possibilidade do credor, mediante simples ato realizado perante o
Oficial do Registro de Imóveis, ter consolidada a propriedade em suas mãos,
na hipótese de inadimplemento, ou seja, sem qualquer providência de
natureza jurisdicional.
A ideologia que inspirou a criação do Sistema Financeiro Imobiliário,
como ocorreu com toda a legislação semelhante da década de 1960, foi bem
“Fundamentalmente, o que inspirou a elaboração da nova Lei foi a preocupação de subordinar o comércio de imóveis e o fluxo de capitais nele envolvido às diretivas e critérios do mercado. Imagina-se que, aí como em toda parte, o poder de auto-regulação e de disciplina espontânea do mercado terá o condão de assegurar soluções benéficas ao desenvolvimento dos negócios e garantirá vantagens a todos os envolvidos. Conhecida como é essa premissa e a experiência que de sua aplicação temos, a nova sistemática é, sem dúvida, mais um fruto dileto do neoliberalismo econômico em moda. O ponto central de atenção, que, em matéria de aquisição de imóveis, esteve sempre no comprador-financiado, dado o manifesto interesse social envolvido, desloca-se para a lucratividade do comércio imobiliário, a segurança do investidor do ramo e os atrativos que a correspondente atividade econômica pode oferecer. O foco polarizador da atenção do legislador migrou do social para o estritamente econômico, visto, de resto, preferencialmente pelo ângulo do lucro”.18
Distante de traduzir o escopo social, facilitando a aquisição da casa
própria pelas camadas de menor renda, ao menos teoricamente como fez a Lei
nº 4.380/64, a criação do Sistema Financeiro Imobiliário objetivou dar maior
segurança aos investidores para que fossem destinados recursos à construção
civil, à conta de gerar empregos e desenvolvimento econômico. Observa-se
que o mesmo mote desenvolvimentista utilizado na década de 1960 foi
invocado na criação ou ampliação de outros diplomas legais que favoreceram
as instituições financeiras.
18A alienação fiduciária de imóveis segundo a Lei nº 9.514/97, Palestra proferida no I Simpósio Nacional de
Igualmente, a criação da Cédula de Crédito Bancário, já ao final da
década de 1990, foi a mais pronta e visível concessão de um privilégio por
clara sugestão das empresas integrantes do Sistema Financeiro Nacional a
pretexto do barateamento do crédito.
As taxas de juros praticadas no Brasil estavam, à época, entre as mais
altas do mundo, motivo da carência de crédito para alavancar a economia.
Com os índices de inflação estabilizados, não havia motivos para percentuais
tão elevados. No entanto, apresentavam-se, como uma das razões
determinantes para a falta de oferta de dinheiro, os expressivos índices de
inadimplência e as dificuldades na cobrança. Além do desaparelhamento do
Judiciário, apontava-se a inexistência de um título executivo adequado para
algumas operações bancárias que pudessem agilizar o processamento da
execução.
Isso tudo aconteceu quando os tribunais passaram a considerar a dívida
respaldada em contrato de abertura de crédito (rotativo) em conta corrente
ilíquida, impossibilitando o manejo do processo de execução, entendimento
que veio a ser consolidado na Súmula nº 233 do Superior Tribunal de
Justiça19.
19 O teor da Súmula 233 do Superior Tribunal de Justiça é o seguinte: “O contrato de abertura de crédito,
Essa modalidade de operação era utilizada em larga escala pelos
bancos. Para que se possa ter noção do volume de negócios envolvidos, basta
lembrar que uma de suas espécies, o conhecido “cheque especial”, é lastreado
em um contrato de abertura de crédito em conta corrente. O entendimento dos
tribunais criou dificuldades para os credores na cobrança dessa modalidade
de crédito, pois impediu o ingresso de ação de execução fundada nesse título,
tornando a recuperação muito mais demorada.
Foram as instituições financeiras que apresentaram a Cédula de Crédito
Bancário como alternativa para contornar o entrave processual criado pelos
tribunais. Em 30 e 31 de agosto de 1999, por exemplo, foi realizado em São
Paulo o “Simpósio sobre Contrato Bancários”, com o apoio da Associação
Brasileira de Bancos Comerciais e Múltiplos-ABBC e da Associação
Brasileira de Bancos Internacionais-ABBI. Na ocasião, foram discutidas as
vantagens e desvantagens da criação da Cédula. A exposição foi feita por
profissionais ligados ao Sistema Financeiro Nacional: Rivail Trevisan
-Supervisor Jurídico do Banco do Brasil; Renato Romano-Gerente Geral
Jurídico do Banco Santander; e, Cássio M.C.Penteado Jr.-Sócio do escritório
Toledo, Penteado & Cioconelli Advogados e Consultores, ex-integrante da
Entre vários aspectos que se discutiram, sobreleva a constituição de
garantia hipotecária em documento particular, ou seja, na própria cédula,
autorização para cobrança de juros capitalizados, cujo escopo foi o
esvaziamento da discussão tão em destaque à época, além do reconhecimento
do valor apontado em planilha demonstrativa elaborada pelo credor ou o saldo
apontado nos extratos de conta corrente como representativo de dívida
líquida, certa e exigível.
Por outro lado, o Banco Central do Brasil, depois de investigar as
razões das elevadas taxas de juros da época, por meio do seu Departamento
de Estudos e Pesquisas-DEPEP, divulgou um relatório denominado “Juros e
Spread Bancário no Brasil”, de outubro do ano de 1999. Nele, foram
apresentadas as mesmas justificativas das instituições financeiras, aquelas
que foram objetos do Simpósio antes mencionado. Seguindo a campanha
deflagrada pelas instituições financeiras, a criação da Cédula de Crédito
Bancário veio como sugestão no trabalho daquela autarquia.
O apelo das instituições financeiras e a posição adotada pelo Banco
Central do Brasil que encampou a idéia, levou o Poder Executivo, no mesmo
mês da divulgação do relatório mencionado, a editar a Medida Provisória nº
1.92520, criando a Cédula de Crédito Bancário.
20 A Medida Provisória nº 1.925 foi reeditada 25 vezes, encontrando-se atualmente em tramitação no
A Cédula de Crédito Bancário, na forma disciplinada pela Medida
Provisória nº 1.925/99, trouxe facilidades às instituições financeiras na
cobrança dos seus créditos, eliminando os problemas que vinham enfrentando
pelas decisões dos tribunais, como é o caso da inexeqüibilidade do contrato de
abertura de crédito em conta corrente, da alienação fiduciária de coisa
fungível ou de direito etc..
Seguindo nesta linha, o Governo trabalhista que assumiu o Poder em 1º
de janeiro de 2003, sobreposto no mesmo discurso desenvolvimentista da
década de 1960, empenhou-se em aprovar, no Congresso Nacional, o projeto
que se transformou na Lei nº 10.931, de 02 de agosto de 2004.
Esse novo diploma passou a disciplinar o patrimônio de afetação de
incorporações imobiliárias, a tratar da Letra de Crédito Imobiliário, da Cédula
de Crédito Imobiliário e da Cédula de Crédito Bancário, alterou o Decreto-Lei
no 911, de 1o de outubro de 1969, as Leis no 4.591, de 16 de dezembro de
1964, no 4.728, de 14 de julho de 1965, e no 10.406, de 10 de janeiro de 2002.
A pretexto de proteger os mutuários em face do inadimplemento das empresas
incorporadoras e estimular a construção civil, cuidou de outros assuntos,
como a alienação fiduciária em garantia, autorizando a venda do bem alienado
fiduciariamente em 05 (cinco) dias depois de cumprida a liminar de busca e
Na Mensagem do Poder Executivo que encaminhou o Projeto de nº
3.065/2004, que resultou na referida Lei nº 10.931/2004, apensado ao de nº
2.109/1999 da Câmara dos Deputados, ficou nítida a preocupação com o
crédito para o desenvolvimento econômico, geração de empregos e habitação,
notando-se inteira coincidência com o discurso da década de 1960. Consta do
texto:
“2.A importância do bom funcionamento do mercado de crédito brasileiro para o desenvolvimento da economia é um fato incontestável. A adequada disponibilização de recursos creditórios, de maneira eficiente e a um baixo custo, é essencial não só para viabilizar a produção, com implicações diretas sobre a geração de emprego e renda, mas também para o fomento à poupança e ao investimento, ou mesmo para a solução de problemas de natureza social relacionados à habitação, saneamento básico dentre outros.
4. É com o objetivo de promover o acesso ao crédito em maior volume, a um custo mais baixo, de maneira eficiente e em condições economicamente viáveis, em especial, no segmento do financiamento imobiliário, que são apresentadas as alterações ora consolidadas no Projeto de Lei em tela.”
Por fim, na referida mensagem com pedido de tramitação especial em
regime de urgência, foi declinado que o projeto de lei apresentado,
“...justifica-se pela premente necessidade de vigência dos novos dispositivos propostos, dos quais depende o bom funcionamento do mercado de crédito e considerando a importância desse no processo de retomada que a economia brasileira vivencia nesse ano. Nesse sentido, é crucial assegurar, ainda nos primeiros meses de 2004, as condições que viabilizem esse processo de retomada e sobre as quais estará fundado o crescimento econômico sustentável nos anos vindouros”.
Curioso mencionar, ainda, que o empenho do Executivo foi tão efetivo
que, no sempre moroso Congresso Nacional, logrou aprovar o projeto nas
duas Casas em inimagináveis dois dias: em 07 de agosto na Câmara dos
Deputados e, no dia seguinte, no Senado Federal, com remessa, na mesma
Quem mais dirigiu críticas às classes dominantes e valeu-se de um
discurso de política de igualdades sociais para assumir o Governo tem
empenhado-se para aprovar medidas semelhantes ao duro regime instalado
em 1964 e fundado no mesmo discurso, ou seja, necessidade de garantir o
crédito para diminuir os juros cobrados e gerar o desenvolvimento econômico
de acordo com o mesmo modelo neoliberal. Quem agora ascendeu ao poder
variou o próprio discurso.
A rigor, a insistência em se proteger o crédito e os investimentos
decorre não da forma autoritária ou democrática como o poder político foi
exercido no Brasil nos últimos 44 anos, mas do chamado liberalismo
econômico que deu relevância a fortes grupos econômicos, tornando os
Estados menos desenvolvidos dependentes do financiamento da dívida
pública e de recursos privados para investimentos, como é o caso do Estado
brasileiro. Ou incentiva-se aqueles que têm recursos a investir, deferindo-lhe
favores, ou conta-se com os recursos do próprio Estado, que são insuficientes.
O dilema parece insuperável.
Outrossim, afora o intuito desenvolvimentista, cujo atingimento não
pode ser condenado, convém não se descuidar de questionar sobre ser ou não
necessário criar meios mais ágeis para a recuperação do crédito bancário,
privilegiando um setor específico da sociedade, sabendo-se que a prestação de
uma tutela jurisdicional efetiva também é uma aspiração de índole
Para isso, ainda neste capítulo, é imperioso destacar a importância do
crédito para o desenvolvimento econômico, considerando que a sua
democratização - ao menos teórica - serviu de justificativa para os momentos
históricos que destacamos e, em outro capítulo, tratar da tutela jurisdicional
em vista das relações de crédito bancário.
1.4. O crédito bancário e a sua im portância para a economia
Não cabe aqui realizar uma detalhada exposição sobre o crédito21, mas
é essencial que se considere a sua importância na economia, o que pode ser
assim resumido: 1) aumenta a produtividade do capital, evitando a sua
ociosidade; 2) possibilita o aumento da produção de coisas e serviços; 3)
estimula a poupança; c) eleva o consumo, possibilitando a aquisição de bens
pelas pessoas; 5) serve para o governo como instrumento de política
econômica22.
Por essas razões, é indubitável que o desenvolvimento econômico
depende do crédito,23 não só para investimentos com vistas ao incremento da
atividade produtiva, como para estimular o consumo e para realizar
programas sociais, como é o caso da habitação.
21 Sobre o conceito de crédito, sua noção econômica e jurídica, ver Carlo Gilberto Villegas, El crédito
bancário, p. 2; Waldírio Bulgarelli, Títulos de crédito, p. 23; Miguel Acosta Romero, Nuevo derecho
bancario, p. 415.
Carlos Galves, depois de criticar a visão socialista da redistribuição de
rendas que encarrega “o Estado de tomar conta de tudo (coletivização), e de
distribuir, pela nação definida como um conjunto de indivíduos tolos e
insensatos, os resultados da renda nacional”, destaca a importância da
atividade produtiva para a vida do povo e para o desenvolvimento econômico
e como a mais acertada forma da distribuição de rendas, dentro de uma visão
de democracia econômica24.
Essa política de produção que induz a uma melhor distribuição de
rendas deve ser implementada com a adoção de algumas medidas, entre elas,
o crédito para investimento (aquisição de máquinas e equipamentos), para o
consumo25 e para o cumprimento de metas sociais.
Percebe-se, nos vários planejamentos econômicos postos em prática ou
pretendidos implantar no Brasil desde 1964, a preocupação com o crédito para
incrementar a produção. Toda a intenção desenvolvimentista orientou-se pela
viabilização do crédito para investimentos e para o consumo, pois a sua
privação, tanto pelo setor produtivo como pelos consumidores,
inviabilizariam qualquer ambição de crescimento.
24Manual de economia política atual, p. 74.
25 Carlos Galves arrola como principais medidas a serem adotadas em uma política de produção: a) o crédito
O crédito é de tal importância que se tornou necessário criar
instrumentos, formas de distribuição e controle, surgindo, então, os bancos
para o exercício da função intermediadora: captam a poupança popular e, em
outra direção, realizam operações com os tomadores desses recursos. Nada
impede, no entanto, que concedam empréstimos com recursos próprios, o que
não afasta a sua importância para a atividade creditícia.
Cesare Vivante dizia que banco é:
“o estabelecimento comercial que recolhe os capitais para distribuí-los sistematicamente com operações de crédito”..26
Outros autores seguiram, em linhas gerais, esse conceito que caracteriza
a intermediação financeira como a principal atividade de banco27.
Não obstante, a atividade bancária diversificou-se, tornando-se
modernamente mais complexa. Embora a função fundamental ainda seja a
creditícia, difundiu-se um novo modelo de banco, acrescentando-se às suas
26Trattado di diritto commerciale, v. I, Milão, 1922, p. 92, v. I, apud Nelson Abrão, Direito bancário, p. 28. 27 Fran Martins escreveu que bancos são “empresas comerciais que têm por finalidade realizar a mobilização
atividades alguns serviços atípicos, destacando-se a mediação em negócios,
aquisição de participações societárias28, prestação de serviços etc..29
Mantendo-se essencialmente vinculada ao crédito, a atividade bancária
é exercida sob autorização estatal30 e rigorosa fiscalização por força da sua
relevância para o desenvolvimento econômico31. Como assegura Armindo
Saraiva Matias,
“por ser essencial, absolutamente indispensável para o desenvolvimento
económico e social é que o poder político lhe tem reservado a maior atenção,
impondo-lhe regulamentação específica, cuidada e permanente”.32
Por essa importância da atividade que se impõe manter o
funcionamento do sistema financeiro de forma equilibrada. Por isso, os
ordenamentos jurídicos em geral, e aqui em particular o brasileiro,
estabelecem uma série de regras de funcionamento, subordinando o setor
bancário à fiscalização permanente de um órgão técnico que deve atuar de
28 Michele Spinelli e Giulio Gentile, Diritto bancario, p. 39.
29 Vasco Soares da Veiga, depois de assinalar que os bancos “são instituições de crédito”, menciona que o
art. 199º-A do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras, vigente em Portugal, arrola uma série de serviços, entre os quais encontramos alguns que não são, rigorosamente, formas de intermediação (Direito bancário, p. 69).
30 O art. 18, da Lei nº 4.595, de 31 de dezembro de 1964, impõe a autorização do Banco Central ou do Poder
Executivo, quando estrangeiras, para funcionar, verbis: “As instituições financeiras somente poderão funcionar no País mediante prévia autorização do Banco Central do Brasil ou decreto do Poder Executivo, quando forem estrangeiras”.
31 Por conta da sua importância, o Sistema Financeiro Nacional mereceu um capítulo específico na
Constituição Federal (Capítulo IV). Também a Constituição italiana estabeleceu a disciplina, a coordenação e o controle do exercício do crédito no art. 47, verbis: “La Repubblica incoraggia e tutela il rispmarmio in tutte le sua forme; disciplina, coordina e controlla l’esercizio del credito”.
acordo com o interesse público, traçando uma série de diretrizes de
observância obrigatória e deferindo mecanismos de controle para a defesa do
mercado.
Extrai-se, dessas considerações, que o correto e equilibrado
funcionamento das instituições financeiras é imprescindível, pois: 1) os
bancos trabalham, essencialmente, com recursos de terceiros - embora
também próprios -, captando-os sob as mais variadas formas para transferi-los
a quem necessita tomá-los emprestados; 2) o crédito é essencial para a
atividade econômica; 3) uma crise financeira de elevadas proporções pode
repercutir e comprometer a economia de um país.
Um grande banco com dificuldades na sua operação, por uma lógica de
mercado, pode levar a uma recessão generalizada. Com efeito, por operarem
os bancos com elevado grau de alavancagem, pois captam essencialmente
recursos de terceiros, o seu percentual de endividamento é sempre alto. A
crise de uma instituição importante, por um efeito dominó, alastra-se para
outras. O crédito diminui e os empréstimos esgotam-se. Conseqüentemente,
menor produção, menor consumo e mais desemprego33.
Para a estabilidade do sistema financeiro, para que fiquemos no nosso
tema, além de outras medidas, impõe-se que ao crédito sejam concedidas
certas garantias, seja no que se refere à sua concessão, seja no que se refere à
sua recuperação. A falta de crédito ou um elevado índice de inadimplemento
com a conseqüente dificuldade no recebimento por conta das formas de
garantia ou ineficiência do Estado na prestação da tutela jurisdicional pode
adicionar dificuldades ao sistema que trarão reflexos importantes na atividade
econômica34.
Como bem particulariza José Carlos Moreira Alves, depois de assinalar
que o crédito é essencial para o desenvolvimento industrial e para o consumo,
“para facilitar a obtenção do crédito, é indispensável garantir, da maneira mais eficiente possível, o credor, sem, em contrapartida, onerar o devedor a ponto de que fique, por causa da garantia, impedido de pagar o que deve, ou de se utilizar, de imediato, do que adquiriu a crédito”.35
Na mesma linha, seguem Paulo Restiffe Neto e Paulo Sérgio Restiffe,
verbis:
“Sem a disponibilidade de meios eficazes de pronta satisfação do crédito, os financiamentos estimulados em crescente difusão tornar-se-iam uma temeridade, afetando a própria liquidez das obrigações assumidas pelas financeiras em relação aos títulos de sua obrigação colocados no mercado. E
34 Para preservar o sistema de crises que possam afetar a economia de um modo geral, a lei estabeleceu como
dever do Conselho Monetário Nacional a tarefa de, além de outras, “zelar pela liquidez e solvências das instituições financeiras” (art. 2º, inciso VI, da Lei nº 4.595, de 31 de dezembro de 1964).
a insegurança fatalmente prejudicaria a captação de recursos de financiamento, com retração na atividade de abertura de crédito para aquisição de utilidades e bens de produção. Rompido o ciclo econômico já apontado, o prejuízo se generaliza”.36
Não é suficiente, para que o ciclo econômico seja assegurado, a criação
de garantias mais robustas, nem sob o aspecto formal facilitar a sua
instituição, como é o caso da garantia hipotecária constituída em instrumento
particular (v.g., na cédula de crédito rural ou industrial, na cédula de crédito
bancário e nos contratos firmados no âmbito do Sistema Financeiro da
Habitação). É necessário que também se dê instrumentos ao credor para que
possa dispor da garantia para a rápida recuperação do crédito na hipótese de
inadimplemento.
Não se pode olvidar, porém, que, se de um lado, o credor merece
melhores garantias e adequadas formas de excuti-las, até porque o crédito
transcende o interesse individual do banco à vista da sua relevância para a
economia e, por isso, a concessão de privilégios deve reverter, por via
oblíqua, em benefício de toda a sociedade37, também não se pode ser afoito a
ponto de desconhecer a necessidade de proteger-se o devedor.
36Garantia fiduciária, p. 166.
37 Bem anota Fábio Nusdeo que: “Mesmo quando alguns setores específicos são privilegiados numa política
Há que se evitar o desmedido apego à realização do crédito inadimplido
em detrimento das garantias constitucionais, do devido processo legal e dos
princípios dele decorrentes (igualdade, imparcialidade etc.). Impõe-se a
harmonização da efetiva realização do direito do credor com as garantias que
a ordem jurídica defere ao devedor. Essa tarefa não é fácil e, como veremos
no decorrer desta dissertação, há situações em que a ordem constitucional foi
frontalmente atingida38 a pretexto de abreviar o retorno do valor mutuado para
o fluxo do sistema.
Também é importante observar que o Estado deve levar em conta,
quando implementa seus programas de desenvolvimento econômico e social,
que determinados setores merecem créditos diferenciados, seja para atingir o
objetivo dos programas de estímulo, seja pelo fim especial a que o
empréstimo destina-se.
Assim, para a aquisição da casa própria, por exemplo, considerando a
espécie de bem envolvido, os juros não podem ser os mesmos praticados pelo
mercado financeiro para outras operações. Daí que, nessas hipóteses, o
tabelamento e um rigoroso controle torna-se ainda mais imperioso.39
38 Aponta Luiz Rodrigues Wambier que: “não é fácil a tarefa consistente em conciliar tantos interesses,
principalmente diante do crescente desprestígio das garantias eminentemente pessoais, fruto da massificação do consumo e do alargamento do crédito. O sistema, por razões que veremos a seguir, tem preferido estabelecer garantias que recaiam sobre os próprios bens, de modo a que estes possibilitem ao credor, na hipótese do inadimplemento do devedor, o imediato recebimento de seu crédito” (Busca e apreensão na alienação fiduciária, Revista de Direito Bancário e do Mercado de Capitais, 4:37-55).
39 Fábio Nusdeo, quando trata da política creditícia como um dos campos da ação estatal com vistas ao
Ademais, há determinados setores da economia que somente se
desenvolvem mediante uma política de crédito direcionada, como é o caso da
construção civil. Ágil e eficiente gerador de empregos diretos e indiretos, o
setor depende de que sua produção encontre compradores. Ocorre que, como
acentua Erminia Maricato, “ a habitação é uma mercadoria especial, que tem
produção e distribuição complexas” e, entre as mercadorias de consumo, é a
mais cara, não se enquadrando no salário médio do trabalhador e, por isso,
sem dinheiro para pagar à vista, depende de financiamento40. Uma política
pública de habitação, desse modo, é fundamental.
1.5. A política de habitação
A habitação somente passou a ser um problema para o poder público no
final do século XIX e, ainda assim, como uma questão de saúde e ordem
pública. De efeito, com o crescimento industrial dessa época, as cidades
passaram a ser também locais de produção, atraindo imigrantes, os escravos
libertos e trabalhadores brancos41. Muitos investimentos, antes direcionados
para o financiamento do tráfico de escravos, bem como o sucesso das
lavouras de café, levaram à criação de indústrias nas cidades, o que atraiu a
força de trabalho e o aumento da população urbana42.
favoráveis, também chamados subsidiados, diversos daqueles encontrados no mercado financeiro” (Curso de economia, p. 408).
40Habitação e cidade, p. 46. 41 Erminia Maricato, Ibidem, p. 26.