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NEM ISTO, NEM AQUILO: RELAÇÕES DE GÊNERO NA PERSPECTIVA DE MENINAS, MENINES E MENINOS NA EDUCAÇÃO INFANTIL

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NEM ISTO, NEM AQUILO: RELAÇÕES DE GÊNERO NA PERSPECTIVA DE MENINAS, MENINES E MENINOS NA EDUCAÇÃO INFANTIL

Márcia Buss-Simão1 Karine Zimmer2 Resumo: A presente proposta de comunicação oral parte da compreensão que o pertencimento e as noções de gênero envolvem uma variedade de conhecimentos e elementos sociais e culturais que requerem estudos meticulosos para se compreender os modos como as crianças significam esses conhecimentos e os acionam nas relações sociais num contexto de educação infantil. Nesse sentido, reuniu-se cenas e episódios de uma pesquisa de doutorado realizada com 12 meninas e 3 meninos de 2 a 3 anos de idade numa instituição de educação infantil e registros de experiências docentes vividas por uma professora, que procuram dar relevo a como as crianças vivem os determinismos, as expectativas e as dicotomias nas relações de gênero operando com dois conceitos centrais: fronteiras de gênero e neutralização (THORNE, 1993). Com, nem isto, nem aquilo, pretende-se dar visibilidade às relações de gênero na perspectiva de meninas, menines e meninos na educação infantil trazendo ações, relações, diálogos e brincadeiras das crianças, visando compreender tanto o que elas sabem e aprendem sobre gênero, bem como, os usos que fazem desses conhecimentos em suas relações sociais a fim de compreender, de que modo, reproduzem, atualizam, ressignificam e aprendem sobre esses elementos culturais e sociais ao estabelecerem relações sociais no cotidiano de uma instituição de educação infantil.

Palavras-chave: Relações de gênero; Educação infantil; Meninas; Menines; Meninos.

ou isto ou aquilo ou se tem chuva e não se tem sol, ou se tem sol e não se tem chuva!

ou se calça a luva e não se põe o anel, ou se põe o anel e não se calça a luva!

quem sobe nos ares não fica no chão, quem fica no chão não sobe nos ares.

é uma grande pena que não se possa estar ao mesmo tempo nos dois lugares!

ou guardo o dinheiro e não compro o doce, ou compro doce e gasto o dinheiro.

ou isto ou aquilo: ou isto ou aquilo...

e vivo escolhendo o dia inteiro!

não sei se brinco, não sei se estudo, se saio correndo ou fico tranquilo.

mas não consegui entender ainda qual é melhor: se é isto ou aquilo.

(Cecília Meireles)

1 Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Núcleo de Estudos e Pesquisa na Pequena Infância (NUPEIN) Florianópolis, Brasil, E-mail: marcia.simao@gmail.com. A pesquisa de doutorado, que dá origem aos dados para análises, recebeu bolsa do CNPq e DAAD.

2 Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de Santa Catarina e integrante do Núcleo de Estudos e Pesquisa na Pequena Infância (NUPEIN/UFSC) – Florianópolis/SC, Brasil. E-mail de contato:

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“Vivo escolhendo o dia inteiro”: das escolhas teóricas e metodológicas

A proposta deste Simpósio Temático: Rosa x Azul: como as crianças se manifestam frente às questões de gênero?, desde o título, evidencia regulações, dicotomias e padrões culturais quando nosso olhar se dirige às relações de gênero. O título inicial Rosa x Azul, revela que há oposições e dicotomias em jogo, indica expectativas e normatividades para meninas e meninos. Por outro lado, na continuidade de seu título, propõe que nos perguntemos como as crianças se manifestam frente a essas questões. Aceitando o desafio da proposta do Simpósio Temático, o texto que ampara esta comunicação oral parte da compreensão que o pertencimento e as noções de gênero envolvem uma variedade de conhecimentos, de elementos sociais e culturais que requerem estudos cuidadosos e rigorosos para compreender os modos como as crianças significam esses conhecimentos e os acionam nas relações sociais num contexto de educação infantil.

Assim, visando nos aproximar da compreensão de como as crianças se manifestam frente às questões de gênero traremos cenas e episódios que procuram dar relevo a como as crianças vivem os determinismos, as regulações, as expectativas e as dicotomias nas relações de gênero operando com dois conceitos centrais: fronteiras de gênero e neutralização (THORNE, 1993). Com, nem isto, nem aquilo, inspiradas na poesia de Cecília Meireles, pretendemos dar visibilidade às relações de gênero, na perspectiva de meninas, menines e meninos3 na educação infantil, trazendo ações, relações, diálogos e brincadeiras das crianças, visando compreender, tanto o que elas sabem e aprendem sobre gênero, quanto, os usos que fazem desses conhecimentos em suas relações sociais. Com essa orientação investigativa objetivamos compreender, de que modo, reproduzem, atualizam, ressignificam e aprendem sobre esses elementos culturais e sociais ao estabelecerem relações sociais no cotidiano de uma instituição de educação infantil.

Desde o nascimento, melhor dizendo, antes mesmo do nascimento, são atribuídas classificações às crianças a partir de atributos físicos/biológicos, genitália masculina e genitália feminina e, assim, recebem tratamentos diferenciados e vivem experiências sociais diversas, bem como, usufruem e sofrem expectativas diferentes. Nesse sentido, com a declaração: “‘É uma menina!’

ou ‘É um menino!’ também começa uma espécie de viagem, ou melhor, instala um processo que, supostamente, deve seguir um determinado rumo ou direção” (LOURO, 2008, p. 15), sendo esta declaração compreendida como uma definição, ou decisão, sobre um corpo que inaugura um processo de masculinização ou de feminilização regulado pela cultura, na qual, está inserido. Dizendo de outro

3 A proposta de escrita menina, menine e menino segue orientações de uma linguagem mais inclusiva a fim de neutralizar o binarismo de gênero na escrita (PESSOTTO, 2019); (CALDAS-COULTHARD, 2020); (FRANCO; CERVERA, 2006).

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modo, a classificação das crianças, a partir das características biológicas/físicas traz inscrições para suas vidas diferenciando-as em duas categorias: feminino e masculino (JAMES; JAMES, 2008), de modo que a dualidade do, isto ou aquilo, passa a determinar e regular as relações e os lugares sociais, instituindo que “quem sobe nos ares não fica no chão, quem fica no chão não sobe nos ares”. Essa dualidade, decorrente dos significados dados às características físicas/biológicas, determinam as formas de estabelecer relações e, ao mesmo tempo, hierarquizam, classificam, regulam as expressões de gênero a partir de padrões, valores e ideais da cultura normativa hegemônica. Dessa forma, essa dualidade, além de regular meninas e meninos, não inclui menines e outras formas e expressões que não seguem essa expectativa binária para as relações de gênero desde a infância.

Considerando que a categoria gênero, precocemente, faz parte das relações das crianças no âmbito familiar e, também no institucional, pois, como afirma Thorne (1993) para as/os adultas/os, gênero é uma categoria útil para classificar, dividir, seriar, juntar as crianças, por isso, passa a ser central no âmbito das creches, pré-escolas e escolas. Torna-se assim, uma categoria profícua para ser analisada a partir do vivido pelas crianças em contexto de educação infantil. Ou seja, ser analisada na dinâmica de como esse processo é vivido pelas crianças, quais elementos sociais e culturais marcam esse processo. Como as crianças, se utilizam desses conhecimentos, nas interações e relações sociais que estabelecem com seus pares e com as/os adultas/os em instituições de educação infantil.

Ao compreender como essas situações são vividas e significadas pelas próprias crianças é que se saberá, com maior clareza, delimitar indicativos para trabalhar essas questões no cotidiano das instituições em que meninas, menines e meninos sejam realmente respeitadas/es/os como sujeitos de direitos e atores sociais. Nesse aspecto, concordamos com Rocha (2008, p. 47), quando afirma que a pesquisa educacional necessita manter um diálogo com diferentes campos disciplinares “[...] no sentido de conhecer o modo como as crianças vivem a sua infância e a representam, para, a partir daí, balizar a ação educativa”.

Acompanhar e compreender, a partir da perspectiva das crianças, como esse processo é vivido e significado, quais conhecimentos, quais elementos sociais e culturais são determinantes nesse processo, quais os usos que as crianças dão a esses conhecimentos nas relações que estabelecem com seus pares e também com as/os adultas/os, torna-se essencial para os estudos sociais da infância.

Torna-se fundamental também para demarcar uma educação em contextos educativos mais emancipatórios e que sejam potencializadores de relações mais democráticas e igualitárias que repercutam em oportunidades também mais democráticas e igualitárias, em especial, para aqueles em estado de maior subordinação, ou seja, para os grupos com menos poderes na sociedade.

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Para a construção do texto reunimos cenas e episódios de uma pesquisa de doutorado realizada com 12 meninas e 3 meninos de 2 a 3 anos de idade, de duas a três vezes na semana durante nove meses, numa instituição pública de educação infantil4 e registros de experiências docentes vividas por uma professora de educação infantil, que procuram dar relevo a como as crianças vivem e significam os determinismos, as expectativas e as dicotomias nas relações de gênero.

Nem isto, nem aquilo: “é uma grande pena que não se possa, estar ao mesmo tempo nos dois lugares!”

Nessa seção, pretendemos dar visibilidade às relações de gênero, na perspectiva de meninas, menines e meninos, na educação infantil, trazendo ações, relações, diálogos e brincadeiras das crianças, visando compreender tanto o que elas sabem e aprendem sobre gênero, quanto, os usos que fazem desses conhecimentos em suas relações sociais a fim de conhecer, de que modo, trabalham, reproduzem, atualizam, neutralizam, ressignificam e aprendem sobre esses elementos culturais e sociais ao estabelecerem relações sociais em espaços de educação infantil.

Para as análises destas relações, fundamentada em Thorne (1993) e Kelle (1997, 1999, 2000), consideramos não somente as relações intergêneros (relações de gênero em grupos separados por sexo) mas também as relações intragêneros (as relações dentro do mesmo gênero). Essa perspectiva de análise busca superar o dualismo existente entre as expectativas de gênero para meninas e para meninos, pois, quando as relações de gênero são analisadas somente em contraposição (intergêneros), podem desencadear ideias e suposições caricaturadas, reforçando o que é específico de um ou de outro, considerando, a priori, as diferenças entre gêneros mais importantes do que as diferenças no interior dos gêneros, além de, não incluir menines e todas as formas e expressões que não seguem essa expectativa binária para as relações de gênero.

Para a escrita desse texto, seguindo a proposta do Simpósio Temático: “Rosa x Azul: como as crianças se manifestam frente às questões de gênero?”, reunimos cenas e episódios das relações intergêneros e intragêneros, objetivando operar com o conceito de trabalho de fronteiras5 (THORNE, 1993). Trabalhar as fronteiras de gênero significa, por meios das interações, (tanto entre grupos - intergêneros, quanto entre os sujeitos de um mesmo grupo - intragêneros), por um lado

4 Trata-se da pesquisa de Buss-Simão (2012), na qual optamos por não identificar a instituição para que pudéssemos utilizar os nomes reais (ou os apelidos utilizados entre elas/es) das meninas e meninos, buscando seguir princípios éticos de autorização e autoria (Kramer, 2002) na pesquisa com crianças.

5 No original, borderwork, sendo que Thorne (1993) identifica quatro modos de trabalhar as fronteiras: i) os jogos de perseguição nas relações intergênero; ii) as estratégias de competição, iii) os rituais de contaminação; iv) as estratégias de invasões.

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enfraquecer e reduzir um sentido ativo de diferença, de oposição e dicotomia ou, por outro lado, fortalecer suas, diferenças, suas oposições e dicotomias, enfim, suas fronteiras. A noção de trabalho de fronteiras atribui a estas fronteiras um caráter episódico, multifacetado e contraditório e, permite analisar, as relações inter e intragênero, revelando como as crianças são capazes de trabalhar culturalmente o gênero.

No grupo de crianças em que a pesquisa foi realizada, o interesse pelas definições e construções de gênero esteve marcado pelos objetos, pelas vestimentas e acessórios, os quais são fundantes e constituintes das relações e das fronteiras de gênero, sendo denominadas como ‘marcas’

da construção de gênero (HIRSCHAUER, 1994). Segundo Stefan Hirschauer (1994), essa exteriorização dos atributos de gênero, são como ‘marcas’ da construção de gênero e ocorrem por meio da linguagem (nomes, títulos e formas de tratamento, pronomes), de artefatos materiais (vestimentas, cosméticos, bijuterias, acessórios) e de gestos e atividades.

Ao nascerem, às crianças são outorgadas classificações a partir de atributos físicos/biológicos, definidos pelas genitálias, todavia, no dia a dia as genitálias estão cobertas, o que as leva a percepção de que não podem definir os gêneros por esses meios. Considerando que os definidores destas atribuições e classificações de pertencimento de gênero – os genitais – no cotidiano não estão visíveis, as crianças vão reconhecendo e definindo o gênero em si mesmos e nos outros, por meio dos objetos, acessórios, cortes de cabelo, gestos, voz, etc. Hirschauer (1993) enfatiza que o pertencimento de gênero de uma pessoa é uma qualidade que é mantida e demarcada por meio desses objetos culturais generificados: vestimentas, linguagem, gestos, atividades, etc. Nesse sentido, meninas, menines e meninos, operam com materialidades generificadas para legitimar ou ultrapassar as fronteiras de gênero.

Episódios envolvendo a ‘marca’ dos artefatos materiais foram recorrentes entre as crianças e revelam que os conhecimentos relativos às noções e as fronteiras de gênero são permeados pelos objetos: sandálias, saias, batons, acessórios diversos e demais objetos e brinquedos como louças, lápis, massinha de modelar, que, algumas vezes, somente se diferenciavam pelas cores azul ou rosa, como veremos no excerto que segue:

Depois do horário do parque, ao retornar para sala, a professora conta a história do João e Maria. Depois da história ela convida as crianças a desenharem. Ao realizar seu desenho Willian pede o lápis cor de rosa mas, prontamente, Tainá diz:

Tainá: rosa é de menina!

William: eu quero o rosa!

Iza: agora eu quero o rosa. (Dados de campo – Registro escrito 17-08-2009).

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O episódio revela como conhecimentos dualistas, normativas e regulações dicotômicas, de certo modo banais, a exemplo da definição das cores azul para menino e rosa para meninas, conformam as relações entre as crianças e determinam fronteiras de gênero. As fronteiras de gênero nascem de regulações e normatividades que visam a separação e a oposição entre meninas e meninos, sendo mais fortemente sentidas, no âmbito das interações entre pares, por aquelas crianças que desejam participar de uma atividade controlada por crianças de outro gênero. Willian, na relação com duas meninas, Tainá e Iza, é quem sente a separação da fronteira de gênero e busca trabalhar essa fronteira afirmando: “eu quero rosa!”, de forma a reduzir o sentido ativo da diferença e da oposição, que no episódio, no entanto, não ganha força, já que Iza, reivindica para si a cor rosa: “agora eu quero o rosa”. Na continuidade, apresentamos mais um episódio, em que Willian coloca em evidência como as fronteiras de gênero emergem na definição do uso de roupas:

Tainá, Amanda e Willian desenham em meu caderno de campo. Amanda se aproxima e mostra sua blusa com desenho da Minnie:

Amanda: ohhh, a Minnie. Ta escrito Minnie [aponta para a escrita do nome].

Márcia: é? Ta escrito o nome dela?

Amanda: é aqui, ohhh... Minnie [passa o dedo sobre o nome de novo]. Ela tem um namorado!

Márcia: é? Quem é o namorado dela?

Amanda pensa por uns instantes e depois responde: Mickey

Amanda: ohhh, Willian, olha a Minnie ... no outro ano tu olhou! A minha mãe comprou!

Willian: A minha mãe também vai comprar!

Amanda: mas tu não é menina! [fala rindo].

Willian: é eu não sou menina, eu sou menino! [fala rindo].

Márcia: o Willian não pode usar camiseta da Minnie?

Willian: pode!

Amanda parece insegura, fita Willian e consente com um movimento leve do olhar demonstrando incerteza com a afirmação. (Dados de campo registro escrito 17-08-2009).

Ações como essas do Willian, apresentadas nos dois episódios, revelam o quanto, em situações diárias e cotidianas nas instituições de educação infantil, por meios das interações e relações sociais, o trabalho de fronteiras de gênero pode, por um lado, enfraquecer e reduzir um sentido ativo de diferença, oposição e dicotomia, mas também, por outro lado, fortalecer ainda mais suas fronteiras.

Thorne (1993) salienta que, cuidadosamente, escolheu a palavra fronteira para aludir esse processo, porque considera a palavra ‘passagem’ inadequada, pois, assim como observamos nos episódios apresentados, o Willian não pretendia ser do outro sexo, ao mesmo tempo, revela ter clareza de seu pertencimento ao afirmar rindo: “é eu não sou menina, eu sou menino!”. Da mesma forma, como indica Thorne (1993), nos dados de campo de sua pesquisa, as crianças também não reivindicavam uma espécie de ‘terceiro sexo’, status encontrado em algumas outras culturas. A partir dessa compreensão é que a noção de trabalho de fronteiras procura dar visibilidade para esse

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processo, tendo este um caráter episódico, multifacetado e contraditório revelando como as crianças são capazes de trabalhar culturalmente o gênero.

A partir dos episódios expostos, compreendemos que as experiências nas relações estabelecidas com as outras crianças, tendo como foco da atenção os artefatos materiais, vai indicando e ‘marcando’ as fronteiras e os pertencimentos de gênero de meninas, menines e meninos e, nesse processo, elas/es vão constituindo suas noções de gênero.

Nas cenas descritas, para o Willian, as fronteiras de gênero o dificultam a pintar seu desenho com lápis rosa, usar camiseta da Minnie. Neste sentido, as crianças mostram como, em suas relações intergênero e intragênero, as fronteiras de gênero são atualizadas, assumindo, tanto uma faceta potencializadora (quando as fronteiras são quebradas ou enfraquecidas), quanto limitadora, de possibilidades de ação social das crianças. Nos episódios apresentados, por meio das relações estabelecidas com as meninas e das indicações dadas por elas, de que ele não poderia usar lápis da cor rosa e camiseta da Minnie, que são/estão definidas cultural e socialmente como femininas, sua possibilidade de agir e participar do mundo social é limitada.

O trabalho de fronteiras protagonizado por Willian, buscando romper as barreiras e binarismos de gênero, não se restringia em usar lápis de cor rosa para fazer seus desenhos, usar camiseta com desenho da personagem Minnie, mas permeava outros objetos como: usar sandálias e sapatos das meninas, tomar água de garrafas personalizadas com formas da Cinderela, Branca de Neve, além do batom ou gloss. O batom ou gloss, um elemento considerado do mundo feminino, esteve presente nas relações sociais, nos diálogos e brincadeiras entre as crianças, nomeadamente, quando alguma menina o trazia para a instituição. Entre os meninos, Léo foi quem mais se colocou nessa posição de vigilância, num trabalho de manutenção das fronteiras de gênero, para que padrões tidos como hegemonicamente masculinos se perpetuassem.

A conversa na roda, depois da contação da história do saci-pererê, é sobre encaminhamentos para a festa junina, a qual, acontecerá em breve. Envolve alimentação, vestimenta, danças e brincadeiras da festa. A professora fala que Willian, na festa do ano passado, vestiu uma roupa bem bonita e fez maquiagem com barba de caipira. Fala ainda que as meninas fazem tranças no cabelo e usam chapéu e que passam batom. Enquanto a professora continua a conversa com as crianças, Léo e Willian, que estão sentados lado a lado na roda, conversam sobre o batom. Mesmo não conseguindo ouvir todo o diálogo, suponho que Willian disse que usaria batom para a festa junina, pois, o Léo diz: Léo: não, não pode passar batom [passa os dedinhos nos lábios], só menina! (Dados de campo registro escrito do dia 08-06-2009).

Todavia, essa vigilância não é mantida sempre, pois, esse processo de trabalho de fronteiras de gênero, é permeado por dicotomias e contradições em que, algumas vezes, as crianças atualizam, reproduzem e acentuam os estereótipos e as oposições, em outros, se tornam resistentes e desafiam a

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imposição destes mesmos estereótipos e destas oposições, como pode ser observado no episódio a seguir em que, novamente, Léo e Willian estão envolvidos com a temática do batom:

Léo passa o batom de Larissa em seus lábios e, em seguida, o devolve para ela. Segue até o espelho, se olha no espelho e vem até bem perto de mim e diz:

Léo: óhh, batom!

Nesse momento, Willian se dirige até mim, já com batom da Jennyfer nos lábios e diz:

Willian: ohh, batom!

Willian também se olha no espelho, em seguida, Léo e Willian se olham e voltam a se olhar no espelho. (Registro notas de campo do dia 23-06-2009).

Por meio da análise desse episódio, é possível observar uma desconstrução das fronteiras de gênero de forma que o sentido de gênero como dicotomia e oposição é trabalhado e as fronteiras se dissolvem. As ações de Willian e Léo revelam possibilidades de viver, ao mesmo tempo, experiências sociais sem fronteiras de gênero, nem isto, nem aquilo, vencendo as barreiras ao “estar ao mesmo tempo nos dois lugares!” como deseja Cecília Meireles no poema que abre esse texto. Willian e Léo ostentam “[...] uma fluidez de trânsito nos mundos genderizados, não mais separados e não mais do

‘ou isto ou aquilo’, mas sim um mundo em que coexistem ‘o isto e o aquilo’” (BUSS-SIMÃO, 2013, p.188).

Para descrever esse processo Thorne (1993) aciona o conceito de neutralização6 das fronteiras, que consiste nos processos pelos quais, as crianças são capazes de neutralizar fronteiras de gênero fundadas na separação e na oposição. O episódio, em que Léo e Willian rompem as fronteiras de gênero e se permitem experimentar o uso do batom, enfatizando sua visualização e sua exteriorização, apresenta uma forma de neutralizar essas fronteiras, dissolvendo-as. Revela como o trabalho de fronteiras de gênero, entre as crianças, envolve processos de neutralização das relações fundadas na separação e oposição. Revela também o caráter ambíguo e dúbio destas fronteiras. Se, por um lado, os limites podem ser acentuados, reforçados, ratificados, atualizados e reproduzidos nas relações intergênero, por outro, também podem ser desafiados, superados e questionados.

Para dar visibilidade ao caráter ambíguo e dúbio destas fronteiras, bem como a relevância, de também nós adultas/os, nas ações educativo-pedagógicas, acionarmos o conceito de neutralização a fim de fornecer possibilidades para que as fronteiras sejam desafiadas, questionadas e até superadas, apresentamos um episódio registrado por uma professora de educação infantil, que coloca em evidência as resistências reveladas pelas crianças e a importância dos processos de neutralização de relações de gênero baseadas em divisão e oposição binária:

6 No original: neutralization (THORNE, 1993).

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Num momento de roda em que estávamos conversando sobre assumirmos, coletivamente, responsabilidades com os afazeres da sala, decidimos que cada dia sortearíamos uma criança que ficaria responsável por algumas demandas no grupo. O sorteio consistia em adivinhar quem era a criança, por meio de menção a características (físicas, acessórios e vestimentas).

Assim, sorteei o nome Dani e a primeira dica que apresentei ao grupo foi:

Professora: “É um menino!” (Pelo menos metade do grupo de 15 crianças – entre 3 e 4 anos - tinham atributos masculinos e, por isso, considerados meninos, informação ratificada pelo registro de matrícula preenchida pelas famílias). Todas as crianças se entreolharam sem nomear uma criança específica.

Professora: “Está usando calça azul!” (Pelo menos 4 meninos estavam usando calça azul, mas, mesmo assim, Dani não se manifestou).

Então decidida a finalizar o sorteio, mencionei algo que somente Dani estivesse usando:

Professora: “Agora vocês vão acertar! A criança sorteada está usando casaco azul!”

Algumas crianças olharam e apontaram para Dani que, mesmo diante dos olhares e apontamentos, não se manifestou. Então acabei falando: Professora: “Dani, és tu! Não percebeste que estás usando um casaco azul?”.

Dani: “Sim! Mas, eu não sou um menino!” (Documentação pedagógica, 2014).

Comumente, em contextos de educação coletiva, nas ações educativas-pedagógicas gênero é uma categoria útil para classificar, dividir, seriar, juntar as crianças, por isso, se faz vital sua análise no âmbito das creches, pré-escolas e escolas. Organizar as ações educativas-pedagógicas e as relações das crianças a partir de fronteiras opostas e separadas, numa perspectiva binária, acentua a oposição e as fronteiras de gênero. Os processos de neutralização de relações binárias de gênero, consistem, nesse sentido, no caráter transgressor e de resistência dos agenciamentos das crianças em seus modos próprios de trabalhar as fronteiras. O trabalho educativo-pedagógico, ao dar sentido às resistências reveladas pelas crianças e aos seus processos de neutralização de relações binárias de gênero, potencializa, a partir disso, a construção de caminhos para um projeto educativo emancipador, no qual, seja possível o isto e aquilo, ou, o nem isto, nem aquilo!

Os processos de neutralização apontam para uma ação educativa-pedagógica que busque modos de trabalhar as fronteiras que questionem, desafiem e superem as relações baseadas em oposições e divisões binárias de gênero. Algumas indicações podem ser encontradas a partir da observação e análise das interações e brincadeiras das crianças e da identificação dos seus agenciamentos de resistências que, por sua vez, permitirão pensar sobre como potencializá-los em uma ação educativa-pedagógica. Assim, pode-se dizer que a infância e, nela, as crianças, como sujeitos de um tempo que veem o novo naquilo que já é habitual e naturalizado no mundo social, permitem inaugurar diferentes formas de trabalhar o gênero. Esses episódios revelam o quanto a observação dos modos próprios como as crianças vivem sua infância nos dão pistas para compreender como se dá a construção social da infância. As análises, a partir da perspectiva das crianças, trazem para os estudos sociais da infância diretrizes para conhecer o modo como as crianças vivem a sua

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infância e a representam, estas, por sua vez, são preciosidades que podem balizar a ação educativo- pedagógica em espaços de educação coletiva.

Considerações finais

Como já afirmado, os dados aqui apresentados são resultados de uma pesquisa, que tinha como premissa, a relevância em conhecer o que as crianças sabem e aprendem sobre gênero, mas também, compreender os usos que elas fazem desse conhecimento nas relações sociais que estabelecem com seus pares e com as/os adultas/os e, de registros de experiências docentes vividas por uma professora de educação infantil. Por meio de episódios, que dão visibilidade as ações e relações das crianças, operamos como os conceitos de trabalho de fronteiras e neutralização, a fim de nos aproximar da perspectiva das crianças, analisando relações sociais, diálogos e brincadeiras, tanto entre grupos - intergêneros, quanto entre os sujeitos de um mesmo grupo – intragêneros.

Nos episódios expostos, as ‘marcas’ que exteriorizam os atributos de gênero, a exemplo do lápis de cor rosa, vestimenta com inscrição da Minnie, batom e gloss, calça ou casaco azul, são determinantes e demarcam as relações sociais de meninas, menines e meninos. Tendo em conta essa relevância, concordamos com Louro (2008, p. 83, grifo no original) quando afirma que mesmo que essa ‘marcação’ tenha sido estabelecida arbitrariamente como adequada e legítima em uma sociedade, é, no entanto, “[...] pouco relevante definir quem tem a iniciativa dessa ‘marcação’ ou quais suas intenções, o que importa é examinar como ocorrem esses processos e seus efeitos”. Nesse sentido, no grupo de crianças pesquisado, ao atentar para as relações sociais estabelecidas entre elas, a intenção foi identificar como esse processo é vivido por elas, quais seus efeitos e, sobretudo, como as crianças se utilizam desses conhecimentos nas interações e relações sociais estabelecidas com seus pares e com as/os adultas/os e trabalham culturalmente o gênero. A noção de trabalho de fronteiras possui um caráter episódico, multifacetado e contraditório, podendo, por um lado, enfraquecer e reduzir um sentido ativo de diferença, ou, por outro lado, fortalecer essas mesmas diferenças, sendo a noção de neutralização fundamental nesse processo de trabalho de fronteiras de gênero.

O diálogo com as cenas e episódios, revelam que as atribuições e classificações de gênero trazem inscrições para a vida das crianças que as diferenciam em menina e menino e materializa a dualidade do, isto ou aquilo. Atribuições binárias de gênero que passam a determinar as relações e os lugares sociais, de forma que “quem sobe nos ares não fica no chão, quem fica no chão não sobe nos

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ares”, as crianças, todavia, nos advertem que “é uma grande pena que não se possa, estar ao mesmo tempo nos dois lugares!” a fim de regulamentar o isto e aquilo, ou, o nem isto, nem aquilo!

Referências

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THORNE, Barrie. Gender Play: girls and boys in school. Open University Press Buckingham, 1993.

Neither this nor that: gender relations from the perspective of girls and boys in early childhood education

Abstract: The present oral communication proposal starts from the understanding that belonging and the notions of gender involve a variety of knowledge and social and cultural elements that require meticulous studies to understand the ways children mean this knowledge and trigger them in social relations in a context of early childhood education. In this sense, scenes and episodes from a doctoral research carried out with 12 girls and 3 boys aged 2 to 3 years were brought together in an early childhood education institution and which seek to highlight how children experience determinisms, expectations and dichotomies in gender relations operating with two central concepts: gender boundaries and neutralization (THORNE, 1993). With neither this nor that, we intend to give visibility to gender relations from the perspective of girls and boys in early childhood education by bringing actions, relationships, conversations and games of children, aiming to understand both what they know and learn about gender, as well as, the uses they make of this knowledge in their social relations in order to understand how they reproduce, update, resignify and learn about these cultural and social elements by establishing social relations in the daily life of an early childhood education institution.

Keywords: Gender relations; Early childhood education; Girls; Boys.

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