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SINAL DE GPS PERDIDO

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Academic year: 2021

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Nota Introdutória

É uma consideração que me fazem recorrentemente —

«Gonçalo, viajar não é para todos!», ou seja, uma espécie de admoestação em tom censório para que me recorde que poder conhecer outras terras e contactar outros povos ainda se trata de um privilégio reservado a poucos: uns mais aventureiros, outros mais endinheirados.

Tal como escrevo algures neste livro, na época em que vi- vemos, com as low-costs, com os hostals, com as dicas todas que estão disponíveis na net e os guias de bolso que explicam tudo, com a moeda forte que é o euro, com os vistos que se sacam online, com os fóruns de viajantes e o Google, etc., etc., sim, penso que viajar está mesmo ao alcance de todos.

O que talvez não esteja ao alcance de todos são a experiên- cia, o engenho e a erudição necessários para perceber que cada viagem é única — mesmo quando já foi feita por milhões de turistas antes de nós ou ao mesmo tempo que nós, ao nosso lado.

Quando comecei a minha carreira de escritor de viagens, confessava que não sabia ainda «se escrevia para viajar, ou se viajava para escrever». Hoje, percebo que é através da escrita que me aproprio da viagem e a torno minha. É o objetivo de

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GONÇALO CADILHE

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ambas, escrita e viagem: criar uma perspetiva inédita, original sobre os lugares que visito.

Não é por acaso que a coleção de escritos aqui reunida tem um fio condutor com um alcance mais profundo do que a carac- terística óbvia de pertencer ao género travel writing. Esse fio con- dutor vem declarado no duplo sentido do subtítulo: «Viagens fora dos lugares comuns». A expressão «lugar comum» é a chave de leitura destes textos. Os dicionários definem «lugar comum»

(na realidade, lugar-comum) como «algo banal, trivial, sem cria- tividade», etc. Os destinos descritos neste livro nem sempre são recônditos ou surpreendentes, alguns até figuram entre os mais famosos polos de atração do turismo mundial — se quisermos, entre os mais «banais, triviais». Não é, portanto, pelo nível de anonimato ou por uma característica inédita dos destinos e iti- nerários aqui descritos que vos proponho tentarmos viajar fora do lugar comum. É pela perspetiva que apresento sobre esses destinos e itinerários.

Os textos aqui reunidos foram escritos, na sua maioria, nos últimos anos. Muitos deles enquanto decorria a própria viagem;

outros, buscando reminiscências de uma época passada em que o ato de viajar era muito diferente daquele que se pratica hoje.

Embora não tivessem sido publicados em livro, grande parte destes textos apareceu nas crónicas que mantive na Visão entre 2013 e 2019, «Qualquer Coisa nos Lugares», daí também uma certa formatação da sua dimensão. Um par destes textos foi re- cuperado de um livro que já não se encontra à venda, por deci- são minha, por o considerar datado: o Tournée. Estes textos, no entanto, retinham a frescura de quando foram escritos e foram mantidos assim em vida.

Quanto ao título Sinal de GPS Perdido, creio que todos os lei- tores terão identificado a frase canónica da menina que vive den- tro do telemóvel a anunciar que entrámos numa zona sem rede.

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SINAL DE GPS PERDIDO

A frase está normalmente associada a uma situação de alarme:

sem o sinal, deixamos de ter indicações para o nosso destino.

Aqui, pretendo precisamente o contrário: conseguir viajar para destinos que só eu conheço a localização. E que faço por não divulgar as suas coordenadas. Sou eu que deixo perder o sinal de GPS. É o contrário de andar perdido. Conheço bem a minha estrada.

A minha que é, aliás, a nossa. É o pacto tácito da literatura de viagens: o autor escreve com a missão de colocar o leitor a viajar consigo. Caberá ao leitor decidir se sentiu que participou numa viagem inédita e original após a leitura do livro.

Votos de boa viagem, então.

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O DEUS DOS LEÕES

A tarde cai suavemente na savana e na realidade não estou a pensar em nada, a mente descansa e quase todo eu sou um foco de estímulos sensoriais, a brisa que passa pela superfície exposta da pele, as cores discretas da luz africana que me preen- chem o olhar, o odor misturado de pó e ervas e animais, a te- pidez em dissolução da última hora de sol. Não estou a pensar em nada, mas vem-me de repente à memória uma campanha que um grupo de ateus ou, para soar de forma mais moder- na e concertada, um grupo de ateístas, lançou há uns anos em Inglaterra. Era um outdoor com a simples pergunta: «E se Deus não existir mesmo?» O cientista Richard Dawkins deu a cara pela campanha. Alguns lobbies religiosos tentaram proibi-la, mas a liberdade de expressão venceu o «prurido conservador», chamemos-lhe assim.

A campanha tinha humor. Sais de casa numa segunda-feira de manhã, chuvosa e cinzenta, para uma semana de trabalho num emprego que detestas e que achas que te está a tirar os me- lhores anos da tua vida. E de repente lês: «E se Deus não existir mesmo?», e ficas a pensar: «Porra, e se depois da morte não houver outra vida, será que estou a aproveitar o melhor desta?»

e chegas ao dito emprego e, afinal, despedes-te e vais viajar e conhecer o mundo em que estás, agora.

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Vem-me de repente à memória esta campanha no banco de trás de um jeep de caixa aberta de nove lugares na poeira do Botsuana, estamos a fazer um game drive — é assim o nome cor- reto dos safaris que todos fazemos quando vamos ver animais selvagens a um desses países africanos que aposta a sério no turismo e na conservation da sua natureza. E já agora, é essa a palavra correta: conservation — uso dos recursos naturais de um país de forma pragmática e equilibrada. Estou, portanto, a participar num game drive no Botsuana e já vimos dezenas de elefantes, manadas de búfalos, crocodilos sonolentos ao sol, hipopótamos, girafas, macacos. Falta ainda na lista o troféu, o leão. O grupo está inquieto, será que vemos ou não vemos? Às vezes é assim, passamos horas a procurar, e nada; e de repente basta um minuto para salvar a viagem: um velho leão solitário a beber num charco, ou um bando de leoas com as crias ou dois jovens machos a disputar o território.

E assim, de repente — já quase a anoitecer e nós, desanima- dos, prontos para regressar ao lodge —, aparece o bando de leoas.

Estão a preguiçar, desatentas, indiferentes. Naturalmente, estão de barriga cheia. A coisa acalma-me. Tenho medo de leões. Mas lembro-me de ler nos livros do Tarzan que não há nada a temer de um leão quando tem a barriga cheia. Um jeep assim, de caixa aberta com os seus nove lugares sem proteção para agressões externas — nem sequer estamos protegidos dos galhos de árvo- res quando fazem o efeito elástico e são projetados para trás —, um jeep assim pode parecer terrivelmente apetecível para um predador com fome.

Ficamos tranquilos a observar as leoas na savana que obs- curece. Uma das leoas passa à frente do jeep com a cabeça ainda ensanguentada da impala que acabaram de devorar. Todos os dias, isto: uma impala mais distraída, ou uma zebra coxa, ou um filhote de búfalo, ou a girafa mais idosa será pasto dos leões.

Ou dos crocodilos. Ou dos leopardos. Ou das hienas. Uma lei

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cruel e inevitável, um mundo tramado onde há sempre algum animal a ser barbaramente despedaçado por outro, derraman- do sangue, cortando laços familiares, terminando a breve exis- tência com o olhar vidrado e inexpressivo interrogando os céus.

Que sentido há em tudo isto? Que raça de planeta é este? Que lógica presidiu à criação do mundo?

E eu que escrevia há tempos que o Botsuana me parecia a primeira manhã da vida na Terra. Aludia à noção de preserva- ção da natureza, de conservacionismo, de pureza ancestral. Mas agora posso acrescentar: a primeira manhã da morte na Terra.

E se Deus não existir mesmo? Os leões riem-se da pergunta, claro que existe, preencheu este planeta de impalas tenrinhos, zebras coxas, bebés de búfalo, é só procurar e matar e comer.

Não tem lógica a criação do mundo? Então não tem?

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