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XXIX Encontro Anual da ANPOCS. 25 a 29 de outubro de GT 16 Performance, Drama e Sociedade ATORES DA VIOLÊNCIA ATORES DO DIÁLOGO.

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Academic year: 2021

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25 a 29 de outubro de 2005

GT 16 “Performance, Drama e Sociedade”

ATORES DA VIOLÊNCIA — ATORES DO DIÁLOGO

Willi Bolle

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Apresentamos aqui um relato de uma experiência de pedagogia teatral realizada em 2004 e 2005 pelo professor Willi Bolle e cinco alunos de Letras da Universidade de São Paulo – Maira Dalalio, Fernando Siedschlag, Henrique Toledo, Paulo Ortiz e Pedro Barros –, com base no romance Grande Sertão:

Veredas (1956), de João Guimarães Rosa (1908-1967), o qual foi estudado no livro de Willi Bolle, grandesertão.br (São Paulo: Duas Cidades e Editora 34, 2004) como “romance de formação do Brasil”. Trata-se de uma comparação da obra ficcional de Guimarães Rosa com os principais retratos sociológicos e históricos do País: Os Sertões, de Euclides da Cunha; Casa-Grande & Senzala, de Gilberto Freyre; Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda; Formação econômica do Brasil, de Celso Furtado; Os donos do poder, de Raymundo Faoro;

Formação da literatura brasileira, de Antonio Candido; e O povo brasileiro, de Darcy Ribeiro. Do ponto de vista sociológico e histórico são realçados sobretudo três aspectos: o “sistema jagunço” (a denominação é de Guimarães Rosa), o pacto com o diabo como alegoria da lei fundadora da sociedade brasileira (“trato de iguais com iguais. Primeiro, eu era que dava a ordem”) e o que se pode chamar “a nação dilacerada”.

Um traço distintivo do estudo realizado em grandesertão.br, em comparação com trabalhos sociológicos anteriores, é a tese de que Grande Sertão:

Veredas, enquanto retrato do Brasil, não foi escrito para corroborar análises de determinados ensaios sociológicos ou históricos, mas que o romance se posiciona com relação a eles como uma forma de discurso autônoma e concorrente. O que importa descobrir é a qualidade específica do conhecimento proporcionado pela qualidade estética do texto ficcional. Para descobrir Guimarães Rosa como pensador do Brasil, é preciso investigar os recursos de forma, perspectiva e composição do romance – elementos como a situação narrativa, a invenção de uma nova linguagem, a profusão de falas de sertanejos, a encenação do amor, do medo e da coragem –, que fornecem informações ao mesmo tempo complementares e novas em comparação com as categorias cognitivas do sociólogo ou do historiador.

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Como uma espécie de “complemento lúdico” da pesquisa acadêmica que resultou no livro grandesertão.br – o romance de formação do Brasil, nasceu na fase final de redação do manuscrito um texto destinado para uma leitura dramática. A cena que representamos no palco é uma livre adaptação de um episódio de Grande Sertão: Veredas, com a incorporação de falas de jagunços espalhadas pelo romance inteiro.

A leitura dramática foi realizada pelo professor Willi e seus alunos na festa de fim-de-ano do curso de Introdução à Literatura Alemã em dezembro de 2003.

Naquela ocasião, Maira, Fernando e Willi representaram respectivamente os papéis dos protagonistas Hermógenes, seô Habão e Riobaldo. Para atuarem como

“rasos jagunços” foram chamados para a cena mais 16 colegas estudantes, homens e mulheres, sendo que Henrique e Paulo atuaram no meio deles; e Pedro, como nosso câmera, gravou a experiência. Não podíamos saber, naquele momento, que tal experiência lúdica seria o início da formação de um grupo de teatro, que resolveu chamar-se, alguns meses depois, de “grandesertão.br”. Durante o ano de 2004 e o primeiro semestre de 2005, realizamos quatro apresentações públicas e mais um ensaio aberto. Uma vez que planejamos, para o segundo semestre de 2005, uma série de outras apresentações, em São Paulo, num congresso internacional de pedagogia teatral na Universidade de Osnabrück/Alemanha, e também em Berlim e Paris, achamos que este é o momento para apresentarmos um balanço e um retrospecto sobre o que foi realizado até agora.

O resumo atualizado do nosso trabalho foi feito em forma de um vídeo amador, filmado e editado por Pedro Barros (com a colaboração dos outros membros do grupo), um filme que pretendemos projetar, no âmbito deste XXIX Encontro Anual da ANPOCS, durante nossa exposição no GT “Performance, Drama e Sociedade”. Por isso, este relato de experiência de pedagogia teatral, daqui em diante, toma a forma de uma reprodução e de um comentário do roteiro do vídeo.

No trecho introdutório, logo depois da apresentação do título, “Atores da violência – atores do diálogo”, e da explicação de que se trata de uma experiência

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de pedagogia teatral do grupo “grandesertão.br”, da USP, procuramos colocar o espectador in medias res. Projetamos a fala de um dos jagunços, Rodrigues Peludo, interpretado pela professora Eliana Chiossi (UFBA), durante um minicurso que ministramos na PUC-MG, em Belo Horizonte: “Jagunço é isso:

comer, beber, apreciar mulher, brigar e fim final”.

Em seguida, introduzimos as referências ao romance de Guimarães Rosa, ao estudo de Willi Bolle e os nomes dos integrantes do grupo, com fotos.

Como leitmotiv do nosso trabalho pedagógico escolhemos uma frase de Riobaldo: “Eu explicava aos meninos menores as letras”. Nesta frase está, ou melhor, estaria contida a vocação de Riobaldo como professor. Ora, o autor de Grande Sertão: Veredas resolveu não fazer coro com tantos bem-intencionados programas educacionais. Riobaldo larga a escola pública e trabalha como professor particular e secretário, bem pago, de um político, Zé Bebelo, cuja ambição é se tornar deputado através de uma campanha de extinção de uma forma recorrente de crime, a jagunçagem. No decorrer dessa história, Riobaldo acaba se transformando – de secretário de um caçador de jagunços – em jagunço e, depois do pacto com o diabo, em chefe e empresário de jagunços. Na verdade, ele representa a figura um tanto especial de um “jagunço letrado” (o termo é de Walnice Galvão).

A figura híbrida do jagunço letrado, que mereceria um estudo à parte, está presente nas nossas reflexões desde o início. Isso se traduz, por exemplo, na mudança do título do nosso trabalho. O minicurso que ministramos em agosto de 2004 em Belo Horizonte se chamava “Diálogo entre letrados e não-letrados”. A experiência que fizemos nessa ocasião nos fez mudar para a proposta atual,

“Atores da violência – atores do diálogo”. Isto é, mudamos a ênfase do “letrado”

para o “jagunço”, mantendo a idéia de “diálogo”. O que continua nos desafiando é a idéia de como relacionar, da forma didática melhor possível, o trabalho de Guimarães Rosa em termos de representação política e social do Brasil com a sua proposta de reinventar a linguagem.

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Ao encenar o que ele chama o “sistema jagunço”, ou seja, narrar uma história de bandos de criminosos disputando o poder no planalto central do Brasil, Guimarães Rosa representa numa grande metáfora o sistema de poder, vinculado ao crime e a uma extrema desigualdade social. Um elemento que diferencia decisivamente o texto ficcional de Grande Sertão: Veredas de qualquer retrato sociológico ou historiográfico do Brasil é a existência da situação narrativa. O romance apresenta um narrador sertanejo falando com um doutor da cidade, que nunca toma a palavra. Podemos ver nisso uma encenação irônica de como não se conversa no Brasil real. A tese central do estudo grandesertão.br é que a conversa mais significativa, neste enfoque do Brasil através do romance de Guimarães Rosa, é a falta de um real diálogo entre letrados e não-letrados. Esta diferença cultural e social pode ser formulada de forma mais aguda em termos de um antagonismo político: falta um diálogo entre a classe dominante e as classes de baixo.

“Só faltou uma conversa”, disse o morador João de Régis (1907-2002), da cidade de Canudos, em retrospecto sobre um dos mais sangrentos conflitos da história brasileira, quando, em 1897, o exército, em nome d’ “a nação inteira”, aniquilou a comunidade rebelde dos sertanejos, os quais, segundo Euclides da Cunha, representariam “o cerne da nossa nacionalidade”. Será que hoje em dia, um século mais tarde, existe porventura esta conversa? Ou, em outras palavras, de pura utopia: será que existe um projeto comum para o país entre as suas elites e os de baixo?

Para essa falta de diálogo social, para esta nação dilacerada, a obra de Guimarães Rosa oferece uma alternativa que é um projeto poético-político:

renovar a sociedade através da invenção de uma nova linguagem. Ela seria, assim como o mostram os textos ficcionais do nosso autor, uma fusão entre a língua culta e a fala popular. As falas que escolhemos para montar a cena da nossa leitura dramática trazem de alguma maneira a marca desse idioma. Por violentas que sejam as falas, do ponto de vista do conteúdo, existe nelas uma feitura artística que chama a atenção para o próprio ato de construir o discurso. Esta observação poderá nos servir, mais adiante, como apoio reflexivo. Por enquanto,

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mergulhemos na ação dramática. O objetivo da nossa leitura dramática é este:

num primeiro momento, experimentar ludicamente o papel de agentes da violência; a partir daí trata-se de efetuar a nossa transformação em agentes do diálogo e de mediação cultural.

I. A leitura dramática

O nosso tipo de atividade é um teatro para todos. Compartilhamos com o teatro de aprendizagem (learning play) de Brecht o pressuposto de que o aproveitamento mais intenso da representação cênica é experimentado pelos atores. Como nosso grupo costuma chega ao lugar da apresentação com apenas 3 a 5 atores, necessitamos de mais pessoas para completar o elenco de 19 personagens. Nossa primeira tarefa, portanto, consiste em motivar o público de tal maneira que, na hora, 14 a 16 pessoas se disponham a fazer conosco no palco o papel de jagunços. Trabalhamos em primeiro lugar com leigos, mas evidentemente são bem-vindos também atores e atrizes profissionais.

A escolha e preparação dos atores, assim como a montagem propriamente dita, acontece num tempo brevíssimo. Apenas no workshop de três dias, realizado na PUC-MG, em Belo Horizonte, e em mais uma ocasião tivemos a possibilidade de um ensaio na véspera; na maioria das vezes dispusemos apenas de aproximadamente uma hora de preparação. No caso ideal a preparação consiste em estudo do texto, experimentação de várias interpretações, exercícios de voz e de corpo em geral, orientação no espaço, esboço de uma coreografia e organização do trabalho conjunto de todos os atores. Durante essas atividades, os integrantes do “trio diretor” – Maira e Willi e Fernando ou Henrique – ajudam os colegas atores a entrar no papel.

A cena por nós inventada, com base no romance Grande Sertão: Veredas, mostra um bando de jagunços, comandado pela figura diabólica do Hermógenes e tendo no seu meio o protagonista-narrador Riobaldo, chegando à fazenda do latifundiário seô Habão. Enquanto os jagunços manifestam em suas falas o hábito de lidar diariamente com a violência, Hermógenes tenta seduzi-los para empreendimentos criminosos “em serviço para chefes políticos” e seô Habão

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procura aproveitar a presença destes homens como mão-de-obra para suas plantações.

Na montagem que forma a narrativa do nosso roteiro filmado apresentamos recortes de todos os 6 lugares em que realizamos a leitura dramática. Depois de um ensaio inicial em dezembro de 2003, em São Paulo, realizamos nossa primeira apresentação pública em janeiro de 2004, durante o IV Encontro de Arte e Cultura, centrado na obra de Guimarães Rosa, na pequena cidade de Morro da Garça, no sertão de Minas Gerais. Nosso trabalho cênico continuou, em agosto de 2004, em forma de um minicurso e workshop, na PUC- MG, em Belo Horizonte, no âmbito do III Seminário Internacional sobre Guimarães Rosa; seguiu-se, em setembro de 2004, no Instituto Goethe de São Paulo, uma leitura pública por ocasião do lançamento do livro grandesertão.br.

Em 2005 realizamos, em abril, um ensaio complementar no Teatro da Ribalta, em São Paulo; nossa apresentação mais recente ocorreu em junho de 2005, na Escola Florestan Fernandes, a escola dos professores do Movimento dos Sem Terra, em Guararema/SP.

Apresentamos em seguida o texto integral do nosso roteiro, com as falas de todos os 19 personagens. Em três momentos intervêm as vozes do coro, que expressa a situação e o desejo dos jagunços enquanto massa. Na encenação, o coro pode ser representado pelos próprios atores, que já se familiarizaram com esse texto antes, pois ele é usado como meio de aquecimento e integração do grupo. Quando o número de participantes é maior que o dos atores no palco, isso nos permite constituir o coro como um segundo grupo, autônomo, que atua atrás do público e de frente para os atores. Assim aconteceu nas nossas quatro apresentações públicas.

Conforme já explicamos, os nomes dos personagens e as falas, exceto duas breves frases explicativas, são todos tirados de Grande Sertão: Veredas, sendo que se encontram espalhados pelo romance inteiro; tomamos a liberdade de rearranjar e remontar essas falas numa cena que permite um mergulho instantâneo

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no meio da atmosfera social e mental do mundo dos jagunços e, com isso, no complexo problema da violência, da miséria e do diálogo social.

O cenário é constituído pela projeção da imagem de palmeiras buriti, simbolizando o sertão. Inicialmente encontram-se em cena apenas o latifundiário seô Habão e o chefe de jagunços Hermógenes. Este chama então os jagunços, que aguardam na coxia, em três grupos (5, 5 e 7). Ao entrar em cena, cada jagunço é marcado simbolicamente com o ferro de marcar gado de seô Habão. Enquanto seô Habão levanta o ferro, Hermógenes cola na testa de cada jagunço o emblema de que este homem, doravante, é propriedade daquele dono de gado e gente. Em seguida, Hermógenes manda cada jagunço cumprimentar seô Habão e se agachar.

Agachados, os jagunços distribuem-se por todo o palco, que nem gado no curral.

Quando são chamados, um a um, por Hermógenes, que exerce também o papel de diretor em cena, eles dão a sua fala.

Jõe Bexiguento:

Nasci aqui. Meu pai me deu minha sina. Vivo, jagunceio...

Simião:

Este é seô Habão... É dono de gado e gente...

Juvenato:

Não gosto de seô Habão... Ele é bruto comercial...

Seô Habão (1):

Vou precisar de vocês para capinar e roçar, e colher...

Valtêi:

Eu gosto de matar... O que babejo vendo, é sangrarem galinha ou esfaquear porco...

Sidurino:

A gente carecia agora de um vero tiroteio para exercício de não se minguar... A alguma vila sertaneja dessas, e se pandegar, vadiando...

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CORO dos jagunços (1):

E de repente ELES podiam ser montão, montoeira, Aos milhares mís e centos milhentos,

ELES se desentocando e formando do brenhal,

ELES enchendo os caminhos todos e tomando conta das cidades.

Como é que ELES iam saber ter poder de serem bons, Com regra e conformidade, mesmo que quisessem ser?

Nem vão achar capacidade disso.

Vão querer usufruir depressa de todas as coisas boas, Vão UIVAR e DESATINAR.

Alaripe:

Eu tenho receio que me achem de coração mole, tenho pena de toda cria de Jesus...

Hermógenes (1):

Eu vou levar vocês para atacar grandes cidades, em serviço para chefes políticos...

João Bugre:

O Hermógenes é positivo pactário. Ele tira seu prazer do medo dos outros, do sofrimento dos outros...

Rodrigues Peludo:

Jagunço é isso: comer, beber, apreciar mulher, brigar e fim final...

Firmiano, apelidado Piolho-de-Cobra:

Me dá saudade de pegar um soldado, e tal, pra uma boa esfola, com faca cega...

mas, primeiro, castrar...

Riobaldo (1):

Matar aquele homem, matar assassinado... E agarrar aquela moça nos meus braços, uma quanta-coisa primorosa que se esperneia, e meus companheiros aqui, todos de pé, fechando praia de mar...

CORO dos jagunços (2):

E de repente EU podia ser montão, montoeira, Aos milhares mís e centos milhentos,

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EU me desentocando e formando do brenhal,

EU enchendo os caminhos todos e tomando conta das cidades.

Vou querer usufruir depressa de todas as coisas boas, Vou UIVAR e DESATINAR.

Joé Cazuzo:

Eu vi a Virgem! Eu vi a Virgem Nossa no resplendor do céu, com seus filhos de Anjos!

Catrumano:

Ossenhor utúrje, a gente estamos resguardando essas estradas: o povo do Sucruiú, que estão com a doença, que pega todos, peste de bexiga preta...

João Concliz:

Quando se jornadeia de jagunço não se nota tanto: o estatuto de misérias e enfermidades. Guerra diverte – o demo acha...

Menino Guirigó:

Tirei não, nada não... Tenho nada... Tenho nada...

Zé Bebelo:

O que imponho é se educar e socorrer as infâncias desse sertão...

Guimarães Rosa:

País de pessoas, de carne e sangue, de mil-e-tantas misérias...

Hermógenes (2):

Vamos sair pelo mundo, tomando dinheiro dos que têm, e objetos e vantagens de toda valia... E só vamos sossegar quando cada um já estiver farto, e já tiver recebido umas duas ou três mulheres, moças sacudidas, p’ra o renovame de sua cama ou rede! ...

CORO dos jagunços (3):

E de repente NÓS podíamos ser montão, montoeira,

NÓS enchendo os caminhos todos e tomando conta das cidades.

Vamos querer usufruir depressa de todas as coisas boas, Vamos UIVAR e DESATINAR. [bis]

Ah, e vamos beber, seguro que vamos beber

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As cachaças inteirinhas da Januária.

E vamos pegar as mulheres, e puxar para as ruas, Com pouco nem vai haver mais ruas,

Nem roupinhas de meninos, nem casas.

Os moradores vão mandar tocar depressa os sinos das igrejas, Urgência implorando de Deus o socorro,

E vai adiantar?

Onde é que eles vão achar grotas e fundões Para se esconderem – Deus nos diga.

Seô Habão (2):

A bexiga do Sucruiú já terminou. Morreram só 18 pessoas... Vou botar vocês para o corte da cana e fazeção de rapadura. A rapadura vou vender para vocês. Depois vocês pagam com trabalhos redobrados...

Riobaldo (2):

Eu eu aqui, no entremeio deles... Afinal, o que é que eu sou? Um raso jagunço atirador cachorrando por esse sertão...

Adalgizo:

Seô Habão está cobiçando a gente para escravos! ...

Riobaldo (3) [levanta, põe o chapéu e se coloca na frente de seô Habão]:

Duvidar, seô Habão, o senhor conhece meu pai, fazendeiro Senhor Coronel Selorico Mendes, do São Gregório?!

Seô Habão (3):

Dou notícia... Dou notícia...

Riobaldo (4) [apontando para os jagunços, que o olham como um traidor]:

O silêncio deles me entende.

Terminada a leitura dramática, iniciamos um trabalho de reflexão dos atores, juntamente com o público. Sem prejuízo de qualquer pergunta ou observação que possa ser feita, a questão central que propomos para ser discutida é esta: como os atores, que experimentaram ludicamente o papel de agentes da violência, podem aprender a partir daí a se transformar em agentes da mediação e do diálogo social?

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II. Como os atores da violência podem transformar-se em atores do diálogo social?

Observamos que, em meio às falas dos jagunços marcados pela violência, há também algumas vozes dissonantes:

Alaripe: “Eu tenho receio que me achem de coração mole, tenho pena de toda cria de Jesus...”

... ou uma perspectiva transcendental:

Joé Cazuzo: “Eu vi a Virgem! Eu vi a Virgem Nossa no resplendor do céu, com seus filhos de Anjos!”

... ou a dúvida:

Riobaldo (1): “Matar aquele homem, matar assassinado? E agarrar aquela moça nos meus braços?...”

Esta consciência moral, esta mensagem alternativa, no entanto, não é o suficiente para impedir as pessoas de optarem pela violência. A violência representa uma força enorme devido ao seu fascínio e poder de comunicação. É neste nível que temos que dialogar com ela, porque – assim como o sertão – ela é

“dentro da gente”.

Observamos o fascínio pela violência, no nível individual:

Valtêi: “Eu gosto de matar... O que babejo vendo, é sangrarem galinha ou esfaquear porco...”

Diferentemente de Rousseau, Guimarães Rosa acredita na “ruindade nativa” do homem:

Firmiano, apelidado Piolho-de-Cobra: “Me dá saudade de pegar um soldado, e tal, pra uma boa esfola, com faca cega..., mas, primeiro, castrar...”

O gosto pela violência, o prazer proporcionado pela violência e pelo exercício do poder sobre o outro, tem algo de hipnótico e contagiante. Através da

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experiência concreta da nossa peça de aprendizagem, cada ator percebe que a selvageria dos jagunços encontra-se nele e em todo ser humano.

No ensaio do coro, fica claro que existe um prazer coletivo, um culto à violência, como se percebe na hora da sintonização dos sentimentos e instintos dos jagunços.

Com o intuito de desenvolver uma espécie de antídoto contra o discurso da violência, nós o reproduzimos neste laboratório social que é o teatro, para os atores conhecerem esse discurso por dentro, com toda sua força, mas também para perceberem que é algo construído e que, portanto, também pode ser desconstruído.

Como já dissemos, cada um de nós tem a capacidade de transformar-se num jagunço, num ser violento. Ao escolher seu personagem, cada ator/ atriz recebe uma pequena folha com instruções:

Agora você é um jagunço.

Quando for chamado: brinque, encontre um jeito de falar o seu texto.

Procure sentir o que você diz; experimente dos mais diversos modos.

Seja criativo, só pare quando for chamado o próximo jagunço.

Nunca esqueça que você é um jagunço.

O que sempre nos proporciona um prazer muito grande é acompanhar o trabalho individual de cada ator ou atriz, e observar como ele ou ela evolui do ponto zero para uma interpretação intensa. Acompanhemos, por exemplo, a evolução – documentada em vídeo – do ator que interpreta o papel de Rodrigues Peludo: “Jagunço é isso: comer, beber, apreciar mulher, brigar e fim final...”

– no primeiro ensaio do grupo, em dezembro de 2003; na primeira apresentação pública, em janeiro de 2004; e no ensaio complementar, em abril de 2005. A tripla experiência cênica é assim comentada pelo ator: “Representar esse jagunço, pra mim, é quase como ser realmente um animal.”

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O ser humano sente prazer em voltar ao estado primitivo animal, mas no meio dessa empatia surge um desdobramento, uma auto-ironia, uma pitada de reflexão, como na peça didática de Brecht.

Na hora do debate com o público surgem os mais diversos tipos de perguntas e observações. Por exemplo: teve uma vez que um dos jagunços teve vontade, admitiu ter tido vontade, de bater em Seô Habão. De fato, a atitude de

“bruto comercial” desse homem que representa a classe dos que têm, os have – Habão vem do latim habere = ter, possuir – essa atitude contrasta violentamente com a situação dos have not.

Uma das maiores manifestações da violência é o estado permanente de extrema desigualdade social – sendo que todas as análises do nosso mundo contemporâneo mostram que ele se perpetua e se agrava. Foi diante desse quadro que nasceram, nos anos 60, a pedagogia do oprimido de Paulo Freire e o teatro do oprimido de Augusto Boal.

Freqüentemente, os nascidos na miséria procuram sair desse estado de violência que eles sofrem passivamente, para assumir um papel de agentes ativos da violência, vale dizer: do crime. É significativa, nesse sentido, a fala do jagunço João Concliz: “Quando se jornadeia de jagunço não se nota tanto: o estatuto de misérias e enfermidades. Guerra diverte – o demo acha...”

Os profissionais do crime organizado – que manipulam as pessoas, apelando para a satisfação irrestrita dos instintos – são representados na nossa encenação pela figura do Hermógenes.

“Porque na encenação de vocês” – essa foi uma das perguntas que nos fizeram – “não aparece o personagem Diadorim, que é uma mulher vestida de homem e porque o Hermógenes, que é um homem, é representado por uma mulher?”

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Nesse universo dos jagunços, exclusivamente masculino e machista, não poderia faltar o elemento feminino. Guimarães Rosa sabia disso, tanto assim que criou a figura andrógina de Diadorim. Na nossa montagem procuramos resgatar essa invenção através do fato de Diadorim aparecer de alguma maneira dentro do Hermógenes. É interessante notar que essa invenção espelha para Riobaldo os seus dois maiores medos, que vêm à tona de forma inconsciente. Quando ele fala que quer “agarrar aquela moça nos [seus] braços”, ele não se dá conta que esse impulso de violência encobre o medo dele de amar fisicamente aquela moça que é o jagunço Diadorim; e quando fala em “matar aquele homem”, esse desejo de matar um inocente se coloca no lugar da falta de coragem de enfrentar o Hermógenes na luta final corpo a corpo.

O que significam as palavras que Riobaldo, no final da nossa cena, dirige a seô Habão? Na hora decisiva, Riobaldo coloca-se acima de seus companheiros escravos para ingressar na esfera dos senhores, revelando-se filho de coronel, sendo que, antes, ele se fazia de pobre jagunço. Ele passa de raso jagunço atirador a dono de jagunços, vale dizer, a empresário do crime. É uma traição e violência redobrada. Por falar em traição, os professores do MST nos contaram que não é raro ocorrem casos de agentes provocadores ou traidores que procuram se infiltrar no meio deles. Por outro lado, narraram também o caso de um jagunço, inimigo deles, que mudou de lado e se tornou integrante dos Sem Terra.

O diálogo com os colegas de cena, tipos humanos com experiências sociais tão diversas e em lugares tão diferentes – especialmente também em ambientes fora da academia – tem sido para o nosso grupo uma experiência rica e gratificante. Achamos importante que nós, universitários, conheçamos também a linguagem e o modo de pensar de pessoas de outras estratos sociais, inclusive não- letrados. Quanto aos grupos de professores com os quais realizamos um workshop, deixamos exemplares do roteiro desta nossa “peça de aprendizagem”, para que ela possa ser experimentada também em outros lugares.

Uma imagem que ficou na nossa memória é a do coro de jagunços interpretado por um grupo de professoras durante o nosso workshop em Belo

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Horizonte. O empenho e a autonomia com a qual elas se apropriaram da nossa peça de aprendizagem – baseada na obra de Guimarães Rosa – nos dá a esperança de que a utopia poética e política deste pensador do Brasil possa se multiplicar por este país adentro por meio de pequenos grupos experimentais.

Trata-se da utopia de uma renovação da sociedade através da invenção de uma nova linguagem e de novas formas de diálogo. De fato, uma parte importante da realização dessa utopia está nas mãos dos nossos colegas professores, aqueles que, assim como Riobaldo, o alter ego de mestre João Guimarães Rosa,

“explica[m] aos meninos menores as letras”.

Referências

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