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Psicose e transferência: indicações para o tratamento

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Academic year: 2021

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Psicose e transferência: indicações para o tratamento

Palavras-chave: Psicose; Transferência; Erotomania; Psicanálise Aplicada.

Márcia de Souza Mezêncio*

O que é investigar em psicanálise?

A prática do ensino e da transmissão da psicanálise, seja nos institutos e instituições, seja nos departamentos universitários deve ser uma prática em constante invenção, se quisermos mantê-la como tal, psicanalítica. O desafio da investigação opõe práticas de repetição do já sabido, com o trabalho de buscar as referências de Freud e Lacan e atualizá-las, isto é, não se trata de ler Freud com Lacan em uma transposição direta, nem ler o Lacan de antes com o Lacan de depois, vício insistentemente denunciado por Jacques-Alain Miller. Não se trata muito menos de apropriar-se de um vocabulário e de fórmulas de citação que confiram autoridade de lei ao que disse Freud ou Lacan. É preciso situar em seu tempo e em seu contexto os problemas e avaliar as respostas e soluções segundo os limites dos instrumentos e conhecimentos disponíveis. Trata-se uma “exigência de contemporaneidade”, de estar sintonizado com o seu tempo, como nos lembra Éric Laurent (1). O passo seguinte, a nosso cargo, é tomar o estado atual das questões e buscar as respostas atuais possíveis, segundo o desenvolvimento científico nos permite.

Se Lacan valorizou, mais do que qualquer outro, o ensino como forma de transmissão da psicanálise, o que faz um analista é sua clínica e é ela quem deve orientar a pesquisa. Aquilo que o analista aprende com seus pacientes e em sua própria análise, deve ser o objeto de investigação teórica e o material para o ensino da disciplina. Além deste material, Freud recolheu também as referências literárias e as descobertas científicas de seu tempo. O mesmo, e em escala mais ampla, foi feito por Lacan. O importante para nós é, então, não só retomar essa multiplicidade de referências, bem como reconhecer as balizas atuais que mantenham viva a disciplina criada por Freud.

No progresso da construção de nosso objeto de pesquisa sobre as contra-indicações ao tratamento analítico da psicose (2), vimos brotar dele próprio uma orientação

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fundamental: o princípio metodológico da simultaneidade do tratamento e da investigação, da clínica e da teoria, que termina por conferir uma dimensão de inacabamento e de renovação constante do edifício teórico da psicanálise. É que não existe um sistema pronto e fechado e a teoria, tal como a conhecemos, é fruto de invenções e ousadias, informadas por uma prática ímpar, que não se baseava em pressupostos e premissas estabelecidas de antemão. Essa foi a prática de Freud e também a de Lacan.

O caráter empírico da ciência psicanalítica foi insistentemente afirmado por Freud. O avanço da investigação incidiu decisivamente sobre o que se construía em termos de teoria. As hipóteses podiam ser abandonadas tão logo os fatos empíricos demonstrassem sua inadequação. A teoria não existe sem a prática, mesmo nos pontos aparentemente especulativos. Freud fez questão de enfatizar que a especulação, para ele, não é uma aproximação da filosofia, mas tinha o claro objetivo de “trabalhar em pontos detalhados de importância clínica ou técnica” (3). Essa diretriz nunca significou recuar frente a questões polêmicas e embaraçosas suscitadas pelas descobertas da psicanálise. Os princípios não foram jamais sacrificados.

O princípio da utilidade da psicanálise no tratamento da psicose

Tal como indicado por M. Silvestre (4) no tratamento de psicóticos os analistas que os acolhem não se tornam por isso menos analistas. Como, então, seguir sustentando que a psicanálise não serve ao psicótico?

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constituição de uma técnica adequada para o seu tratamento, segundo estes princípios e fundamentos.

Temos como pressuposto que o impasse nas conclusões a que Freud chegou em relação ao sucesso terapêutico da psicanálise no tratamento da psicose não foi impedimento para sua pesquisa e que, ao mesmo tempo, essa pesquisa foi fundamental para o processo de crescimento e expansão da psicanálise. Expansão que se refere ao campo de atuação, à conquista institucional e ao reconhecimento extramuros. De fato, encontramos hoje os analistas em hospitais, escolas, equipamentos de saúde pública e de controle social, ou seja, prisões e dispositivos de cumprimento de medidas judiciais, como as medidas sócio-educativas. O lugar ocupado pelo analista na cidade nos reserva a responsabilidade de engajar-nos na subjetividade de nosso tempo, também através do trabalho de investigação, para contribuirmos na construção de respostas aos problemas que nossa inserção nos coloca. Manter esse laço com o momento atual parece nos exigir também uma formação na matéria que nos ocupa, no conhecimento das origens das questões atuais e das respostas forjadas pela investigação clínica e teórica que nos foi legada por Freud e depois por Lacan. A psicose em Freud: a prudência

Na abordagem sobre a psicose podemos localizar três momentos em Freud.

No momento inicial, não há diferenciação ou exclusão de qualquer quadro ou afecção psíquica do campo de aplicação da técnica psicanalítica. Estamos nos primeiros tempos da psicanálise, do isolamento de Freud testando suas descobertas, entusiasmado com as oportunidades raras de tratar psicóticos. Um desses tratamentos é relatado já em 1896 nas Observações adicionais sobre as neuropsicoses de defesa.

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A partir daí, num terceiro momento, encontramos a contra-indicação ao tratamento das psicoses, à qual Freud mesmo responde, sugerindo a modificação do método psicanalítico. Apesar dos fracassos e das dificuldades, dos rompimentos com seus primeiros alunos, ele persegue o objetivo de transpor o “muro narcísico” e, quem sabe, inventar uma nova forma de transferência que torne possível ultrapassar a barreira do narcisismo (7). O campo da nosografia se define pela divisão entre as neuroses de transferência e as neuroses narcísicas. Essa nomenclatura reflete o campo de aplicação da psicanálise, restrito à atuação através da transferência.

O comentário freudiano do caso de Schreber situa-se em um momento decisivo de sua elaboração teórica e técnica. Freud reúne suas hipóteses sobre a etiologia da psicose, retomando as idéias discutidas ao longo da correspondência com seus discípulos e com Jung em especial, que a pesquisa da psicose vai exigir uma mudança de sua teoria da libido. O conceito freudiano de psicose é tributário de sua concepção do desenvolvimento da libido. A análise de Schreber antecipa a introdução do conceito de narcisismo, que vai se tornar o operador central para a apreensão das psicoses, pois o narcisismo permitirá explicar o insucesso da abordagem analítica da psicose. A tese que Freud irá sustentar daí em diante é que os psicóticos não são acessíveis porque não são capazes de transferência; sujeitos que se têm como único objeto, investimento libidinal característico do auto-erotismo. Paradoxalmente, o comentário do caso fornece os dados e os instrumentos para se localizar, justamente, a transferência como fator desencadeante da psicose de Schreber (8). O que nos propõe Lacan

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O interesse de Lacan pela erotomania está presente desde o princípio. Em sua tese de doutoramento em Medicina (10), as relações da erotomania com a transferência são dedutíveis, apesar de não ser esse o eixo que ele acentua então. Em relação a Schreber, Lacan percebe a natureza erotomaníaca da relação com Deus no momento do seminário em que toma o caso para demonstrar as estruturas freudianas da psicose (11), mas levou dez anos para explicitar, na Apresentação da tradução francesa das Memórias de Schreber, o caráter da relação com Flechsig e indicá-lo como modelo das relações que o dispositivo analítico introduz entre o psicótico e o analista, o de uma “erotomania mortífera” (12). Apesar de organizarem teoricamente o campo da pesquisa sobre as psicoses, essas articulações não tiveram incidência imediata na clínica, pois reforçavam as indicações de prudência por identificar os riscos implicados no tratamento de psicóticos.

Para Lacan, tratava-se de uma apreensão estrutural, não fenomênica, da relação do psicótico com o médico. Por isso, estabelecer a diferença estrutural entre neurose e psicose, através do conceito lacaniano que permite operar essa diferenciação que é a forclusão do Nome-do-Pai, implicou a recusa de um conceito como o de “psicose de transferência” — expressão corrente na psicanálise praticada sob os marcos da IPA — e a descrição da estrutura da transferência na clínica da psicose. A erotomania de transferência é a dedução necessária, mas não deixa de ser problemática. Afinal, uma vez que se trata de uma erotomania mortífera e que pode levar ao desencadeamento, não é novamente um motivo para contra-indicar o tratamento? O caráter mortífero é paradigmático, mas possibilita a abertura de uma questão sobre o manejo desse laço e a colocação em perspectiva da saída transferencial como uma solução possível.

A concepção a ser formada do manejo da transferência recomendada por Lacan é a questão preliminar ao tratamento do psicótico (13). Tirar as conseqüências terapêuticas dessa erotomania de transferência exige que se prossiga a investigação.

Direção do tratamento ou como saber se arranjar com o real

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psicanálise da psicose. São esses os princípios: não se deve tratar de re-situar o sujeito em relação à realidade, nem insistir na regra de associação livre e manter grande reserva na prática da interpretação, deixando-a a cargo do próprio sujeito (14). Esse esboço técnico revela a idéia de que o tratamento se daria no campo do próprio delírio, mas sofre da indefinição do papel do psicanalista na direção do tratamento. Daí mantermos, então, a questão: se o psicótico pode curar-se ou estabilizar-se fora da transferência, de que lhe serviria a psicanálise?

Parece-nos possível afirmar, no entanto, que a posição ética que deduzimos de nossa pesquisa, bem como de nossa clínica, é a de sustentar a utilidade da psicanálise e do encontro com o psicanalista. O diferencial da clínica lacaniana das psicoses é sustentar o ponto de vista freudiano de considerar o delírio como tentativa de cura, operando para facilitar o caminho vislumbrado pelo próprio sujeito, tornando a transferência o instrumento adequado para assegurar os efeitos de pacificação e de contenção de gozo.

A clínica da psicose renova constantemente o fazer do psicanalista, demonstra que não se trata de uma questão técnica, de aplicação de algo já sabido, já construído. Exige uma invenção constante, para cada sujeito singular. Permite que se aplique o princípio freudiano de começar cada tratamento como se fosse o primeiro, prescindindo de qualquer conhecimento prévio. Conhecimento técnico, bem entendido. A formação teórica, histórica e clínica do analista são os fundamentos para uma ética de acolhimento da subjetividade do psicótico.

O presente artigo fez parte dos textos de referência do XIV Encontro Brasileiro do Campo Freudiano : Fazer análise, porque, quando e como – atividade anual da EBP – Escola Brasileira de Psicanálise do Campo Freudiano, Rio de Janeiro, RJ, 23 e 24 de abril de 2004.

Referências:

1- LAURENT, É. Lo imposible de enseñar. In: MILLER, J.-A. (et. al.) Del Edipo a la sexuación, Buenos Aires, Paidós, 2001. p.267-286.

2- MEZÊNCIO, M. S. A aplicação da psicanálise no tratamento da psicose:

especificidade da transferência, Belo Horizonte, UFMG - Programa de

Pós-Graduação em Psicologia (Dissertação de Mestrado), fev/2004.

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4- SILVESTRE, M. Transferência e interpretação nas psicoses. In: Amanhã a psicanálise, Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1988. p.127-135.

5- FREUD, S. Uma breve descrição da psicanálise (1924[1923]). Rio de Janeiro: Imago, 1976. p.237-259. (Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 19).

6- FREUD, S. A história do movimento psicanalítico (1914). Rio de Janeiro: Imago, 1974. p.13-82. (Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 14).

7- FREUD, S. Novas conferências introdutórias (1932-1933). Rio de Janeiro: Imago, 1994. p.13-177. (Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 22).

8- FREUD, S. Notas psicanalíticas sobre um relato autobiográfico de um caso de

paranóia (Dementia paranoides) (1911). Rio de Janeiro: Imago, 1970. p.15-115.

(Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 12). 9- CLÉRAMBAULT, G. G. de. Les délires passionels: Érotomanie. Revendication.

Jalousie (1921). In: Oeuvres Psychiatriques, Paris: Presses Universitaires de France,

1987. p.337-346.

10- LACAN, J. Da psicose paranóica em suas relações com a personalidade, seguido de

Primeiros escritos sobre a paranóia (1932). Rio de Janeiro: Forense-Universitária,

1987.

11- LACAN, J. O Seminário, livro 3: As psicoses (1955-1956). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1985.

12- LACAN, J. Apresentação da tradução francesa das Memórias do Presidente

Schreber (1966). In: Falo, Revista Brasileira do Campo Freudiano n.1, Salvador, Fator

ed., p.21-23, julho/1987.

13- LACAN, J. De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose (dez. 1957-jan. 1958). In: Escritos, Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998. p.537-590. 14- MALEVAL, J.-C. La forclusion del Nombre del Padre: el concepto y su clínica.

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