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Cooperação Internacional e políticas de ação afirmativa no Brasil: o papel da Organização Pan-Americana da Saúde (Opas)

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32º Encontro Anual da Anpocs GT 32: Políticas Públicas

Cooperação Internacional e políticas de ação afirmativa no Brasil: o papel da Organização Pan-Americana da Saúde (Opas)

Fernando Pires-Alves* Marcos Chor Maio* Carlos Henrique Paiva*

* Pesquisadores da Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz

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Introdução

O presente trabalho tem por objetivo analisar, no âmbito da Organização Pan-Americana da Saúde (Opas), a gênese de uma política específica de ação afirmativa no terreno da saúde de população negra. A pesquisa compreende o processo de emergência do tema no interior da organização intergovernamental, a dinâmica institucional que gradativamente impulsiona um movimento na instituição sobre a necessidade de políticas voltadas para a saúde da população negra na América Latina e as interações estabelecidas entre a Opas e um conjunto de agências intergovernamentais e organizações privadas com atuação relevante no domínio da saúde internacional, em geral, e com o governo brasileiro em particular.

Na primeira parte do artigo explicita-se a abordagem adotada pelos autores na análise de uma organização internacional de saúde e das suas relações com os Estados nacionais, com outras organizações intergovernamentais, comunidades especializadas e organizações da sociedade civil. As seções seguintes comentam subseqüentemente, as primeiras manifestações da temática étnico-racial na Opas e os seus desdobramentos, em especial a partir dos episódios de preparação da III Conferência Mundial das Nações Unidas contra o Racismo, realizada na cidade sul-africana de Durban, em 2001. Seguem-se as conclusões, em que é discutida a complexidade do ambiente institucional em que ocorrem a formulação e as decisões em torno de uma política regional em etnicidade e saúde, caracterizada pela presença de um número expressivo de novos atores, com significativo poder de expressão. Considera-se, ainda, de que maneira a formulação e a tomada de decisão foram influenciadas pela experiência anterior da Opas no terreno da saúde de populações indígenas e como a institucionalização desta experiência moldou ou constrangeu as possibilidades institucionais para a nova agenda.

Organizações intergovernamentais, Estado e a agenda da saúde internacional

Organizações intergovernamentais são consideradas neste texto, simultaneamente, como atores sociais e arenas. Como atores são capazes de produzir realidades, seja pela ação institucional direta, seja pela produção e disseminação de valores, normas e modelos de conduta. É deste modo, por exemplo, como assinala Marta Finnemore, que a Unesco, mediante ativa militância de seus especialistas, foi capaz de promover, entre 1955 e 1975, a instituição de burocracias nacionais de gestão de ciência

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e tecnologia mesmo em Estados Nacionais cuja produção científica e técnica seria a rigor insignificante, ou seja, na ausência de qualquer cálculo de natureza estritamente realista por parte dos seus governos (FINNEMORE, 1996: 34-66).

Numa outra perspectiva, organizações intergovernamentais são também arenas, na medida em que são permeáveis à expressão de interesses de origens diversas, seja de natureza estatal, infra-estatal ou extra-estatal. São arenas, ainda, porque os eventuais interesses de suas burocracias internas também se manifestam em um ambiente concorrencial, com a adoção de estratégias de convencimento e legitimação no âmbito das instâncias executivas e de deliberação. Como se verá mais adiante, no caso da emergência de políticas de ação afirmativa de corte racial no âmbito da Opas, o depoimento de um dos personagens diretamente envolvidos com a condução da política na organização dá conta do que seria a “porosidade” de algumas das instâncias da organização frente às formulações de origens múltiplas então presentes no ambiente institucional da cooperação técnica internacional em Washington e de como as burocracias internas são igualmente sensíveis às oportunidades presentes neste mesmo ambiente (VIEIRA, 2007).

Como ator e arena, um organismo intergovernamental de tipo funcional ou setorial, como a Opas, orientado para ação em um domínio específico de problemas, regra geral se configura como parte integrante de um ambiente institucional e normativo mais amplo, nos marcos do que se configuram como referenciais institucionais globais (MARQUES, 1997: 83-86). No nosso caso específico, desde finais dos anos 1990, no âmbito da cooperação técnica internacional, este ambiente pode ser adequadamente caracterizado como sendo o da crise do desenvolvimento, percebida como sendo uma modificação significativa dos termos das relações mantidas entre países do mundo euro-norte-americano e os demais, tal como foram até então experimentados desde finais do conflito mundial de 1939-1945 (ESCOBAR, 1998).

Entre meados do século e nas décadas de 1970 e 1980, as relações no âmbito do desenvolvimento foram modeladas pela transferência de capital, conhecimentos e tecnologias do centro desenvolvido para os países do chamado terceiro mundo, assim como pela vigência de meios cognitivos e técnicos de intervenção na realidade, entre os quais assumia especial destaque o planejamento, regra geral centralizado, conduzido a partir do Estado e que se pretendia cientificamente orientado. Na configuração dos arranjos institucionais mobilizados nos processos de assistência e cooperação, as

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organizações intergovernamentais desempenharam papel igualmente relevante. Elas operaram como ambiente de formulação e fonte autorizada para a disseminação de valores e enunciados prescritos de várias ordens, no domínio do político, das técnicas, das iniciativas regulatórias, entre outras esferas de atuação. Já no contexto de finais do século, em conexão com a chamada crise do Estado de Bem-Estar, os termos destas relações seriam significativamente modificados.

Em primeiro lugar, o Estado gradativamente deixa de desempenhar o papel de protagonista privilegiado do desenvolvimento, ao mesmo tempo em que se registra a emergência de atores não-estatais cada vez mais influentes, inclusive em termos globais, dada a sua capacidade de mobilizar um ativismo em rede de alcance planetário. Articula-se a este processo a perda de importância e autonomia por parte das organizações intergovernamentais já que seu comportamento político e suas diretrizes programáticas passaram a ser freqüentemente percebidos com reservas pelos principais países doadores do ocidente, tendo em vista a dificuldade destes em manter controle sobre plenários crescentemente hostis, uma dificuldade que se agudizara nos contextos das crises do petróleo (1973 e 1979) e da dívida externa (1982).

No domínio da saúde, assim como em outros âmbitos das políticas sociais, verifica-se o aumento da importância relativa de organizações privadas de cunho filantrópico e do Banco Mundial como agentes financiadores, inclusive quanto aos aspectos programáticos centrais. Este novo protagonismo do Banco Mundial - onde os principais países mantenedores detêm, por meio do voto proporcional, um controle sobre suas políticas e programas - contribuiu para o fortalecimento de orientações que tendiam a alavancar o papel da iniciativa privada e de suas organizações na condução de programas e na prestação direta de serviços de saúde.

Esta nova realidade gerou duas conseqüências. Em primeiro lugar, implicou em um enfraquecimento relativo da Organização Mundial da Saúde como instituição líder no domínio da saúde internacional, ocasionando uma redução de seus prestígio e alcance efetivo, um enfraquecimento que atingiu também suas organizações regionais, dentre as quais a Opas. Como parte deste enfraquecimento o início da década presenciou, em 1982, nos marcos da chamada crise dos juros, um congelamento das contribuições aportadas pelos países ao orçamento regular da OMS. Um baque que foi imediatamente seguido pela suspensão das contribuições por parte dos EUA, num movimento de retaliação contra as políticas da Organização no terreno da produção de medicamentos,

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consideradas lesivas aos interesses das empresas farmacêuticas norte-americanas (BROWN et alli, 2005: 2006: 633).

Este enfraquecimento relativo persistiu ao longo de toda a década de 1990, apresentando novos e importantes elementos para um enquadramento contextual da emergência do tema etnicidade e saúde. O principal deles é que o orçamento global da OMS passou a depender, cada vez mais, dos aportes provenientes dos chamados fundos extra-orçamentários, resultantes de contribuições de agências multilaterais como o Banco Mundial e de doações de fundações privadas. Já no início da década, estes novos recursos superavam aqueles oriundos do orçamento regular da OMS e tinham sua destinação e parâmetros de aplicação decididos, em larga medida, fora das instâncias diretivas tradicionais da Organização. Assim, países doadores ricos, o Banco Mundial, bem como o BID para as Américas, e fundações privadas eram capazes de definir sua própria política no interior da programação da OMS, com considerável autonomia frente às decisões da Assembléia Mundial da Saúde, na qual as decisões eram tomadas pelo voto unitário de cada país membro. E, mais uma vez, as orientações definidas tendiam a promover o surgimento e a patrocinar uma constelação de novas organizações não governamentais na condução dos programas, em detrimento dos sistemas nacionais de saúde e das agências estatais, consideradas ineficazes.

Esta trajetória de perda de importância da OMS e de fragilização de suas instâncias políticas ocorre em sincronia e íntima relação com o conflito que na saúde internacional opunha a concepção de Atenção Primária Integral à Saúde, tal como aprovada na Conferência de Alma Ata, de 1978, àquela de Atenção Primária Seletiva. Esta última, patrocinada pela USAID, o Banco Mundial, a Fundação Rockefeller, e experimentada também pela UNESCO a partir de 1980, propunha soluções estritamente pragmáticas, de caráter focal e baixo custo técnico, orientada mais para resultados imediatos do que para transformações estruturais no terreno da saúde pública e que, mais uma vez, pugnava por uma maior presença de entidades privadas na prestação de serviços (BROWN et alli, 2006: 623). Assim, esta crise da OMS era, ela mesma, expressão de uma confrontação doutrinária acerca da saúde, sobre qual o papel e as responsabilidades do Estado na prestação de serviços e no financiamento destes últimos, ou seja, sobre atenção focalizada e cuidado integral.

Há que considerar, ainda, que a Opas possui uma história institucional própria no terreno específico das relações entre etnicidade e saúde, especialmente no tocante á

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saúde de populações indígenas. Portanto, a emergência mais recente das questões das relações entre etnia e saúde e, em particular, de saúde da população negra ocorreu em um ambiente político-institucional que, pelo menos desde meados do século XX, já era freqüentado pela associação entre saúde comunitária e populações indígenas, em especial no contexto andino e centro americano. Ou seja, o advento da nova orientação ocorreu na vigência de políticas pretéritas em áreas correlatas, configurando uma determinada trajetória institucional.

No plano nacional, a gênese de uma política compartilhada entre a Opas e o Estado brasileiro no terreno de ações afirmativas de corte racial deve ser contextualizada também pela emergência do que seria uma nova orientação para as relações exteriores brasileiras. Ao longo de toda a década de 1990, o Brasil procurou abandonar uma agenda reativa da política externa, dominada pela lógica da autonomia pela distância, que prevaleceu na maior parte da Guerra Fria, e estabelecer, em seu lugar, uma agenda internacional de trabalho pró-ativa, determinada pela lógica da autonomia pela

integração (VIZENTINI, 2005).

Neste contexto, a temática tradicional de segurança e comércio, que configurou as relações internacionais Leste-Oeste e Norte-Sul desde o final da Segunda Guerra Mundial, começou a ser gradualmente enriquecida pela introdução de novos temas, dentre os quais meio-ambiente, direitos humanos, minorias, racismo e narcotráfico, que comporiam aquilo que se convencionou chamar agenda soft de poder. Neste quadro, os países em desenvolvimento, com o Brasil assumindo posição de liderança, sem descuidar da agenda internacional hard, recorreram a estas temáticas como parte de uma estratégia de afirmação internacional e organização de blocos permanentes de negociação em torno de temas específicos (VIGEVANI, OLIVEIRA e CINTRA, 2003; OLIVEIRA, 2005).

O que se deve destacar aqui acerca deste enquadramento contextual é que ele, pode-se dizer, povoa a arena decisória acerca das políticas e dos programas internacionais de saúde com novos atores e grupos de pressão, ao mesmo tempo em que torna a agenda relevante para os interesses estratégicos do Estado e, simultaneamente, aos processos de formação da opinião pública. O alargamento na composição da arena decisória, dos meios de pressão mobilizados nos debates e do número de organizações envolvidas no processo mesmo de execução de programas, alia-se a uma nova percepção acerca dos graus de interdependência nos fenômenos da saúde, e ambos são parte do conceito de Saúde Global, um termo cujo uso se torna gradativamente mais freqüente

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que o de Saúde Internacional, como forma de designar este domínio de problemas (BROWN et alli, 2006: 625 e 635).

As relações entre etnia e saúde, em especial no tocante à saúde da população negra, tornam-se, assim, ponto de pauta da Opas, assim como do governo brasileiro em meio a esta configuração institucional e a este debate doutrinário. Examinar o seu contexto de surgimento no âmbito da Opas significa ter de considerar, sem dúvida, de que maneira aquela configuração e aqueles conflitos ocorriam especificamente na região das Américas.

A articulação inicial em torno do combate ao racismo e a pobreza

Há diferentes visões sobre os fatores que teriam contribuído para a emergência de uma agenda voltada para as populações mestiças e negras nas Américas. A primeira vertente, atribui à visibilidade do tema do racismo ao processos nacionais de democratização das sociedades latino-americanas nos anos 1980 e 1990. Este novo cenário teria aberto espaço para uma crescente pressão de determinados grupos sociais, que passaram a reivindicar reparações históricas. Este é o argumento de Graziela da Silva, para quem também não é desprezível “(...) a influência de agências internacionais que (...) ajudam a difundir a cultura da igualdade e dos direitos humanos” (2006: 140).

Outros autores ressaltam em seus argumentos que a formulação desta agenda deve ser compreendida como um desdobramento dos resultados de algumas Conferências das Nações Unidas ocorridas na década de 1990, como a Cúpula Mundial sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, celebrada no Rio de Janeiro, em setembro de 1992; a Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento, realizada no Cairo, em setembro de 1994; a Cúpula Mundial sobre Desenvolvimento Social, ocorrida em Copenhague, em março de 1995; e a Conferência Internacional sobre a Mulher, celebrada em Pequim, em setembro de 1995. Contando com a participação de agências multilaterais e organismos financeiros internacionais, estas conferências teriam contribuído para aprofundar temas como os direitos humanos e pobreza (TORRES e MÚJICA, 2004: 430).

Michelle Peria também destaca o papel desempenhado por estas conferências internacionais na elaboração de uma agenda étnico-racial. Sua ênfase, contudo, recai sobre o intenso processo preparatório (2000-2001) para a III Conferência Mundial das Nações Unidas Contra o Racismo, a Discriminação Racial, a Xenofobia e formas

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Correlatas de Intolerância - realizada na cidade sul-africana de Durban - na qual teria se conformado uma relação entre: “(...) instituições e organizações do movimento negro, outros movimentos sociais, setores do governo, da Universidade, da mídia etc.” Na sua opinião, foram os documentos aprovados nas conferências preparatórias oficiais que definiram uma agenda temática para a Conferência de Durban (PERIA, 2004: 155).

Além de definirem tal agenda, a realização de Conferências Regionais na Europa (Estrasburgo), Ásia (Teerã), África (Dacar) e América (Santiago) contribuiu para que organizações e fundações ligadas ao movimento negro e frações dos corpos profissionais das agências estatais e de organismos multilaterais estreitassem suas relações e vínculos. O resultado deste processo foi a criação de uma extensa rede de atores sociais e políticos centrada na questão racial.

Como parte da mobilização inicial destes atores em torno desta temática, o Banco Mundial, o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e o Inter-American Dialogue organizaram em Washington, em junho de 2000, a conferência “Race and

Poverty: Interagency Consultation on Afro–Latin Americans”. Reunindo fundações

internacionais, governos, organizações não-governamentais e do movimento negro, líderes e analistas proeminentes das comunidades afro-latino-americanas, o objetivo central deste encontro foi explorar, dentro e fora dessas organizações, as interfaces entre raça e exclusão social, política e econômica. Nos discursos proferidos ao longo da conferência, esta questão foi abordada a partir dos seguintes eixos: (a) como as leis afetam os direitos dos afro-latino-americanos em alguns países, (b) o papel da sociedade civil e de grupos de pressão que trabalham sobre questões relacionadas aos afro-latinos, (c) raça e etnicidade como fatores importantes na política da América Latina, e (d) questões-chave de pesquisa que tenham como objeto pobreza e raça1.

Durante os debates, os participantes concordaram acerca da necessidade de reforçar as leis que garantissem os direitos dos afro-latino-americanos e as instituições voltadas às questões raciais. Concordaram também em promover os mecanismos que assegurassem a igualdade de tratamento entre todos os cidadãos, a educação de membros

1

Race and Poverty: Interagency Consultation on Afro–Latin Americans. Proceedings of the Roundtable held June, 19, 2000, in Washington, D.C. Inter-American Dialogue, Inter-American Development Bank, World Bank. Washington, November 2000.

Consultar

http://wbln0018.worldbank.org/lac/lacinfoclient.nsf/8d6661f6799ea8a48525673900537f95/c27678a8b4f31 f9b85256dc900731663/$FILE/Race%20and%20Poverty.pdf

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da comunidade afro-latina sobre seus direitos e opções legais, e o fortalecimento de organizações da sociedade civil que atuavam com essa finalidade. O racismo foi apontado não apenas como responsável pela exclusão de alguns grupos, como também pelas eventuais desconfianças que as comunidades locais nutriam em relação às políticas e organizações estatais. Conformou-se um entendimento de que tal situação só poderia ser superada mediante a incorporação de membros destas comunidades na formulação e implementação de políticas estatais e programas a elas destinados, que fossem efetivamente relevantes e viáveis a longo prazo. A falta de informações sobre raça nos censos nacionais foi também citada como uma poderosa ferramenta de manipulação política. Na opinião dos debatedores, esta lacuna impossibilitava que se soubesse a real dimensão do problema racial. O número desproporcional de negros entre a população pobre e marginalizada, contudo, justificava e requeria ações e políticas estatais imediatas que enfatizassem a redução da pobreza e a anti-discriminação, e que direcionassem recursos para as necessidades específicas das populações afro-latinas. Também se tornava necessário o desenvolvimento de políticas e pesquisas, por meio das quais se demonstraria os custos da exclusão e se identificaria práticas ótimas2.

Ao término das discussões, representantes de fundações privadas, do

Inter-American Dialogue, do BID, do Banco Mundial e da Fundação Inter-Inter-Americana

apresentaram um painel das iniciativas que já vinham sendo desenvolvidas no terreno racial. Embora ressaltassem que ainda se encontravam em processo de aprendizado nessa área, tais organizações e fundações internacionais demonstraram sua adesão à inclusão sistemática do quesito raça nos seus esforços para a diminuição da pobreza. Os principais representantes dos organismos patrocinadores do encontro - Peter Hakim (Presidente do Inter-American Dialogue), David de Ferranti (Vice-Presidente do Banco Mundial para a América Latina e Caribe) e Antonio Vives (Diretor do Departamento de Desenvolvimento sustentável do BID) - foram unânimes ao acompanharem estas preocupações. Constatada a sub-representação dos afro-latinos no staff das agências internacionais, foi acordado que esforços deveriam ser empreendidos no sentido de alterar o que seria uma realidade de exclusão. Em relação às instituições filantrópicas internacionais e outras agências financiadoras, recomendou-se a elas o patrocínio de acordos em torno de leis anti-discriminação e estudos sobre os impactos culturais e

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raciais, além da promoção de parcerias entre organizações afro-latinas, comunidades e o setor privado, de modo a facilitar, a um só tempo, a inclusão de informações sobre raça e etnicidade na determinação da pobreza, um maior investimento nas comunidades e o fortalecimento do capital social e cultural das populações afro-latinas3.

O final do encontro foi marcado pela decisão conjunta do Banco Mundial, do BID e do American Dialogue de criar, com o apoio da Fundação Ford, a

Inter-Agency Consultation on Race and Poverty in Latin America (IAC) que, segundo Peter

Hakim, deveria se constituir em um mecanismo permanente para ajudar os quatro organismos internacionais a melhor entender e identificar os problemas específicos de aproximadamente 150 milhões de latino-americanos descendentes de africanos, dentre os quais destacavam-se a discriminação racial, elevados índices de pobreza e analfabetismo e acesso limitado à educação, saúde e demais serviços públicos. Dentre os objetivos do IAC figuravam a ajuda às organizações que o compunham a compartilhar informações e análises sobre a situação dos afro-latinos, fornecer subsídios para seus programas e planos, conduzir atividades conjuntas e manter um diálogo contínuo com os líderes, instituições e comunidades. Caberia ainda ao IAC estimular discussões e aumentar a sensibilidade no interior da política internacional e dos países desenvolvidos sobre questões e desafios relacionados às populações afro-latinas, incluindo as relações existentes entre os sistemas social e institucional, raça e etnicidade, e pobreza4.

A realização da Conferência Race and Poverty e a criação do IAC constituem-se em evidências de um constituem-sensível aumento da importância das desigualdades raciais para as análises sobre as causas da pobreza. Ambos contribuíram para a disseminação da crença de que as políticas anti-pobreza adotadas no continente poderiam ser mais efetivas se conjugadas com estratégias anti-discriminação. Esta nova orientação, bem como a agenda firmada na conferência, passariam a orientar a atuação de organismos e fundações internacionais em relação à questão racial, dentre as quais a Organização Pan-americana da Saúde (Opas).

A emergência da temática étnico-racial na Opas

A Opas começou a envolver-se com a temática da saúde da população negra durante o processo preparatório para a Conferência de Durban, em fins da década de

3 Idem, p. VII e IX. 4 Idem, p. V.

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1990. Por esta ocasião, a organização já tinha uma tradição institucionalizada no desenvolvimento de políticas voltadas para a população indígena, tradição esta que vem sendo reafirmada periodicamente. Em 1992, por exemplo, o Subcomitê de Planejamento e Programa do Comitê Executivo da Opas propôs que se considerasse mais cuidadosamente a saúde e o bem-estar das populações indígenas das Américas. Em resposta a esta recomendação, no ano seguinte – definido pela ONU como o ano dos povos indígenas - a Opas patrocinou um workshop sobre povos indígenas e saúde que resultou na aprovação de uma recomendação e na elaboração de um Plano de Ação5.

A tradição anterior da Opas no campo da saúde da população indígena revela que a adoção de políticas com enfoque étnico não era uma novidade para a organização. O termo etnia era, então, constantemente empregado em seus documentos e publicações em referência às populações indígenas, sem qualquer menção aos negros. Esta situação começou a mudar a partir da realização da Conferência Regional Preparatória para a Conferência Mundial contra o Racismo, realizada em Santiago, em dezembro de 2000. Nesta ocasião, aprovou-se a proposta apresentada pela delegação brasileira recomendando à Opas a adoção de ações visando o reconhecimento das variáveis raça, etnia e gênero no campo da saúde e que desenvolvesse projetos específicos para a população negra6. A partir desse momento, a Opas começaria a envolver-se cada vez mais com o tema da saúde da população negra.

5 Realizado em Winnipeg, Canadá, o encontro contou com a participação de representantes das populações

indígenas, governos e organizações de 18 países. As recomendações aprovadas neste encontro foram incorporadas em uma proposta conhecida como Iniciativa para a Saúde dos Povos Indígenas, que resultou na Resolução CD37.R5. Ver: Health of Indigenous Peoples. Revista Panamericana de Salud Pública, 1997, vol.2, n. 5, p. 357-362; Iniciativa de Salud de los Pueblos Indígenas: OPS/OMS 1995-1998; Plan de acción de la OPS/OMS para el impulso de la Iniciativa en la Región de las Américas / Health Iniciative for the Indigenous groups: PAHO/WHO 1995-1998; PAHO/WHO plan of action to promote the Iniciative in the Region of the Americas.

Tais medidas faziam parte de um cenário mais global, no qual o tema das populações indígenas ganhava cada vez mais destaque. Como evidências neste sentido podemos citar a decisão da 49a Assembléia da

OMS de adotar uma resolução implementando a Década dos Povos Indígenas do Mundo (1994-2004) e o fato do Grupo de Trabalho das Nações Unidas sobre Povos Indígenas incluir a saúde como um item da sua agenda. Sobre a situação do tema Saúde da População Indígena na OPAS hoje, ver: Health Program of the Indigenous Peoples of the Américas / Action Plan 2005–2007. Consultar

http://www.paho.org/English/AD/THS/OS/Indig_PLAN05_07_eng.pdf acessado em 03/09/2008.

6 Parágrafo 111 do Plano de Ação aprovado na Conferência de Santiago. Report of the Regional

Conference of the Americas Santiago, Chile, 5-7 December 2000 (notes by the Secretary-General). A/CONF.189/PC.2/7 (English), de 21 de abril de 2001. Documento constante do Item 5 of the Provisional Agenda: “Reports of Preparatory Meetings and Activities at the International, Regional and National Levels”. United Nations Preparatory Committee World Conference Against Racism, Racial Discrimination, Xenophobia and Related Intolerance, Second Session, Geneva, 21 May-1 June 2001. General Assembly of United Nations. P. 20.

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A Conferência de Santiago representou, para o contexto latino-americano, a primeira manifestação da nova orientação que procurava articular a luta anti-pobreza no continente com políticas anti-racismo. Muitos itens da Declaração e do Plano de Ação firmados nesta ocasião destacavam a acentuada situação de pobreza em que se encontravam os povos indígenas e as populações de descendência africana das Américas - relacionando-a com sua condição étnico-racial - e preconizavam políticas a serem adotadas em benefício destes grupos7. As populações negras e indígenas foram colocados em pé de igualdade como vítimas de discriminação racial e como alvos prioritários de políticas anti-pobreza. É, portanto, no quadro desta situação relativamente nova no cenário latino-americano que a Opas é demandada a adoção de políticas específicas de recorte racial.

Diante de tal reivindicação, Logo após o término da Conferência de Santiago, a então consultora de Política Regional do Programa de Políticas Públicas e Saúde da Opas, Cristina Torres8, publicou três artigos enfocando as relações entre etnicidade e saúde, com destaque para a situação dos negros. O primeiro deles, intitulado “La

Equidad en Materia de Salud Vista con Enfoque Étnico”9, seria um esforço inaugural da Opas para lidar com a temática étnico-racial. Nele, Cristina Torres examina como a

http://www.unhchr.ch/huridocda/huridoca.nsf/AllSymbols/C9ED80B2A38DCF0AC1256A55004D38AF/$ File/G0113456.pdf?OpenElementhttp://www.OPAS.org.br/coletiva/UploadArq/Saude_Pop_Negra.pdf. Acessado em 27.08.2008.

7 Para uma amostra destes itens, ver os parágrafos 19-32 da Declaração aprovada na Conferência de

Santiago e os parágrafos 93-119 do Plano de Ação aprovado na mesma ocasião. Report of the Regional Conference of the Americas Santiago, Chile, 5-7 December 2000 (notes by the Secretary-General). A/CONF.189/PC.2/7 (English), de 21 de abril de 2001. Documento constante do Item 5 of the Provisional Agenda: “Reports of Preparatory Meetings and Activities at the International, Regional and National Levels”. United Nations Preparatory Committee World Conference Against Racism, Racial Discrimination, Xenophobia and Related Intolerance, Second Session, Geneva, 21 May-1 June 2001. General Assembly of United Nations. P. 7,8,9,18,19,20 e 21.

Consultar

http://www.unhchr.ch/huridocda/huridoca.nsf/AllSymbols/C9ED80B2A38DCF0AC1256A55004D38AF/$ File/G0113456.pdf?OpenElement

8 Doutora em Sociologia do Desenvolvimento pela Universidade de Paris I (Sorbonne), Cristina Torres

Parodi é funcionária da Organização Panamericana de Saúde (OPAS) desde 1990, onde atua na função de especialista regional em políticas públicas com ênfase em pobreza e saúde. Em 2001, como integrante da equipe de profissionais do Programa de Políticas Públicas em Saúde da OPAS, iniciou uma linha de trabalho nova na organização sobre saúde dos afro-descendentes. Previamente, havia acompanhado as atividades preparatórias para Durban, tendo participado da própria Conferência Mundial, durante a qual desempenhou o papel de assessora em saúde da Comissão Redatora da Declaração e do Plano de Ação, revisando os parágrafos referentes à saúde. Desde 2005, Cristina Torres atua na Unidade de Gênero, Etnicidade e Saúde da OPAS como especialista em Etnicidade e Saúde.

Consultar http://www.paho.org/ acessado em 08/09/2008.

9 TORRES, Cristina. "La equidad en materia de salud vista con enfoque étnico". In: Revista Panamericana

de Salud Pública, Washington, DC, Vol. 10. no. 3, setembro de 2001. Consultar http://www.scielosp.org/pdf/rpsp/v10n3/6573.pdf Acessado em 16.04.2008.

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discriminação racial e outras formas de intolerância, o baixo nível sócio-econômico e educacional de certos grupos étnicos e raciais, e aspectos culturais, exercem influência sobre o acesso dos indivíduos aos serviços de saúde e sobre suas possibilidades de desfrutar de uma vida saudável. Na sua opinião, a redução da pobreza nas Américas - parte fundamental da agenda política do desenvolvimento - não se resume apenas à correções no mercado de trabalho, mas sim à redução das assimetrias no acesso aos serviços de educação, saúde e representação política. Neste quadro, ela reconhece que, no plano das políticas seletivas de saúde da população negra, ao contrário dos povos indígenas, ainda não teriam sido beneficiados. Diante desta constatação e em sintonia com a agenda firmada no encontro Race and Poverty e na Conferência de Santiago, Torres propôs algumas tarefas imediatas, quais sejam:

Melhorar a informação disponível mediante novos estudos de caso; colaborar com as instituições nacionais para melhorar os instrumentos de coletar informação e fazer os mesmos mais sensíveis às variáveis étnicas e raciais (...); formular instrumentos para uma focalização positiva das políticas da saúde em benefício das populações descendentes de povos indígenas e africanos; identificar as melhores práticas em lugares da região onde tenham promovido programas de saúde para grupos étnicos com o apoio intersetorial e o concurso da comunidade, para que sirvam de exemplos dignos de mencionar.” (TORRES,

2001a: 199).

Ainda em 2001, Cristina Torres publicou mais dois artigos procurando contribuir com o estudo das desigualdades em saúde. No primeiro deles, intitulado “Equidade e

Saúde: outra perspectiva para alcançar a equidade”, ela traça um histórico da

emergência das políticas com enfoque étnico-racial, citando as celebrações em torno do 500o aniversário da descoberta das Américas como o momento em que o tema da exclusão e marginalização dos povos indígenas veio à tona, destacando que, nesta altura, os afro-descendentes não mereceram a mesma atenção. Dentre as instituições que contribuíram financeiramente para que políticas voltadas para os povos indígenas e, mais recentemente, para as populações negras fossem implementadas, ela menciona o BID e o Banco Mundial, destacando, inclusive, a importância da realização do seminário Race

and Poverty. (Torres, 2001b: 89). Dentre os obstáculos à introdução da variável

etnicidade ela destaca mais uma vez a falta de dados estatísticos que possibilitassem uma abordagem étnica em saúde.

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No segundo artigo, escrito com Mercedes Del Rio e intitulado “Etnicidade,

Pobreza e Saúde na Região das Américas: uma visão histórica para compreender esta relação”, as autoras discutem a dificuldade em se analisar se os indivíduos são pobres

devido à discriminação étnica ou se são discriminados porque são pobres. Destacam, porém, que é insofismável a sobreposição entre os mapas da pobreza e os grupos étnicos. Na opinião das autoras, a economia não se constitui em um componente fundamental que explica as desigualdades. Em sintonia com a perspectiva que articula pobreza e discriminação, elas se propõem a reformular o conceito de pobreza, adotando uma abordagem que evitaria o reducionismo econômico e o enfoque estritamente de classe. Como já havia sido ressaltado por Torres em seus artigos anteriores, a idéia de pobreza é entendida aqui como restrição no acesso aos serviços, informação e às oportunidades de participação e representação (Torres & Del Rio, 2001: 133).

Ambos os artigos foram enfeixados na publicação “Equidade em saúde: uma

visão pelo prisma da etnicidade”10. Na apresentação do trabalho, César Vieira, que atuava com Cristina Torres no Programa de Políticas Públicas e Saúde da Divisão de Saúde e Desenvolvimento Humano da Opas, destaca a incorporação às atividades de cooperação da Divisão das perspectivas de etnicidade e raça para analisar as iniqüidades de saúde, entendidas como diferenças injustificadas e injustas entre os grupos (Opas, 2001: VI). Considerado pelo então diretor da Opas, George Alleyne, como um guia para elaboração de políticas públicas que realmente contribuíssem para a identificação de iniqüidades em saúde relacionadas à origem étnico-racial11, este documento serviu de base para a realização, em junho de 2001, da “Reunião do Grupo de Especialistas em

Etnicidade e Eqüidade em Saúde”, organizado pela Opas, BID, Inter-American Dialogue

e Banco Mundial. Com sua realização, seus promotores procuravam, conjuntamente, criar um fórum no qual os países latino-americanos debatessem suas diferentes visões sobre o impacto que as questões étnicas têm na saúde pública, na equidade, no acesso à atenção sanitária e nos efeitos sobre a qualidade de vida e o desenvolvimento integral da

10 Organização Panamericana de Saúde. Equidade em Saúde: uma visão pelo prisma da etnicidade.

Washington, D.C., 2001. 232p.

Consultar http://www.paho.org/Portuguese/HDP/hdd/etnia.pdf. Acessado em 29.05.2008.

11 Promoting Health in the Americas - Annual Report of the Director – 2001. Pan American Health

Organization. Washington, D.C.: PAHO, 2001.

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população da região12. Com base nas discussões travadas nesta reunião, a Opas elaborou um Plano de Ação sobre Etnicidade e Equidade em Saúde, cujos objetivos eram:

“Colaborar com os países na criação de uma política de saúde sensível à variável étnica; facilitar a coordenação das agências de cooperação no apoio a programas de saúde voltados para a redução da discriminação baseada na origem étnica; advogar a incorporação de questões de saúde e etnia nas agendas políticas dos países; fomentar a melhoria de técnicas e metodologias (qualitativa e quantitativa) para a coleta de dados de saúde que permitirá diagnósticos epidemiológicos precisos e confiáveis que incluam a variável etnia; promover a participação social e comunitária em programas e planos de saúde com fulcro na etnia”13.

As atividades propostas passavam pelo desenvolvimento de planos, programas e políticas de saúde, coleta de dados e análise, treinamento de recursos humanos e

advocacy. Incluíam também a mobilização de recursos financeiros, por meio dos quais se

procurava responder às demandas dos países latino-americanos por políticas de saúde que levassem em conta a variável étnica. Com o Plano de Ação, a Opas, pela primeira vez, buscava enfrentar no terreno prático a discriminação étnico-racial como um obstáculo para o acesso aos serviços, à informação e ao tratamento igualitário, bem como as diferenças que o racismo acarreta às condições de saúde de indivíduos pertencentes a grupos minoritários. Com este plano, materializou-se o compromisso da Opas com o desenvolvimento de políticas com enfoque étnico-racial e evidenciou-se uma articulação cada vez maior entre ela e organizações como o BID, o Banco Mundial e o

Interamerican Dialogue. Evidência dessa interação entre a agenda da saúde e outras

políticas sociais neste terreno foi a realização simultânea do encontro “Towards a shared

vision of development: high level dialogue on race, ethnicity, and inclusion”, promovido

pelo BID também na capital americana.14.

Paralelamente a articulação com os principais organismos financeiros internacionais, em abril de 2001, a Opas lançou, em conjunto com a Organização

12 Reunión del Grupo de Expertos sobre Etnicidad y Equidad en Salud 2001. Washington, D.C., 18 – 20

Junio, Organización Panamericana de la Salud. Consultar http://www.paho.org/Spanish/HDP/HDD/hdd-etnia.htm Acessado em 29.05.2008.

13 Plan de Accion sobre Etinicidad y Equidad en Salud. Washington, D.C., Organización Panamericana de

la Salud/ Organización Mundial de la Salud, 2001. p. 1

Consultar http://www.paho.org/Spanish/HDP/hdd/plan-s.doc acessado em 29.05.2008.

14 Towards a Shared Vision of Development: High-Level Dialogue on Race, Ethnicity and Inclusion in

Latin America and the Caribbean, June 18, 2001.

(16)

Mundial da Saúde (OMS), o documento “WHO/PAHO’s Contribution to the World

Conference Against Racism, Racial Discrimination, Xenophobia and Related Intolerance: Health and freedom from discrimination”. Com o objetivo de fornecer

subsídios para as discussões que se travariam na Conferência de Durban, este documento expressava a anuência destas duas organizações com a adoção de uma nova perspectiva que procurava entender e reduzir os impactos das desigualdades étnico/raciais sobre a saúde. Nele, ambas reconhecem a Conferência de Durban como uma oportunidade única para o desenvolvimento e a adoção de uma nova perspectiva diante do racismo, da discriminação racial, da xenofobia e de outras formas de intolerância na saúde. Os diagnósticos expressos nos artigos de Cristina Torres são reproduzidos no documento, com destaque para aquele que afirmava que “(...) muitas das disparidades em saúde estão enraizadas em iniqüidades sócio-estruturais essenciais que são inextricavelmente relacionadas ao racismo e a outras formas de discriminação na sociedade”. Em outros pontos, contudo, o documento é explicitamente prescritivo quanto à necessidade da adoção de legislação nacional de saúde que se ajuste às suas obrigações dos Estados nacionais para com os direitos humanos15.

A análise dos textos e documentos produzidos no âmbito da Opas revela que muitas das questões neles abordados foram definidas no encontro Race and Poverty, organizado pelo Banco Mundial, o BID e o Inter-American Dialogue no ano 2000. A própria Cristina Torres, protagonista relevante do processo que estamos analisando reconehce a importância deste encontro. Esta sintonia é indicativa da capacidade dessas organizações de pautarem as discussões relacionadas à raça/etnia no âmbito internacional. Em um contexto no qual organismos como o Banco Mundial e o BID detinham um poder de agenda cada vez maior, a formulação de políticas de saúde com enfoque étnico-racial não poderia realizar-se à revelia deste novo equilíbrio de poder.

Os resultados de Durban e o incremento da agenda étnico-racial da Opas

Realizada entre 31 de agosto e 07 de setembro de 2001, a Conferência de Durban insere-se nos marcos da preocupação das Nações Unidas com o estabelecimento de um

15 WHO/PAHO’s Contribution to the World Conference Against Racism, Racial Discrimination,

Xenophobia and Related Intolerance: Health and freedom from discrimination. Genebra / Washington, D.C., World Health Organization / Panamerican Health Organization. April 2001. p. 5-13.

(17)

compromisso político em torno da eliminação de todas as formas de racismo, discriminação racial, xenofobia e intolerância correlata. Sua realização impulsionou decisivamente o surgimento de uma interface entre saúde e etnia que privilegiasse a população negra. Dois documentos foram aprovados nesta ocasião, a Declaração e o

Programa de Ação, ambos destacando as populações indígenas e negras como alvos das

preocupações. A Declaração, por exemplo, preconizava em seu parágrafo 33 o reconhecimento das contribuições culturais, econômicas, políticas e científicas dos afro-descendentes das Américas e demais áreas da diáspora africana e a “persistência do racismo, da discriminação racial e outras formas de intolerância que especificamente os afetam”. No campo da saúde, o parágrafo 54 do Programa de Ação encorajava a OMS e outras organizações sanitárias internacionais “a promover e desenvolver atividades para o reconhecimento do impacto do racismo, da discriminação racial, da xenofobia e de formas conexas de intolerância como determinantes sociais do status de saúde física e mental”. O documento lembrava também o compromisso assumido por estas organizações com a Declaração do Milênio das Nações Unidas, que “propugnara pelo fortalecimento do respeito aos direitos humanos, inclusive os direitos das minorias, e pela tomada de medidas contra atos de racismo e xenofobia”. Diante desta recomendação, organizações como a OMS e a Opas deveriam elaborar projetos específicos – que envolvessem, inclusive, pesquisas - com o objetivo de assegurar sistemas de saúde eqüitativos16.

A Opas prontamente procurou atender a essas recomendações. Já em outubro de 2001, durante a II Conferência Interparlamentar de Saúde, realizada na Sede Permanente do Parlamento Latino-Americano, em São Paulo, Cristina Torres expôs a comunicação

“Etnicidade e Saúde”. Em dezembro, com o apoio do Programa das Nações Unidas para

o Desenvolvimento (PNUD), a Opas organizou o Workshop Interagencial Saúde da

População Negra. Nesta ocasião, especialistas na temática étnico-racial reuniram-se em

Brasília para propor subsídios para uma política nacional de saúde da população negra. As propostas apresentadas foram reunidas no documento Política Nacional de Saúde da

População Negra: Uma Questão de Eqüidade17.

16 Durban Declaration and Programme of Action. Durban, September 2001.

Consultar http://www.unhchr.ch/pdf/Durban.pdf Acessado em 27.08.2008.

17 "Política Nacional de Saúde da População Negra: Uma Questão de Eqüidade". OPAS/PNUD/DFID.

(18)

Ao mesmo tempo em que promovia fóruns como estes, a Opas também dava um destaque maior para a variável étnico-racial em suas discussões internas. Uma evidência neste sentido pode ser encontrada na inclusão desta temática no Plano Estratégico

2003-2007 da organização, discutido em seus corpos diretores durante todo o primeiro

semestre de 2002 e finalmente aprovado pela 26a Conferência Sanitária Pan-Americana, realizada em agosto desse ano 18. De acordo com este documento - que deveria orientar sua atuação nos cinco anos seguintes - a Opas priorizaria a promoção da saúde e a redução da mortalidade durante todo o ciclo de vida, sobretudo entre as “populações pobres e de baixa renda, grupos étnicos e raciais, especialmente as populações indígenas, as mulheres e as crianças (...) e outros grupos que experimentam desigualdades na saúde”19.

Torres (2002, p. 5-6), por sua vez, reiterou que a questão étnica fosse contemplada na adoção de políticas públicas, incluindo-se aquelas direcionadas à área da saúde. Na sua opinião, a Conferência de Durban constituiu-se no lócus formal decisivo para a formulação de políticas calcadas na noção de equidade. Seu resultado mais

http://www.OPAS.org.br/coletiva/UploadArq/Saúde_da_População_Negra_-_subsídios_para_debate.pdf Acessado em 16.04.2008.

18 Para o acompanhamento das discussões em torno do Plano Estratégico 2003-2007, ver:

The Strategic Plan 2003-2007 for the Pan American Sanitary Bureau. SPP36/4 (Eng.) 13 February 2002. 36th Session of the Subcommittee on Planning and Programming of the Executive Committee. Washington, D.C., USA, 25-27 March 2002. Pan American Health Organization - World Health Organization.

Consultar http://www.paho.org/english/gov/ce/spp/spp36-04-e.pdf Acessado em 27.08.2008.

Informe Final. SPP36/FR (Esp.) de 27 de março de 2002. 36.a Sesión del Subcomité de Planificación y Programación del Comité Ejecutivo. Washington, D.C., EUA, 25-26 de marzo de 2002. Organización Panamaricana de la Salud – Organización Mundial de la Salud.

Consultar http://www.ops-oms.org/spanish/gov/ce/spp/spp36-fr-s.pdf Acessado em 27.08.2008.

Plano Estratégico 2003-2007 da Repartição Sanitária Pan-Americana. CE130/12 (Port.) de 03 de maio de 2002. 130a Sessão do Comitê Executivo. Washington, D.C., EUA, 24-28 de junho de 2002. Organização

Pan-Americana de Saúde – Organização Mundial de Saúde.

Consultar http://www.ops-oms.org/portuguese/gov/ce/ce130-12-p.pdf Acessado em 27.08.2008.

Relatório da 36ª Sessão do Subcomitê de Planejamento e Programação. CE 130/5 (Port.) de 13 de maio de 2002. 36a Sessão do Subcomitê de Planejamento e Programação do Comitê Executivo. Washington, D.C., EUA, 24-28 de junho de 2002. Organização Pan-Americana de Saúde – Organização Mundial de Saúde. Consultar http://www.ops-oms.org/portuguese/gov/ce/ce130-05-p.pdf Acessado em 27.08.2008.

Resolução CE130.R1. 130a Sessão do Comitê Executivo. Washington, D.C., EUA, 24-28 de junho de 2002.

Consultar http://www.paho.org/portuguese/gov/ce/ce130.r1-p.pdf Acessado em 27.08.2008.

Relatório Final. CE130/FR (Port.) de 01 de agosto de 2002. 130a Sessão do Comitê Executivo.

Washington, D.C., EUA, 24-28 de junho de 2002. Organização Pan-Americana de Saúde – Organização Mundial de Saúde.

Consultar http://www.ops-oms.org/portuguese/gov/ce/ce130-fr-p.pdf Acessado em 27.08.2008.

19 Plano Estratégico 2003-2007 da Repartição Sanitária Pan-Americana. CSP26/10 (Port.) de 15 de

agosto de 2002. 26a Conferência Sanitária Pan-Americana - 54a Sessão do Comitê Regional. Washington, D.C., EUA, 23-27 de setembro de 2002. Organização Pan-Americana de Saúde – Organização Mundial de Saúde. P. 22-23.

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expressivo teria sido a incorporação da luta contra a exclusão social dos grupos étnicos na agenda política e social. Sua realização teria servido para consolidar a etnicidade como o novo marco conceitual na análise da exclusão e da pobreza.

A preocupação com a saúde dos grupos étnicos e raciais ganhou destaque também na edição 2002 de Health in the Americas, publicação da Opas dedicada à análise da situação da saúde e suas tendências nas Américas que documentou as desigualdades no âmbito da saúde. O terceiro tópico do Volume I, que versa sobre “Etnicidade e Saúde”, identifica dois atores fundamentais à emergência de políticas públicas para populações específicas. Em primeiro lugar, as organizações não-governamentais indígenas e afro-americanas, cuja mobilização e poder demonstrados na negociação com as agências governamentais, sobretudo na preparação e no período pós-Conferência de Durban, foram destacados. O segundo grupo de atores mencionado era aquele formado por agências internacionais como o BID e o Banco Mundial, cujo trabalho de coleta de informações teria possibilitado o estabelecimento de redes de advocacy, um papel nitidamente subdimensionado, segundo os argumentos desenvolvidos no presente trabalho.

A publicação Health in the Americas reconhece, ainda, que a origem étnica era uma variável desconsiderada até aquele momento na formulação de políticas voltadas para o desenvolvimento e a saúde, e constata que as disparidades entre populações não poderiam ser solucionadas pela introdução de políticas econômicas globais, mas sim por “(...) políticas seletivas (...) essenciais para corrigir as assimetrias que se acumularam ao longo dos anos como resultado de fatores culturais, políticos, religiosos, etc”. O argumento empregado na defesa de tais políticas partia do pressuposto de que, se a problemática da exclusão não é apenas econômica, a ausência de acesso aos benefícios das políticas sociais, representação política e oportunidades de participação encontraria na origem étnica “(...) um fator estrutural para a permanência de certas disparidades”20.

Assim, o envolvimento da Opas com a temática étnico-racial ganhou impulso após a Conferência de Durban, em parte como resultado da participação latino-americana nos eventos preparatórios da reunião. O processo revelou também o protagonismo de organismos multilaterais, como o BID e o Banco Mundial, na emergência dessa temática. Registrou, da mesma forma, um ativo papel de organizações não-governamentais com

20 Health in the Americas 2002 Edition. PAHO, Washington, D.C., 2002. p. 100-103.

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acentuada participação no domínio das políticas sociais. As evidências sugerem que pelo menos no caso latino-americano, a Opas parece ter desempenhado papel subordinado nesse processo genético.

Como indicado na primeira parte deste trabalho, a implementação de políticas seletivas de saúde e a mobilização direta de grupos e comunidades organizados foram parte das estratégias adotadas pelo Banco Mundial e pelos grandes financiadores privados da nova agenda da saúde internacional a partir de inícios de década de 1980. Os princípios e diretrizes adotadas pela Opas no terreno das políticas de ação afirmativa no tocante às populações negras sugerem uma aproximação da Organização àquelas estratégias. Ela o faz, entretanto, sem abandonar a sua tradição universalista, procurando ressaltar o tema da equidade das políticas e práticas de saúde.

A discussão do documento “Etnicidade e Saúde” na Opas e o impacto dos ODMs sobre a temática étnico-racial

Nos marcos de sua nova preocupação com a incorporação de componentes de seletividade/equidade nas suas políticas de saúde, os setores da Opas mais mobilizados em torno dos temas de etnia e saúde iniciaram o ano de 2003 elaborando o documento de trabalho “Etnicidade e Saúde”. Seu objetivo era “(...) encorajar a discussão entre os membros do Subcomitê de Planificação e Programação da Organização com respeito à incorporação da perspectiva étnico-racial na formulação de políticas públicas de saúde (...)”21. Depois de revisado pelo Subcomitê, este documento foi discutido na 132a Sessão do Comitê Executivo, realizada em junho. Seu envio a esta instância decisória da Opas22

21 Ethnicity and Health. SPP37/10 (Eng.) 23 January 2003. 37th Session of the Subcommittee on Planning

and Programming of the Executive Committee. Washington, D.C.,USA, 26-28 march 2003. Pan American Health Organization - World Health Organization. P. 3.

Consultar http://www.paho.org/english/gov/ce/spp/spp37-10-e.pdf Acessado em 27.08.2008.

22 A estrutura da OPAS compreende quatro instâncias decisórias, verticalmente estruturadas. A

Conferência Sanitária Pan-Americana é seu órgão máximo de decisão. A cada cinco anos seus membros se reúnem para determinar as políticas gerais da organização e dar instruções aos outros três corpos diretores. O Conselho Diretor é o órgão imediatamente abaixo da conferência, atuando em nome desta no intervalo entre suas sessões. Suas reuniões ocorrem uma vez por ano, com exceção daqueles nos quais a Conferência Sanitária se reúne. Sua principal atribuição é eleger, dentre os estados membros da OPAS, os nove que integrarão o Comitê Executivo por períodos superpostos de três anos. Este, por sua vez, reúne-se duas vezes por ano, atuando como grupo de trabalho permanente da Conferência ou do Conselho. Dentre as atribuições do Comitê Executivo incluem-se autorizar o Diretor a convocar as reuniões do Conselho; aprovar o programa provisório das reuniões da Conferência e do Conselho; analisar e submeter à Conferência e ao Conselho o projeto de programa e orçamento preparado pelo diretor da Oficina; e assessorar a Conferência ou o Conselho nos assuntos que tais organismos solicitem ou naqueles que julgue importante. Por fim, a OPAS conta também com o Subcomitê de Programa, Orçamento e Administração,

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visava estimular seus membros a discutirem “a incorporação da perspectiva étnico-racial na formulação de políticas públicas de saúde com o objetivo de obter maior eqüidade em saúde, em particular no que se refere às políticas de redução da pobreza e implementação dos Objetivos do Desenvolvimento do Milênio”. Assim o Comitê Executivo era instado a examinar o documento e a formular suas observações acerca de dois pontos principais: “a) a importância de incorporar a coleta da informação da saúde dos grupos étnicos; b) a necessidade de incorporar a sensibilidade étnico-racial que contribua aos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio com a perspectiva da redução da iniqüidade em saúde”23.

O Informe Final do Comitê Executivo ressaltou a importância do Plano

Estratégico 2003-2007 e do documento “Etnicidade e Saúde”, afirmando que este último

se constituía em uma importante contribuição para a compreensão geral da situação de indígenas e negros nas Américas, e para a formulação de políticas e programas focalizados nos grupos étnicos. Embora o Comitê não tenha julgado necessário adotar um resolução específica acerca da temática, ficou acordado que

“(...)a Opas daria apoio aos Estados Membros na desagregação das estatísticas nacionais e sanitárias para avaliar disparidades em saúde com fundamento étnico e monitorar o progresso rumo às Objetivos de Desenvolvimento do Milênio. Deveria [,ainda,] apoiar a formulação de políticas de saúde com sensibilidade étnica que abordassem os determinantes discriminatórios dessas disparidades24”

A decisão do Comitê Executivo evidencia a importância que as questões étnico-raciais adquiriram na formulação de políticas de saúde por parte da Opas. Como salienta César Vieira - então membro do Programa de Políticas Públicas e Saúde da Divisão de Saúde e Desenvolvimento Humano da Opas – a discussão do documento “Etnicidade e Saúde” nos corpos diretores da Opas deu visibilidade a um assunto que jamais havia sido

um subcomitê permanente do Comitê Executivo, cuja função consiste em auxiliá-lo nas três áreas que o batizam. Este órgão conta com a participação de sete membros e reúne-se pelo menos uma vez por ano. Para maiores informações, ver: http://www.paho.org/Spanish/gov/govbodies-index.htm

Ver também: http://www.paho.org/English/D/OD_308_ch4.pdf Ambos os sites acessados em 15/05/2008.

23 Grupo Étnico y Salud. CE132/16 (Esp.) 1 mayo 2003. 132º Sesión del Comité Ejecutivo, 23-27 de junio

de 2003. Washington, DC, EUA. Organización Panamericana de la salud/ Organización Mundial de la Salud. P. 1-3.

Consultar http://www.paho.org/spanish/gov/ce/ce132-16-s.pdf Acessado em 27.08.2008.

24 Informe Final. CE132/FR (Esp.) 23 julio 2003. 132º Sesión del Comité Ejecutivo, 23-27 de junio de

2003, Washington, DC, EUA. Organización Panamericana de la Salud/ Organización Mundial de la Salud. P. 53-54.

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prioritário para a Organização. Dado o ineditismo do tema, sua presença nas atas e documentos já era um fato merecedor de destaque (VIEIRA, 2007: 6).

Outra questão a ser destacada no Informe Final do Comitê Executivo é a articulação estabelecida entre políticas de saúde com enfoque étnico-racial e os Objetivos

de Desenvolvimento do Milênio (ODMs). Tais objetivos foram elaborados a partir das

ações e metas definidas pela Declaração do Milênio das Nações Unidas, adotada pelos 191 países-membros da ONU durante a Cúpula do Milênio, realizada em Nova York, em setembro de 2000. Previstos inicialmente para serem alcançados até o ano de 2015, os ODMs são oito objetivos que procuram responder aos principais desafios do desenvolvimento no mundo, definindo, assim, uma lista dos principais componentes da agenda global do século XXI. Vistos em seu conjunto, os ODMs sintetizam muitos dos mais importantes compromissos acordados nas conferências internacionais realizadas nos anos 90 e reconhecem explicitamente a interdependência entre crescimento, redução da

pobreza e desenvolvimento sustentável25.

Os Objetivos de Desenvolvimento do Milênio forneceram à Opas a oportunidade de reafirmar a saúde como um tema central na agenda do desenvolvimento mundial, já que três dos oito objetivos a serem atingidos referem-se a temas desta área, assim como sete das dezoito metas. Neste sentido, o comprometimento cada vez maior da Organização com os ODMs fortaleceu a discussão sobre a inclusão de componentes seletivos nas políticas de saúde, dando um novo impulso para a adoção de políticas específicas voltadas para grupos étnicos como os indígenas e os negros . Em sua entrevista, César Vieira comenta que a convocatória efetuada pelos ODMs conferiu à temática étnico-racial um peso muito maior do que o que seria dado por uma decisão “corporativa”, ou seja, estritamente infra-organizacional, ou mesmo do “setor” saúde” (VIEIRA, 2007: 14-17).

A tentativa de articulação entre os ODMs e a temática étnico-racial foi mencionada, inclusive, no Relatório Anual da Diretora, de 2004. Dois pontos são destacados no documento: a importância da promoção da saúde e a ênfase nas diferenças

25 Os oito Objetivos de Desenvolvimento do Milênio são os seguintes: 1. Erradicar a pobreza extrema e a

fome; 2. alcançar o ensino primário universal; 3. promover a igualdade entre os sexos e a autonomia da mulher; 4. reduzir a mortalidade das crianças menores de cinco anos; 5. Melhorar a saúde materna; 6. Combater o HIV/AIDS, o paludismo e outras enfermidades; 7. Garantir a sustentabilidade do meio ambiente; 8. Fomentar uma associação mundial para o desenvolvimento. Para maiores informações sobre os ODMs, ver: http://www.unesco.org.br/Brasil/objetivosdomilenio Acessado em 14/09/2008.

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existentes na saúde das populações. A questão étnico-racial aparece no terceiro item, intitulado “Technical Cooperation Framework of the Pan American Health

Organization”:

“Durante 2003, de acordo com as Recomendações do Comitê Executivo, passos foram dados para incorporar a abordagem da sensibilidade e transversalidade étnica nas políticas de saúde pública. Os objetivos específicos dentro do quadro da eqüidade em saúde são contribuir para inclusão social de minorias étnicas e raciais (...) As áreas prioritárias subseqüentes foram identificadas pela Opas como uma brecha para assegurar a incorporação da sensibilidade étnica nas políticas de saúde: trabalhar com instituições responsáveis pela coleta de informação estatística e com os ministérios da saúde para introduzir variáveis étnicas nas estatísticas nacionais (...) apoiar os ministérios da saúde na reformulação de políticas, planos e programas de saúde de modo que eles sejam etnicamente sensíveis; promover capacitações na sociedade civil que permitirão participação efetiva na feitura de planos para a saúde que sejam etnicamente sensíveis; e trabalhar em cooperação com o PNUD, outras agências e instituições financeiras internacionais, objetivando introduzir a sensibilidade étnica nos planos para atingir os ODM”26

Este novo cenário contribuiu para que os setores favoráveis à inclusão da variável étnico-racial nos programas da Opas voltassem a pressioná-la no sentido de que encampasse suas demandas. Esta pressão fica clara se analisarmos o documento “Los

Objetivos de Desarrolo del Milênio y las Metas de Salud”, discutido na 38ª Sessão do

Subcomitê de Planificação e Programa do Comitê Executivo, realizada em março de 2004. O documento busca fazer uma articulação entre os ODMs e estratégias focalizadas em grupos específicos, com destaque para os negros. O trecho abaixo é bastante elucidativo acerca deste ponto:

“(...) com relação ao parágrafo 23, que pedia aos países para reforçar o seu compromisso com o princípio de que os cidadãos não deveriam ser excluídos do acesso a serviços de saúde, independentemente de sua capacidade de pagar, recomendou-se que a última parte desta sentença

26 Health: an Essential Component of the Development Goals set forth in the Declaration of the

Millennium - Annual Report of the Director – 2004. OD-316. Pan american Health Organizationa / Pan American Sanitary Bureau. Washington D.C.: PAHO, 2004. pp. 14-15.

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deveria ser ampliada para (...) independentemente de idade, grupo étnico, sexo, renda ou local de residência”27

A referência específica aos mestiços e negros torna-se explícita mais adiante:

“[a] irregularidade do desenvolvimento nas Américas exigirá que o processo dos ODM desenvolva estratégias focalizadas para grupos específicos que abordem o que foi chamado de “nova pobreza”, como os grupos que foram excluídos historicamente, como é o caso dos grupos autóctones e os afro-descendentes americanos”28.

Depois de analisá-lo, o Subcomitê de Planificação e Programa fez algumas alterações importantes. No documento encaminhado à 134ª Sessão ao Comitê Executivo, o trecho supracitado teve sua parte final alterada de modo a não especificar diretamente quais seriam os “grupos excluídos historicamente” e a incorporar questões de gênero:

“A irregularidade do desenvolvimento nas Américas exigirá que o processo dos ODM desenvolva estratégias focalizadas para grupos específicos que abordem o que foi chamado de “nova pobreza”, por exemplo, famílias chefiadas pela mulher e grupos que foram excluídos historicamente”29.

A análise destes trechos sinaliza que o Subcomitê de Planificação e Programa procurou articular as demandas por questões étnico-raciais com aquelas relacionadas às questões de gênero. Esta situação talvez seja um reflexo da reforma implementada na Opas por Mirta Periago, eleita diretora da organização em 2002. Como parte da reestruturação efetuada, foi criada uma nova área técnica: a Unidade de Gênero, Etnia e Saúde. A criação desta nova unidade fez com que o tema da etnicidade se deslocasse para os domínios do Assistant of Director (AD) que fazia parte do gabinete da diretora. Assim, embora agora estivesse vinculada à temática de gênero, etnicidade passou a ser, de fato, a figurar dentre as áreas técnicas mais substantivas.

27 Los Objetivos de Desarrolo del Milênio y las Metas de Salud. SPP38/4 (Esp.) 18 febrero 2004. 38a

Sesión del Subcomité de Planificación y Programación del Comité Ejecutivo. Washington, D.C., EUA, 24 al 26 de marzo de 2004. Organización Panamericana de la Salud – Organización Mundial de la Salud. Consultar http://www.paho.org/spanish/gov/ce/spp/spp38-04-s.pdf Acessado em 27.08.2008.

28 Idem, p. 13-14.

29 Objetivos de Desenvolvimento do Milênio e Metas da Saúde. CE134/10 (Port.) 24 de maio 2004. 134a

Sessão do Comitê Executivo. Washington, D.C., EUA, 21-25 de junho de 2004. Organização Pan-Americana de Saúde – Organização Mundial de Saúde. P. 16.

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Após a discussão do documento “Etnicidade e Saúde” pelo Comitê Executivo em 2003, a temática étnico-racial ganhou um novo impulso na Opas com a centralidade adquirida pelas discussões em torno dos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (ODMs). O consenso internacional em torno da necessidade de se alcançar tais objetivos reforçou a posição dos membros da Opas que defendiam a adoção de um enfoque étnico-racial nos programas de saúde desenvolvidos pela organização. Neste novo cenário, contudo, a Opas evita referenciar-se tanto à saúde indígena quanto à saúde da população negra, adotando cada vez mais freqüentemente o termo etnia ou, como no caso do documento supracitado, “grupos excluídos historicamente”, como uma designação mais geral que abarca essas duas populações. Por outro lado, a influência das questões de gênero sobre aquelas relacionadas à etnia torna-se cada vez maior, refletindo a nova estruturação da Opas, na qual ambas as questões foram agrupadas em uma mesma área temática: a unidade Gênero, Etnia e Saúde. Se questões relacionadas à etnia ganharam mais importância, dada a vinculação direta da nova unidade ao gabinete da diretora, o tema da etnicidade ficou atrelado ao gênero. Os efeitos desse novo quadro ficam claros quando analisamos as alterações feitas pelo Subcomitê de Planejamento e Programa no documento “Los Objetivos de Desarrolo del Milênio y las Metas de Salud”, dentre as quais destaca-se a exclusão de menções diretas a “grupos autóctones” e “afro-descendentes americanos”, preferindo a expressão mais geral “grupos excluídos historicamente”, e a inclusão de “famílias chefiadas pela mulher” como um grupo específico que também compunha a chamada ‘nova pobreza” e que, por conseguinte, merecia a adoção de políticas específicas. Gênero e etnicidade tornam-se temas cada vez mais articulados e expressivos das políticas de saúde da Opas.

Conclusão

O ambiente institucional em que ocorreram a formulação e as decisões em torno da adoção de políticas de saúde com enfoque étnico-racial na região das Américas é extremamente complexo, caracterizando-se pela presença de um número cada vez maior de atores, com grande poder de agenda e de articulação. Dentre estes novos atores, destacam-se organismos multilaterais como o Banco Mundial e o BID, que desde o final da década de 1990 empreenderam esforços no sentido de consolidar uma nova orientação para as políticas de combate à pobreza na América Latina, articulando-as a estratégias anti-discriminação que atentassem para as especificidades étnico-raciais das populações

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da região. A temática da saúde da população negra emerge neste novo contexto como um componente das novas concepções que procuravam articular raça, etnia e saúde, embora, em um primeiro momento, estivesse visivelmente ligadas ao tema da saúde das populações indígenas. Contudo, com a proximidade da Conferência de Durban e conforme conferências preparatórias vão sendo realizadas, os termos desta relação vão sendo atualizados e a saúde da população negra ganha destaque, envolvendo organizações que até então não haviam se ocupado do tema, como é o caso da Opas.

A Opas entra neste terreno de posse de uma tradição anterior no campo da saúde das populações indígenas, que é atualizada e ressignificada no contexto dos preparativos para a Conferência de Durban. Seu envolvimento com a temática étnico-racial nos fornece elementos para entendermos o duplo papel desempenhado por organizações intergovernamentais no novo cenário global: como atores sociais e arenas. Como um ator social importante no campo da saúde internacional, a Opas produz documentos, organiza e participa de fóruns internacionais sobre o tema, produzindo e disseminando valores e enunciados prescritivos. Como arena, a Opas, assim como as demais organizações internacionais, mostrou-se permeável a interesses de origem vária, registrando o que seria uma certa “porosidade”, para usarmos uma expressão de César Vieira. Da mesma forma, sua burocracia interna procurou movimentar-se em sintonia com esses mesmos interesses.

Uma vez pautado por organismos multilaterais como o Banco Mundial e o BID, o campo da saúde da população negra passou a ser reivindicado por movimentos sociais ligados à luta dos negros nas Américas. Após a Conferência de Santiago, a Opas se envolve com esta temática fazendo valer a agenda estabelecida pelo Banco Mundial e o BID no encontro Race and Poverty. Neste sentido, o poder de agenda destes organismos somado à pressão dos movimentos sociais são decisivos para o envolvimento da Opas com o tema. A discussão é iniciada em seus corpos diretores, tendo por base os artigos publicados por Cristina Torres, que na ocasião era membro do Programa de Políticas Públicas em Saúde da Opas. Com base nos postulados expressos nestes textos, que por sua vez reproduziam aqueles estabelecidos ao final do encontro Race and Poverty, a Opas produz documentos, que são discutidos em suas instâncias internas. O ápice deste processo é a elaboração do documento “Etnicidade e Saúde”, cuja discussão atingiu o Comitê Executivo da Organização, atraindo a atenção de seus membros para um tema

Referências

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