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Antiguidade e Modernidade: Considerações sobre a busca do Antigo

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Academic year: 2021

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Antiguidade e Modernidade: Considerações sobre a busca do Antigo

Dra. Renata Senna Garraffoni UFPR Dr. Pedro Paulo Funari UNICAMP

Introdução

Neste contexto, apresentaremos, nesta ocasião, algumas considerações sobre os rumos do estudo da Antiguidade no contexto da pós-modernidade. Os estudos sobre o mundo antigo têm passado por um momento de renovação e esse aspecto não ficou despercebido na academia brasileira. Talvez essa renovação seja um dos grandes legados de Edward Said: quando na década de 1970 escreveu seu livro Orientalismo (2001), não poderia imaginar os desdobramentos de suas críticas e os profundos impactos que causaria entre os estudiosos do mundo antigo. Ao afirmar que o Orientalismo foi uma construção européia de base acadêmica, profundamente marcada por uma política imperialista e que ajudou a construir uma noção de inferioridade dos povos do Oriente, Said abriu a possibilidade de se pensar criticamente os discursos produzidos no meio acadêmico, seus conceitos e intenções. Profundamente influenciado pelo pensamento de Michel Foucault (Rago & Funari 2008), Said questionou a maneira como a academia Ocidental, em especial a européia, constituiu interpretações do outro marcadas por uma política de autoridade e abriu caminhos para que os estudiosos questionassem generalizações e se posicionassem criticamente diante dos métodos interpretativos criados no seio da academia, eivados de concepções racistas e atravessados por políticas de dominação.

Ao centrar suas críticas no Eurocentrismo, Said provocou polêmica, mas também sensibilizou estudiosos de diferentes áreas a pensar como conceitos e modelos interpretativos são construídos e não naturais, despertando a atenção para um repensar das ferramentas conceituais empregadas pelos estudiosos. Muito embora seu foco fosse nas relações estabelecidas entre Oriente e Ocidente, ao afirmar que a relevância Oriente foi constantemente diminuída pelo Ocidente a partir do século XIX, Said inspirou novas

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possibilidades de se pensar essas relações e abriu caminho para Martin Bernal, nos anos de 1980, afirmar que o mundo antigo não se distanciava da política moderna (Bernal, 1987; 2005).

Ao propor que as interpretações do mundo grego foram fundamentais para a construção de discursos de poder da Europa sobre outras partes do mundo - na virada do século XIX para o XX - Martin Bernal contribuiu para questionar a idéia de neutralidade dos estudos do mundo antigo, noção muitas vezes reforçada pela distância temporal entre Modernidade e Antigüidade. Ao retirar os estudos clássicos da “torre de marfim” ou “torre de observação” e de seu suposto isolamento, Bernal apontou, em vários de seus trabalhos, como esse pretenso afastamento é uma atitude política, pois os estudos clássicos nunca foram isentos dos momentos históricos nos quais foram produzidos, constituindo, portanto, parte de discursos de dominação.

Essa crítica de Bernal trouxe desconcertos e incômodos para os estudiosos do mundo antigo, pois explicitou em suas obras como na virada do século XIX para o XX muitos especialistas do mundo antigo constantemente apagaram as origens orientais da Grécia, construindo interpretações fundamentadas em uma visão anti-semita que ajudou a legitimar discursos racistas e de poder. Desconstruindo os modelos aplicados para o estudo do mundo grego, Bernal enfatizou em seus trabalhos a necessidade de rever modelos interpretativos cristalizados, categorias de estudos culturais estagnadas e normativas, bem como o papel da academia na constituição de políticas autoritárias e visões de mundo preconceituosas.

Cada um em seu contexto, Said e Bernal iniciaram um movimento que atualmente é crescente e mesmo predominante, dentro dos estudos acerca do mundo antigo: um repensar de como se escreveu a História Antiga e como os conceitos empregados para interpretá-la estão atravessados por noções colonialistas e imperialistas da virada do século XIX para o XX. Essa consciência crítica tem trazido novos ares para a disciplina. Como afirmou, há pouco, Glaydson José da Silva (2007), os estudos sobre o mundo antigo, em especial a Antigüidade clássica, visto constantemente como tradicional, conservador e hierárquico, têm experimentado uma grande renovação, na qual busca questionar esses ranços históricos a partir de uma revisão teórica profunda. Revisão essa, gostaríamos de ressaltar, que tem não só proposto novas problemáticas de estudo, mas também desenvolvido um repensar de

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como são constituídas as relações passado/presente e suas implicações políticas (Silva e Martins 2008). Assim, o novo panorama teórico aberto pelos desdobramentos das correntes de pensamento pós-colonialistas permitiu uma profunda problematização do estudo da História Antiga, desafio instigante e que tem atingido estudiosos de diferentes instituições, estrangeiras e brasileiras, possibilitado um maior diálogo entre especialistas.

Algumas considerações acerca dos estudos clássicos no Brasil

Como nas últimas duas décadas foi constituída uma estrutura mais sólida para o desenvolvimento dos estudos clássicos no Brasil, as Universidades públicas têm buscado contratar especialistas oriundos de programas de pós-graduação e investido em possibilidades de organizar as grades curriculares de maneira menos rígida, viabilizando o estudo das línguas clássicas. Nesse sentido, em várias Universidades os alunos dos cursos de História tem tido um pouco mais de oportunidade para participar dos cursos de latim e grego, de literatura Greco-romana e, também, dos cursos de Filosofia clássica, auxiliando o conhecimento mais aprofundado dos textos greco-romanos, facilitando, portanto, o acesso à leitura e interpretação das obras.

Se por um lado essa estratégia permitiu uma maior aproximação dos textos clássicos e a possibilidade de novas abordagens, por outro cabe destacar que se tornou a perspectiva predominante e pouca atenção foi destinada à Arqueologia, relegando a cultura material a um segundo plano. Em um primeiro momento, é possível pensar que a maior dificuldade seria o acesso à cultura material e aos sítios arqueológicos que, por definição, encontram-se na Europa, África do norte e Oriente Próximo. Mas uma análise mais cuidadosa indica uma série de outros problemas mais complexos precisam ser analisados, pois é importante destacar que alguns museus brasileiros, como o MAE/USP ou o Museu Nacional do Rio de Janeiro, possuem coleções de peças do mundo clássico, como cerâmicas e moedas, por exemplo, ainda pouco estudadas por pesquisadores brasileiros1.

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Com relação às moedas, Carlan chama a atenção para essa questão em vários estudos. Cf, por exemplo: Carlan, 2006a; 2006b; 2007 e 2008.

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Neste contexto, acreditamos ser importante destacar que, para além das dificuldades de acesso a cultura material greco-romana, que poderiam ser suplantadas por meio de trabalhos integrados com grupos de pesquisas no exterior ou mesmo pelo estudo dos artefatos das coleções de Museus brasileiros, há um outro aspecto que precisa ser destacado: o tenso diálogo entre História e Arqueologia. Como nas últimas décadas as Universidades públicas brasileiras tem se esforçado em contratar especialistas oriundos de programas de pós-graduação, houve um investimento no estudo das línguas clássicas, para a leitura dos textos, mas poucos se dedicaram ao diálogo com a Arqueologia, relegando a cultura material a um segundo plano.

A dificuldade de estabelecer um diálogo entre Arqueologia e História, embora tenha suas particularidades no território nacional, não é uma exclusividade dos estudos clássicos no Brasil. Ray Laurence (2005), em um recente estudo, afirma que na Grã-Bretanha as pesquisas nestes dois campos correm quase em paralelo e nem sempre os profissionais concordam com o diálogo, procurando reafirmar a separação entre ambas as disciplinas. Neste contexto, é possível afirmar que a separação entre as disciplinas é mais uma postura teórico-metodológica que uma dificuldade de acesso às fontes, pois implica em discutir a percepção de História e Arqueologia na qual o classicista é formado e, também, na sua postura diante da possibilidade ou não de concretizar este diálogo.

Conclusão

A renovação da História Antiga vem se processando há algum tempo e os resultados têm sido os mais animadores. A História Antiga é cada vez mais popular, com um número substancial de estudiosos dedicados ao seu estudo, jovens que se iniciam na pesquisa e professores de cursos superiores de História. A renovação da História Antiga, portanto, responde a essa busca do antigo, à luz das inquietações da pós-modernidade.

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Agradecimentos

Somos gratos a: Cláudia Beltrão, Claudio Carlan, Margarida Maria de Carvalho, Fábio Vergara Cerqueira, André Leonardo Chevitarese, Gabriele Cornelli, Andrea Dorini, Norma Musco Mendes, Monica Selvatici, Glaydson José da Silva. Lembramos, ainda, a participação dos estudantes Andrés Alarcon, Natalia Ferreira Campos, Marina Regis Cavicchioli, Nathalia Monseff Junqueira, Karla Fredel, Adilton Martins, Gabriella Rodrigues, Bruno Sanches, Luciano César Garcia Pinto, Roberta Alexandrina da Silva e Marina Fontolan. Este artigo não seria possível sem o apoio institucional da FAPESP, CNPq, dos Programas de Pós-Graduação em História da Unicamp e da UFPR. A responsabilidade pelas idéias restringe-se aos autores.

Referências

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