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A PRESUNÇÃO DE VIOLÊNCIA E A LEI /09.

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Academic year: 2021

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A PRESUNÇÃO DE VIOLÊNCIA E A LEI 12.015/09.

Recentemente, o Superior Tribunal de Justiça, em julgamento de embargos de divergência afeto à Terceira Seção, reacendeu a polêmica da presunção de violência nos crimes contra os costumes (hoje, contra a dignidade sexual) envolvendo adolescentes e crianças menores de 14 anos.

O caso apreciado pelas duas Turmas reunidas (5ª e 6ª) ocorreu antes de 2009, portanto sujeitou-se às regras do Código Penal anteriores à edição da Lei 12015/09.

Dois acusados, com idades avançadas, se aproveitaram da situação de miserabilidade e hipossuficiência das vítimas e praticaram os atos de libidinagem, que só foram descobertos porque uma professora das crianças as ouviu conversando sobre as práticas libidinosas. A própria mãe de uma das adolescentes reconheceu que a filha vivia em situação irregular, lucrando com a prostituição.

A maioria dos Ministros do Superior Tribunal de Justiça entendeu que a experiência sexual das vítimas, todas adolescentes com menos de catorze anos, afastava a presunção de violência, que é relativa.

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Pelo que se infere do julgamento, as jovens sempre viveram em condição de razoável penúria, sem uma estrutura familiar sólida e com parcos recursos financeiros.

Abstraindo-se o fato da decisão do Superior Tribunal de Justiça ter contrariado entendimento até então sedimentado no Supremo Tribunal Federal, não se pode esquecer que, quem vive em situação de penúria, sem estrutura familiar sólida, nem sempre pode desenvolver o sentimento de recato que a convivência familiar propicia. Esse estado de pobreza – e a notória situação irregular das adolescentes - poderia justificar sua adesão às propostas libidinosas.

Bem por isso, o conceito de pudor não pode ser formulado com abstração do ambiente a que está exposta a jovem. Não é curial ampliar a desdita da vítima negando o potencial de corrupção ínsito ao comportamento dos agressores, que normalmente são homens feitos e experientes.

Como se sabe, o direito penal protege os interesses mais relevantes da sociedade e deve ser interpretado de modo a tutelar os mais carentes e hipossuficientes. Excluir da incidência do tipo em apreço moças que não têm família nem lar bem formado importa subtração do próprio fim que o legitima.

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Afinal, quem não tem o apoio dos familiares nem pôde desenvolver critérios para sua própria proteção, só pode contar com a força tutelar do Estado, ao qual a Constituição da República impõe o dever de assegurar ao adolescente o direito à dignidade e à preservação contra toda forma de exploração (CF, art.227, caput).

Analisando, em profundidade, a dignidade e respeito de crianças e adolescentes, com especial atenção à integridade física e moral, Martha de Toledo Machado assinalou, com inteira propriedade, que:

[...] a dignidade, no sentido lato, poderia ser vista como um dos valores tutelados pela lei penal, nos chamados crimes sexuais contra crianças e adolescentes. Num plano mais geral, o desvalor que a lei reprova nas figuras de abuso sexual – como estupro ou no atentado violento ao pudor – é a redução da criança ou do adolescente a meio, a instrumento de lascívia do agente; a vítima desprezada nos seus atributos humanos mais essenciais, relacionados ao respeito que a peculiar condição de crianças e adolescentes demanda. E, além do primeiro, o desvalor que a lei reprova nas figuras de

exploração sexual – como nas múltiplas figuras de lenocínio – é a redução da criança ou do adolescente a

coisa, que tem valor econômico e é passível de exploração econômica.”(Probições de excesso e proteção insuficiente no direito penal, São Paulo: Verbatim, 2009, p. 142-143).

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Não parece razoável, nesse contexto, que o juiz ou o Tribunal, como se disse, aumente a desdita de adolescentes desestruturados, com a cômoda e esfarrapada desculpa de que já são corrompidos ou, como ocorreu no recente julgamento, que já têm experiência sexual !

De todo modo, esse julgamento realizado pela Terceira Seção não encerra a polêmica. Como foi salientado anteriormente, cuidou-se de hipótese ocorrida antes da vigência da lei dos crimes contra a dignidade sexual.

O processo de criação da lei não é concepção de um único indivíduo, mas consciência coletiva de Justiça dos diversos setores da atividade humana.

Nessa ordem de ideias, é célebre asserto do filósofo ARISTÓTELES (A Política, I, IX), segundo o qual o homem é um ser social por natureza e que, pela razão, possui o sentimento do bem e do mal, do justo e do injusto.

Mas essa aptidão para a vida em sociedade impõe naturais limitações à atividade humana, as quais, por sua vez, como imperativos de Justiça, redundam em normas de agir efetivas, sancionadas pelo poder do Estado (FRANÇA, Rubens Limongi – O Direito, a Lei e a Jurisprudência, Editora Revista dos Tribunais, 1974, p. 04).

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Esse viver em sociedade, não se pode negar, tem uma razão de ser, uma finalidade, a qual, de modo amplo e genérico, é a realização de um bem comum. Daí porque, com acerto, pontifica Dalmo de Abreu Dallari, que o convívio social implica necessariamente a reiteração das manifestações conjuntas, ordenadas (entendendo-se aí, também, o próprio ordenamento jurídico) e adequadas, isto é, que representem a correta utilização dos recursos e anseios sociais a disposição.

Em suma, sem enveredar para o campo das elucubrações cerebrinas, é certo que esse bem comum (individual e coletivo), no seu último estágio, está corporificado em normas de agir concretas, em face daquilo que se convencionou chamar de Direito Positivo. Não se podendo admitir, nesse contexto, evidentemente, leis absurdas e despóticas que não tragam em si aquele requisito da adequação, ou seja, que não tenham como inspiração os anseios sociais emergentes.

A repressão à conduta perquirida neste caso específico é adequada, necessária e decorre de comando constitucional, que é pormenorizado no Estatuto da Criança e do Adolescente (cf. 17 e 18 do ECA).

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Pois bem, até a edição da Lei 12.015/09, punia-se o estupro e o atentado violento ao pudor praticado contra vítima que não fosse maior de 14 anos, por conta da regra do art. 224 do Código Penal, que estabelecia para a hipótese uma presunção de violência.

O art. 224 do Estatuto Repressivo foi revogado e essa conduta, hoje, encontra adequação em figura típica específica prevista no art. 217-A, caput, do Código Penal. Pela atual redação não se fala mais em presunção de violência e sim manter conjunção carnal ou qualquer outro ato libidinoso com menor de 14 anos.

Parece, portanto, irrelevante a discussão quanto à presunção de violência. Convém lembrar, de outra parte, que a mesma figura típica amplia a proteção nesses casos, abrangendo, não só os menores de quatorze anos, como ainda aquelas pessoas que apresentem uma condição de vulnerabilidade.

Ora, se a mens legislatoris fosse a de permitir a controvésia quanto à condição pessoal da vítima menor, bastaria que limitasse a punição, simplesmente, a vítimas vulneráveis.

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De resto, ao aplicar o Direito, é natural que o seu operador sinta a tentação de corrigi-lo, para ajustá-lo a suas próprias concepções de justiça. Essa tendência ganha estímulo adicional quando esteja em causa diploma com algumas imperfeições de ordem sistemática.

É certo, ainda, que a missão normativa não foi confiada ao Poder Judiciário. É-lhe defeso, portanto, substituir-se ao legislador: cabe-lhe aplicar a lei como ela é e não como desejaria que fosse.

Nem é admissível que o exercício da jurisdição penal, a pretexto de interpretar a lei, possa abranger uma escolha mais suave (taxando a conduta simplesmente de imoral, como o fez majoritamente o Superior Tribunal de Justiça) ou de um modo mais benévolo de expiação, sobretudo em tema onde o Estado não quis ser complacente.

No inteligente magistério de NÉLSON HUNGRIA,

[...] não deve ser o juiz um aplicador automático do literalismo da lei, mas um revelador de todo o possível direito que nela se encerra, suprindo-lhe a inexplicitude decorrente da imperfeição da linguagem humana. É-lhe vedado, entretanto, negar a lei. Notadamente em matéria penal (...) tem de aplicar o direito positivo, o direito expresso ou latente nas leis, e não o direito idealmente concebido (...). Pode e deve humanizar a regra genérica da lei em face dos casos

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concretos de feição especial, ou procurar revelar o que a letra concisa da lei não pôde ou não soube dizer claramente; mas isso dentro da própria latitude do sentido ou escopo dos textos, e nunca ao arrepio deles, ou substituindo-os pelo que arbitrariamente entende que devia ter sido escrito, segundo a sua ideologia pessoal". (Comentários ao Código Penal. Tomo I, vol.I, 6ª ed., Rio de Janeiro: Forense, 1980. p.88).

É importante, portanto, que o Superior Tribunal de Justiça resista à tentação de se substituir ao legislador e aplique a nova lei como ela é, notadamente quando for chamado a decidir acerca de casos semelhantes, sob a égide da Lei 12.015/09.

Pedro Henrique Demercian Procurador de Justiça Criminal Doutor em Processo Penal pela PUC/SP Professor Assistente-doutor em Processo Penal na PUC/SP

Referências

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