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Os Salmos Da Misericordia (Misericordiosos Como o Pai) - Conselho Pontificio

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Academic year: 2021

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NDICE

Capa Rosto

Apresentação Introdução

Os dez Salmos da Misericórdia I - Salmo 25 II - Salmo 41 III - Salmo 42 IV - Salmo 43 V - Salmo 51 VI - Salmo 57 VII - Salmo 92 VIII - Salmo 103 IX - Salmo 119 X - Salmo 136 Ficha Catalográfica

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PRESENTAÇÃO

os Salmos, reflete-se a vida de cada homem. Todos os que frequentam o Saltério, crentes ou não, cedo ou tarde encontram um reflexo da sua existência nestas poesias antigas que se tornaram patrimônio de oração para gerações de pessoas. O nascimento e a morte, o sofrimento da doença e a dor do abandono, a guerra e a paz, a solidão e a procura de Deus… todos os aspectos da experiência pessoal se espelham nos Salmos. Não só a vida humana, mas também o cosmos, as vicissitudes de Israel e a história da salvação encontram lugar nos Salmos. O Saltério é, na verdade, a voz de Deus transformada em oração dos homens quando estão na sua presença, sabendo necessitarem do seu amor. No Ano Santo da Misericórdia, era importante oferecer um instrumento pastoral para ajudar a oração e a reflexão dos peregrinos. Pensou-se numa seleção de Salmos em que o tema da Misericórdia emergisse em toda a sua valência existencial e significado teológico.

Na Bula Misericordiae vultus (MV), o Papa Francisco quis dedicar algumas expressões significativas também à oração dos Salmos: «Os Salmos, em particular, fazem sobressair esta grandeza do agir divino: “É Ele quem perdoa as tuas culpas e cura todas as tuas enfermidades. É Ele quem resgata a tua vida do túmulo e te enche de graça e de ternura” (103,3-4). […] A misericórdia de Deus não é uma ideia abstrata, mas uma realidade concreta, pela qual Ele revela o seu amor, como o de um pai e de uma mãe que secomovem pelo próprio filho até o mais íntimo das suas vísceras» (MV, n. 6).

O Conselho Pontifício para a Promoção da Nova Evangelização agradece ao padre Sebastiano Pinto, professor de Exegese do Antigo Testamento na Faculdade de Teologia da Apúlia, pela sua disponibilidade em escrever este comentário aos Salmos da Misericórdia. Estamos certos de que, através da sua apresentação, muitos cristãos poderão apreciar melhor a oração do Saltério. Os Salmos da Misericórdia são como um guia que pode acompanhar a peregrinação

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até a Porta Santa, para descobrir a Misericórdia de Deus como um refúgio de ternura e de consolação sem igual.

X RINO FISICHELLA Presidente do Conselho Pontifício para a Promoção da Nova Evangelização

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NTRODUÇÃO

«Quanto não chorei, fortemente comovido, ao escutar os hinos e cânticos ressoando maviosamente na vossa Igreja! Essas vozes insinuavam-se-me nos ouvidos, orvalhando de verdade o meu coração; ardia em afetos piedosos e corriam-me dos olhos as lágrimas: mas sentia-me consolado» (Confissões, IX, 6,14).

om estas palavras intensas, Santo Agostinho conta-nos o fascínio que a Igreja em oração exerceu sobre a sua vida, juntamente com a forte incidência do cântico litúrgico sobre a sua conversão. O Livro dos Salmos exerceu sempre sobre ele uma extraordinária atração, porque nele se encontra o amplo leque dos sentimentos humanos: alegria e louvor, tristeza e angústia, força e debilidade, vitória e derrota, confiança e desconforto. Toda a experiência da vida, da mais bela e exaltante à mais terrível, é aqui poeticamente narrada.

Não foi por acaso que Santo Atanásio falou dos Salmos como o livro dos afetos, como o berço da vida moral e como o espelho da alma, porque suscita o desejo de virtude. Ainda que toda a nossa Escritura, antiga e nova, seja divinamente inspirada, este livro é, por assim dizer, um rico jardim de onde se podem colher os frutos de todos os outros textos inspirados.

Na Igreja dos primeiros séculos, difundiu-se a interpretação cristológica dos Salmos, considerados como a voz do Cristo total, cabeça e corpo. Na voz de Davi, faz-se eco da voz de Jesus e, com ela, da polifonia de todos os membros do Corpo de Cristo. Até mesmo devido a esta leitura espiritual, os Salmos foram comentados amplamente. Se se tivesse de elaborar uma classificação das preferências dos livros bíblicos comentados pelos autores cristãos, descobriríamos que o Livro dos Salmos ocupa as primeiras posições, ao lado de outros ilustres escritos: o profeta Isaías, o Cântico dos Cânticos e, obviamente, os evangelhos. O próprio Cristo ressuscitado, aparecendo aos discípulos, indicara nos Salmos não apenas o lugar onde encontrar as marcas da sua presença, mas também a chave para reconhecê-lo vivo e operante na Igreja: «São estas as

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palavras que eu lhes falei, quando ainda estava com vocês: tinha de se cumprir tudo o que sobre mim está escrito na Lei de Moisés, nos Profetas e nos Salmos» (Lc 24,44).

O fascínio do Saltério atravessa os séculos e chega até os nossos dias, mostrando toda a sua riqueza espiritual ao homem de hoje, tão esfomeado de interioridade e de sentido autêntico da vida. Esta riqueza obtém-se na leitura e no estudo do Saltério, tanto no âmbito pessoal como comunitário; mas oferece-se sobretudo à oração dos cristãos na Liturgia das Horas: «Na Liturgia das Horas, a Igreja reza na maioria das vezes com os mais belos cânticos que os santos autores, sob a inspiração do Espírito Santo, compuseram no Antigo Testamento […]. Quem recita os Salmos na Liturgia das Horas, recita-os não tanto em nome próprio, mas em nome de todo o corpo de Cristo, e até mesmo na pessoa de Cristo» (n. 100.108).

Em hebraico, o Saltério é chamado sefer tehillím (livro das laudes), ao passo que em grego encontramos o psálmos (“cântico”). No Livro de Daniel mencionam-se diversos instrumentos musicais, entre os quais o saltério: «Quando ouvirem o som da trombeta, da flauta, da cítara, da sambuca, do saltério, da gaita de foles e outros instrumentos musicais» (Dn 3,5.7). Na acepção da Bíblia grega, a ligação entre os Salmos e a música é indissolúvel, de acordo com 1Cr 16,4-6 e 2Cr 34,12, que apresentam os levitas como cantores e tocadores, ainda que isso não signifique que a recitação dos Salmos seja sempre acompanhada de um instrumento. Os Salmos foram compostos em hebraico, num período de tempo que oscila entre seiscentos e oitocentos anos, e foram amplamente utilizados na oração da comunidade. A versão grega dos Setenta é a mais importante das antigas versões, no que se refere ao Saltério. Esse texto – que abarca um período entre o século ii a. C. e o século i d.C. – é relevante porque é o testemunho mais próximo do original hebraico. Foi precisamente o texto grego, e não o hebraico, a ser utilizado pelos autores do Novo Testamento quando citavam o Antigo; semelhante é o discurso relativo à utilização do Saltério por parte dos Padres da Igreja. Foi, no entanto, a língua latina que permitiu a maior difusão do Saltério. No ano 386, São Jerônimo preparou em Belém o Psalterium Gallicanum, que mais tarde foi o saltério da Vulgata.

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Lendo os vários Salmos, percebemos que a maioria deles começa com frases que servem de subtítulo. Estas inscrições não apareciam no original hebraico, ainda que a sua antiguidade seja indiscutível. Tais subtítulos foram inseridos pela tradição hebraica pré-cristã, com uma intenção claramente litúrgica. Temos três tipos de subtítulos: a) termos técnicos musicais e indicações para a execução, b) nomes pessoais aos quais está associado o salmo e c) alusões históricas.

Percorrendo o Saltério, poderíamos ter dificuldade em saber exatamente o número do Salmo, uma vez que, a partir do Salmo 9, aparece uma numeração dupla: a segunda metade deste Salmo é considerada pelo texto hebraico o Salmo 10, ao passo que nos Setenta e na Vulgata não se encontra dividido. Depois do Salmo 9, começa uma numeração diferente, que, nas traduções modernas da Bíblia, figura do seguinte modo: a maior (normalmente entre parênteses) segue o hebraico, e a menor reflete a ordem dos Setenta e da Vulgata. A dupla numeração termina com o Salmo 147, no qual encontramos o procedimento exatamente inverso ao do Salmo 9. Por isso, tanto para a Bíblia hebraica como para os Setenta, os salmos são cento e cinquenta. A numeração atual deve-se a São Jerônimo. Devemos ter presente que a divisão da Bíblia hebraica em capítulos e versículos ocorreu muito mais tarde, num período que abarca os séculos iv-viii d.C.

O Saltério foi sempre considerado como um verdadeiro e único livro, ainda que essa unidade tenha sido querida pelos redatores finais da Bíblia: por isso, os comentários exegéticos prescindem muitas vezes da individualização das ligações internas, preferindo aludir apenas a cada uma das composições, operação certamente legítima até mesmo nos últimos decênios, quando amadureceu uma sensibilidade que tende a juntar cada um dos poemas e ligá-los a um tema comum. No interior do Saltério, de acordo com São Gregório de Nissa, existem elementos que permitem estruturá-lo em cinco partes: 1-41: primeiro livro; 42-72: segundo livro; 73-89: terceiro livro; 90106: quarto livro; 107-150: quinto livro.

A presença de cinco livros evidencia a vontade dos redatores finais de compararem o Saltério com os primeiros cinco livros da Bíblia (Pentateuco), conferindo-lhes um valor fundador análogo. Como no Pentateuco se narra o

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início da história da salvação (criação, eleição, escravidão, libertação, dom da Lei), assim no Saltério se apresenta o itinerário do caminho espiritual do piedoso israelita. O louvor que conclui cada um dos livros e todo o Salmo 150, hino totalmente doxológico, atestam o ponto de chegada para o qual tende a descrição sálmica: apesar das provações e da infidelidade, do pecado do povo e dos indivíduos, a promessa do Senhor permanece estável, assegurando aos israelitas a recuperação da saúde do corpo e a comunhão do espírito.

Normalmente, pensa-se que o contexto natural dos Salmos é o Templo de Jerusalém ou então um ambiente ligado ao estudo da Escritura na sinagoga. Não se deve, todavia, confundir o lugar em que as composições foram celebradas e seguramente reelaboradas com o contexto que inspirou a intuição poética e espiritual. Os Salmos, tendo a sua origem na vida quotidiana, e precisamente por essa razão, pretendem exprimir poeticamente todas as suas estações, tanto as verdejantes e fecundas como as outonais e áridas. Os Salmos, portanto, são poesias de temas religiosos, e para os compreender em profundidade é necessária uma dupla competência: a poética, para se entenderem as delicadezas que a poesia hebraica exprime; e a de fé, para lhes intuir o valor espiritual.

Por último, o Saltério narra o homem. E isso explica a riqueza ilimitada da simbologia utilizada. Segundo uma expressão que se tornou célebre, os cento e cinquenta Salmos constituem um “microcosmos” que alberga em si todo o período espaçotemporal do ser humano colhido na sua unidade psicofísica: o homem é espírito, coração, imaginação, e quando pensa em Deus e vive a sua fé de modo pessoal, o faz com todo o seu ser. Não é apenas inteligência, intelecto ou fria soma algébrica de variáveis. Um papel importante é desempenhado pelos símbolos que exprimem o “sabor” da teologia e, em última análise, da existência.

São três as categorias fundamentais que narram o homem simbólico. A primeira é a vertical: “o homem de pé” numa linha ascendente-descendente, preso no seu processo de elevação moral e social. Pense-se no símbolo de cetro (2,9; 45,7; 60,9; 108,9), no templo sobre o monte (147), no escravo que eleva o olhar para o seu senhor (123,1), até nos nomes divinos «Deus Altíssimo», «Deus das montanhas» ou «Deus das alturas» (92,9; 93,4; 102,20). A segunda categoria é a horizontal: “o homem sentado”, em sinal de intimidade. Pense-se nas

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referências de utilização do verbo habitar, demorar, permanecer (yasab), e nos lugares em que se habita: a casa (26,8; 84,5; 101,7; 113,9), o templo (11,4; 27,4; 65,5), a cidade-refúgio (18,3; 62,3.7; 144,2). Finalmente, a terceira categoria é a dinâmica e temporal: “o homem a caminho”. Aqui domina a imagem do “caminho” (derek), que indica não só a estrada, mas também a conduta moral (a imagem dos dois caminhos diz respeito ao bem contraposto ao mal). Não é apenas um símbolo geográfico, mas também de existência (orientação de vida: 49,14; 119). O movimento pode ser ascendente (para o templo, nos Salmos 120-134) ou ligado à passagem do tempo (16,10-11).

Permanecendo na simbologia espacial, podemos dizer que os Salmos seguem uma linha quádrupla: a vertical-teológica, em direção ao céu e a Deus; a horizontal-antropológica, na direção do homem; a horizontal-cosmológica, em relação à criação; e a vertical do além-túmulo, relativa ao mundo das trevas que, no imaginário hebraico, se situa no subsolo.

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A

O

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ALMOS DA

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ISERICÓRDIA

Misericórdia é uma das características divinas que o Saltério mais evidencia. Existem, de fato, poemas a que podemos chamar «Salmos da Misericórdia», nos quais se vê o agir amoroso do Senhor com o qual Ele se dirige aos seus fiéis. A palavra “Misericórdia” (hésed) possui uma forte riqueza de significados e por isso é traduzida de várias maneiras: ternura, graça, misericórdia, indulgência, bondade, benevolência, amor. Esse vocabulário revela um traço surpreendente de Deus: o da maternidade. Se existe um lugar onde vive a hésed divina é o ventre, as vísceras (rahamim): as vísceras maternais de Deus comovem-se ao ponto de perdoar o grande pecado cometido (IS 49,15; SL 103,13). No mundo bíblico, a parte mais íntima em que têm sede os sentimentos é precisamente o ventre/ /seio, e isso cria uma forte aproximação entre a Misericórdia e a geração da vida: «dar à luz a Misericórdia» equivale a «pôr no mundo a vida».

Os Salmos dão voz ao homem e ao seu corpo. E é precisamente através do corpo e dos seus membros que a oração encontra as suas modulações, os seus ritmos, os seus tempos, os seus espaços. Não é que a alma ou o espírito não estejam envolvidos, mas a Bíblia tem uma concepção “carnal” do homem, no sentido mais espiritual do termo: não existe um corpo separado da sua alma, nem uma alma desligada do seu corpo. Quando o homem reza, ama, sofre, louva, quando, numa palavra, vive, o faz com todo o seu ser, na sua totalidade psicofísica. Talvez, durante demasiado tempo, certa visão cristã insistisse, excessivamente, apenas sobre a dimensão racional, deixando em segundo plano a corporal, dando a entender que a forma de oração mais nobre seria a do pensamento. Com a recuperação da antropologia bíblica, também se recuperou a “carne da fé” e, com isso, a dimensão existencial que atravessa as grandes narrações da Bíblia, de Abraão a Jesus Cristo.

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Beauchamp, são a oração do corpo: «O instrumento frágil da oração, a harpa mais sensível, o mais diáfano obstáculo contra a malvadez humana, isso é o corpo. Parece que, para o salmista, tudo se joga aí, no corpo. Não é que seja indiferente à alma, mas, pelo contrário, porque a alma não se exprime e não transparece senão através do corpo. O Saltério é a oração do corpo. Nele a meditação exterioriza-se tomando o nome de “murmúrio”, “sussurro”. O corpo é o lugar da alma e, portanto, a oração atravessa tudo o que se produz no corpo. É o corpo quem reza: “Todos os meus ossos dirão: ‘Quem como Vós, Senhor?’”».

A apresentação dos Salmos da Misericórdia – algumas das composições mais significativas ligadas a este tema, espalhadas pelos cinco livros do Saltério – dá muita atenção a este dado somático. Tal riqueza antropológica não só justifica a visão bíblica acerca do homem, mas espelha também o rosto com que Deus se decidiu dar a conhecer, Ele que fala uma linguagem que todos podem entender e que se entretém com os homens, falando-lhes como a amigos (cf. Dei Verbum, n. 2).

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Salmo 25

1 De Davi.

A ti, Senhor, minha alma se eleva.

2 Meu Deus, em ti ponho minha confiança, que eu não fique decepcionado.

Que meus inimigos não cantem vitória sobre mim,

3 pois aqueles que em ti confiam não ficam decepcionados.

Ficam decepcionados os traidores fracassados.

4 Faze-me conhecer, Senhor, os teus caminhos,

ensina-me as tuas estradas.

5 Dá-me instrução em tua verdade,

ensina-me que tu és o meu Deus e o meu Salvador. Em ti espero todos os dias.

6 Lembra-te, Senhor, de tua compaixão

e de tua lealdade, pois elas duram para sempre.

7 Não leves em conta os pecados de minha mocidade,

nem minhas transgressões, por tua lealdade. Senhor, em tua bondade lembra-te sempre de mim.

8 Bom e reto é o Senhor,

pois ensina o caminho aos pecadores.

9 Ele encaminha os pobres de acordo com o direito,

e ensina aos pobres o seu caminho.

1 0 Todos os caminhos do Senhor são lealdade e verdade

para os que guardam sua aliança e seus preceitos.

1 1 Por teu nome, perdoa a minha falta, Senhor,

por grande que ela seja.

1 2 Qual é o homem que teme ao Senhor?

É Senhor quem lhe indica o caminho que deve seguir.

1 3 Sua vida residirá na felicidade,

e sua descendência herdará a terra.

1 4 A intimidade do Senhor é para aqueles que o temem,

e sua aliança lhes dá a conhecer.

1 5 Meus olhos estão sempre fixos no Senhor,

pois ele retira da rede os meus pés.

1 6 Volta-te para mim e tem piedade de mim,

pois estou sozinho e sofrido.

1 7 Faze morada em meu coração aflito,

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1 8 Presta atenção ao meu sofrimento e fadiga,

e perdoa todos os meus pecados.

1 9 Presta atenção nos meus inimigos que se multiplicam,

e me odeiam com ódio violento.

2 0 Guarda minha vida e liberta-me.

Que eu não fique envergonhado, pois em ti me abriguei.

2 1 Integridade e retidão irão me proteger,

pois espero em ti.

2 2 Ó Deus, liberta Israel

de todos os perigos.

O Salmo 25 tem uma estrutura inspirada no alfabeto hebraico. Esta articulação (acróstico alfabético que também se encontra noutros Salmos) tem uma função mnemônica e uma alusão à totalidade, que abrange toda a experiência pessoal. A composição apresenta-se como uma súplica individual: o orante sente-se atormentado pelos seus inimigos e dirige-se confiantemente a Deus, para que o livre desta situação. O Salmo apresenta, além disso, uma estrutura inspirada na sua qualidade rítmica, que descreve o coração da composição sobre o tema do “caminho”.

V. 1. É a antífona inicial que traduz a atitude exigida de quem ora; é como se desse esta indicação: «Elevar a alma»; como sucede no convite do prefácio: «corações ao alto». A alma (néfesh) é uma palavra cujo significado nasce do som com que se pronuncia: o primeiro sentido é garganta, pela qual passa a respiração e, por fim, a ânsia do homem, o seu desejo de ser. A visão bíblica do homem nunca é dicotômica (a parte espiritual contraposta à física), mas unitária. Aqui indica a própria vida do homem, e é com todo o seu ser que o orante deseja elevar-se e alcançar espiritualmente a esfera divina.

V. 2-3. Confiança, esperança e desilusão. O salmista professa a sua confiança em Deus, exprimindo o desejo de não ficar decepcionado; as razões de tal esperança não se encontram ulteriormente especificadas neste versículo, porque isso será feito ao longo de todo o poema; nesta estrofe inicial encontra-se a confiança incondicional em Deus.

O que é que o salmista teme? De quem ou de que coisa quer ser liberto? O v. 2 fala de «inimigos», e o v. 3 de «traidores»; a expressão «ficam decepcionados os

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traidores fracassados» poderá aludir ao vocabulário da aliança/pacto (Os 6,7; Ml 2,11; Sl 78,57), especificando o pecado de idolatria, porque os conceitos de inutilidade e de futilidade são normalmente alusões a deuses que, precisamente, não têm consistência por não existirem («têm boca e não falam… têm ouvidos e não ouvem… têm pés e não andam», Sl 115,4-7). Portanto: se o orante exprime toda a sua confiança em Deus, sabendo não ter posto em vão os seus sentimentos, deseja que os inimigos/traidores façam, por sua vez, a experiência do “nada”.

Vv. 4-7. Faze-me conhecer os teus caminhos. Abundam os termos relativos ao caminho, à estrada, às veredas, aos passos que se dão, tal como parece claro o convite dirigido a Deus (sob a forma de imperativos) para que seja luz e nos conduza. As veredas são, evidentemente, uma metáfora alusiva à conduta moral que o orante deseja aprender diretamente de Deus («Faze-me conhecer, Senhor, os teus caminhos, ensina-me as tuas estradas», v. 4). O tema dos “dois caminhos” (o do bem e o do mal) é típico da tradição sapiencial (Pr 9) e encontra-se também muitas vezes no Saltério: o assim chamado “portal” do Livro dos Salmos, ou seja, os Salmos 1 e 2, sugere a ideia de que quem seguir o caminho do Senhor, meditando na Lei e evitando as veredas do mal, terá uma vida rica e feliz; mas quem, pelo contrário, seguir o mal será dizimado como palha que o vento leva. Típica da tradição sapiencial é também a imagem escolástica do v. 5 («ensina-me»): na escola da sabedoria, o discípulo aprende a arte do caminho reto e, sobretudo, adquire o discernimento necessário para não seguir os maus caminhos e não se deixar convencer pelas suas propostas falaciosas (Pr 1,8-19; 2; 7).

Vv. 6-7. Com um quinto imperativo («lembra-te») o orante faz apelo direto à misericórdia divina e à bondade de Deus. Parece quase estranho que Deus deva ser obrigado a lembrar-se da oração do homem, ainda que se deva ter presente que tal convite é uma passagem típica das súplicas. A oração do escriba Esdras coloca-se, por exemplo, no continuum da história da salvação, e o fazer memória dos prodígios divinos (anamnese) prepara a invocação no “aqui e agora” (epiclese), antecipando a futura presença, esperada com confiança e abandono (Esd 9).

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Misericórdia (rahamim) e fidelidade (hésed): como já se explicou, o Senhor tem um seio materno e sabe amar com a mesma intensidade de uma mulher que ama o próprio filho. Essa Misericórdia caracteriza o agir divino no seu íntimo e é uma característica inscrita, por assim dizer, no seu DNA («é eterna», v. 6), tal como recita o Salmo 78, uma longa meditação sobre o pecado do povo e a indulgência divina: «Ele porém, compassivo, perdoava as iniquidades e não os destruía; muitas vezes aplacava sua ira e não demonstrava todo o seu furor. Pois se lembrava de que vocês eram apenas carne, um sopro que vai e não volta. Quantas vezes o provocaram no deserto e o irritaram na estepe!» (78,38-40).

Em nosso Salmo assiste-se a uma espécie de inversão de papéis: se é verdade que o mestre é sempre Deus, também o é que o orante sabe bem qual é o objeto do seu pedido, e isto o leva a “instruir” o Senhor de como Ele deve proceder: «Não leves em conta os pecados de minha mocidade» (Sl 25,7). O efeito desta inversão de papéis é a maior tomada de consciência do próprio pecado, que assume mais intensidade precisamente no confronto com a misericórdia divina.

O salmista, já ancião, conhece o seu estado de grave transgressão. O primeiro termo «pecado», em hebraico hatta’t, um vocábulo que, mais do que os outros, até mesmo pela sua maior generalidade, é o registo com que é indicado o «pecado» na Bíblia (aparece quinhentas e noventa e cinco vezes). Etimologicamente, sugere a ideia de faltar/falhar o objetivo (amartías em grego); no sentido metafórico, reenvia para a incompletude em atingir o objetivo moral e religioso. Quem comete hatta’t não segue a trajetória reta, mas desvia-se, afasta-se do objetivo: afasta-se os fundibulários benjaminitas eram hábeis em acertar com a funda num fio de cabelo sem errar (Jz 20,16), o pecador nem sequer lhe consegue tocar. O segundo termo com que o pecado é denominado é pesha e tem um vasto leque de significados: o profeta Amós, nos oráculos contra as nações, especifica a casuística do pecado, ligando a este substantivo os delitos políticos relacionados com alianças que desagradavam ao Senhor e a deportações em massa, a violência sobre os débeis, ao desprezo da lei de Deus profanando o templo e apropriando-se das ofertas a Ele destinadas e a práticas que causam impurezas. O termo pesha, de fato, diz respeito quer aos pecados sociais, quer ao pecado de infidelidade contra Deus.

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Vv. 8-11 B. O caminho da aliança. O coração do nosso Salmo está representado nos vv. 8-11 e 12-15 (B e B’). O tema do caminho e da aliança constitui o traço específico desta estrofe (cf. Sl 119). De forma repetida são descritas as qualidades que pertencem a Deus (bondade, retidão, amor, fidelidade), reiterando também o conceito de Deus como mestre (vv. 8-9) e o convite ao perdão já evocado na estrofe precedente (v. 11). Os alunos aos quais o Senhor dirige as suas lições são os pecadores e os pobres. A primeira palavra é hatta’t e dela já especificamos o sentido (“aquele que falha o objetivo”); a segunda palavra é ’anawim e indica, antes de tudo, os pobres do ponto de vista material (Pr 14,21; Am 2,7); a partir deste primeiro significado, o termo pretende indicar os que, conscientes da sua própria condição de pequenez e fragilidade, colocam a sua confiança unicamente em Deus (Sl 69,33; 149,4; Is 29,12; também Lc 6,20).

Agora torna-se mais claro o sentido do v. 2: o salmista coloca-se no caminho destes “humildes” que tudo esperam de Deus e que estão conscientes do seu estado de pecado («por teu nome, Senhor, perdoa a minha falta, por grande que ela seja», v. 11).

O tema da aliança é central para o salmista, porque ele sabe que a misericórdia divina está ligada ao respeito pela aliança. O termo berít tem uma primeira e imediata ligação ao pacto entre dois contraentes que “decidem” uma aliança (karat berít), ou seja, definem um acordo, dividindo em duas partes um animal: os dois passam pelo meio do animal, comprometendo-se reciprocamente a observar tudo o que foi contratado, fazendo votos de que a mesma sorte do animal recaia sobre quem infringir o pacto. Em Gn 15, encontra-se uma passagem muito importante, relativa a esta prática, pela qual Deus convida Abraão a dividir os animais em duas partes: mas é somente Deus quem passa pelo meio dos animais esquartejados, querendo significar a autoassunção do vínculo, porquanto ele é o único garante do respeito que esta aliança exige, comprometendo-Se na primeira pessoa (aliança unilateral). Fala-se, ao invés, de aliança bilateral em Ex 19-20: Israel terá uma relação especial com YHWH, mas deverá respeitar o Decálogo (é o sentido do nosso Salmo).

O orante, embora consciente do seu pecado, abre-se com a confiança dos “pequeninos” à Misericórdia divina esperando o perdão.

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Vv. 12-15 B’. O caminho da aliança. Volta novamente o tema do temor do Senhor e da aliança. A reflexão move-se nas coordenadas teológicas clássicas que ligam a fidelidade de Deus ao bem-estar (saúde e descendência): anteriormente expusemos o tema da retribuição, segundo a qual o fiel vê nos bens terrenos o sinal da bênção. Riqueza, prole e terra são, por isso, os dons divinos para quem observa a aliança, juntamente com o conhecimento do mistério de Deus e da proteção que Ele concede aos seus amigos (ser libertos da rede como um pássaro da gaiola: Sl 31,5; Pr 6,5; 7,3).

A frase «A intimidade do Senhor é para aqueles que o temem» (Sl 25,14) pode ser explicada lembrando a passagem maravilhosa de Gn 18; o sod, em hebraico, é o conselho/segredo que um amigo revela ao seu íntimo amigo (Pr 24,29); na narrativa de Sodoma e Gomorra, o Senhor avisa Abraão do seu propósito de destruir aquelas cidades: «O Senhor disse: “Esconderei de Abraão o que vou fazer, uma vez que ele será uma nação grande e poderosa, e nele serão abençoadas todas as nações da terra? Vou descer, para ver e conferir se já chegou ao extremo o clamor que subiu até mim contra eles”. Abraão tomou a iniciativa e perguntou: “Será que vais varrer o justo com o injusto?» (Gn 18,17-18.21.23). Inicia-se uma negociação amigável entre Deus e Abraão, segundo a qual Abraão obteria a salvação das cidades, caso nelas se tivessem encontrado pelo menos dez justos.

Podemos dizer o seguinte: o salmista declara que a aliança torna o Senhor tão íntimo do seu fiel, ao ponto de não querer lhe esconder nada.

Por fim, uma palavra sobre o tema da terra: é inegável que, na origem do termo, está uma alusão à terra de Canaã, a terra prometida (Dt 26,5-9; Js 24,2-13); mas, no decurso da reflexão teológica, este tema sofreu um processo de espiritualização, ao ponto de “terra” aludir a outro lugar não já estritamente localizado dentro dos confins de Israel. A terra significa não só a vida plena que o Senhor dá neste mundo (Pr 2,21-22), mas também uma vida para além da morte (Mt 5,5).

Vv. 16-19A’. «Volta-te para mim e tem piedade.» A oração chega à invocação direta de Deus e da sua piedade. A súplica do salmista quer chamar a atenção sobre a sua dupla condição miserável. Ele, de fato, está totalmente submerso no

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pecado (tal como aparece ao longo de todo o poema), está só e impotente perante os seus inimigos. Nos vv. 2 e 3 foram mencionados os inimigos e os traidores, mas aqui percebemos que eles são numerosos e empenhados na perpetuação do mal (v. 19). A expressão «com ódio violento» soa assim literalmente: eles “odeiam com ódio de violência”, uma repetição que provoca um efeito redundante ao entender os malvados como intrinsecamente maléficos.

Todavia, se observarmos bem, a mesma expressão mostra que a realidade mais angustiante para o salmista parece ser o pecado: se é verdade que o inimigo está no exterior, é igualmente verdade que assusta muito mais a condição de privação da graça de Deus: somente perante o próprio pecado o orante sente a angústia mais pavorosa (cf. Sl 51).

Vv. 20-21. Confiança, esperança e desilusão. Estes temas já apareceram no início (vv. 2 e 3). No fim do Salmo, emergem os estados de alma que abriram o poema, mas com uma diferença: agora, o ancião orante declarou abertamente a sua condição e pode com maior confiança abrir-se à misericórdia divina, esperando o perdão. Manifestar o próprio pecado, de fato, é a precondição para obter o perdão (Sl 51,5).

V. 22. Este versículo final é uma releitura da comunidade pós-exilada do Salmo. É significativo notar a extrema adaptação da oração sálmica: a comunidade acolhe o grito de um sofredor e sente-o como particularmente condizente com a sua própria condição. A perspetiva do indivíduo coloca-se num contexto de fé muito mais amplo em relação à condição inicial. Isto enriquece o Salmo porque lhe confere um impulso espiritual muito mais profundo e “eclesial”.

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Salmo 41

1 Do mestre de canto. Salmo. De Davi. 2 Feliz quem cuida do explorado:

O Senhor o colocará a salvo no dia da aflição.

3 O Senhor o protegerá e lhe preservará a vida,

a fim de que tenha felicidade na terra, e não o deixará aos caprichos dos inimigos.

4 O Senhor o sustentará no leito da enfermidade,

e lhe mudará a sorte na cama onde definha.

5 Eu disse: “Senhor, tem piedade de mim!

Cura minha alma, pois pequei contra ti!”

6 Meus inimigos blasfemaram contra mim:

“Quando é que ele vai morrer e perecer o nome dele?”

7 Quando algum deles vem me visitar, fala ao vento,

seu coração é um amontoado de iniquidades, e quando vai embora, é disso que fala.

8 Todos os que me detestam cochicham juntos contra mim.

Eles, contra mim, planejam o mal:

9 “Algo perverso o contagiou,

e agora, estendido na cama, não voltará a se levantar!”

1 0 Até o amigo, no qual eu mais confiava,

e que comia do meu pão, ergueu contra mim o calcanhar.

1 1 Mas tu, Senhor, tem piedade de mim!

Faze-me levantar, e lhes cobrarei o que me devem.

1 2 Então saberei que tens apreço por mim,

se sobre mim o inimigo não triunfar.

1 3 Quanto a mim, és tu quem me sustenta

na minha honestidade,

és tu quem me manterá para sempre diante da tua face.

1 4 Seja bendito o Senhor, o Deus de Israel,

desde agora e para sempre! Amém! Amém!

Neste Salmo domina o tom da súplica: um doente dirige-se ao Senhor para ser liberto da sua enfermidade, na sólida certeza de que a sua oração será atendida, porque o Senhor é piedoso. A indicação inicial da composição é muito genérica («Do mestre de canto. Salmo. De Davi»), e não o permite ligar a uma situação

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histórica específica.

Podemos subdividir o poema em quatro partes: hino sapiencial (vv. 2-4), lamento contra os inimigos (vv. 5-10), profissão de fé (vv. 11-13), releitura comunitária (v. 14).

Vv. 2-4. Hino sapiencial. «Feliz quem» é uma frase que caracteriza diversos Salmos (32,1-2; 84,6.13; 112,1; 127,5). Com esta bem-aventurança somos introduzidos no Saltério (Sl 1,1), apresentando a condição de quem se aproxima com confiança do Senhor: ele será feliz porque gozará de uma proteção especial do Senhor, que, não só não o abandonará, mas protegê-lo-á, sobretudo nos momentos mais difíceis. A “porta” de entrada no Saltério (ou seja, os Salmos 1 e 2) descreve na bem-aventurança a antífona que acompanha a leitura de todo o livro: nos acontecimentos alegres e tristes, ao longo da extensa lista das situações da vida que os diferentes poemas apresentam, esta bem-aventurança é reservada aos fiéis que amam a Deus e se fazem solidários com o próximo.

No Salmo 41, é a atitude da compaixão a ser elogiada: «Feliz quem cuida do explorado». A lógica do versículo é a seguinte: se alguém se aproxima de uma pessoa em dificuldades, de um pobre (o termo é usado para os pobres em sentido físico, cf. Am 2,7), de um fraco e/ou de um oprimido em geral, receberá o mesmo tratamento. Intitulamos esta primeira estrofe de “hino sapiencial”, porque está tecida com palavras dos mestres de Israel relativamente à caridade para com o próximo; se alguém sai em socorro de um irmão será, por seu lado, ajudado no momento de necessidade: «Quem tapa o ouvido ao clamor do fraco, também não terá resposta quando clamar» (Pr 21,13). Se observarmos bem a tradição sapiencial, apercebemo-nos de que esta caridade tem também outras motivações que superam a simples realidade egoísta do do ut des (eu dou para que me dês), porque o gesto em favor do oprimido está carregado de uma dimensão teológica: «Quem doa ao pobre, empresta ao Senhor, que lhe dará a recompensa» (Pr 19,17), e ainda: «Quem oprime o pobre, ofende a Deus, mas presta-lhe honra quem tem misericórdia do indigente» (Pr 14,31).

Os vv. 3-4 do Salmo 41 reproduzem, quase à letra, esta mesma lógica que leva a não separar o amor a Deus do amor ao próximo, tal como Jesus explicitará no seu ensinamento: Mt 22,36-40; Lc 10.

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Vv. 5-10. Lamento contra os inimigos. No pensamento bíblico encontra-se muito enraizada a lógica a que chamamos “retributiva”, segundo a qual a doença é sinal de pecado, e quanto mais crônica ela for, mais grave é a transgressão cometida. A relação delito-castigo encontra-se também nas palavras do orante, que invoca sobre si o perdão divino: reconhecendo, pois, a própria culpa, ele espera a sua cura.

Vv. 5-8. Uma afirmação semelhante encontra-se também na narrativa de Jó, que, sentindo-se pobre e doente com lepra, é convidado pelos seus amigos a reconhecer o seu pecado para obter a cura; deveria, de algum modo, “chegar a um acordo” para alcançar uma redução de pena. Elifaz – um dos três amigos de Jó que o visitam depois de o saberem doente – interpela-o com estas palavras: «Mas, por mim, eu procuraria a Deus, e poria minha causa sob seus cuidados. Ele faz coisas grandiosas e insondáveis, e maravilhas sem conta: é ele quem dá chuva para a terra, e irriga a superfície dos campos, para elevar os que estão embaixo, e fazer chegar aos aflitos a salvação. Ele frustra os planos dos espertos, para que as obras de suas mãos fracassem. Veja: feliz o homem a quem Deus corrige! Por isso, não despreze a lição do Todo-Poderoso. Pois é ele quem causa dor e cuida do ferimento, é ele quem fere e cura com sua própria mão» (Jó 5,8-12.17-18).

Jó não seguirá o conselho do amigo; o nosso salmista propõe, pelo contrário, este ato de arrependimento, porque não parece preocupado com o castigo divino, pois confia em Deus, mas teme a presença dos inimigos. Podemos quase imaginar a cena: uns supostos amigos (ou pelo menos uns conhecidos) vão visitar o doente e, em vez de lhe desejar o bem e as rápidas melhoras, desejam-lhe a morte. A falsidade de suas intenções torna particularmente desagradável a sua visita, até porque eles, ao saírem da casa do doente, desafogam a sua maledicência (vv. 6-8).

V. 9. O que justificará tanta falsidade? Por que tanto ódio? Este versículo cita uma das frases pronunciadas pelos falsos amigos: «Algo perverso o contagiou, e agora, estendido na cama, não voltará a se levantar». «Algo perverso» é literalmente uma “coisa de Beliar”. Beliar poderá também ser entendido como “algo que não serve para nada”, se bem que seja usado no rabinismo como uma

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palavra que sugere uma espécie de personificação de Beliar, um demônio do mal (cf. 2Cor 6,15: «Que acordo pode haver entre Cristo e Beliar? Ou, o que existe de comum entre aquele que crê e aquele que não crê?»). A aproximação entre doença e presença de um ser demoníaco encontra-se também já presente na narrativa de Jó em que Satanás é quem provoca toda a desgraça (Jó 1-2), tal como o demônio Asmodeu é causa da impossibilidade de Sara arranjar um marido (Tb 3,8.17). Tal comparação foi desejada pelo salmista para criar um efeito superlativo (obviamente negativo): a entidade da doença possui algo de sobre-humano, de insuportável, a sua gravidade não é comum, mas “extraordinária”, e portanto também o pecado que a causou tem algo de demoníaco.

O que justifica, portanto, a malevolência dos “amigos”? Não existe uma resposta para esta pergunta: permanece um mistério a satisfação gratuita ligada à desgraça alheia. Podemos somente pensar que, quando nos fechamos em lógicas teológicas punitivas (quando se considera a doença como uma punição do pecado), se culpabiliza duramente aquele que sofre.

V. 10. O hábito de visitar os doentes é conhecido na Bíblia (2Sm 13,5-6; 2Rs 8,29; Jó 2,11-13; 35,11; no Novo Testamento: Tg 5,14). E isto torna o conteúdo do v. 10 particularmente doloroso: «Até o amigo, no qual eu mais confiava, e que comia do meu pão, ergueu contra mim o calcanhar». Quando um amigo atraiçoa, há sempre um misto de surpresa e de desilusão (cf. Judas que traiu Jesus). Os gestos de intimidade (comer juntos) são evocados com particular angústia e lidos à luz da nova situação de solidão. O Livro dos Provérbios sentencia uma verdade um pouco incômoda, mas que ajuda a interpretar o nosso Salmo: «O pobre é detestado até por seu próprio companheiro, mas o rico é amado por muitos» (Pr 14,20), onde por «pobre» se pode entender o desafortunado, o doente. O orante estaria à espera de um pouco de apoio por parte do amigo, porque a verdadeira amizade se mede na desgraça (Pr 17,17; 27,10), e, pelo contrário, a sua inexplicável hostilidade torna ainda mais dolorosa a doença.

Vv. 11-13. Profissão de fé. O v. 11 refere o verbo da compaixão e da misericórdia (hanan, que já apareceu no v. 5). O salmista tem plena fé em Deus, por ter sido liberto dessa condição indigna. Estamos ainda na lógica retributiva, segundo a

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qual se invoca a justiça divina para que exista uma inversão da sorte do oprimido, lógica inspirada pelo desejo de verdade: se os falsos amigos duvidam da integridade daquele que sofre – porque, segundo a própria e limitada perspectiva, ele merece o mal –, o doente pede justiça e quer ser reconhecido oficialmente na sua nova condição de saúde física e moral. Às vezes omitem-se precipitadamente estes dados: a justiça pede um juízo, porque o risco de confundir o bem com o mal poderia induzir o oprimido a questionar a ideia de um Deus bom e retribuidor, além de inspirar nos malfeitores um sentimento de impunidade. Concretamente, o Salmo 41 não diz mais nada. Alargando a perspectiva, poder-se-ia dizer que um juízo é necessário, ainda que ele ultrapasse a percepção humana de justiça, de culpa, de castigo, de responsabilidade. O Salmo 41 permite-nos dizer que o juízo divino é misericordioso.

A libertação do mal é entendida como um ato de profundo amor para com o Senhor: o orante alegra-se com a sua presença, sentindo um gosto especial na recuperação da saúde («amparai-me», aqui há um qum, ou seja, um pôr-se de pé) e por poder caminhar novamente (pelos próprios pés e na fé).

V. 14. Releitura comunitária. Como já mencionamos, a experiência única e irrepetível do orante é acolhida no patrimônio de fé da comunidade e consignada à oração de todos. Neste versículo, a bênção dirigida ao Senhor e a menção de Israel fecham a composição, conferindo-lhe um tom positivo e doxológico. A palavra final «amém» tem, seguramente, a função de assinalar o fim do primeiro livro do Saltério (1-41), mas serve igualmente para enfatizar a fé em Deus, que atende a oração dos necessitados.

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Salmo 42

1 Do mestre de canto. Poema. Dos filhos de Coré. 2 Assim como o cervo suspira pelas águas correntes,

assim minha alma suspira por ti, ó Deus!

3 Minha alma tem sede de Deus, do Deus vivo:

quando terei a alegria de ver a face de Deus?

4 Minhas lágrimas são o meu pão, dia e noite,

e o dia todo me perguntam: “Onde está o seu Deus?”

5 Ao me lembrar dessas coisas,

minha alma se derrete em meu ser;

quando eu peregrinava, junto com todo o povo, e caminhava para a casa de Deus,

entre gritos alegres e louvores, em meio à multidão em festa.

6 Por que você está encurvada, ó minha alma,

gemendo dentro de mim?

Espere em Deus, e eu ainda o louvarei: “Meu Deus, salvação da minha face!”

7 Minha alma se curva dentro de mim,

e assim me lembro de ti,

desde a terra do Jordão e do Hermon, e do monte Menor.

8 Um abismo chama por outro abismo,

ao fragor das cascatas;

todas as tuas ondas passaram por cima de mim.

9 À luz do dia, o Senhor manda o seu amor,

e pela noite eu cantarei uma oração ao Deus da minha vida.

1 0 Digo a Deus, a ele que é o meu rochedo:

“Por que te esqueces de mim? Por que devo andar de cabeça baixa, sob a opressão do inimigo?

1 1 Enquanto quebram os meus ossos,

meus opressores me insultam,

perguntando ao meu redor o dia todo: “Onde está o seu Deus?”

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gemendo dentro de mim?

Espere em Deus, e eu ainda o louvarei: “Meu Deus, salvação da minha face!”

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Salmo 43

1 Julga-me, ó Deus, defende a minha causa

contra uma nação sem piedade!

Liberta-me do homem perverso e fraudulento,

2 porque tu és o meu Deus e o meu abrigo.

Por que me rejeitas?

Por que devo andar de cabeça baixa, sob a opressão do inimigo?

3 Envia tua luz e tua verdade:

elas me guiarão e me levarão

ao teu monte santo, ao teu santuário.

4 Irei até o altar de Deus,

ao Deus da minha alegria e júbilo.

Eu te celebrarei com a harpa, ó Deus, ó meu Deus!

5 Por que está encurvada, ó minha alma,

gemendo dentro de mim?

Espere em Deus, e eu ainda o louvarei: “Meu Deus, salvação da minha face!”

Estas duas composições eram originalmente um único Salmo. A estrutura evidencia a presença de um refrão que se repete identicamente três vezes: «Por que está encurvada, ó minha alma, gemendo dentro de mim? Espere em Deus, e eu ainda o louvarei: “Meu Deus, salvação da minha face!”» (v. 42,6.12; 43,5). Isto permite dividir o texto em três estrofes: 42,1-6: o passado; 42,7-12: o presente; 43,1-5: o futuro.

42,1-6. Nostalgia do passado. Um pensamento, uma imagem: o cervo! Na busca ansiosa pelo animal, o poeta projeta o seu estado de alma e descobre-se à procura inquieta de Deus. Este animal indica o desejo profundo (em Pr 5,19, a mulher é descrita como uma gazela amada) e a fecundidade (Gn 49,21), o amor juvenil e vivaz (o amado no Cântico dos Cânticos é apresentado como um filhote de cervo, 2,9.17; 8,14). A alma de quem ora ansiosamente a Deus, o homem com toda a sua néfesh (alma, respiração, ânsia, vida) lança-se na direção do rosto do Senhor.

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face de Deus?» (v. 3). Poder contemplar a face de Deus é um desejo que atravessa muitas páginas do Antigo Testamento (e também do Novo: cf. Jo 14,18-19); todo o Salmo 27 não é senão uma ladainha sobre a procura do rosto [de Deus]: «Meu coração medita em ti: “Procurem a minha face!” É a tua face, Senhor, que eu procuro. Não escondas de mim a tua face. Não afastes teu servo com ira, pois tu és o meu socorro! Não me abandones, nem me desampares, meu Deus e minha salvação!» (Sl 27,8-9).

E, no entanto, o homem não está ainda pronto para este encontro, até mesmo porque sabe que somente os retos de coração podem ter acesso a Ele («os homens retos contemplarão a sua face», Sl 11,7): por isso, difundiu-se a convicção de que quem vê a Deus não pode continuar com vida (Ex 33,20), embora alguns privilegiados tenham conseguido tal encontro (Dt 5,24).

O salmista encontra-se afastado da face de Deus: talvez esteja no exílio, e a recordação do tempo em que peregrinava até o Templo, participando nas procissões alegres e ricas de cânticos litúrgicos, torna este afastamento muito mais amargo (Sl 42,5); a expressão «vinde ver a face de Deus» é clássica e descreve a entrada solene do povo no Templo (Sl 11,7; 16,11; 17,15; Is 1,12). A minha alma consome-se: recorre ao verbo shafak, que significa dissolver, esvaziar, virar de pernas para o ar (Ex 4,9; Ez 22,31) e descreve o estado de desgaste interior do salmista (ele sente-se “cansado”, “desfeito”). As lágrimas como alimento («Minhas lágrimas são o meu pão, dia e noite», Sl 42,4) são uma metáfora da dor profunda e prolongada (Sl 80,6: «Tu o sustentas com pão de lágrimas, e lhe sacias a sede com lágrimas em abundância»; Sl 102,10: «Porque eu como cinza em lugar de pão, e com lágrimas misturo as minhas bebidas»).

É neste estado de prostração que o orante se levanta e faz uma pergunta teológica: «Onde está o seu Deus?» (Sl 42,4). Este grito blasfemo e sarcástico é pronunciado, provavelmente, pelos opressores (os babilônios) que interpretam a derrota de Israel e o exílio, conforme as concepções religiosas do antigo Oriente Médio, como uma forma de fraqueza da divindade. A pergunta do nosso Salmo torna ainda mais penosa a condição do orante e ocorre também noutras passagens bíblicas: «Por que diriam as nações: “Onde está o seu Deus?”» (Sl 79,10; ainda o Sl 115,2; Gl 2,17; Mq 7,10).

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A experiência mais emblemática do silêncio de Deus na Bíblia é certamente a de Jó, num mutismo que leva a duvidar da bondade divina: «Eu grito para ti, e tu não me respondes. Eu fico diante de ti, e tu não te importas comigo. Tu te transformaste em meu carrasco, e me atacas com a força de teu braço. Tu me levantas ao vento, sobre ele me fazes cavalgar e me dissolves no furacão. Pois eu sei que tu me devolves para a morte, para a morada do encontro de todos os seres vivos» (Jó 30,20-23). E, já chegado ao extremo da resistência, chega a suspirar: «Oxalá houvesse alguém para me ouvir! […] Que o Todo-poderoso me responda» (31,35). O silêncio de Deus, pois, apresenta-se mais lacerante do que as chagas corporais (Jó está doente com lepra).

No v. 6 surge pela primeira vez o refrão utilizado como antífona do Salmo. O orante, como se se desdobrasse, dirige-se à sua alma em conformidade com uma dupla atitude. A primeira é de interrogação («Porque está encurvada, minha alma, gemendo dentro de mim?»): a tristeza é expressa com um verbo que indica o estado de desconforto (como se estivesse num buraco profundo e escuro, Sl 57,7), de prostração no pó (Sl 44,26). A segunda atitude pede, pelo contrário, uma reabilitação da própria face, ou seja, da própria pessoa na presença de Deus e, por consequência, daqueles homens que riem dele («espere em Deus: ainda o louvarei, meu Salvador e meu Deus»; cf. Is 63,9). A prova de tal reabilitação foi dada pela possibilidade de continuar a louvar a Deus (ou seja, pela profissão pública da fé sem temer ser escarnecido e vilipendiado).

42,7-12. O presente amargo. O salmista conduz-nos pela sua “geografia” interior (o rio Jordão, o Hermon – o monte mais alto da terra prometida –, o monte Misar): a tristeza da condição presente (do exílio) torna ainda mais áspera a recordação do passado. Se na primeira estrofe Deus se apresenta como «água» que sacia, nesta segunda o mesmo elemento, sempre relativo a Deus, tem uma conotação mais negativa: é, de fato, Deus, com a sua força onipotente, que conduz o orante para longe da terra prometida. O elemento aquático é apresentado, por isso, de maneira ambivalente. As grandes águas e os rios têm ambos uma conotação mítica (Sl 74,14-15; 77,17.20; 107,23.26; Is 43,2-3), já que descrevem a supremacia de YHWH sobre o caos e sobre as águas primordiais (o abismo), como um significado histórico (Sl 144,7; Is 17,13; Jr 46,7-8; Ez 32,2.14),

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em referência aos inimigos de Israel, que Deus combate e vence (somente Yhwh pode salvar das águas abissais e letais do sheol, das profundezas, tal como surge também num texto do profeta Jonas: 2,2-6). Fora da metáfora: no nosso Salmo, é Deus quem provoca o exílio («Um abismo chama por outro abismo, ao fragor das cascatas; todas as tuas ondas passaram por cima de mim», Sl 42,8), e isto pode ser explicado historicamente pela vontade de punir Israel pelo seu pecado (in primis, a idolatria).

No entanto, no meio de tamanhos castigos e tormentos, aparece a misericórdia divina (hésed) como dom quotidiano que o Senhor oferece ao seu fiel («à luz do dia, o Senhor manda o seu amor», v. 9); somente graças a esta atitude amorosa de Deus é que a noite (aquela que vem depois do dia, mas também a da fé) se recolhe no canto e na oração (no v. 6, o orante tinha descoberto na possibilidade do louvor a prova do seu resgate). «Deus da vida» é um título divino que encontramos em Nm 27,16, na boca de Moisés, que guia o seu povo: analogamente, podemos aplicar este significado ao orante que anseia retomar o seu caminho pessoal e comunitário.

Deus-rochedo (v. 10) cria um forte contraste com Deus-água. Este título, que normalmente aparece num contexto bélico, lembra a solidez do Senhor, força maior da qual nos podemos valer para derrotar os próprios inimigos (2Sm 22,2; Sl 18,3; 31,4; 62,3.7; 92,16; 144,1). Ainda que em nosso Salmo a rocha esteja expressa com o termo sela‘, noutros contextos o mesmo conceito encontra-se utilizando a raiz ’mn, que evoca o conceito de firmeza e de estabilidade (cf. 1Sm 2,35; 2Sm 7,16; 2Cr 20,20; Is 7,9); daqui provém a ideia de fiabilidade (cf. Dt 7,9; Is 49,7) e de veracidade (cf. Gn 42,20; Sl 19,8; 93,5; Is 55,3), cuja referência imediata e fonte principal é Deus (cf. Gn 24, 27; 2Sm 2,6; Sl 71,22; 88,12; 89,2-3.6).

«Digo a Deus, a ele que é o meu rochedo: “Por que te esqueces de mim? Por que devo andar de cabeça baixa, sob a opressão do inimigo?» (v. 10). São as perguntas típicas da lamentação que esperam uma resposta por parte de Deus. A Ele, de fato, o orante atribui a responsabilidade da sua condição que no v. 11 está descrita como um verdadeiro massacre («quebram os meus ossos») por parte dos inimigos. Os ossos desfeitos (cf. Sl 51,10) remetem para a estrutura interior

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do homem fracassado, em nosso Salmo, através da acutilante pergunta teológica: «Onde está o seu Deus?». É outra forma de descrever a terrível situação de sofrimento psicológico em que ele se encontra. Com o v. 12 encerra-se a segunda estrofe da composição, reiterando o refrão pleno de esperança já encontrada no v. 6.

43,1-5. O futuro luminoso. Com uma linguagem típica do gênero forense, o orante pede justiça a Deus juiz, porque se sente falsamente acusado (Sl 7,9; 26,1; 35,24). A identikit dos malfeitores está desenhada recorrendo ao mais usual perfil criminal presente na Bíblia. Eles são impiedosos, literalmente «sem piedade» (hésed), faltando-lhes esta virtude que pertence principalmente a Deus. O adjetivo «perverso» transmite a ideia de quem cultiva a atitude do engano (como Jacó, que rouba a primogenitura a Esaú, Gn 27,35) e da mentira (Sl 24,4).

O v. 2 repete substancialmente o v. 10 do Salmo 42; aqui, discute-se a função de sublinhar o papel fundamental de Deus na resolução do conflito entre o orante e os seus inimigos. O orante chega a desejar as modalidades da intervenção divina (43,3): com a luz e a verdade, como se fossem as duas asas de Deus, ele gostaria de sair de Babilônia e poder chegar à montanha de Deus, que podemos encontrar no monte Sião, lugar em que ele habita (Is 2,1-5; 11,9; 66,20), idealização de Jerusalém (Sl 3,5; 15,1; 48,2; 99,9; 147), remetendo com mais certeza para a terra prometida.

O altar de Deus (43,4) é a meta final da viagem. Se a composição abrira com a lembrança nostálgica das procissões que se dirigiam ao Templo, agora encerra declarando a mesma imagem litúrgica. O que terá mudado no ânimo do orante no final do poema? Se no âmbito da recordação domina a nostalgia e o encorajamento, em outro âmbito mais profundo abre caminho à consciência da segura intervenção salvífica (de acordo com o tema geral – o crescimento na confiança – do segundo livro do Saltério). Esta torna menos amarga a condição de exilado, porque o Senhor habita no coração do orante, fazendo já sentir a sua presença (é uma presença na ausência).

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Salmo 51

1 Do mestre de canto. Salmo. De Davi. 2 Quando o profeta Natã foi encontrá-lo,

após ele achegar-se a Betsabeia.

3 Tem piedade de mim, ó Deus, conforme a tua misericórdia!

Por tua infinita compaixão, apaga a minha culpa!

4 Lava-me completamente da minha falta,

e purifica-me do meu pecado!

5 Porque reconheço as minhas transgressões,

e o meu pecado está sempre na minha frente.

6 Contra ti, somente contra ti, é que eu pequei,

eu fiz o que é mau aos teus olhos. Assim, tu és o justo ao falar, e sem reprovação no julgamento.

7 Eis que eu nasci na iniquidade,

e minha mãe me concebeu no pecado.

8 Sim, desejas a verdade no íntimo do ser,

e em segredo tu me fazes conhecer a sabedoria.

9 Purifica-me com hissope, e ficarei puro.

Lava-me, e ficarei mais branco do que a neve.

1 0 Faze-me ouvir o júbilo e a alegria,

e que se alegrem os ossos que trituraste.

1 1 Oculta a tua face dos meus pecados,

apaga todas as minhas iniquidades.

1 2 Ó Deus, cria em mim um coração puro,

confirma em meu interior um espírito novo.

1 3 Não me afastes para longe do teu rosto,

não retires de mim teu santo espírito.

1 4 Devolve-me o júbilo da tua salvação,

e um espírito generoso me mantenha firme.

1 5 Ensinarei os teus caminhos aos culpados

e para ti se voltarão os pecadores.

1 6 Livra-me do sangue, ó Deus,

ó Deus meu salvador,

e minha língua celebrará a tua justiça.

1 7 Abre-me os lábios, Senhor,

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1 8 Pois não queres nenhum sacrifício,

e se te oferto um holocausto, não o aceitas.

1 9 Sacrifícios para Deus são espíritos alquebrados.

Corações alquebrados e abatidos, ó Deus, tu não os desprezas.

2 0 Faze o bem a Sião, por tua bondade;

reconstrói as muralhas de Jerusalém.

2 1 Então sentirás prazer nos sacrifícios de justiça,

nos holocaustos e ofertas totais.

E assim se ofertarão novilhos em teu altar.

Vv. 1-2. O pecado com Betsabeia. O título do v. 1 faz-nos lembrar o pecado de impureza cometido pelo rei Davi. Em 2Sm 12,1-14 narra-se o que o breve título do Salmo faz lembrar: Davi comete adultério com a mulher de Urias e, quando é denunciado pelo profeta Natã, entoa o pedido de perdão pelo seu grande delito. Esta foi desde sempre a linha de interpretação na tradição litúrgica, que o colocou sempre – designando-o, não por acaso, Miserere – nos sete salmos penitenciais (6; 32; 38; 102; 130; 143).

Vv. 3-11. Confissão da culpa e pedido de perdão pelo pecado. Representa o coração do poema, porque descreve o estado de alma do penitente que, reconhecendo as suas transgressões, invoca a misericórdia divina.

Vv. 3-4. O pedido de purificação. O pecado é mencionado com três nomes diferentes. É importante notar que os três termos são muitas vezes aproximados para exprimir a totalidade das transgressões. Em Lv 16, a liturgia da grande expiação, chamada Yom Kippur, por exemplo, o santuário ficou impuro por causa dos pecados (hatta’im) e das revoltas (pesha’im) de Israel e das culpas (‘awon). No que se refere aos primeiros dois termos (pesha‘ e hatta’t), já tivemos oportunidade de os explicar na leitura dos outros Salmos. O termo pesha’ evoca um vasto leque de significados e parece referir-se à ruptura da harmonia jurídica no confronto contra alguém (Deus e o próximo) ou contra a comunidade, harmonia essa que deveria ser recuperada através de um processo, a menos que quem pudesse fazer valer o próprio direito desistisse da ação jurídica, concedendo o perdão. A tradição profética (cf. Am 1-2) inclui os desvios políticos, o abuso em desfavor dos pobres, a idolatria e a profanação do templo. Pesha’

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aparece também em 1Rs 8,50, onde Salomão dirige uma oração a YHWH diante do povo e do altar: nesta oração pública de perdão, especifica-se que os pecados de Israel, pelos quais se pede perdão, são transgressões contra YHWH. Tal acepção de pesha’ pode também ser encontrada em Jr 5, onde se condena o pecado de Israel, que consiste em ter abandonado as suas relações com Deus e ter-se entregado à idolatria e ao adultério (Jr 5,6-8). O vocábulo remete para as revoltas sociais e religiosas, que mancham o povo e por causa das quais é necessária uma purificação. O outro nome do pecado é hatta’at que, devido à sua generalidade, é o termo mais presente no Antigo Testamento (aparece quinhentas e noventa e cinco vezes). Como já indicamos ao comentar o Salmo 25, remete para a ideia de fracasso do alvo moral e religioso. O pecador é aquele que não segue a parábola justa e se afasta do alvo (cf. Jz 20,16).

O terceiro vocábulo ligado ao pecado é ‘awón, utilizado para indicar os pecados contra Deus (Ex 20,5; Dt 5,9; Is 1,4; 27,9; Jr 11,10) e os que se cometem contra os homens; estes últimos encontram-se ligados principalmente a práticas rituais infringidas devido a comportamentos sexuais (1Sm 3,14; 2Sm 3,8). Em Ez 18,30, por exemplo, o convite à conversão tem como objetivo libertar Israel das revoltas que são uma verdadeira “ratoeira do mal” (mikshol ‘awón), revoltas essas que nos versículos precedentes se encontram descritas como a conduta da qual nos devemos afastar: o ímpio «mesmo que o pai não faça nada disso; mas ele come sobre os montes; desonra a mulher do próximo; explora o pobre e o indigente; rouba e não devolve o penhor; adora ídolos imundos e comete abominação; empresta com usura e cobra juros, é claro que não permanecerá vivo por ter praticado todas essas abominações: ele certamente morrerá e será responsável por seus próprios crimes» (Ez 18,11-13).

No Salmo pede-se que estes três pecados sejam, respectivamente, apagados (mahah), lavados (kabas) e purificados (tahar). O primeiro verbo encontra-se ligado ao mundo judiciário e comercial (Ex 32,32- 33; Nm 5,23): cancelar uma escritura, um documento (Ex 17,14; Dt 9,14). O conceito de pecado é visto como uma dívida da qual existe um documento que o comprova. O ambiente das lavandarias é, porém, o contexto de kabas: lavam-se as roupas e os objetos, sendo também assim que se devem purificar os pecados; a passagem para a

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esfera sagrada nasce com aquela sensibilidade própria da tradição sacerdotal que, através destas práticas, procura a pureza ritual e a santidade que nos permite aproximar da esfera do divino (Ex 19,10.14; Lv 6,20-21; 11,25.28.40). O terceiro verbo (tahar) evoca a ideia do esplendor (vizinha da raiz árabe e aramaica zhr: brilhar). O pecado ofusca, obscurece e por isso a realidade ou a situação que perdeu a sua luminosidade (o parto: Lv 12,7; a lepra: Lv 13; 14; 22,4; os fluidos sexuais: Lv 15; 22,4; Dt 23,11; o contato com os cadáveres: Lv 21, 1-4; Nm 6,6-9) deve voltar ao seu esplendor natural. O orante invoca, por isso, o pleno perdão divino, recordando o amplo leque de pecado e fazendo apelo ao amor misericordioso de Deus (hanan significa ter piedade, ter misericórdia, fazer graça a alguém), a sua hésed, ou seja, da sua fidelidade amorosa.

Vv. 5-8. A confissão do pecado. Após o pedido de perdão, o primeiro ato do penitente é reconhecer o seu pecado. Tomar consciência da própria condição sem a esconder exprime a atitude de quem se dispõe à reconciliação (Sl 32,5; 38,19). Pelo contrário, quem oculta a culpa, não somente não possui consciência psicológica de si, mas tem uma ideia parcial de Deus, que é percebido com temor. No v. 5 não só não está escondido, mas diz-se também que o pesha‘ está quase obsessivamente presente na vida do orante. O pecado cometido contra os homens (segundo o título do salmo seria o pecado de adultério) é, em última instância, uma culpa contra Deus (v. 6); por isso, Davi, depois do homicídio de Urias e do adultério com a mulher deste, diz: «Pequei contra o Senhor» (2Sm 12,13). A justiça de Deus deve ser entendida como inocência: a má ação lesou a parte inocente da relação, a quem agora se pede perdão, embora sabendo que tal parceiro poderia punir a ofensa emitindo uma sentença de condenação (Ez 28,22; Eclo 36,4).

O v. 7 repete a profissão, por parte do orante, do seu estado de pecado. Ele está radicalmente esmagado por esta realidade negativa desde que foi concebido. Tal convicção enraíza-se na Bíblia, onde se declara a trágica condição humana a partir da narrativa de Gn 3: o homem não pode aparecer perante Deus porque essencialmente é injusto (Sl 143,2), porque desde a juventude o seu coração está inclinado para o mal (Gn 8,21). O verbo raro yhm exprime o estado de calor dos animais, como em Gn 30,38.41; poder-se-ia pensar que tal instinto está ligado ao

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momento da cópula, ato em si pecaminoso, que fere o início da nova vida. Ao longo da história da interpretação, com efeito, este versículo foi interpretado como prova de impureza da união sexual até mesmo no matrimônio. Ao que parece, o texto não pretende dizer tal coisa, mas intensifica a perspectiva do penitente, que adverte uma arcaica e conatural propensão para o pecado.

A sinceridade (’emet) manifestada pelo orante é motivo para proceder a uma substituição: se é verdade que alberga no coração humano a inclinação para o mal, é também verdade que Deus lhe pode doar sapiência para o orientar numa nova existência (v. 8). O ensinamento da sapiência comporta não uma substituição passiva (um simples “transplante” de coração), mas uma dimensão dinâmica, porque esta se liga à vida, atravessando-lhe as fases. Deus é apresentado como um mestre sábio que educa o discípulo disposto ao seu ensinamento, tal como se lê em Is 54,13: «Seus filhos todos serão discípulos de Senhor. Será grande a paz de seus filhos».

Vv. 9-11. Invocação de purificação. Há uma evocação direta entre estes versículos e os vv. 3-4 (são usados os mesmos verbos). O hissope é um parente do orégano, uma planta aromática, conhecida pelas propriedades esterilizantes; servia de aspersório nos casos de lepra (Lv 14,4.6) e nos sacrifícios expiatórios (Nm 19,6.18); encontramo-lo mesmo como referência à aliança do Sinai (Ex 24,8). O valor do hissope e a sua função propiciadora atesta-se também no rito do cordeiro pascal, em que se aspergem os batentes das portas dos hebreus com o sangue (Ex 12,22). Outro elemento que lembra a catarse é a neve, cuja citação mais direta está em Is 1,18: «Então venham e discutiremos – diz o Senhor. Ainda que seus pecados sejam vermelhos como púrpura, ficarão brancos como a neve; ainda que sejam vermelhos como escarlate, ficarão como a lã». O sentido do v. 9 é claro: somos depurados da opacidade e da sujeira do pecado, tornando-nos cândidos como a neve (elemento raro na terra de Israel e, por isso, ainda mais belo para olhar: cf. Eclo 43,18).

A ligação clássica pecado-castigo explica o estado de bem-estar descrito no v. 10: se o pecado provoca aflição, mesmo física, quando a pessoa é perdoada, é lógico que experimente a alegria e a saúde em todas as dimensões. Os ossos indicam a parte mais interna da estrutura física (Jó 7,15) que participa no

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despertar pleno da vida que floresce (usa-se o verbo «ouvir» para mostrar a percepção do novo estado de alma), semelhante ao que se lê em Is 66,14: «Ao verem isso, vocês ficarão de coração alegre, e seus ossos florescerão como um campo. A mão do Senhor se manifestará para seus servos, mas sua cólera a seus inimigos».

Se o pecado faz do homem um esqueleto, o perdão enche-lhe as carnes (cf. Ez 37). Por isso, reitera-se o pedido de misericórdia que percorre esta primeira parte do Salmo, pedindo a Deus, depois de ter considerado as suas mazelas, que não as leve em consideração (v. 11).

Vv. 12-21. Súplica de uma nova relação com Deus. Depois de ter reconhecido o amplo leque dos seus pecados e de ter professado a sua radical pecaminosidade, surge o pedido de uma nova relação com Deus, não já marcada pela debilidade, mas pela força que deriva da nova condição de penitente.

Vv. 12-14. Coração e espírito. O imperativo inicial assinala uma mudança no Salmo. O verbo criar (bara’) só pertence a Deus (Gn 1,1), porque Ele é o único a dar vida às coisas a partir do nada (Sl 104,30; 148,5). A recriação do homem novo envolve o coração (lev), isto é, o seu centro intelectual-volitivo, mas também o seu sopro (ruah) vital (Gn 2,7). O coração e o espírito evocam a nova aliança de Jr 31,33 na qual Deus estabelecerá um pacto novo, não sobre tábuas de pedra, mas no íntimo da alma humana. Juntamente com o coração puro, é pedido um espírito que seja forte (nakón), isto é, firme, decidido: não já entregue à inclinação para o mal (como se fosse quase um espírito de “invertebrado”), mas constante e robusto. Paralelamente a esta caracterização, no v. 14 encontra-se outra: espírito generoso, isto é, disponível, obediente. Os imperativos, como «devolve-me» e «me mantenha firme», exprimem a ideia de que as qualidades de tal espírito, a nova arquitetura, a nova estrutura portante do penitente, se explicam num percurso que leva à plena renovação: como para o ensinamento da sapiência do v. 8, é o início de uma nova condição.

No v. 13 há ainda outro espírito, o de Deus. Aí é definido como “santo” (qadósh), porque somente Deus é o Santo em absoluto (Is 6,3), ao passo que o homem apenas o pode ser se conformar a sua vida com a santidade divina, livrando-se das impurezas (Ex 19,6; Is 62,12; 63,18; Jr 2,3). Não ser admitido à

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