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Baianas do acarajé: uma história de resistência

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Academic year: 2021

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ofício das baianas do acarajé é patrimô-nio cultural do Brasil. Quando anunciado, equívocos em torno do “tombamento do acarajé” e outros mal-entendidos esconderam a valorização de uma profissão feminina historica-mente presente no País: as baianas de tabuleiro. O orgulho por esse reconhecimento podia ser visto nos rostos das mulheres negras de novas e antigas gerações presentes durante a cerimô-nia de diplomação de seu ofício, que aconteceu no dia 15 de agosto de 2005, na sede do Institu-to do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), em Salvador.

Carolina Cantarino

Baianas

do acarajé:

uma história

de resistência

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Baiana. Fonte: O Rio antigo do fotógrafo Marc Ferrez 3ª edição, 1989 Editora Ex Libris Ltda

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Durante o evento, as baianas do acarajé usaram suas roupas tradicionais, cuja peça mais característica é a grande saia rodada, comple-mentada por outros adereços como os chamados panos da costa, o turbante na cabeça, a bata e os colares com as cores dos seus orixás pessoais. Nas ruas de Salvador, de outras cidades do es-tado da Bahia e, mais raramente, em outras regi-ões do País, as baianas tradicionais encontram-se sempre acompanhadas por seus tabuleiros que contêm não só o acarajé e seus possíveis com-plementos, como o vatapá e o camarão seco, mas também outras “comidas de santo”: abará, lelê, queijada, passarinha, bolo de estudante, cocada branca e preta. Os tabuleiros de muitas baianas soteropolitanas se sofisticaram: revestidos por paredes de vidro, muitas vezes contêm caras pa-nelas de alumínio junto às colheres de pau.

O acarajé, o principal atrativo no tabuleiro, é um bolinho característico do candomblé. Aca-rajé é uma palavra composta da língua iorubá: “acará” (bola de fogo) e “jé” (comer), ou seja, “comer bola de fogo”. Sua origem é explicada por um mito sobre a relação de Xangô com suas esposas, Oxum e Iansã. O bolinho se tornou, as-sim, uma oferenda a esses orixás.

Mesmo ao ser vendido num contexto pro-fano, o acarajé ainda é considerado, pelas baia-nas, como uma comida sagrada. Para elas, o bo-linho de feijão-fradinho frito no azeite de dendê não pode ser dissociado do candomblé. Por isso, a sua receita, embora não seja secreta, não pode ser modificada e deve ser preparada apenas pe-los filhos-de-santo.

“Pode parecer que estamos dando im-portância maior ao acarajé do que ao ofício das baianas do acarajé, mas este fato tem um sentido: neste complexo cultural, o acarajé é o elemento central. O ofício não teria a importância que tem

se o acarajé fosse apenas um dos alimentos tra-dicionais”, afirma Roque Laraia, antropólogo da Universidade de Brasília e membro do Conselho Consultivo do Iphan, em seu parecer sobre a pro-posta de registro do ofício das baianas do acarajé. O inventário que instruiu o processo de registro foi realizado pelo Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular.

Raul Lody e Elizabeth de Castro Mendon-ça foram os antropólogos que realizaram a pes-quisa que consistiu na realização de entrevistas; levantamento bibliográfico; registros audiovisu-ais e, dentre outras coisas, visitas a pontos ca-racterísticos de baianas do acarajé na cidade de Salvador, tais como: Bonfim, Pelourinho, Barra, Ondina, Rio Vermelho e Piatã. Brotas também foi um dos bairros visitados devido à presença de um “baiano de tabuleiro”, evangélico.

As baianas sofrem, cada vez mais, com a concorrência da venda do acarajé em bares, su-permercados e restaurantes, que divulgam o bo-linho como fast-food. Essa apropriação do acarajé contraria o seu universo cultural original e a sua

Mesmo ao ser vendido

num contexto profano,

o acarajé ainda é

considerado, pelas

baianas, como uma

comida sagrada. Para

elas, o bolinho de

feijão-fradinho frito no azeite

de dendê não pode ser

dissociado do candomblé.

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venda como “bolinho de Jesus” pelos adeptos de religiões evangélicas – que postam Bíblias em seus tabuleiros – têm causado polêmica.

“Se você tem uma religião que é contrária ao candomblé, por que vender acarajé e não qual-quer outro quitute?” indaga Dona Dica diante do seu tabuleiro no Largo Quincas Berro D’Água, no Pelourinho, ressaltando que o acarajé, para a maioria das baianas de tabuleiro, filhas-de-san-to, é indissociável do candomblé. Essa indistin-ção não deixa de ser, também, uma estratégia de diferenciação de seus produtos, num contexto de concorrência cada mais acirrada que é Salvador, uma cidade que atrai muitos turistas por ser

con-siderada como o locus de africanismos no Brasil, a partir dos quais uma inegável comercialização da cultura negra tem se constituído.

Mas se para essas baianas as mudanças em relação ao aspecto religioso são inaceitáveis, ou-tras transformações são bem-vindas. “No passa-do era muito ruim porque a gente tinha que des-cascar o feijão e quebrá-lo na pedra. Hoje em dia não se tem esse sofrimento porque as meninas usam o moinho elétrico ou mesmo o liqüidifica-dor”. Essa é a opinião de Arlinda Pinto Nery, que trabalhou com seu tabuleiro durante mais de 50 anos e aprendeu o ofício com sua mãe.

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Dona Arlinda faz parte da Associação das Baianas de Acarajé e Mingau do estado da Bahia que existe há 1 anos e conta com dois mil asso-ciados entre baianas e baianos do acarajé e ven-dedores de outros tipos de comida como min-gau, pamonha e cuscuz. O trabalho da associação é voltado para a profissionalização da atividade, que já conta com um selo de qualidade: por meio de parcerias com o Sebrae e o Senac, os associa-dos têm acesso a cursos sobre manipulação de alimentos, normas de higiene e sobre finanças, para que possam administrar melhor os seus ga-nhos.

As mulheres de tabuleiro de ontem e

de hoje

A comercialização do acarajé tem início ainda no período da escravidão com as chama-das escravas de ganho que trabalhavam nas ruas para as suas senhoras (geralmente pequenas pro-prietárias empobrecidas), desempenhando di-versas atividades, entre elas, a venda de quitutes nos seus tabuleiros. Ainda na costa ocidental da África, as mulheres já praticavam um comércio ambulante de produtos comestíveis, o que lhes conferia autonomia em relação aos homens e muitas vezes o papel de provedoras de suas fa-mílias.

O comércio de rua nas cidades brasileiras permitiu às mulheres escravas ir além da pres-tação de serviços aos seus senhores: elas garan-tiam, muitas vezes, o sustento de suas próprias famílias, foram importantes para a constituição de laços comunitários entre os escravos urbanos e também para a criação das irmandades religio-sas e do candomblé. Muitas filhas-de-santo co-meçaram a vender acarajé para poder cumprir com suas obrigações religiosas que precisavam ser renovadas periodicamente.

Devido a essa liberdade de movimento é que as escravas de tabuleiro eram vistas como elementos perigosos, tornando-se, por isso, alvos de posturas e leis repressivas.

A venda do acarajé permaneceu como uma atividade econômica relevante para muitas mu-lheres mesmo com o fim da escravidão. Hoje em dia, atrás das baianas existem famílias inteiras dependendo dos seus tabuleiros: 70% das mu-lheres pertencentes à Associação das Baianas de Acarajé e Mingau do estado da Bahia são chefes de família. A rotina dessas mulheres é caracteri-zada pela compra dos ingredientes necessários para o preparo do acarajé, um trabalho diário e árduo: precisam levantar cedo, ir à feira, buscar produtos de qualidade a preços acessíveis. O pre-ço do camarão e do azeite-de-dendê são os que mais variam. Muitas ainda enfrentam problemas para adquirir tabuleiros novos ou mesmo para guardá-los, deixando-os, muitas vezes, na praia.

“Às vezes nos sentimos órfãs porque tra-balhamos sozinhas com nosso tabuleiro, de sol a sol, expostas ao frio, ao calor e mesmo à violência. Mas somos mulheres negras e perseverantes: se não vendemos hoje, venderemos amanhã. Somos um símbolo de resistência desde a escravidão”, lembra Maria Lêda Marques, presidente da As-sociação que, juntamente com o terreiro Ilê Axé Opô Afonjá e o Centro de Estudos Afro-Orientais da Universidade Federal da Bahia, fizeram o pe-dido de registro junto ao Iphan.

Carolina Cantarino

Antropóloga e pesquisadora do Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo (Labjor) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).

Artigo originariamente publicado na Patrimônio – Revista Eletrônica do Iphan (ISSN: 1809-3965).

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