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O IMPÉRIO LUSO-BRASILEIRO EM PERSPECTIVA: IMPRESSOS E CENSURA NAS PRIMEIRAS DÉCADAS DO SÉCULO XIX

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O IMPÉRIO LUSO-BRASILEIRO EM PERSPECTIVA: IMPRESSOS E CENSURA NAS PRIMEIRAS DÉCADAS DO SÉCULO XIX

Maíra Moraes dos Santos Villares Vianna Universidade do Estado do Rio de Janeiro maira.villares@hotmail.com

Introdução

O presente trabalho irá explorar a censura no Império luso-brasileiro por meio de uma abordagem comparada entre Brasil e Portugal, tendo como enfoque as requisições de licenças para a leitura e posse de obras proibidas, em ambas as localidades durante o período de 1808 a 1821, relacionando tais licenças à formação educacional e profissional de homens letrados. Para isso, serão exploradas também as semelhanças e diferenças em relação ao processo censório em ambos os territórios, como a finalidade de compreender o funcionamento da censura nos dois locais.

A censura se manifestou de forma distinta no Império luso-brasileiro. As diferenças em relação ao processo censório no Brasil e Portugal são grandes, uma vez que o Brasil enquanto colônia não tinha a permissão para imprimir dentro do território. A ausência de uma casa impressora não significou a inexistência de livros no território, mas é possível supor que foi um fator significativo para que não existisse nenhum tribunal responsável pela censura instalado no território. Havia, no entanto, a fiscalização dos impressos que saíam de Portugal com destino as demais localidades do Império, como o Brasil. É possível destacar ainda a questão cultural associada às barreiras educacionais no território brasileiro, como aponta Guilherme Pereira das Neves:

Até 1808, o Brasil sujeitou-se às normas e procedimentos de uma política de controle da produção e circulação de ideias cujo objetivo era vincular a vida cultura da colônia àquela da metrópole e assegurar uma grande homogeneidade da elite cultural nos dois lados do Atlântico. Daí a proibição de prelos e de cursos superiores na América Portuguesa até a chegada de D. João ao Brasil. (2000, p.112-113)

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O fragmento anterior permite identificar práticas que visam o controle sobre a formação educacional da elite letrada sendo, inclusive, a Universidade de Coimbra a principal instituição formadora. Além do controle sobre a instalação de Universidades e Tipografias, a censura foi uma ferramenta utilizada para controlar a circulação dos impressos. A seguir será apresentado o funcionamento do aparelho censório tanto no Brasil quanto em Portugal.

Portugal passou por algumas reformas no seu processo censório ao longo dos séculos1

que reformularam os aparelhos censórios e criaram normas e editais que regularam a censura com a finalidade de combater ideias sediciosas no âmbito político, moral e religioso. D. João, durante o período regencial, realizou a última reforma, em 1794: colocou fim na Comissão Geral para o Exame e a Censura de Livros, criada por d. Maria I e restabeleceu a censura tríplice, ou seja, a censura retornou para a alçada dos antigos tribunais, sendo eles a Inquisição, a Mesa do Desembargo do Paço e o Ordinário. Os tribunais eram independentes entre si e a cada um deles cabia um papel. O Ordinário e Inquisição ficam a cargo da fiscalização de obras de teor religioso enquanto ao Desembargo do Paço cabia o aspecto político. Dentro dos procedimentos censórios cabia aos censores o papel analisar as listas de livros encaminhadas pelos solicitantes. Tais homens realizavam um papel fundamental dentro do mecanismo censório, pois analisavam os pedidos encaminhados para impressão, circulação, leitura e posse de obras. Dentre elas, algumas proibidas.

No Brasil, a censura é materializada junto à instalação da Impressão Régia2, em 1808.

Criada com a finalidade de dar publicidade aos documentos oficiais do governo, possibilitou ainda a impressão de obras de assuntos variados, não se restringindo apenas aos fins

1 O intuito do trabalho não é apresentar as reformas censórias em Portugal ao longo dos séculos, mas compreender como a censura estava estruturada no período de 1808 a 1821. Para mais informações sobre a censura portuguesa anterior ao período estudado ver: MARTINS, Maria Teresa Esteves Payan. A censura

Literária em Portugal nos séculos XVII e XVIII. Coimbra: Fundação Calouste Gulbenkian – Fundação para a

Ciência e Tecnologia e Ministério da Ciência e do Ensino Superior, 2005.

2 Para maiores informações sobre a Impressão Régia no Brasil, ver: GARCIA, Lucia Maria Cruz e NEVES, Lucia Bastos Pereira das. Impressão Régia. In: VAINFAS, Ronaldo & NEVES, Lucia Bastos Pereira das. (Orgs.). Dicionário do Brasil Joanino (1808-1821). Rio de Janeiro: Objetiva, 2008, CAMARGO, Ana Maria de Almeida & MORAES, Rubens Borba de. Bibliografia da Impressão Régia do Rio de Janeiro. São Paulo: Edusp/Kosmos, 1993. 2 v.

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administrativos e burocráticos da corte. Acerca disso, Lúcia M. Bastos Pereira das Neves e Lúcia Garcia (2008, p. 219) destacam que foi implementada uma junta administrativa composta pelos deputados: José Bernardo de Castro, oficial da Secretaria de Estado dos Negócios Estrangeiros e da Guerra, Mariano José Pereira da Fonseca, deputado da Mesa de Inspeção do Rio de Janeiro e José da Silva Lisboa, deputado da Mesa de Inspeção da Bahia. À junta coube também o exame dos papéis e livros que seriam publicados pela tipografia com a finalidade de combater conteúdos que não condiziam com os preceitos religiosos, morais e políticos vigentes. A atividade fiscalizadora foi breve, pois em setembro de 1808 a função censória foi transferida para a Mesa do Desembargo do Paço e os primeiros censores

régios3 foram nomeados.

Em ambas as localidades a censura prévia manteve-se até o ano de 1821 e pode ser analisada como decorrência da Revolução Liberal Vintista, que impactou politicamente e culturalmente o Império luso-brasileiro, repercutindo em ideias que visavam os “primeiros arroubos da liberdade de Imprensa”, segundo Lúcia M. Bastos Pereira das Neves (2008, p.217).

A leitura e posse de livros proibidos

A censura era um mecanismo utilizado com o intuito de impedir a leitura de obras consideradas sediciosas, ou seja, que pudessem influenciar e gerar pensamentos contra os valores defendidos pela coroa e Igreja. Entretanto, a sociedade da época era caracterizada por práticas políticas e culturais da sociedade do Antigo Regime, demarcada por sua estrutura hierarquizada e hierarquizante, logo, os indivíduos era desiguais e deviam deter conhecimentos distintos. Assim, o acesso à leitura de obras proibidas era uma concessão do

3 Para saber mais sobre a atuação dos censores na Mesa do Desembargo do Paço no Rio de Janeiro, ver: VIANNA, Maíra Moraes dos Santos Villares. “Os embates nos bastidores da censura: disputas por prestígio e poder.” In: Censores em cena: atores dentro da Mesa do Desembargo do Paço na Corte Joanina. Dissertação (Mestrado em História) – Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2019.

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monarca a apenas uma pequena parcela de seus súditos, como é possível observar no Alvará de 1795 sobre a lei da censura:

36. Para precaver as funestas consequências da facilidade que pode haver na concessão destas Licenças, e dos abusos, que delas costumam fazer os que indevidamente as conseguem, recomendo muito, e mando à Mesa do Desembargo do Paço, e aos Ordinários, e Inquisidores dos meus reinos, e senhorios, que nesta parte se hajam com toda a circunspeção, e prudência, e precedam sempre as necessárias cautelas; tirando primeiro informações exatas da instrução, e piedade das pessoas, que as ditas licenças pedirem; e não as facultando senão àquelas, de quem certo souberem que são doutas e firmes, nos princípios da religião, e da moral, e sabedoria civil; e que da lição dos livros defesos lhes não virá dar no, antes proveito, e argumento da Fé, e de virtudes. (SILVA, 1828, p.233)

Aqueles que obtinham a licença para a posse e leitura de obras proibidas eram homens que pertenciam a uma pequena elite e pressupunha-se que detinham a formação e conhecimentos necessário para a leitura de autores que eram rotulados como perigosos. Cláudio Denipoti e Thaís Nívea de Lima e Fonseca (2011, p.145) destacam que “o privilégio – característica fundamental da organização do Antigo Regime – é a chave necessária para a compreensão dos pedidos.” (apud DARNTON, 2010, p.23). A concessão de licenças criou, segundo os autores, espaço para que fossem solicitadas, apesar de nem sempre serem concedidas. Assim, os autores destacam que quando os solicitantes requeriam uma licença, ressaltavam a posição social que detinham dentro da sociedade, além de atrelarem à leitura da obra aspectos relacionados à formação e à instrução (2011, p.145).

Compartilhando da ideia anterior, Luiz Carlos Villalta demonstra que o acesso a obras proibidas configurava uma mercê e privilégio concedidos a poucos indivíduos, conforme o alvará de 1795, o qual determinou os mecanismos de concessão se pautando nas práticas consideradas para o bem da religião e do Estado (2015, p. 269). Assim, o autor destaca que havia uma “estamentalização-corporativização” em relação ao uso do livro, ou seja, a posse de livros estava atrelada a formação profissional, nível cultural ou origem estamental dos leitores (2015, p. 224). Tal prática servia para reafirmar as hierarquias presentes na sociedade da época.

As requisições para leitura e posse de obras proibidas foi uma prática recorrente no mundo luso-brasileiro, de acordo com Villalta. Entretanto, os requerimentos têm o seu ápice

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na década de 1770. Durante o período de permanência da corte portuguesa no Brasil, o estudo apontou apenas dois requerimentos para leitura e/ou posse de livros proibidos, sendo que apenas um foi aprovado (2015, p. 279).

Os dois requerentes4 foram José Manoel Dias de Carvalho e Joaquim Pedro da Costa

Maciel. Apesar do edital da censura permitir a leitura de obras proibidas para ambos, devido ao cargo ocupado, a documentação apresenta que ainda assim era necessária a interferência de outros indivíduos com a finalidade de garantir tais privilégios. Em um dos casos foi necessária a intervenção do José Bento de Barahona Fragoso em favor dos solicitantes, ainda que não seja possível saber se a solicitação foi atendida.

O bacharel José Dias de Carvalho já ocupara um lugar na magistratura e alegava em

sua solicitação5 que a leitura de obras proibidas tinha a finalidade de obter melhor instrução

em matéria de filosofia moral e economia política e “continuar com mais merecimento no serviço de V. Majestade”. Carvalho destaca saber que os livros não são permitidos aos comuns, mas ressalva ser habilitado para ler tais obras sem o risco de fazer abuso das leituras. As justificativas apresentas para leitura de obras proibidas configuram o que Denipoti e Fonseca identificam como práticas comuns da época. “O aumento significativo das justificativas feitas em nome da ‘instrução’ pode ser explicado por uma ‘fórmula’ de uma época em que os pressupostos da educação feita segundo as Luzes se tornavam imperativos nos meios letrados europeus” (2011, p. 147).

4 As documentações analisadas se restringiram aos pedidos para leitura e/ ou posse de livros proibidos, não é possível afirmar se as solicitações foram atendidas ou não. Entretanto, o trabalho realizado por Luiz Carlos Villalta apresenta duas solicitações feitas por requerentes em 1816 e outra em 1817. É possível supor que se trata dos dois documentos analisados. Por meios dos estudos de Villalta sabe-se que apenas uma das solicitações foi atendida, mas não sendo possível afirmar qual delas. Para mais informações sobre a concessão de obras proibidas no mundo luso-brasileiro, ver: VILLALTA, Luiz Carlos. “As licenças para Posse e Leitura de Livros Proibidos” In: Usos do livro no mundo luso-brasileiro sob as luzes: reformas, censura e contestações. Belo Horizonte, Fino Traço, 2015, p. 269-313.

5 Arquivo Nacional da Torre do Tombo. Real Mesa Censória. Requerimentos para a obtenção de licença de leitura e posse de livros proibidos, 1773/1825, fl. 240. Disponível em:

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No ano seguinte, em junho de 1817, Joaquim Pedro da Costa Maciel6, cônego prebendado reitor da Catedral de Faro do Reino de Algarve pede licença para ler certos livros proibidos. O caso de Maciel difere do anterior, uma vez que o clérigo aponta que o pedido encaminhado à Mesa do Desembargo do Paço é feito apenas para “sossego da consciência”, pois já havia requerido ao seu Ordinário, mas segundo o edital também é preciso ser feito a Mesa. Em maio do mesmo ano, José Bento de Barahona Fragoso, Deão da Igreja Católica Catedral de Faro, apresenta uma espécie de parecer onde depõe a favor do solicitante, apresentando os argumentos que qualificam o suplicante para a leitura obras proibidas. Fragoso diz que Maciel “tem sempre dado provas do seu bom comportamento, e de religião,

seguindo sempre as sólidas verdades, que ensina e prescreve [...]”7 Considera, portanto, o

bacharel digno de obter a licença requerida como é possível observar a seguir:

[...] nas legais circunstâncias de se lhe conceder a licença, que pretende para poder ler, e ter quaisquer livros proibidos, pois que sua lição nenhum perigo lhe proverá resultar, porque mais plenamente inteirado de suas razões e fundamentos, poderá refutar as Doutrinas, e os erros, que neles se contém, e assim tira proveito e utilidade da lição daqueles ditos livros8.

Em Portugal, observa-se que os dois suplicantes que almejavam ler e/ou possuir obras proibidas possuíam perfis distintos; um era religioso enquanto outro ocupava o cargo na magistratura. Entretanto, em ambas as solicitações a justificativa tem como ponto principal a formação deles, ou seja, seria utilizada para fins educacionais. E, além disso, possuía a finalidade de combater os pensamentos perigosos à religião e ao Estado. Dessa forma, os usos dos livros feitos por tais homens iam de encontro com a política do Estado e a concessão de tais obras era considera uma ferramenta de combate as ideias libertinas.

6 Maciel, além de cônego foi promotor e juiz da Catedral da cidade de Faro, recebeu a mercê do hábito da Ordem de Cristo e foi procurador da Real Coroa, Fazenda e Estado. Em 7 de setembro de 1808 foi nomeado ministro da Relação. Os dados foram obtidos em: Arquivo Nacional da Torre do Tombo. Ministério do Reino. Requerimento do cônego Joaquim Pedro da Costa Maciel, solicitando aviso à Mesa da Consciência e Ordens para poder usar a mercê do hábito da Ordem de Cristo, 1814. Disponível em: <https://digitarq.arquivos.pt/details?id=7976620>. Acessado em: 15 de julho de 2020.

7 Arquivo Nacional da Torre do Tombo. Real Mesa Censória. Requerimentos para a obtenção de licença de leitura e posse de livros proibidos, 1773/1825, fl. 243. Disponível em:

https://digitarq.arquivos.pt/viewer?id=4311339. Acessado em: 15 de julho de 2020. 8 Ibid.

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No Brasil, as justificativas encaminhadas junto às solicitações para leitura e/ou posse de livros proibidos não se diferenciou muito do que já ocorria em Portugal. As duas requisições foram realizadas por indivíduos que apresentavam as competências necessárias para a leitura e/ou posse de obras proibidas, segundo as leis da censura. Entretanto, nos casos identificados nota-se uma maior interferência de terceiros a favor dos requerentes. Nas duas requisições ocorreu uma interferência dos censores a favor dos solicitantes, sendo possível levantar como hipótese a defesa pelos censores em relação as hierarquias presentes na sociedade da época e a importância da manutenção da ordem.

O primeiro documento9 é referente a lista de José Balbino de Barbosa Araújo10, oficial

da Secretaria de Estado dos Negócios do Reino, o qual encaminhou uma solicitação, em dezembro de 1817, à Mesa do Desembargo do Paço, referente a retirada de livros que foram retidos na Alfândega. O solicitante diz que trouxe da França abordo do navio Dauphin livros para uso próprio e que entre eles há algumas obras que precisam de “especial ordem de Vossa Majestade”.

O censor régio, José da Silva Lisboa, ficou encaminhado de analisar a lista de livros e interveio a favor do suplicante, considerando que Araújo era digno da posse de livros proibidos, apesar de vedados a maioria das pessoas, como nota-se a seguir:

Parece-me estar o suplicante em circunstância de merecer a Graça que suplica por Mercê especial de Vossa Majestade, atenta à Confiança Soberana na brevidade e inteligência daquele Empregado Público, a quem Vossa Majestade houve por bem proximamente de honrar na Carreira Diplomática, e em sua súplica declarar, que os ditos Livros são para seu uso.11

Silva Lisboa destaca que o suplicante não se trata de uma pessoa comum, mas alguém instruído e que possuía um alto cargo no governo. Apesar da lista conter obras de Voltaire, Rousseau e de Abbé De Pratt (“Des Colonies”), obras que de acordo com o censor possuíam doutrinas políticas sediciosas, ainda assim, justifica a necessidade da leitura de tais obras pelo

9 ANRJ, Mesa do Desembargo do Paço. Licenças. Caixa 170, pct.01, doc. 22.

10 Araújo ocupou alguns cargos ao longo de sua vida. Além do cargo de oficial da Secretaria de Negócios do Reino fez parte também do conselho da rainha portuguesa d. Maria II com o cargo de guarda roupa e porteiro da Real Câmara.

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solicitante, uma vez que por ser formado na carreira diplomática e se ocupar de assuntos diplomáticos, Araújo seria digno de confiança. Entretanto, a solicitação parece não ter sido atendida, pois em janeiro de 1818, Araújo encaminha um novo documento informando que “soube depois que continham alguns livros para os quais não poderia obter licença de admissão, e por isso imediatamente tratou de os tornar a remeter para fora deste Reino, que

desiste da sua pertenção”12.

O segundo requerimento13 encaminhado à Mesa foi do Desembargador Manoel

Caetano de Almeida e Albuquerque14, o qual apresentava na sua lista de livros alguns

proibidos pela lei da censura. Entretanto, é possível observar uma disputa de poder entre o

censor, Francisco de Borja Stockler15, e o escrivão da mesa, Bernardo José de Sousa Lobato,

em relação a concessão das obras proibidas ao solicitante.

Na argumentação apresentada por Lobato, fica evidente a discordância na concessão de livros proibidos ao desembargador. O escrivão escreveu uma conferência na qual apontava todos os problemas envolvendo a liberação das obras sediciosas. Com o intuito de

convencimento, utilizou argumentos de autoridade16 como a Lei da censura e pareceres

anteriores prestados pelos censores. A disputa de poder envolvendo os indivíduos é interessante para perceber que apesar da Lei favorecer o acesso à leitura proibida ao grupo de elite, ainda assim as barreiras eram muitas.

O escrivão detalha as obras proibidas presente na lista de Albuquerque. Segundo Lobato, o livro Roman Empire, de Gibbon, era proibida pela Lei da censura, uma vez que possuía conteúdos que criticavam a Religião Católica. Para reforçar a necessidade de vetar a obra ao requerente, o escrivão destaca que a mesma obra foi requisitada anteriormente por

12 Ibid.

13 ANRJ. Mesa do Desembargo do Paço. Licenças. Caixa 170, pct. 03, doc. 74 e 75.

14 Almeida Albuquerque se formou em Direito na Universidade de Coimbra e seguiu a carreira de magistrado, além de ter ocupado alguns cargos como, deputado geral de Pernambuco e senador de Pernambuco.

15 Stockler desempenhou outras funções além de censor. Formado em matemática, seguiu a carreira militar e ocupou os cargos de Marechal de campo reformado dos exércitos Reais, tenente general, além de governador e capitão das Ilhas de Açores.

16 O argumento de autoridade é um mecanismo utilizado na retórica para expor os argumentos e convencer os demais. Para saber mais sobre as práticas argumentativas, ver: CARVALHO, José Murilo. “História intelectual no Brasil: a retórica como chave de leitura”. Topoi, nº 1, Rio de Janeiro: Editora 7 Letras, 2000, p. 123- 152.

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Luiz Nicolão Dufrayer, mas por ser proibida não foi concedida a licença. Além dela, a obra

Traité des delits & des paines foi proibida pelo censor Inocêncio Antônio das Neves Portugal

quando foi requisitada pelo francês Gás. Outras obras também foram vetadas pelo escrivão, mas sempre utilizando das duas justificativas anteriores, proibição pela Lei da censura ou por algum censor em casos passados.

Enquanto Stockler tem uma argumentação pautada nas hierarquias e privilégios àqueles que ocupam o topo da sociedade. O censor utiliza o alvará de 30 de julho 1795 para legitimar a libração das obras solicitadas, destacando que o caso se enquadrava nas licenças especiais.

[...] Alvará consente que ocorram livremente depois de expurgados, e que na sua integridade só deve permitir-se às pessoas autorizadas por Licença expressa; ou pela Licença tácita que lhes provem da natureza a gravidade dos Ministérios, Empregos ou ofícios que exercitam, aos quais por Direito comum só considera [inerente] a permissão do supremo Imperante para lerem e possuírem toda a qualidade de Livro17.

Stockler ratifica que a sociedade é estruturada nas diferenças sociais pautadas na lei. Defende a manutenção das hierarquias ao explicitar que a concessão de obras proibidas ao desembargador não pode ser vista da mesma forma que a solicitação do negociante Dufrayer, uma vez que possuem formações distintas, assim como o papel dentro da sociedade.

quando a lei estabelece uma distância incomensurável entre um magistrado da ordem Senatoria, e um Mercador de Livros, ele os aproxima de tal sorte que presume ser aplicável ao desembargador Manoel Caetano de Almeida e Albuquerque um despacho do Tribunal proferido sobre o requerimento de Mr. Dufrayer, que como Negociante pede Livros para ganhar dinheiro, e não para adquirir instrução, nem para dirigi-la em benefício do Estado18.

O cargo ocupado pelo desembargador pressupõe que a formação educacional é um fato determinante no processo de leitura. Como ressalta o censor, as obras de David Hume não deveriam ser amplamente divulgadas, sendo disponíveis apenas àqueles que já possuíam um amadurecimento das “faculdades intelectuais”, não podendo estar ao alcance durante o processo de formação do indivíduo. O mais importante na leitura das obras proibidas era o

17 ANRJ. Mesa do Desembargo do Paço. Licenças. Caixa 170, pct. 03, doc. 75. 18 Ibid.

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entendimento sobre os erros que deveria sem combatidos, nas palavras do censor: “[...]

ninguém os pode combater sem conhecê-los”19. Para Stockler, era por isso que tais leituras

eram imprescindíveis também aos professores.

Considerações finais

Os casos analisados demonstram que apesar da lei da censura permitir a leitura de livros proibidos aos indivíduos mais instruídos e que fossem, portanto, membros de uma elite letrada, ainda assim não era fácil obter tal mercê. A dificuldade na obtenção de licenças fez com que apenas quatro solicitantes, dentro da documentação analisada, entre os anos de 1808 a 1821, fossem em busca de tal concessão. E além de apresentarem as competências necessárias e ocuparem cargo de confiança ainda assim, é possível afirmar que um deles não conseguiu obter a licença almejada. É possível constatar, também, que os censores defendiam o acesso diferenciado a leitura aos homens letrados e pertencentes a elite, incluindo a posse de obras proibidas. Tal questão é interessante uma vez que destoa do papel desempenhado e atribuído aos censores.

Diante do que foi exposto, é importante destacar que tais barreiras não impediram que obras proibidas chegassem a um público leitor. Muitos mecanismos foram criados pelos leitores e livreiros em torno do acesso e comercialização de obras proibidas, como demonstraram os estudos realizados (NEVES, FERREIRA, 1989). Assim, se os casos analisados mostram indivíduos que buscaram por meio da lei a obtenção de privilégios de leitura, através das licenças, outros arriscavam obter livros proibidos por mecanismos clandestinos.

Fontes:

Arquivo Nacional do Rio de Janeiro

19 Ibid.

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Mesa do Desembargo do Paço. Licenças. Caixa 170 pct. 01 doc. 22. Mesa do Desembargo do Paço. Licenças. Caixa 170 pct. 03 doc. 74 e 75. Arquivo Nacional da Torre do Tombo

Real Mesa Censória. Requerimentos para a obtenção de licença de leitura e posse de livros

proibidos, 1773/1825. Disponível em: <https://digitarq.arquivos.pt/viewer?id=4311339>.

Acessado em: 15 julho de 2020.

Ministério do Reino. Requerimento do cônego Joaquim Pedro da Costa Maciel, solicitando aviso à Mesa da Consciência e Ordens para poder usar a mercê do hábito da Ordem de Cristo,

1814. Disponível em: <https://digitarq.arquivos.pt/details?id=7976620>. Acessado em: 15

de julho de 2020.

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VIII/links/02e7e51db2f32c2b3d000000/Censura-e-merce-os-pedidos-de-leitura-e-posse-de-livros-proibidos-em-Portugal-no-seculo-XVIII.pdf> Acessado em: 5 de julho de 2020. NEVES, Guilherme Pereira das. “Censura.” In VAINFAS, Ronaldo. Dicionário do Brasil Colonial (1500-1808). Rio de Janeiro: Objetiva, 2000, p. 112 -114.

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Referências

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