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Terra, mãe universal, rogai por nós: ciclos de morte e vida em poemas de Cora Coralina

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V. 10 - N. 22 - 2020 Texto enviado em 12.11.2019 aprovado em 19.11.2020 *Mestre em Letras Vernáculas (Literatura Brasileira) pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), bacharel em Comunicação Social (Jornalismo) pela Universidade Federal de Goiás (UFG). Contato:

maykolvespucci@gmail.com

Terra, mãe universal,

rogai por nós: ciclos de morte e

vida em poemas de Cora Coralina

Earth, universal mother,

pray for us: cycles of death and

life in Cora Coralina’s poems

Maykol Vespucci*

Resumo

Este trabalho objetiva compreender como se realiza a religiosidade nos versos de Cora Coralina, especialmente nos poemas que podemos perceber um projeto cosmogônico em que a poeta olha para os espaços de seu mundo e encontra neles caminhos que levam à imensidão do universo. Enquanto se move entre o indivíduo e a coletividade, a poética coraliniana reinsere o humano na natureza. Faz isso ao reimaginar a narrativa do Éden. Na gênese do mundo e da vida, a natureza, ao lado do Criador, é divinizada na imagem da mãe-terra. Esta é poetizada por Cora Coralina, não apenas como uma figura do passado, mas também do mundo contemporâneo. Sua reimaginação das narrativas bíblicas propõe também que olhemos para o tempo como expressão de ciclos, uma perspectiva ligada diretamente ao tempo da natureza. A cosmo-gonia coraliniana, assim, se realiza por nas-cimentos, mortes e renascimentos. O univer-so é poetizado por uma visão pascalina em que a vida parece seguir para um momento de retorno ao mundo, não para um momento de passagem final para outro mundo. A poeta escolhe, assim, um caminho que diverge das

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narrativas bíblicas, que, como aponta Northrop Frye (2002), apresentam come-ço e fim, indo do Gênesis ao Apocalipse. No processo, a própria ideia de morte é, por fim, escrita de um modo dissonante da cultura ocidental contemporânea, aproximando-se do que Philippe Ariès (2012) entende como a “morte domada”.

Palavras-chave:

Cora Coralina; terra; morte; religiosidade; poesia.

Abstract

This work aims to comprehend how religiosity appears in Cora Coralina’s verses, especially in poems where we can notice a cosmogonic project in which the poet looks at the spaces of her world and finds paths leading to the grandio-sity of the universe. Her poetics, while moving itself between the individual and the collectivity, reintroduces humans into nature by reimagining the Eden narra-tive. During the genesis of the world and life, nature is divinized in the image of the earth mother, working side by side with a creator. This mother is poetized by Cora Coralina, not only as a figure of the past, but also within the contemporary world. Her reimagination of the biblical narratives proposes that we look at time as an expression of cycles, a perspective connected directly to the natural time. Cora Coralina’s cosmogony, therefore, is developed through birth, death and re-birth. The universe is poetized through a Paschal view through which life seems to proceed to a moment of return to this world, and not to a final passage to ano-ther world. The poet chooses a path divergent from the biblical narratives, which go from Genesis to Apocalypse presenting a beginning and an end, as pointed by Northrop Frye (2002). In this process, the idea of death itself is, lastly, written in a way that diverges from the contemporary occidental culture, an idea close to what Philippe Ariès (2012) understands as the “tamed death”.

Keywords:

Cora Coralina; earth; death; religiosity; poetry.

Introdução

Q

uando lemos a poesia de Cora Coralina, as vozes poéticas in-dicam que seus versos devem ser lidos como a realização de um percurso existencial do eu lírico, figura projetiva de possíveis aspectos biográficos da poeta. Encontramos evidência desse desloca-mento já na abertura de seu primeiro livro, Poemas dos becos de Goiás

e estórias mais, publicado originalmente em 1969: “Este livro / foi escrito

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pedras / e plantando flores” (CORALINA, 2014, p. 27). Aqui, a voz nos fala de uma travessia biográfica, no fim da qual temos como criação o li-vro. Prosseguimos pelas páginas para presenciar imagens de caminhos, estradas, ruas, becos. Imagens frequentes também nos dois livros de poemas posteriores publicados pela escritora em vida: Meu livro de

cor-del, publicação de 1976, e Vintém de cobre: meias confissões de Aninha,

de 1983.

Os caminhos coralinianos nos levam para transitar entre tempos e espaços, visitando o passado, pensando o presente, testemunhando a reconstrução e desconstrução de lugares. Há, nesse percurso, temáti-cas que se escrevem a partir de sua autoficção. Construída em vozes múltiplas, sua poética apresenta um forte caráter subjetivo, que, inspira-dos pelo trabalho de Jean-Michel Maulpoix (2000), podemos aproximar à figura de Narciso quando o crítico francês percebe no discurso lírico um desejo de autorreflexão, uma projeção em direção ao eu. À figura de Narciso, alinha-se a de Ícaro. Enquanto aquele mergulha em si mesmo, este olha para fora em um movimento de elevação.

Os movimentos narcísicos e icariano, à primeira vista contrários, aproximam-se. Podemos ver Narciso, em seu debruçar sobre a própria imagem, combinar-se com Ícaro, no movimento para o exterior do la-birinto. Ao olhar para dentro de si, o sujeito se depara com o mundo exterior internalizado. Ao olhar para fora, enxerga o outro que o tornou sujeito. Sobre isso, Sigmund Freud nos dirá:

Na vida anímica individual, aparece integrado sempre, efetivamente, “o outro”, como modelo, objeto, auxiliar ou adversário, e, desse modo, a psicologia individual é, ao mesmo tempo e desde o início, psicologia social, num sentido amplo, mas plenamente justificado (FREUD, 1990, p. 7).

Em Cora, os dois movimentos expressam a subjetivação das vozes poéticas por meio de um contato com outros indivíduos, com o espaço, com o tempo, com o mundo. A religiosidade, aqui, se mostra parte

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essen-cial da construção dos sujeitos. Notamos que numerosos poemas da au-tora carregam tradições cristãs populares performadas no cenário goia-no do século passado, algumas em ação ainda hoje. Testemunhamos ressignificações mescladas: inicialmente pela cultura e, depois, pela po-esia. Como nos afirma Northrop Frye, “(...) a literatura, e especialmente a poesia, tem por função re-criar o uso metafórico da linguagem. Por con-sequência, a descendente direta da mitologia é a literatura (...)” (FRYE, 2002, p. 34, tradução nossa). As páginas bíblicas, continuamente remol-dadas pelos processos culturais posteriores a si, são agora alteradas em poesia. Cora Coralina reescreve as narrativas judaico-cristãs, iniciando um processo de recriação do mundo como lugar religioso. Talvez possa, por isso, ser definida como uma poeta-profeta, iniciadora de um projeto cosmogônico que redesenha as linhas da tradição cristã.

Como base para o início do mundo em poesia, a poeta escolhe a mesma matéria do deus cristão: a terra. Por ela, molda-se a forma, as-sopra-se a vida, iniciam-se ciclos de começo, finalização e recomeço constantes. Pois o que Cora escreve é uma poética do renascimento. A morte dos corpos vivos é um destino inevitável, mas, sobre os seres individuais, a vida universal prossegue como uma torrente imparável. A terra é, desse modo, a imagem maior do renascimento, pois tudo nasce e retorna à terra, que continua a criar vidas.

A subversão das escrituras bíblicas culmina também na reflexão so-bre o contemporâneo. Podemos notar isso na reapropriação do tempo. A evidente inspiração nos ciclos naturais redimensiona o viver humano, colocando a cronometria do relógio em segundo plano, para reinserir a humanidade no tempo cíclico da natureza. O urbano também tem sua participação nesses ciclos. Frequentemente pensada como uma sepa-ração do humano em relação à natureza, a cidade parece receber vis-lumbres do Éden em sua arquitetura. Perguntamo-nos se existiria ainda um espaço para a terra na cidade, no erigir dos prédios, no mapa das ruas. Estariam as composições da natureza entremeadas nas relações arquitetadas pelo urbano? Ou chegamos a uma oposição tão marcada

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entre o mundo humano e o mundo das outras vidas que o Éden se tor-nou irrecuperável?

O projeto a que nos dedicamos aqui, considerando-se a impossibili-dade de não responder as questões levantadas por completo, guiar-nos--á por um caminho reflexivo a partir da poesia coraliniana e as escrituras bíblicas. Caminhamos para descobrir a que universos exteriores estão ligados o universo interior das vozes que nos declamam seus versos. Pensaremos o texto da escritora por meio de suas emanações da coleti-vidade e subjeticoleti-vidade no mundo. São linhas que poetizam a existência do universo, redistribuindo as didascálias bíblicas, reimaginando o lugar do humano na natureza.

1. Mãe-terra, rogai por nós

“No princípio, criou Deus os céus e a terra” (Gênesis 1,1), é o que nos narra a abertura do Gênesis, o livro que se inicia com a criação do mundo e se estende até a narrativa do profeta José. Nas primeiras li-nhas, estamos na presença de um ser divino que, sozinho, se dedica a um trabalho criativo. Nada nos é dito que especifique com precisão esse espaço-tempo primeiro da criação. O princípio do Gênesis inaugura o mundo como um “era uma vez” sem tempo anterior. Há o aparecimento, também de uma cronometria pontuada pela passagem dos dias e noites recém-criados. Deus cria um mundo sólido, mas inaugura também no-ções de tempo. A criação é, pois, o surgimento, não só de tudo o que é concreto, mas também de um mundo abstrato.

Há semelhanças explícitas e implícitas com a poética coraliniana. Na Bíblia, faz-se a existência pela presença de um deus que nos apa-rece como único. A poeta posiciona no início dos tempos também a fi-gura de uma divindade. Como no exemplo da tradução em português da Bíblia, essa figura primordial é chamada de Deus, Senhor, Criador. Denominações estas presentes por toda a extensão do Velho e Novo Testamentos. Estão elas também na poética coraliniana, como podemos

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ver no poema “Considerações de Aninha”:

Melhor do que a criatura, fez o criador a criação. A criatura é limitada. O tempo, o espaço,

normas e costumes. Erros e acertos. A criação é ilimitada.

Excede o tempo e o meio.

Projeta-se no Cosmos (CORALINA, 2013, p. 176).

Percebemos, de início, a definição do ser divino primordial como “criador”, categorizado como único e masculino. Em seguida, as consi-derações de Aninha tecem versos que excedem a importância da vida individual, considerando como a grandiosidade do trabalho divino o uni-verso como coletividade contínua. Se a criatura, esse ser individual en-cerrado entre o momento do nascimento e da morte, é limitada, a cria-ção, como projeto que objetiva organizar um universo amplo, rompe com as barreiras do tempo e espaço.

Na continuidade de tal ideia de coletividade universal, a terra tem um papel importante na poética de Cora Coralina, que a posiciona como matéria de origem de tudo o que é vivo. Há uma inspiração evidente nas palavras do Gênesis. A terra, junto com os céus, é narrada como a primeira criação do deus judaico-cristão. Também é dela que o criador edifica a figura do homem: “E formou o Senhor Deus o homem do pó da terra e soprou em seus narizes o fôlego da vida; e o homem foi feito alma vivente” (BÍBLIA, 1995, p. 4). A partir de tal imagem da terra como maté-ria para a cmaté-riação da vida, Cora poetiza aos seres uma mãe em comum. Os versos que abrem o poema “O cântico da terra”, que traz o subtítulo “Hino do lavrador”, escrevem:

Eu sou a terra, eu sou a vida.

Do meu barro primeiro veio o homem. De mim veio a mulher e veio o amor. Veio a árvore, veio a fonte.

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Eu sou a fonte original de toda vida. Sou o chão que se prende à tua casa. Sou a telha coberta de teu lar. A mina constante de teu poço. Sou a espiga generosa de teu gado e certeza tranquila ao teu esforço. Sou a razão de tua vida.

De mim vieste pela mão do Criador, e a mim tu voltarás no fim da lida.

Só em mim acharás descanso e Paz (CORALINA, 2014, p. 210).

Os versos soam pela voz da própria terra, que assume a posição da vida no projeto criador. Notamos que, assim como na narrativa do Gênesis, o poema sugere a terra como anterior a todas as outras cria-turas. Também observamos que, assim como no livro bíblico, o homem é criado antes da mulher. Há, porém, uma subversão do texto judaico--cristão a que devemos nos atentar.

No Gênesis, após a criação do homem, a quem Deus dá o nome de Adão, há o momento em que o ser recém-criado recebe a permis-são para nomear todas as outras criaturas viventes. O ato de nomear, aqui, tem um poder que se aproxima da dominação. Em seguida, Deus derrama o sono sobre Adão, retirando-lhe uma costela, a partir da qual molda a mulher: “E da costela que o Senhor Deus tomou do homem for-mou uma mulher; e trouxe-a a Adão” (BÍBLIA, 1995, p. 5). Mais à frente, encontraremos um trecho, no momento da expulsão do Éden, em que Adão nomeia a mulher como Eva, em um ato que espelha a nomeação das outras criaturas sobre as quais domina.

Cora, no entanto, não menciona uma costela na formação da mu-lher. Lembremo-nos das palavras da terra no poema: “Do meu barro pri-meiro veio o homem. / De mim veio a mulher e veio o amor” (CORALINA, 2014, p. 210). Os versos sugerem que a mulher foi, também, criada a partir do pó, e não da costela do homem. Há, assim, uma quebra na relação vertical bíblica entre o homem e a mulher, criados pela matéria dessa mãe em comum, que dá à luz ambos os filhos e todas as outras

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criaturas. A terra coraliniana é a origem, inclusive, do ato que continuará a vida. Afinal, após a criação do homem e da mulher, o amor surgiu de si.

O ato amoroso sugere a efetivação de uma descendência que, no Gênesis, é apresentada pelo nascimento dos filhos de Adão e Eva após a expulsão destes do Éden. Atentemo-nos, porém, que a descendência traz em si, não apenas a explicitude da vida continuada, mas também da morte, quando a entendemos como um intento de continuar a própria existência genética. Durante a expulsão, Deus enuncia ao homem: “No suor do teu rosto, comerás o teu pão, até que te tornes à terra; porque dela foste tomado, porquanto és pó e em pó te tornarás” (Gênesis 3,19). A mesma imagem de morte está presente no poema de Cora: “De mim vieste pela mão do Criador, / e a mim tu voltarás no fim da lida. / Só em mim acharás descanso e Paz” (CORALINA, 2014, p. 210).

Há uma religiosidade que pode, inicialmente, parecer alheia às con-cepções cristãs: a imagem da terra como mãe. Na continuação do po-ema “O cântico da terra”, a voz poética nos afirma: “Eu sou a grande Mãe universal. / Tua filha, tua noiva e desposada. / A mulher e o ventre que fecundas. / Sou a gleba, a gestação, eu sou o amor” (CORALINA, 2014, p. 210). Quando recuperamos o subtítulo dado ao poema – “Hino do lavrador” –, vemos a terra assumir, aqui, variados papeis diante do trabalhador que a cultiva. Há uma qualificação referente a imagens de fertilidade, afirmadas por ideias de fecundação e amor. Apenas a palavra “Mãe”, no entanto, está grafada com inicial maiúscula, o que demarca a posição primeira da terra como a figura materna central que, a partir de sua participação na vida do lavrador, transmuta-se constantemente em outros papeis.

O quadro que vemos nos mostra processos de vida e morte: o lavra-dor fecunda a terra para fazer nascer a vida vegetal, a mesma terra que um dia cobrirá seu corpo morto. Ela lhe diz: “E um dia bem distante / a mim tu voltarás. / E no canteiro materno do meu seio / tranquilo dormirás” (CORALINA, 2014, p. 211). Morte e vida estão, assim, intrinsecamente

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atadas à existência dessa mãe-terra, tanto no Gênesis quanto na poética coraliniana. A associação não se restringe aos dois textos. Frye (2002) encontrará tal entrelaçamento também em outras religiosidades. Quando nos apresenta a noção de natura naturans, o autor nos atentará que a Bíblia, embora condene a idolatria, permite que a presença do criador seja experimentada através da natureza sem que um poder seja de fato atribuído a ela. Alheios a tais princípios bíblicos, mitos construídos em torno da relação do humano com a natureza se formam. Frye (2002) encontra, entre tais mitos, a figura da terra como divindade frequente:

Não há princípio exímio de muitas exceções na mito-logia, mas uma formulação mítica bastante frequente que vem dessa atitude frente à natureza é a de uma mãe-terra da qual tudo nasce e à qual tudo retorna na morte. Tal mãe-terra é a mais facilmente compreensí-vel imagem da natura naturans e é dela que vem sua ambivalência moral. Como o útero de todas as formas de vida, ela é dona de um aspecto cuidador e nutridor; como a tumba de todas as formas de vida, ela é dona de um aspecto ameaçador e sinistro; como a manifestação de um ciclo de vida e morte sem fim, ela é dona de um aspecto inescrutável e ilusório. Por isso, ela é frequen-temente uma diva triformis, uma deusa com, de algum modo, forma tripla, comumente nascimento, morte e re-novação no tempo; ou céu, terra e inferno no espaço (FRYE, 2002, p. 68, tradução nossa).

Segundo Frye (2002), o mito da mãe-terra estará diluído nas escritu-ras bíblicas em figuescritu-ras como a da Virgem Maria e da Grande Prostituta. A mãe-terra é associada, principalmente, à ideia de natura naturans, compreendida como um processo da natureza na manutenção da vida. Vemos até mesmo, no processo em que o Criador faz surgir a terra como matéria primeira para moldá-la em vida, semelhanças com um poeta que se debruça sobre a língua e, a exemplo do deus, lhe dá formas. Quando a terra, nas escrituras coralinianas, passa da posição de matéria para assumir a imagem de uma figura materna, lemos o poeta-deus e a ma-téria-terra como a comunhão de duas forças essenciais para a criação.

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Mãe universal, o humano continua a trabalhar a terra, como um projeto que continua o trabalho divino. Lembremo-nos que, porém, quando os dois humanos originários do texto bíblico cedem à tentação e experi-mentam o fruto proibido, Deus se encarrega de expulsá-los do Éden e distribui suas punições à serpente, à mulher e, por fim, ao homem. O tra-balho junto à terra é, então, ressignificado em um destino punitivo: “(...) o Senhor Deus, pois, o lançou fora do jardim do Éden, para lavrar a terra, de que fora tomado” (Gênesis 3,23).

Há, portanto, dois momentos para os seres humanos no Gênesis: o primeiro, que trata de sua vida no Éden, e o segundo, após sua expul-são. É fora do Éden que o homem e a mulher originam seus descen-dentes. Também é exteriormente ao Jardim dos primórdios do mundo que o homem cumpre a ordem divina de trabalhar a terra para o pró-prio sustento. O humano assume, assim, também um trabalho criador a exemplo de Deus e da Mãe. Lavra-se e fecunda-se a terra para que esta faça surgir a vida que alimenta o humano, relacionando-se à imagem da terra como noiva, presente em “O cântico da terra” (CORALINA, 2014, p. 210). Esse quadro da gleba preparada para o plantio é essencialmente rural, espaço que costumamos contrapor ao urbano. Podemos estar, por essa perspectiva, diante de um segundo afastamento do Éden, signifi-cado aqui como o âmago da natureza, o berço da terra-mãe e de tudo o que se cria dela.

2. O campo, a cidade, a comunhão

Em seus estudos sobre a Bíblia Sagrada, Northrop Frye (2002, p. 139) descreve dois níveis para a relação entre humano e natureza. Há um nível superior, que diz respeito ao contrato entre Deus e Adão, no qual o homem pertence essencialmente à natureza: “E tomou o Senhor Deus ao homem e o pôs no jardim do Éden para o lavrar e o guardar” (Gênesis 2,15). O humano é posicionado no solo do Éden, onde, apesar de dominar todas as outras criaturas, convive com elas. Seu contrato

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com Deus, aqui, é para a proteção e trabalho junto à terra do jardim. O nível inferior se refere a um segundo contrato, que podemos en-contrar também no Gênesis, na narrativa do dilúvio. Agora, a relação se dá entre Deus e Noé: “E será o vosso temor e o vosso pavor sobre todo animal da terra e sobre toda ave dos céus; tudo o que se move sobre a terra e todos os peixes do mar na vossa mão são entregues” (Gn 9, 2). A natureza é apresentada como algo a ser dominada e explorada pelo humano. Todas as demais criaturas vivas se dobram diante do homem, que lhes desperta temor. Entre os dois níveis descritos, Frye (2002) nos desvela um espaço intermediário:

No caminho entre os níveis inferior e superior, encontra-mos as imagens do mundo do trabalho, do pastoreio, da agricultura e imagens urbanas que sugerem uma natu-reza transformada em forma humanamente inteligível. A estrutura imagética da Bíblia, portanto, contém, entre outras coisas, imagens do cordeiro e da pastagem, ima-gens da colheita e da vindima, imaima-gens das cidades e dos templos, todas contidas e inspiradas pelo conjunto imagético do oásis, cujas árvores e água sugerem um modo superior da vida coletiva (FRYE, 2002, p. 139, tra-dução nossa).

Na vida contemporânea, a expressão dessa coletividade entre o humano e a natureza é visível, especialmente, nos espaços rurais. A cidade, ao contrário, parece se organizar como separada, não apenas do campo, mas da natureza mesma. A leitura do urbano se organiza, desse modo, como despida dos resquícios do Éden. Os prédios se eri-gem para construir um espaço prioritariamente humano. Os versos de Cora Coralina, de início, também parecem formar esse mesmo caminho de oposição. Logo, notamos, porém, que tratam de um caminho duplo, separando e, simultaneamente, unindo a cidade e o campo, como duas páginas da mesma folha de papel.

Uma ilustração importante do campo coraliniano pode ser encontra-da no poema “A gleba me transfigura” (CORALINA, 2013, p. 108), texto de seu terceiro livro de poemas, Vintém de cobre: meias confissões de

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Aninha (2013). Enquanto sua obra de estreia – Poemas dos becos de Goiás e estórias mais (2014) concede notável foco à cidade, esse último

livro tende a procurar as trilhas rurais, desenhando imagens do humano em comunhão com a natureza no campo. Tal ligação se realiza, princi-palmente, por meio do trabalho. O campo coraliniano se insere, assim, no caminho intermediário entre a natureza superior e inferior referida por Frye (2002, p. 139). É por meio do trabalho com a terra que o sujeito poético de “A gleba me transfigura” (2013) cria seus versos:

Sinto que sou a abelha no seu artesanato.

Meus versos têm cheiro dos matos, dos bois e dos currais. Eu vivo no terreiro dos sítios e das fazendas primitivas.

Amo a terra de um místico amor consagrado, num esponsal sublimado, procriador e fecundo.

Sinto seus trabalhadores rudes e obscuros,

suas aspirações inalcançadas, apreensões e desenganos. Plantei e colhi pelas suas mãos calosas

e tão mal remuneradas.

Participamos receosos do sol e da chuva em desencontro, nas lavouras carecidas.

Acompanhamos atentos, trovões longínquos e o riscar de relâmpagos no escuro da noite, irmanados no regozijo das formações escuras e pejadas no espaço

e o refrigério da chuva nas roças plantadas, nos pastos maduros e nas cabeceiras das aguadas.

Minha identificação profunda e amorosa com a terra e com os que nela trabalham. A gleba me transfigura. Dentro da gleba,

ouvindo o mugido da vacada, o mééé dos bezerros, o roncar e focinhar dos porcos, o cantar dos galos, o cacarejar das poedeiras, o latir dos cães, eu me identifico.

Sou árvore, sou tronco, sou raiz, sou folha, sou graveto, sou mato, sou paiol

e sou a velha trilha de barro.

Pela minha voz cantam todos os pássaros, piam as cobras

e coaxam as rãs, mugem todas as boiadas que vão pelas estradas. Sou a espiga e o grão que retornam à terra.

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Minha pena (esferográfica) é a enxada que vai cavando, é o arado milenário que sulca.

Meus versos têm relances de enxada, gume de foice e peso de machado.

Cheiro de currais e gosto de terra (CORALINA, 2013, p. 108).

Percebemos, na longa estrofe, que o sujeito nos fala de uma im-portante ligação com a terra, como se esta fosse o principal outro que o subjetiva. Há uma evidente aproximação entre o fazer poético e o tra-balho agricultor. A pena, a caneta que o sujeito usa para escrever seus versos, é transmutada na enxada feita para sulcar a terra. Se pensarmos na concepção de Karl Marx (1983, p. 148) do trabalho, que não se refe-re apenas à atividade praticada em troca de sustento ou refe-remuneração capital, mas de um processo que o humano “põe em movimento as for-ças naturais pertencentes à sua corporalidade, braços, pernas, cabeça e mãos, a fim de apropriar-se da matéria natural numa forma útil para sua própria vida” (MARX, 1983, p. 148), podemos entender que o sujeito aqui nos fala de uma capacidade humana. A atividade criativa que molda a matéria e recria o mundo à volta é um fundamento da cultura.

O sujeito poético, no poema em questão, se subjetiva pelos diversos outros que constituem o espaço rural. Há uma profunda identificação com a terra, com os trabalhadores, com o trabalho braçal, com a vida das plantações. O sujeito até mesmo enxerga o próprio eu como um espelhamento de outras composições da terra-mãe: “Sou árvore, sou tronco, sou raiz, sou folha, / sou graveto, sou mato, sou paiol / e sou a velha trilha de barro” (CORALINA, 2013, p. 108). Há uma reencenação da vida no Éden, quando o homem, em seu primeiro contrato com Deus, convive com a vida animal e vegetal.

No poema, os humanos acompanham as estações apropriadas para o plantio, esperam pelos ciclos da mãe-terra para a trabalhar a germi-nação da vida, como declamam versos à frente: “Juntos, rezamos pela chuva e pelo sol. / Assuntamos um trovão longínquo, de um fuzilar / de relâmpagos, de um sol fulgurante e desesperador, / abatendo as

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la-vouras carecidas” (CORALINA, 2013, p. 110). O tempo rural se pauta, assim, pelos ciclos da natureza, pois é, essencialmente, o tempo primor-dial, pautado pelo sol, pela lua, pelas chuvas, emanações da mãe-terra que marcam caminhos de retorno constantes. Há uma aproximação à expressão memorialística, que, continuamente, nos retorna ao passado que nos formou de uma forma não-linear.

Não nos surpreende, portanto, que o sujeito poético de “A gleba me transfigura” (CORALINA, 2013, p. 108) escolha uma trilha que o recua mais e mais para o passado: “Eu me procuro no passado. / Procuro a mulher sitiante, neta de sesmeiros” (CORALINA, 2013, p. 109). A me-mória, aqui, é um apoio cultural. É necessário acessar conhecimentos antepassados e adequá-los ao trabalho presente. Entrar em contato com a terra é poder caminhar para o momento inicial do humano. Em versos posteriores, esse sujeito feminino retorna ainda mais: “Eu sou a terra mi-lenária, eu venho de milênios. / Eu sou a mulher mais antiga do mundo, plantada e fecundada / no ventre escuro da terra” (CORALINA, 2013, p. 111). Há uma transfiguração simultânea na mãe-terra, a criação inicial do Criador, e na figura de Eva, a primeira mulher criada do barro.

Quando adentramos a cidade coraliniana, reconhecemos os mes-mos indícios de tempos não-lineares. O espaço urbano, no entanto, não se pauta pelo sol, pela lua, pelas chuvas. Há uma ciclicidade que se expressa pela renovação constante do mundo. A cidade, como criação humana, não pode ser perfeita como a criação divina. O humano, em-bora dedique sua força para erigir os edifícios citadinos, não está livre dos caprichos da mãe-terra. Assim, o urbano se ergue para decair, como podemos notar no poema “Velho sobrado” (CORALINA, 2014, p. 84), cujo sujeito poético visita uma antiga construção em visível decadência:

Abandono. Silêncio. Desordem. Ausência, sobretudo.

O avanço vegetal acoberta o quadro. Carrapateiras cacheadas.

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pendurado de frutinhas ouro-rosa. Uma bucha de cordoalha enfolhada, berrante de flores amarelas

cingindo tudo.

Dá guarda, perfilado, um pé de mamão-macho. No alto, instala-se, dominadora,

uma jovem gameleira, dona do futuro. Cortina vulgar de decência urbana

defende a nudez dolorosa das ruínas do sobrado - um muro (CORALINA, 2014, p. 84).

A arquitetura se torna a principal ilustração do processo temporal cíclico. O sobrado, erguido com matéria retirada da terra e moldada por mãos humanas, é retomado pela mãe-terra. Há uma extensão de com-posições vegetais que cerceiam lentamente a construção abandonada, envolvem-na como se a abraçassem em um envolvimento de irmãos. A terra traz de volta para seu ventre, não apenas os corpos mortos de se-res anteriormente vivos, mas também criações inanimadas retiradas de si. O sobrado, elevado da terra, é reclamado por seus braços vegetais que o trazem de volta ao pó.

Lemos, portanto, os dois âmbitos – o rural e o urbano – pela forma-ção do espaço e do desenvolvimento do tempo. São ambas produções erguidas da natureza. Instala-se sobre eles tempos cíclicos de nasci-mento, morte e renascimento. Enquanto o velho sobrado é coberto pelo avanço vegetal, a jovem gameleira se ergue como dona do futuro. O edifício nascido das mãos humanas decai em suspiros de morte, mas há um novo nascimento na figura da árvore, que, dominadora, projeta-se para o futuro, encerrando o velho sobrado no passado.

A imagem da cidade reorganizada pelo tempo é recorrente na po-esia coraliniana. Vemos isso, em especial, na presença vegetal dentro do espaço urbano. Em poema intitulado “Do Beco da Vila Rica”, uma voz enuncia: “Na velhice dos muros de Goiás / o tempo planta avencas” (CORALINA, 2014, p. 98). Cora Coralina reintroduz, assim, o contrato de Deus e os humanos no Éden. O Jardim não se encontra apenas nos

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recintos naturais e rurais do mundo, mas se embrenha pelos caminhos citadinos. O que a poeta nos escreve é a poética do renascimento.

A decadência da arquitetura, por fim, não é apenas física, mas se refere também à cultura presente ali. O sujeito poético de “O velho so-brado” declama: “Quem é que está ouvindo / o clamo, o adeus, o cha-mado?... / Que importa a marca dos retratos na parede? / Que importam as salas destelhadas, / e o pudor das alcovas devassadas... / Que im-portam?” (CORALINA, 2014, p. 84). Na ciclicidade de nascimento, mor-te e renascimento, aspectos da cultura são constanmor-temenmor-te erguidos e derrubados, surgidos e substituídos. A cidade e o campo não podem nunca continuarem os mesmos através do tempo. A ressignificação e a substituição são constantes.

3. A morte, a vida

Pela ideia de renascimento contínuo do mundo, a vida universal é a realização maior do Criador. No curso do tempo, reconhecemos a cicli-cidade do nascimento, morte e renascimento. A morte não é, portanto, um fim de fato. Se a Bíblia nos narra uma história fechada, iniciada pelo Gênesis e finalizada pelo Apocalipse, Cora nos conta uma narrativa em que o fim é sempre superado por recomeços. Resgata-se, em parte, uma posição medieval diante da morte, que Philippe Ariès (2012) apre-senta em seus estudos sobre as atitudes da sociedade ocidental diante do morrer:

Assim se morreu durante séculos ou milênios. Em um mundo sujeito à mudança, a atitude tradicional diante da morte aparece como uma massa de inércia e conti-nuidade. A antiga atitude segundo a qual a morte é ao mesmo tempo familiar e próxima, por um lado, e atenu-ada e indiferente, por outro, opõe-se acentuatenu-adamente à nossa, segundo a qual a morte amedronta a ponto de não mais ousarmos dizer seu nome. Por isso chamarei aqui esta morte familiar de morte domada. Não quero dizer com isso que anteriormente a morte tenha sido selvagem, e que tenha deixado de sê-lo. Pelo contrário, quero dizer que hoje ela se tornou selvagem (ARIÈS, 2012, p. 40).

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Em Cora Coralina, a morte também parece ser domada. Quem morre é a criatura, mas a criação continua seus processos de vida. Curiosamente, embora o caráter religioso de sua obra seja evidente, há poucas menções a uma vida após a morte do corpo, onde o humano renasceria em um paraíso cristão. A poeta se concentra em versificar sobre a vida anterior a tal ideia de imortalidade da alma. A mãe-terra, como descrita por Frye (2002), é uma figura dúbia que evoca os mitos de Eros e Tânatos, assim com as pulsões freudianas de vida e morte. A poeta, no entanto, não encara com maus olhos a mãe-terra como por-tadora da morte. Pelo contrário, se a morte é um destino comum aos seres, a postura diante desse fim é escrita a partir de uma compreensão da finalização de um ciclo individual. Não é surpresa, portanto, que seu segundo livro – Meu livro de cordel (2013) – traga tantos quadros de túmulos, alguns destes criados pelos sujeitos poéticos para si mesmos, como no seguinte poema:

Morta... serei árvore, serei tronco, serei fronde e minhas raízes

enlaçadas às pedras de meu berço são as cordas que brotam de uma lira. Enfeitei de folhas verdes

a pedra de meu túmulo num simbolismo de vida vegetal. Não morre aquele que deixou na terra a melodia de seu cântico

na música de seus versos (CORALINA, 2013, p. 106).

Apresenta-se, na última estrofe de “Meu epitáfio” (CORALINA, 2013, p. 106), uma ideia de imortalidade como existência continuada por uma produção humana que perdura após a morte de seu autor. No poema, a imortalidade se alinha à poesia, embora sugira o trabalho humano em diversas formas. Notamos, com isso, duas expressões de superação da

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morte em Cora Coralina: a imortalidade do autor por sua obra e a imor-talidade pela continuação da vida universal. A superação da morte se realiza através do tempo, na persistência de algo após a morte do corpo.

O tempo em “Meu epitáfio” (CORALINA, 2013, p. 106) é novamente uma expressão que entrecruza tempos. Há um encontro entre o passa-do e o futuro no presente. O sujeito poético fala de uma morte futura, na qual se tornará uma imagem natural: uma árvore composta por tronco, fronde, raízes. Estas se atam ao berço do sujeito que declama os versos. Pela perspectiva do presente, vislumbra-se a morte futura e forma-se um círculo que reencontra o próprio nascimento no passado. É uma imagem de retorno.

A mãe-terra se mostra presente no túmulo, que se constrói por pedra e folhas verdes, imagens derivadas da natureza. A evocação de uma “vida vegetal” pode, inicialmente, parecer a ilustração de uma experiên-cia vivida inerte, sem emoções, paralisada. Há, no entanto, uma constan-te na obra coraliniana quando a escritora se refere às imagens vegetais: são elas frequentemente símbolos do renascimento contínuo. Podemos ilustrar tal afirmação com versos do poema “Minha cidade”, de seu livro de estreia: Eu sou o caule / dessas trepadeiras sem classe, / nascidas na frincha das pedras: / Bravias. / Renitentes. / Indomáveis. / Cortadas. / Maltratadas. / Pisadas. / E renascendo” (CORALINA, 2014, p. 35).

Outra imagem de um túmulo pode ser lida no poema “Eu voltarei” (CORALINA, 2013, p. 71), também encontrado nas páginas de Meu livro

de cordel (2013). O título já nos sugere alguma ciclicidade,

escrevendo--se como uma promessa de retorno. Perguntamo-nos como esse sujeito voltará. Pela continuidade de sua palavra ou por seu retorno à vida uni-versal? De qualquer modo, a voz poética fala do futuro. Nas três últimas estrofes, lemos os seguintes versos:

E eu morrerei tranquilamente dentro de um campo de trigo ou milharal, ouvindo ao longe o cântico alegre dos ceifeiros. Eu voltarei...

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A pedra do meu túmulo

será enfeitada de espigas de trigo e cereais quebrados

minha oferta póstuma às formigas que têm suas casinhas subterra e aos pássaros cantores

que têm seus ninhos nas altas e floridas frondes.

Eu voltarei... (CORALINA, 2013, p. 72).

Poetiza-se, no poema, um ritual que presenteia a terra-mãe e seus filhos, aqui representados pelos pássaros e as formigas. Há, novamente, uma espécie de preparação do sujeito poético para a própria morte. O fim de sua vida é um destino aceito sem temores. Resgatamos, aqui, a per-cepção de Philippe Ariès (2012) acerca das atitudes ocidentais perante a morte. Quando o autor reflete sobre o assunto nos tempos contemporâ-neos, percebe que a morte se tornou inominável: “Tecnicamente, admi-timos que podemos morrer, fazemos seguros de vida para preservar os nossos da miséria. Mas, realmente, no fundo de nós mesmos, sentimo--nos não mortais (ARIÈS, 2012, p. 100). Há um projeto de vida feliz que não deve ser perturbado pela ideia de decadência do corpo. Entende-se a morte como um mal. Evita-se mencioná-la.

Em “Eu voltarei” (CORALINA, 2013, p. 72), a morte é uma imagem de projeção. A oferta de trigo e cereais é um presente às formigas e aos pássaros. Há, portanto, uma menção a seres que se abrigam sob a terra e a outros que voam os céus. Cria-se uma verticalidade, que se prende à terra abaixo e se ergue para o céu acima. Podemos interpretar tal ima-gem como uma referência a duas dimensões da vida. O movimento para baixo pode se referir ao corpo físico, envolto pela terra, retornado ao ventre da mãe-primeira. O movimento para o alto pode ser a libertação espiritual, aqui similar ao voo dos pássaros que se desprendem da copa das árvores para o céu. Um voo que pode simbolizar o retorno à vida universal ou uma passagem para outro mundo.

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Conclusão

Os temas que se abrem na poética coraliniana – natureza, morte, vida, tempo – são frequentemente visitados pelos conhecimentos huma-nos. A poesia dificilmente se eximiria de refletir sobre o tempo e o espaço em que vivemos. Sob o olhar de Cora Coralina, são dispostos nos jogos dos versos o outro – o mundo, a religiosidade, a natureza – internalizado e questionado pelo eu. Os sujeitos poéticos coralinianos, profundamente inspirados pelas narrativas bíblicas que os formam, trilham um caminho em direção ao Éden para a reapropriação de uma vida ciente da presen-ça da natureza no mundo.

A imagem da mãe-terra surge como uma contraparte feminina do deus masculino no projeto criador do Gênesis. É ela a mãe original de tudo que é vivo. É a fonte material de tudo o que existe no mundo. Morrer, portanto, é voltar para o ventre dessa mãe-terra, fechando um ciclo individual que se desenvolve sob a égide dos ciclos universais de nascimento, morte e renascimento. Mas não falamos apenas da vida aqui. Tudo que se cria da terra caminha para retornar ao berço. A cultura que se ergue a partir dessa mãe também morre e renasce continuamen-te. Sua poética do renascimento progride por movimentos cíclicos do tempo. Sob tal perspectiva de retorno ao ventre, Cora Coralina reinsere a morte na existência contemporânea. A morte deixa de ser inominável, pois não é, de fato, um fim.

Referências

ARIÈS, Philippe. História da morte no Ocidente: Da Idade Média aos

nossos dias. Trad. Priscila Viana de Siqueira. Rio de Janeiro:

Nova Fronteira, 2012.

BÍBLIA, Português. A Bíblia Sagrada. Trad. João Ferreira de Almeida. Barueri: Sociedade Bíblia do Brasil, 1995.

CORALINA, Cora. Meu livro de cordel. São Paulo: Global, 2013.

CORALINA, Cora. Poemas dos becos de Goiás e estórias mais. São Paulo: Global, 2014.

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CORALINA, Cora. Vintém de cobre: Meias confissões de Aninha. São Paulo: Global, 2013.

FREUD, Sigmund. Psicologia das massas e análise do ego. In: Edição

standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1990.

FRYE, Northrop. The great code: The Bible and Literature. New York: Harvest, 2002.

MARX, Karl. O capital. São Paulo: Abril Cultural, 1983.

Referências

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