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12º Encontro da ABCP 18 a 21 de agosto de 2020 Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa (PB)

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12º Encontro da ABCP 18 a 21 de agosto de 2020

Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa (PB)

Área Temática: Política e Economia

A trajetória das reformas previdenciárias no Brasil e a expansão dos arranjos de previdência complementar

Arnaldo Provasi Lanzara (UFF/INCT-PPED)

Bruno Salgado Silva (IESP-UERJ)

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Resumo: Este artigo analisa como as diversas reformas previdenciárias introduzidas no Brasil desde o final da década de 1990 contribuíram para a expansão dos arranjos privados de previdência complementar, alterando gradualmente o sistema previdenciário do país. Medidas restritivas e de caráter ambíguo, adotadas por diferentes governos no curso dessas reformas, afetaram o sistema previdenciário brasileiro ao possibilitarem uma redução das taxas de reposição de renda no sistema público de repartição, comprimindo assim os prospectos para a segurança econômica dos idosos, e ao fixarem um teto para o recebimento das aposentadorias dos servidores públicos. Tais medidas vêm incentivando o crescimento dos fundos de pensão e dos planos privados de aposentadoria ofertados por bancos e seguradoras no país, especialmente entre aos grupos de classe média.

Palavras-chave: Reformas; Previdência Social; Previdência Complementar; Brasil.

Abstract: This article analyzes how the various pension reforms introduced in Brazil since

the end of the 1990s contributed to the expansion of private pension plans, gradually changing the country's pension system. Restrictive and ambiguous measures, adopted by different governments in the course of these reforms, affected the Brazilian social security system by allowing a reduction in income replacement rates in the public pay-as-you-go system, thus compressing the prospects for the economic security of the elderly, and fix a ceiling for the receipt of pensions of civil servants. Such measures have been encouraging the growth of pension funds and private retirement plans offered by banks and insurance companies in the country, especially among middle class groups.

Key words: Reforms; Social Security; Supplementary Pension; Brazil.

Introdução

Nas últimas décadas, diversos estudos realçaram os fatores responsáveis pela inibição de reformas mais radicais nos sistemas de bem-estar, salientando não o desmonte desses sistemas, mas os seus ajustes necessários (sua recalibragem) para enfrentar um cenário de fortes incertezas. Grosso modo, esses estudos apontaram os sistemas previdenciários de repartição como instituições difíceis de serem modificadas por reformas mais radicais.

Este artigo adota uma perspectiva distinta para analisar as mudanças que recentemente têm afetado as instituições de proteção social em diversos países. Corrobora com as análises que tendem a ressaltar que as reformas de natureza privatizante nos sistemas previdenciários raramente se produzem de forma abrupta. Mas destaca que o caráter sequencial e negociado dessas reformas tende a produzir medidas que catalisam as transformações, desenvolvendo-se muitas vezes de forma sub-reptícia.

Dados os custos políticos associados aos processos de transformação mais radicais nos sistemas previdenciários, as reformas ao redor do mundo têm demonstrado que as medidas mais utilizadas pelos reformadores para “suavizar” os processos de privatização dos riscos e dilatar os seus efeitos no tempo, procurando assim vencer resistências dos interesses organizados, é a adoção de arranjos privados de previdência complementar. Correlato a isso, como incentivos ao crescimento desses arranjos, também despontam medidas de reforma que tendem a diminuir a atratividade da previdência pública, quais

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sejam: o aumento da idade mínima para a concessão dos benefícios de aposentadoria, a fixação de tetos previdenciários para o recebimento das aposentadorias dos servidores públicos e a redução das taxas de reposição de renda nos esquemas públicos de repartição.

A utilização dessas medidas é notória nos processos de reforma de países com regimes previdenciários do tipo bismarckiano, os quais possuem maior vinculação com os interesses organizados. Embora nos diversos países que passaram por processos de reformas se observem graus variados de resistência à privatização dos arranjos públicos previdenciários, um dos aspectos centrais desses processos tem sido a tentativa de substituir (ainda que de forma progressiva) os sistemas de repartição por fundos de pensão capitalizados. Nesse sentido, este artigo enfatiza que algumas instituições de provisão de benefícios, a exemplo dos fundos de pensão, podem facilitar essas reformas, pois possuem uma natureza ambivalente, guardando diferentes funções e significados, dependendo do modo como são manejadas e interpretadas pelas diversas coalizões políticas e interesses organizados. Como instituições que operam nas interfaces do Estado com as finanças, os fundos de pensão geralmente são utilizados pelos governos durante as reformas dos sistemas previdenciários para contemplar uma diversidade de objetivos, em geral bastante contraditórios, produzindo assim “acordos ambíguos” (Palier, 2007) relativos à acomodação dos interesses que constituem o setor de previdência social.

No caso brasileiro, as mudanças que se verificaram no sistema previdenciário, particularmente nas últimas décadas, podem ser vistas como uma consequência dos efeitos cumulativos gerados pela combinação de várias medidas restritivas introduzidas pelos diversos governos na sequência das reformas previdenciárias. Tais medidas facilitaram o acesso da população aos esquemas de capitalização. Se por um lado, a introdução dessas medidas não rompeu com o papel hegemônico da previdência pública, por outro comprometeu essa hegemonia ao fortalecer o pilar de capitalização do sistema previdenciário brasileiro.

Além desta introdução, este artigo está dividido em três seções. A primeira seção discute as recentes transformações nos sistemas públicos previdenciários decorrentes da expansão do mercado de seguros privados e dos fundos de pensão. A segunda seção aborda a dinâmica de mudança institucional dos sistemas previdenciários de repartição na sequência das reformas, questionando os argumentos path dependence. A terceira seção analisa o caso das reformas previdenciárias empreendidas no Brasil desde o final da década de 1990, demonstrando como a expansão da previdência complementar foi facilitada a partir da introdução de medidas restritivas. A quarta seção conclui o trabalho.

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Nas últimas décadas, a globalização financeira, os constrangimentos fiscais colocados sobre os governos, a desindustrialização, as mudanças demográficas e as transformações nos mercados de trabalho, trouxeram substanciais desafios aos sistemas de seguridade social. A conjunção desses fatores afetou diretamente as bases de financiamento da previdência pública em diversos países, contribuindo para a emergência de uma série de reformas que lentamente reinseriram a lógica da autoproteção dos riscos nos sistemas previdenciários.

Assim, diante da retração do Estado e lançando mão de novas técnicas de classificação dos riscos, as empresas financeiras passaram crescentemente a disseminar uma variedade de serviços de bem-estar “customizados”, que antes eram providos pelos Estados de maneira mais uniforme. No encalço desses processos, bancos e seguradoras se transformaram nos “novos avalistas dos riscos individuais” (FOURCADE; HEALY, 2013:7). Mudanças na estrutura de governança das empresas financeiras, somadas a um crescente processo de impulsão ao endividamento privado, inclusive das famílias, e privatização dos riscos, contribuíram para acentuar a expansão do mercado de seguros privados (CROUCH, 2009; STREECK, 2017). Nos Estados Unidos, por exemplo, os planos privados de aposentadoria cresceram exorbitantemente. Esse crescimento é consequência, entre outras coisas, do rebaixamento dos valores das aposentadorias pagas pelo sistema público após décadas de desmonte dos arranjos públicos previdenciários. Deve-se ainda destacar que a crescente desestruturação do mercado de trabalho estadunidense, provocada pelo incremento das modalidades de trabalho flexíveis, com forte redução dos salários, da rotatividade do emprego e automação dos postos de trabalho, tornou o sistema previdenciário público do país disfuncional para enfrentar esses riscos, denotando uma situação de “privatização dos riscos sem privatização dos arranjos públicos de proteção” (HACKER, 2004: 256).

A expansão dos seguros privados não surge isenta de consequências sociais e políticas. Além de promover o advento de relações sociais mais atomizadas e insolidárias, essa expansão possibilita a emergência de novas formas de estratificação que alteram radicalmente a percepção dos indivíduos sobre suas diferenças e desigualdades (FOURCADE; HEALY, 2013). Ademais, a difusão dos arranjos de capitalização transforma os segurados da previdência em “investidores individuais”, constituindo uma base de legitimidade para os governos consolidarem suas políticas de liberalização (SCHAMIS, 2002).

O fato é que se observa atualmente, em diversos países e em graus variados, uma tendência de privatização dos sistemas previdenciários (ORESTEIN, 2008; NACZICK; PALIER, 2014). A despeito da perda de apoio político relacionado ao advento dos sistemas

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de capitalização, políticos e burocratas, igualmente, têm incentivado o crescimento de tais sistemas. A privatização dos fundos públicos de previdência, além de se apresentar como solução alternativa para os governos atenuarem as pressões fiscais sobre seus orçamentos, também tem estimulado o crescimento de grandes indústrias domésticas de serviços financeiros (NACZICK; PALIER, 2014).

É importante discutir aqui alguns aspectos sobre a emergência de tais serviços no sentido de revelar sua particular forma de utilização pelos governos (e também suas contradições). Tome-se o exemplo dos fundos de pensão. Organizados a partir de esquemas de capitalização variados, os fundos de pensão tornaram-se os principais arranjos alternativos e complementares aos regimes de repartição. Parte da literatura interpreta esses fundos como poderosos instrumentos de “financeirização” das economias domésticas. Para os autores que endossam essa perspectiva, os fundos de pensão seguem uma lógica exclusivamente especulativa e curto-prazista, visando maximizar sua rentabilidade em períodos mínimos de tempo, constituindo-se, portanto, em representantes máximos do avanço das finanças sobre os sistemas de proteção social (LAZONICK; O´SULLIVAN, 2000; VAN DER ZWAN, 2017).

É evidente que os fundos de pensão ganharam força e expressão sob a égide de um capitalismo crescentemente financeirizado (CHESNAIS, 2005). Contudo, deve-se ressalvar que a difusão dos fundos de pensão como instrumentos de financeirização é um fenômeno mais saliente nos países anglo-saxões. Diversos fatores explicam essa peculiar difusão dos fundos nesses países. Neles, o poder das grandes corporações, aliado à disseminação de uma cultura fortemente liberal e individualista, constrangeu o desenvolvimento de arranjos públicos de seguro social do tipo bismarckiano (CLARK, 2000). Assim, dado o baixo poder de atração da previdência pública junto aos assalariados desses países, os fundos privados alternativos encontraram poucos obstáculos para se expandir. Ademais, medidas legais e de cunho fortemente fiscalista adotadas por esses países para incentivar o crescimento dos fundos de pensão exigiam que os ativos disponíveis nesses fundos fossem capitalizados e que sobrepujassem os seus passivos, levando a um aumento considerável dos aportes de empregadores e empregados e ao consequente crescimento das reservas técnicas a serem investidas na economia –, possibilitando desse modo que os fundos se transformassem em grandes “investidores institucionais” (CLARK, 2000)1. Desde o final da década de 80, os fundos de pensão dos países anglo-saxões, especialmente dos Estados Unidos, passaram a orientar a aplicação da sua enorme massa de recursos para ativos mais arriscados,

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diversificando o seu portfólio de investimentos e buscando diferentes formas de rentabilidade, inclusive nos mercados financeiros internacionais (SCHELKLE, 2019). 2

Entretanto, é importante destacar que os fundos de pensão nem sempre são “levados” pela lógica da finança. A variável temporal é uma dimensão analítica importante para capturar as diferentes funções que os fundos de pensão desempenharam nas economias capitalistas. Durante o ciclo fordista de regulação das economias políticas, a utilização de fundos previdenciários (de capitalização coletiva inclusive) para fomentar estratégias nacionais de desenvolvimento, que paradoxalmente também se constituíram como estratégias de fortalecimento da acumulação capitalista, se tornou um fenômeno recorrente. Aliás, antes mesmo do padrão fordista-keynesiano despontar no horizonte, vários países de industrialização tardia (latecomers) viabilizaram formas alternativas de investimento que levaram os fundos a desempenhar importantes papéis desenvolvimentistas e de incremento das políticas nacionais de bem-estar (KANGAS, 2006; ANDERSON, 2019).

É claro que a direção tomada pelos fundos de pensão nas diferentes economias políticas depende de como o Estado maneja o seu arsenal regulatório para orientar os investimentos e constranger atividades especulativas. Enquanto os países do modelo anglo-saxão geralmente induzem seus fundos de pensão a maior exposição aos riscos do mercado financeiro, muitos países da Europa Continental têm introduzido regulações que forçam seus fundos a garantir taxas mínimas de retorno sobre os investimentos e os montantes poupados pelos segurados (WIB, 2015). Ademais, é importante salientar que em vários países os fundos de pensão são administrados de forma não lucrativa, limitando a margem de ação das companhias seguradoras. Essa forma de administração é notória nos casos dos fundos que contam com forte participação sindical (ANDERSON, 2019).

Nesse aspecto, a literatura sobre “variedades de capitalismo” fornece importantes aportes analíticos para compreender como os fundos de pensão estão subordinados a diferentes políticas regulatórias, regimes de investimento e de bem-estar, inserindo-se ainda nos distintos “sistemas financeiros” de países com economias mais “coordenadas” e “liberais” (HALL; SOSKICE, 2001; ESTEVEZ-ABE et al, 2001). Assim, o modo variado de atuação dos fundos pode ser considerado um desdobramento da existência (ou não) de certas “complementariedades estratégicas” nessas diferentes economias; que no caso das “economias de mercado coordenadas” imbricam os sistemas financeiros ao fortalecimento das empresas, mercados de trabalho e sistemas de proteção social (HALL; SOSKICE, 2001).

2 Os planos de previdência complementar atingiram cifras astronômicas ultrapassando os US$ 38 trilhões na área da OCDE no

final de 2016. Desses US$ 38 trilhões, 66% estavam a cargo do sistema de previdência privada estadunidense (OCDE, 2017 apud MAGNANI et al, 2020).

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Vale ainda ressaltar que mesmo recentemente, diante de um cenário de crônico endividamento público e de economias cada vez mais financeirizadas, em alguns países emergentes, incluindo o Brasil, os fundos de pensão têm desempenhado importantes papéis, estabelecendo relações simbióticas entre atores estatais e empresariais na busca de estratégias para potencializar os investimentos produtivos. Diferentemente dos países anglo-saxões, a experiência recente de alguns países latino-americanos com os fundos de pensão, em que houve maior participação do Estado na alocação e direção dos investimentos, embora se mostrasse efêmera, levou alguns autores a nomear essa experiência de “desenvolvimentismo de fundos de pensão” (DATZ, 2014: 484).

Entretanto, a mera intenção de políticos e burocratas de transplantar acriticamente “modelos de fundos de pensão” no sentido de produzir demiurigicamente um incremento das taxas de poupança e investimento nas suas economias domésticas - na ausência das “complementaridades” acima destacadas - pode se constituir num “voo cego” em vista da natureza ambígua dos fundos e da incerteza dos seus resultados. Durante as décadas de 1980 e 1990, vários países em desenvolvimento buscaram emular a estrutura institucional dos fundos de pensão dos países anglo-saxões. Em alguns países da América Latina, o desenvolvimento do mercado de capitais foi promovido através da privatização dos fundos públicos previdenciários e da consequente introdução de sistemas individuais de capitalização (MADRID, 2003; MESA-LAGO, 2004). Dada à crônica escassez de capital privado das economias latino-americanas, a privatização dos sistemas previdenciários foi colocada como um imperativo para os países da região elevarem suas taxas de poupança interna. A ideia disseminada para esses países, por diversos organismos internacionais, era que a “liberalização” dos recursos previdenciários retidos pelo Estado criaria um volume suficiente de recursos financeiros para facilitar o acesso das firmas aos investimentos. No entanto, os resultados desses processos foram pífios; elevando não a poupança doméstica dos países que optaram por privatizar seus arranjos públicos previdenciários, mas os níveis de desigualdade e insegurança das suas populações, levando alguns países a reverter seus processos de privatização (HUJO; RULI, 2014; MESA-LAGO, 2019).

O que deve ficar claro é que os fundos de pensão não são entidades monolíticas; eles não produzem milagres e seus resultados dependem do comportamento de variáveis macroeconômicas e do cenário econômico internacional. Mais importante do que destacar as “propriedades imanentes” dos fundos de pensão é analisar sua peculiar natureza contraditória. A dinâmica de atuação dos fundos revela uma tensão constitutiva advinda dos seus diferentes modos de atuação e apreensão pelas coalizões políticas e interesses organizados; operando ora como um instrumento a serviço da especulação financeira; ora

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como um mecanismo de funding3 ao potencializar os investimentos produtivos de longo prazo nas economias nacionais; ora como as duas coisas ao mesmo tempo. Os fundos podem ser utilizados para expandir o emprego e incrementar os investimentos nos sistemas públicos de bem-estar; e ao contrário, como instrumentos de retração desses sistemas. Cabe ainda destacar que esses fundos são cobiçados por uma diversidade de interesses, tornando-se objeto de acirradas disputas por parte de seguradoras, bancos e grandes conglomerados empresariais; mas também de sindicatos, burocracias e sobretudo de políticos interessados em manipular o caráter ambíguo dos fundos para perseguir diferentes objetivos.

Políticos e burocratas, em particular, se veem cada vez mais premidos a utilizar a natureza ambígua dos fundos de pensão para conciliar objetivos contraditórios em face das pressões fiscais que atualmente incidem sobre os sistemas de repartição. Fazem isso, no entanto, como uma aposta; conscientes do fato de que contam com poucas escolhas, podendo inclusive se defrontar com novos dilemas e dificuldades.

A crise financeira de 2007/2008 revelou o caráter contingente e incerto dos resultados dos fundos de pensão.4 Apesar de a crise se configurar como um fenômeno politicamente saliente, exigindo medidas corretivas por parte dos governos, estes continuaram limitados por constrangimentos fiscais (e sem a opção de aumentar os seus benefícios públicos de seguridade). Além disso, como consequência da crise, os fundos de pensão têm buscado aplicar os seus recursos em ativos menos arriscados, como títulos da dívida. Mas o contexto internacional de juros baixos têm afetado suas taxas de retorno, comprometendo a rentabilidade dos seus ativos, inclusive colocando em risco os montantes poupados pelos segurados. Desse modo, assiste-se atualmente um trade-off na dinâmica de operação dos fundos entre a necessidade de maior volatilidade/risco e segurança/retorno dos investimentos (HASSEL et al 2019). E isso, por sua vez, vem requerendo dos governos novas capacidades regulatórias, além de certo malabarismo, para lidar com a ambiguidade dos fundos a respeito da natureza incerta dos seus resultados.

Mudança sub-reptícia dos sistemas públicos previdenciários?

Deve-se ressalvar que as tendências observadas acima não são uniformes e convergentes. Consideráveis obstáculos políticos e institucionais impedem que as diferentes

3 Segundo De Paula (2015), o processo de financiamento pode ser dividido em duas etapas: a primeira relacionada a oferta por

crédito de curto prazo provida pelo setor bancário no momento em que a firma decide investir (finance); a segunda, no qual a poupança ex post pode ser utilizada (via mercado financeiro) para consolidar dívidas de curto prazo em dívidas de longo prazo (funding) mais compatíveis com a maturidade do investimento. Assim, o funding - que pode ser realizado pela colocação de um título corporativo - tem um papel importante de mitigar o crescimento da fragilidade financeira inerente a uma economia em crescimento (De Paula, 2015).

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Durante a crise financeira, os ativos dos fundos de pensão dos países da OCDE sofreram uma desvalorização de 25%, e nem todos conseguiram se recuperar dessa perda (HASSEL et al, 2019).

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economias políticas sigam as mesmas “trajetórias de liberalização” (THELEN, 2012). A literatura que investiga os fatores responsáveis pela resiliência das instituições de bem-estar aos processos de reforma aponta exatamente para essa ausência de convergência como principal prova da diversidade que ainda caracteriza as economias capitalistas e, consequentemente, os arranjos de bem-estar nacionais.

De acordo com essa literatura, as reformas de natureza privatizante nos sistemas previdenciários de repartição são constrangidas pelos efeitos path dependence legados das políticas prévias (MYLES; PIERSON, 2001; HÄUSERMANN, 2010). Tais sistemas estariam assentados sobre arranjos institucionais bastante sólidos, visto que os processos que presidiram a estruturação das suas políticas no passado – constituídas por um legado corporativista – criaram coalizões de interesse, além de incentivos materiais, que contribuíram para a continuidade dessas políticas no tempo. Portanto, para essa literatura os sistemas previdenciários de repartição são exemplos de instituições duráveis e difíceis de serem modificadas. Tais sistemas carregam consigo fortes propriedades inerciais; eles materializam relações contratuais de longo prazo entre gerações (MYLES; PIERSON, 2001); produzem benefícios materiais bastante tangíveis e, metaforicamente, se assemelham a “elefantes em movimento” (HINRICHS, 2009).

Duas principais razões justificariam a ausência de reformas radicais nesses sistemas. A primeira é de ordem econômica e se relaciona aos custos fiscais decorrentes da transição de um modelo público de repartição para um modelo privado de capitalização. A segunda é de ordem política e está associada aos grupos de interesse vinculados ao modelo de repartição, visto que o mesmo guarda uma íntima relação com os sindicatos e associações profissionais, os quais se se constituem na base de sustentação dos arranjos bismarckianos de seguro social (BONOLI, 2000). Os benefícios dos sistemas públicos de previdência proporcionam importantes recursos econômicos e de ação coletiva para diferentes grupos de trabalhadores. Assim, sindicatos e grupos corporativos se mostram como poderosos veto players aos intentos de desmonte das instituições de proteção social (TSEBELIS, 1999). Portanto, haveria suficientes razões para esses grupos resistirem aos intentos mais radicais de reforma, sobretudo quando estes buscam “nivelar” os benefícios de algumas categorias ocupacionais, rebaixando o valor de suas aposentadorias.

A rigor não existe uma relação automática entre maior presença dos sindicatos e preservação dos arranjos públicos de bem-estar. É claro que os poderes de veto do sindicalismo às tentativas mais ousadas de reforma dos sistemas de proteção são mais salientes em países onde a fragmentação corporativa dos sistemas previdenciários se estruturou dentro de arranjos públicos de provisão - caso dos sistemas bismarckianos europeus que contam com forte participação sindical.

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Deve-se destacar, todavia, que em alguns contextos específicos os sindicatos e as categorias profissionais se tornaram importantes “parceiros” das coalizões reformistas. Apesar de geralmente haver resistência dos sindicatos às reformas privatizantes, em alguns países os poderes de veto do sindicalismo funcionam num sentido oposto àquele verificado nos meios sindicais europeus. Tal situação é típica de países em que o sindicalismo é muito pulverizado, possuindo fracas conexões com os sistemas públicos de provisão, e onde o crescimento dos benefícios ocupacionais privados se deu de forma bastante acentuada e paralelamente ao sistema público previdenciário; caso dos Estados Unidos (BÉLAND, 2001).

Deve-se também salientar que durante o auge dos processos de liberalização na América Latina, os governos de Carlos Menem na Argentina, de Salinas de Gortari no México e de Carlos Andrés Pérez na Venezuela (governos representantes de partidos com fortes bases sindicais) se utilizaram deliberadamente de sua maior interlocução com o movimento sindical para impor reformas bastante impopulares. Além disso, aproveitaram-se da existência de sistemas de provisão de benefícios altamente fragmentados e desiguais para cooptar sindicatos dispostos a negociar sua histórica “fidelidade” aos temas trabalhistas em troca de benefícios privados de bem-estar (MURILLO, 2001).

Em suma, a fragmentação corporativa de alguns sistemas previdenciários de repartição pode contribuir para sua maior resiliência institucional, dependendo das características do movimento sindical e do seu grau de coesão em torno da defesa dos arranjos públicos; e quando estes se mostram de fato atrativos para o movimento sindical.

Entretanto, desde a década de 1990 diversos países ao redor do mundo, com sistemas de repartição bismarckianos, experimentaram sucessivas reformas que, sem serem radicais em essência, transformaram a fisionomia desses sistemas (BONOLI, 2000; PALIER, 2005, 2007). De acordo com Palier (2005), o que caracteriza essas reformas é um processo de feedback, no qual as medidas que visam diminuir as taxas de substituição dos benefícios dos sistemas de repartição e reduzir o teto das aposentadorias para as categorias de trabalhadores com maiores salários, levam à expansão da previdência privada complementar. Segundo o autor, os efeitos cumulativos advindos dessas reformas vêm gradualmente liberando as amarras dos sistemas de repartição dos fenômenos path dependence (PALIER, 2005).

Ao analisar as reformas previdenciárias na França, Palier (2007) destacou como os fundos de pensão transformaram o sistema de repartição francês; considerado então um sistema difícil de ser modificado por reformas mais ousadas. Até a década de 1990, os fundos de pensão na França gozavam de um baixo prestígio em razão da forte oposição dos sindicatos e dos partidos de esquerda. Porém, diversas reformas incrementais, introduzidas a partir de 1992, tornaram os benefícios previdenciários de repartição menos atrativos para

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diversas categorias profissionais. Paralelamente a isso, houve um forte avanço dos fundos de pensão ocupacionais; avanço este proporcional à diminuição das taxas de reposição das aposentadorias destinadas aos trabalhadores filiados ao sistema público (PALIER, 2007).

Embora as ideias mais radicais demonstrassem algum peso no desenho inicial dessas reformas, as mudanças significativas no sistema previdenciário francês somente ocorreram, como sugere Palier (2007), através de acordos provisórios com os interesses organizados; e quando algumas medidas particularmente controversas (no caso, advindas da introdução dos fundos de pensão), passaram a operar de um modo contraditório às instituições que se pretendia reformar. Muitos atores relevantes, incluindo os sindicatos, os partidos de esquerda e algumas associações patronais, se opuseram frontalmente à introdução dessas medidas. Mas essa oposição foi um tanto dissimulada, à medida que esses atores aproveitaram-se da tradicional fragmentação corporativa do sistema previdenciário francês para negociar benefícios diferenciados, incluindo os de capitalização, modificando assim suas atitudes pregressas (PALIER, 2007).

O que deve ficar claro em relação a esses argumentos, é que a percepção dos atores sobre a adoção de algumas medidas impopulares introduzidas no curso das reformas previdenciárias, como a instituição de regimes complementares de capitalização, não advém de qualquer solução clara e racional, mas de sua ambiguidade política. Mesmo sistemas previdenciários estruturados por interesses mais coesos estão sujeitos a uma súbita mudança provocada pela interpretação vaga e ambígua de algumas medidas, uma vez introduzidas nesses sistemas.

Geralmente as medidas introduzidas para precipitar reformas restritivas nos sistemas previdenciários resistentes à mudança são aquelas que contemplam múltiplos interesses e que possuem uma "peculiar polissemia", sujeitando-se a uma diversidade de interpretações, a exemplo dos fundos de pensão (PALIER, 2007:100). E é justamente por comportar essa diversidade que essas medidas possuem uma utilidade política durante os processos de reforma. Pode-se dizer que elas ajudam a estruturar um “consenso ambíguo” relativo às controvérsias que surgem em torno das inovações introduzidas durante os processos de reforma (PALIER, 2007:88), conformando um acordo provisório entre visões opostas, no qual se acomodam um arrazoado de ideologias e interesses distintos e a partir do qual cursos de ação divergentes podem ser tomados. É através da apropriação direta ou sub-reptícia dessas medidas ambíguas que alguns atores organizados, particularmente vinculados ao mercado de seguros privados, tendem a dispender suficientes recursos para explorar brechas legislativas deixadas pelos processos de reforma, criando uma variedade de “vias ocultas” que terminam por inviabilizar as diretrizes estruturantes das políticas de proteção social (HACKER; PIERSON, 2014).

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Em suma, é por trazerem implícita essa ambiguidade que os regimes complementares de capitalização são introduzidos nos sistemas de repartição. Em face da inércia que caracteriza esses últimos, as inovações decorrentes da introdução dos arranjos de capitalização passam a se desenvolver de maneira gradual e muitas vezes sub-reptícia, até que alcancem uma dimensão significativa.

A expansão da previdência complementar no Brasil

Desde a década de 1930, a proteção social no Brasil está assentada sobre um arranjo político-normativo em que a previdência social cumpriu um destacado papel. Cabe destacar que o regime corporativo implantado por Vargas, durante as décadas de 30 e 40, utilizou-se deliberadamente dos benefícios do seguro social como um importante mecanismo de indução para inscrever os trabalhadores brasileiros nas proteções jurídicas vinculadas ao trabalho, contribuindo também para adensar o processo de sindicalização (LANZARA, 2018).

Apesar dos intentos de expandir os arranjos de seguro social a todos os trabalhadores, a previdência social no país se desenvolveu de modo bastante fragmentado, possuindo vários regimes previdenciários com benefícios diferenciados e bastante desiguais. Mesmo após a unificação desses regimes com a criação do Instituto Nacional de Previdência Social (INPS), em 1966, segmentos significativos da população permaneceram sem cobertura.5 Características estruturais do mercado de trabalho brasileiro, como a maior heterogeneidade das situações de trabalho, altos índices de informalidade e de rotatividade no emprego, foram fortes inibidores do movimento de extensão da cobertura previdenciária. A Constituição Federal de 1988 trouxe importantes inovações inclusivas ao criar um sistema integrado de seguridade social. No que concerne ao sistema previdenciário, a Constituição instituiu o trabalhador rural como “segurado especial”, equiparando o plano de benefícios para todos os trabalhadores, tendo sido fixado o piso no valor de um salário mínimo, indexado aos níveis correntes de inflação.6 Enfim, o sistema previdenciário brasileiro possui importantes características bismarckianas, e assim de resiliência institucional, mas nunca atingiu a abrangência dos seus congêneres europeus, tornando-se bastante suscetível aos processos de reforma de natureza restritiva.

No Brasil, a discussão sobre as reformas previdenciárias começa a ganhar destaque após a estabilização inflacionária ocorrida com o Plano Real, durante o primeiro governo da

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É somente na década de 1970 que os benefícios da previdência social passam a ser estendidos para os trabalhadores rurais, autônomos e empregados domésticos, mesmo assim a partir de regras bastante restritivas.

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A assistência social no Brasil é um direito universal garantido pela Constituição, com destaque para o Benefício de Prestação Continuada (BPC): benefício no valor de um salário mínimo destinado aos idosos (65 anos) e portadores de deficiências que possuem renda familiar per capita de até um quarto do salário mínimo.

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coalizão de centro-direita liderada pelo presidente Fernando Henrique Cardoso (1995-1998). O mote para a primeira onda de reformas no sistema previdenciário centrou-se nos requerimentos de estabilização monetária e equilíbrio fiscal, que então orientavam a agenda macroeconômica do governo. A Emenda Constitucional nº 20 de 15 de Dezembro de 1998, a primeira reforma previdenciária do governo FHC, envolveu tanto o Regime Geral de Previdência Social (RGPS), que cobre os trabalhadores da iniciativa privada, quanto o Regime Próprio de Previdência Social (RPPS) dos servidores públicos. A EC nº 20/98 substituiu a aposentadoria por tempo de serviço pela aposentadoria por tempo de contribuição e decretou o fim da aposentadoria proporcional. No caso do RPPS, fixou-se, pela primeira vez, um teto para o recebimento das aposentadorias dos servidores públicos e limitou-se a idade para o recebimento das aposentadorias em 60/55 anos, homens e mulheres respectivamente. A fixação desse teto mostrou-se uma medida estratégica para impulsionar a adesão dos trabalhadores aos regimes complementares de capitalização, na época ainda incipientes e pouco demandados (LAVINAS; ARAÚJO, 2017). Apesar dessas mudanças, o governo não logrou estabelecer a idade mínima para o recebimento das aposentadorias no RGPS e a contribuição dos inativos do serviço público.

Como demonstram Jard da Silva e Cortez (2007), características atinentes ao sistema político brasileiro, notadamente o maior poder de agenda do Executivo, permitiram ao governo FHC superar os principais entraves à reforma, destacando-se ainda a baixa interlocução do governo com o movimento sindical (JARD DA SILVA; CORTEZ, 2007). Contudo, uma das principais alterações trazidas pela primeira reforma foi a desconstitucionalização da fórmula de cálculo das aposentadorias, abrindo um precedente para uma segunda reforma (infraconstitucional) realizada no início do segundo governo FHC (1999-2002) com a introdução da Lei do Fator Previdenciário (Lei nº 9.876/99), que alterou substantivamente as regras de cálculo do valor dos benefícios pagos pelo RGPS. De acordo com a nova regra que instituiu o Fator, quem procurou se aposentar em idades prematuras acabou pagando o preço por meio de taxas de reposição mais baixas nos valores de suas aposentadorias (MATIJASCIC, RIBEIRO, KAY, 2007). Enfim, as reformas empreendidas durante o governo FHC endureceram as regras de concessão dos benefícios, rebaixando o valor dos benefícios para quem quisesse se aposentar mais cedo.7

A segunda fase dessas reformas se concretiza durante os governos da coalizão de centro-esquerda liderada pelo Partido dos Trabalhadores (PT) – nos governos Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2010) e Dilma Rousseff (2011-2016). Logo no início do primeiro mandato do presidente Lula é aprovada a Emenda Constitucional nº 41, de 19 de dezembro de 2003. A EC nº 41/2003 buscou equiparar as regras previdenciárias para todos os

7

A EC nº 20/98 retirou do texto constitucional o período contributivo, que passou a ser definido por legislação ordinária, tornando eventuais alterações menos onerosas politicamente.

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trabalhadores do país. Para isso, foi estabelecido um teto de remuneração para as aposentadorias e pensões dos servidores públicos equivalente ao do RGPS e aumentou-se a idade de referência para aposentadoria dos servidores: de 53/48 anos para 60/55 (homens e mulheres respectivamente). A reforma também instituiu a taxação dos inativos no RPPS. Assim, os servidores públicos aposentados, cujos proventos ultrapassavam o teto dos benefícios, passaram a contribuir com 11% do valor de suas aposentadorias ou pensões (LAVINAS; ARAÚJO, 2017). A reforma previdenciária do governo Lula também promoveu medidas de inclusão previdenciária ao reduzir as alíquotas contributivas para incentivar os trabalhadores do setor informal a se filiar no RGPS.8 É importante destacar que entre 2004 e 2014 a expansão da formalização do emprego e a valorização contínua do salário mínimo impactaram positivamente a previdência social, levando a um aumento das taxas de filiação previdenciária. Também nesse período as transferências previdenciárias tiveram uma significativa contribuição para reduzir as desigualdades no país (KERSTENETZKY, 2017).

O movimento de inclusão previdenciária iniciado por Lula em 2004 continuou no primeiro mandato da presidente Dilma (2010-2014), mas foi perdendo vigor. No final de 2014, o governo Dilma editou a Medida Provisória nº 664, convertida posteriormente em Lei (Lei nº 13.135/2015), alterando significativamente as regras de pensão por morte e auxílio-doença. As alterações promovidas por essa lei foram consideradas bastante restritivas. Premido por fortes pressões fiscais, e em meio a uma profunda crise política, o governo Dilma foi impelido a adotar uma política de ajuste fiscal que além de criar restrições para os trabalhadores terem acesso a uma série de benefícios, entre eles o seguro-desemprego, trazia explícita a necessidade de mais uma reforma da previdência. Por último e não menos importante, cabe destacar que foi durante o primeiro governo Dilma que se regulamentou a Fundação de Previdência Complementar do Servidor Público Federal (FUNPRESP) para administrar os planos de aposentadoria complementar dos servidores do Executivo, Legislativo e Judiciário. A regulamentação da FUNPRESP (Lei nº 12.618/2012) enfrentou forte resistência dos sindicatos ligados ao funcionalismo público, base de apoio tradicional do PT e da Central Única dos Trabalhadores - CUT, seu principal braço sindical. Enfim, todas essas medidas afetaram negativamente a base de sustentação política da presidente Dilma, deixando livre o caminho para que um conjunto de forças conservadoras contestasse o seu segundo mandato através de um controverso processo de impeachment em 2016.

Embora moderadas, as reformas previdenciárias produzidas no Brasil até 2015 criaram um ambiente favorável à difusão da previdência privada e dos fundos de pensão através dos efeitos cumulativos das medidas restritivas adotadas pelos sucessivos

8 Importantes medidas de inclusão previdenciária foram o Plano Simplificado de Inclusão Previdenciária – LC nº 123/2006 e a

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governos. A introdução de medidas específicas para incentivar os arranjos de previdência complementar, no curso dos processos de reforma, acentuou o caráter híbrido do sistema previdenciário brasileiro, tornando o seu pilar privado mais atrativo para as diversas categorias profissionais.

A Previdência Complementar (PC) no Brasil possui arranjos de capitalização variados e constitui-se num complemento aos benefícios do RGPS e RPPS; estabelece vínculo estreito entre contribuição e benefício, possuindo planos de benefícios em sua maioria na modalidade de Contribuição Definida (CD)9. A PC está organizada a partir de duas categorias, quais sejam: as Entidades Fechadas de Previdência Complementar (EFPCs), entidades sem fins lucrativos (popularmente conhecidas como fundos de pensão) que podem ser instituídas por empresas (patrocinadores público ou privado) e/ou por pessoas jurídicas de caráter profissional, classista ou setorial (instituidores); e as Entidades Abertas de Previdência Complementar (EAPCs), entidades com fins lucrativos que atuam no mercado de previdência privada - os planos oferecidos por essas entidades (seguradoras e bancos) são obrigatoriamente de capitalização individual.

Apesar de remontar as origens do sistema previdenciário brasileiro,10 os esquemas de capitalização passaram a ter um impulso adicional com as reformas introduzidas a partir de 1998. Primeiramente, expandiu-se o acesso do regime complementar aos trabalhadores da iniciativa privada e, mais tarde, foi também ampliado aos servidores públicos como alternativa de complementação de seus rendimentos de aposentadoria que passaram a ser fixados pelo teto do RGPS.

Deve-se destacar, todavia, que durante o governo FHC a ênfase recaiu no fortalecimento da PC como alternativa à previdência pública através de incentivos ao crescimento das EAPCs. Em meio a uma onda de privatizações de empresas estatais, e a partir de uma aliança forjada com atores empresariais, especialmente ligados ao setor financeiro, as reformas produzidas durante o governo FHC buscaram deslegitimar os arranjos públicos previdenciários e os fundos de pensão geridos no âmbito das estatais. Contando com forte apoio da mídia e do governo, as seguradoras e bancos passaram a oferecer planos individuais e a vender uma imagem de que eram muito mais “eficientes” que a previdência pública e os fundos de pensão – acusados de serem instituições “retrógradas” e propagadoras do clientelismo e da corrupção (GRÜN, 2005). A previdência privada aberta

9 No modelo CD decide-se o tamanho da contribuição a ser efetuada ao plano e o benefício é definido no momento da

aposentadoria, baseado no montante de recursos que o segurado acumulou em sua conta individual. Nessa modalidade, cada participante tem a sua conta individual, de forma que os riscos associados ao desempenho dos fundos acumulados recaem exclusivamente sobre os participantes e não sobre as entidades que administram os fundos (DE CONTI, 2016).

10

As mutualidades paulistas (entidades privadas, de capitalização e controladas pelo patronato) influenciaram fortemente o desenho e o modo de organização das Caixas de Aposentadorias e Pensões (CAPs), instituições embrionárias do sistema previdenciário brasileiro criadas em 1923 (LANZARA, 2018). Contudo, o regime de previdência complementar somente foi regulamentado na década de 1970 (Lei n. 6.435/1977) durante o regime militar, atrelado primeiramente aos fundos de pensão das empresas estatais e ao objetivo de estimular o mercado nacional de capitais (JARDIM, 2019).

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era vista não apenas como algo inovador e em consonância com as “melhores práticas” de gerenciamento individual dos riscos, mas como uma necessidade para reduzir o déficit fiscal.

Os fundos de pensão tiveram poucos incentivos no período FHC em razão da própria estratégia do governo de estimular o crescimento das EAPCs (SANTANA, 2017). No entanto, eles foram instrumentalizados para perseguir outros fins, atuando como agentes financiadores do processo de reconversão patrimonial da economia brasileira durante o processo de privatização das empresas estatais. Como destaca Grün (2005:26), os fundos de pensão, na época, estabeleceram uma íntima relação de “parceria” com os grupos econômicos nacionais que se formaram para disputar os leilões de privatização das estatais, sustentando os esquemas financeiros que permitiam a aquisição de participações acionárias nas empresas recém-privatizadas.

Entretanto, é somente no final da década de 1990, com a mobilização de parlamentares do PT no Congresso Nacional, pressionando pela criação de uma legislação de regulamentação e fomento aos fundos de pensão, que se criará um considerável espaço para o seu desenvolvimento (JARDIM, 2009, 2016; SANTANA, 2017). De acordo com Jardim (2009), foram os parlamentares do PT ligados ao movimento sindical que inseriram na Câmara dos Deputados os debates sobre a necessidade de expansão e maior regulação das entidades de previdência complementar. Através da influência desses parlamentares, conseguiu-se aprovar, em 2001, a Lei Complementar nº 109 (LC nº 109/2001), que autorizava a criação de fundos de pensão por instituidores11. A justificativa para essa legislação fundamentava-se na necessidade de maior fiscalização das entidades de previdência complementar, visando estabelecer novos planos associativos e, ao mesmo tempo, promover a participação dos trabalhadores na gestão dos fundos (SANTANA, 2017). Assim, a ampliação da margem de atuação dos fundos no Brasil começa a ser efetivamente percebida como oportunidade a partir de 2001, com o reconhecimento explícito dessa atividade mediante a LC nº 109/2001. Até o governo Lula, as instituições de previdência complementar gozavam de uma péssima reputação em razão da ausência de mecanismos de fiscalização e transparência. Contudo, a vitória de Lula nas eleições de 2002 possibilitou um estreitamento entre o movimento sindical e o mercado financeiro, sobretudo no que se refere aos fundos de pensão (JARDIM, 2016). Buscando melhorar a imagem das instituições de previdência complementar junto à população, e de modo a obter anuência dos sindicatos a um projeto de propagação dos fundos de pensão associativos, “o então Presidente Lula

11

Além de possibilitar a criação dos fundos instituidores – fundos organizados por entidades representativas de caráter profissional, classista e setorial - a LC nº 109 regulamentou o art. 202 da CF 88 que versa sobre o regime de previdência privada.

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fez uma larga campanha de divulgação dos fundos, especialmente nos sindicatos e centrais sindicais nos anos de 2003 e 2004” (JARDIM, 2016:347).

É importante destacar que durante os governos Lula e Dilma houve uma significativa mudança de orientação no modo de operação dos fundos. Pode-se dizer que estes foram ressignificados através de sua explícita utilização como um instrumento multifacetado de intervenção e de interlocução com os interesses organizados, particularmente com os interesses do mundo sindical. Como destacam diversos autores, durante os governos petistas, em que pese um ambiente econômico dominado pelo setor financeiro, o Estado passou a adquirir maior protagonismo na direção dos investimentos, implantando projetos de infraestrutura com base nos recursos oriundos dos fundos, via emissão de títulos públicos e por meio de investimentos diretos nas empresas, exigindo ainda certa regulamentação do mercado financeiro (JARDIM, 2009, 2016; RAIMUNDO, 2010; DATZ, 2014; DE CONTI, 2016; SANTANA, 2017).

Assim, os fundos de pensão nos governos do PT passaram a perseguir diferentes estratégias e objetivos. Em primeiro lugar, tornaram-se importantes aliados da denominada “estratégia neodesenvolvimentista” que sustentou as políticas econômicas dos governos petistas, particularmente no segundo mandato de Lula e no primeiro de Dilma. Tal estratégia se fundamentava no estímulo ao mercado interno, via expansão do consumo, e na ampliação do papel do Estado na distribuição de renda e alocação de investimentos (BASTOS, 2012). Nesse aspecto, os fundos de pensão ajudaram a cimentar uma coalizão desenvolvimentista de novo tipo, envolvendo governo, bancos públicos, empresariado (inclusive do setor financeiro) e quadros sindicais. Na época, defendia-se que os fundos de pensão deveriam retomar o nível de investimento do país, viabilizando a geração de empregos e o crescimento econômico de longo prazo (SANTANA, 2017). Enfim, os fundos poderiam aprofundar sua participação nas estruturas de financiamento do investimento de longo prazo no Brasil, conferindo destaque ao Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) como catalizador desse processo (RAIMUNDO, 2010).

Mudanças na estrutura de regulamentação realizada pelos governos petistas foram fundamentais para reorientar as estratégias de aplicação dos fundos no período.12 Com a regulamentação da Lei n. 792/2009, criou-se uma nova modalidade de investimento para os fundos, o Investimento Estruturado, a partir do qual os fundos foram autorizados a investir até 20% do seu portfólio em programas de infraestrutura (JARDIM, 2016). Aqui os fundos de pensão procuraram se estabelecer como importantes instrumentos de financiamento de longo prazo (funding) do capitalismo nacional através de um papel mais ativo na realização

12

As medidas de fiscalização das entidades de previdência complementar foram reforçadas através da criação de órgãos como a Superintendência Nacional de Previdência Complementar (PREVIC). A criação desse órgão, em 2010, representou mudança institucional significativa, conferindo capacidade operacional para o exercício das funções normativas do sistema (RAIMUNDO, 2010).

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de investimentos produtivos (SANTANA, 2017). Para que os fundos cumprissem objetivos desenvolvimentistas, o governo passou a manejar instrumentos de política monetária, via Banco Central, para incentivar os fundos a adquirir títulos da dívida pública pré-fixados, com juros menores do que os praticados pela Selic, cujos principais compradores foram bancos públicos e privados interessados no financiamento em infraestrutura (RAIMUNDO, 2010; SANTANA; FRACALANZA, 2019).

Como um resultado da mobilização desses instrumentos, os fundos provenientes das empresas estatais lideraram os investimentos em infraestrutura, particularmente entre os anos 2006 e 2013. O ano de 2007 é emblemático da “virada desenvolvimentista” do governo, que fez largo uso dos fundos de pensão das empresas estatais para direcioná-los aos leilões de concessão de obras em infraestrutura no intuito de incrementar o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC). Prova disso, é que a participação dos investimentos em renda variável na carteira das EFPCs ampliou-se bastante entre 2004 e 2007. Nesse período, os fundos de pensão passaram a compor, ainda que de forma bastante modesta, os chamados Fundos de Investimento em Participações (FIPs)13, com a proposta de fomentar vários setores, como energia, particularmente petróleo e gás, logística (construção de terminais portuários) e construção civil (RAIMUNDO, 2010; DE CONTI, 2016). Ao analisar as carteiras de investimento dos três maiores fundos de pensão do Brasil (Previ, Petros e Funcef)14 entre 2003 e 2013, De Conti (2016) conclui que estes, além de concentrarem mais de 45% dos ativos das EFPCS, possuíam recursos expressivos investidos em empresas de grande porte, ampliando inclusive sua participação em empresas que anteriormente haviam sido privatizadas, como a Companhia Vale do Rio Doce.Mas apesar de deterem maior participação em investimentos em renda variável, estas três entidades também se caracterizaram por uma gestão bastante conservadora de suas carteiras, particularmente após a crise de 2007/2008, com grande concentração de recursos alocados em títulos públicos15, revelando, nesse sentido, o comportamento errático da composição das carteiras dos fundos relativo às oscilações do mercado (CONTI, 2016). Os fundos também foram importantes para a constituição de grandes grupos nacionais como Ambev, Brasil Foods, JBS etc. Nesse aspecto, cabe destacar que o BNDES condicionou o acesso aos recursos dos fundos à necessidade de criação de grandes conglomerados nacionais, auxiliando, portanto, o setor privado e o Estado a estreitarem os seus “laços” na

13 De acordo com De Conti (2016:72), a alocação dos recursos dos fundos em FIPs ou debêntures está associada a ações

conjuntas entre eles e o BNDES (ou o BNDESPar), já que se trata de operações de investimento bastante volumosas, que requerem, portanto, o acesso a financiamentos de distintas fontes.

14

Caixa de Previdência dos Funcionários do Banco do Brasil (Previ), Fundação Petrobras de Seguridade Social (Petros) e Fundação dos Economiários Federais (Funcef), vinculada aos funcionários da Caixa Econômica Federal.

15 Segundo De Conti (2016:69), a postura mais conservadora desses fundos é facilmente compreensível pela segurança,

liquidez e rentabilidade oferecida por estes títulos, que normalmente permitem às entidades fechadas atingirem as metas atuariais de seus planos sem exposição a risco.

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tarefa de construir novas modalidades de financiamento lideradas pelos fundos de pensão (LAZZARINI, 2010).

Em segundo lugar, a maior participação dos sindicatos na gestão dos fundos de pensão poderia servir como um instrumento de “domesticação do capitalismo” (JARDIM, 2009), possibilitando, além da construção de uma nova relação capital-trabalho a partir da cogestão dos fundos, a entrada dos trabalhadores na burocracia estatal (D´ARAUJO, 2009). Como destaca Jardim (2016), a ascensão de Lula à presidência permitiu que atores sociais ligados ao PT, de origem sindical e com certa proximidade com o mercado financeiro – a exemplo da categoria dos bancários -, fossem nomeados para o comando dos maiores fundos de pensão das estatais brasileiras (JARDIM, 2016). 16

Por fim, e o mais contraditório dos objetivos, é que os fundos de pensão poderiam se converter em instrumentos auxiliares à estratégia de contenção de gastos nos subsistemas

públicos previdenciários, RGPS e RPPS, visto que, apesar da “estratégia

neodesenvolvimentista”, os pilares da estabilidade macroeconômica, baseados na manutenção elevada da taxa de juros, na realização constante de superávits primários e num sistema rígido de metas inflacionárias, jamais foram desafiados pelos governos petistas. Ademais, a manutenção de elevada taxa de juros no período permitiu forte rentabilidade das aplicações feitas pelos fundos de pensão fechados e das entidades abertas junto a bancos, seguradoras e financeiras, potencializando sua atratividade junto aos segmentos médios de renda (GENTIL, 2020). Assim, aos poucos e através de incentivos governamentais, a previdência complementar foi abrindo “alternativas de saída”, de acordo com a célebre análise de Hirschman (1970), para os trabalhadores com melhores remunerações e rendimentos constituírem seus fundos de pensão em detrimento da previdência pública, transformando-se em fundos auxiliares ao esforço fiscal de contenção das despesas públicas previdenciárias. Cabe ainda destacar que as desonerações fiscais promovidas durante os governos petistas impactaram negativamente os recursos da previdência social, comprometendo particularmente as receitas destinadas ao RGPS. 17

Um “acordo ambíguo”, portanto, incentivou o crescimento da previdência complementar no país durante os governos petistas, particularmente das entidades fechadas. Vale mencionar que esse acordo foi costurado a partir da construção de uma imagem aceitável dos fundos de pensão junto aos interesses organizados, contemplando uma diversidade de objetivos contraditórios cujos resultados foram bastante incertos.

16

Como é o caso do ex-sindicalista Sérgio Rosa, indicado para a presidência da Previ, do ex-sindicalista Wagner Pinheiro, indicado para a presidência da PETROS, e do ex-sindicalista Guilherme Lacerda do Funcef (JARDIM, 2016: 344).

17 As isenções e as desonerações na contribuição patronal para o Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), que organiza os

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Conforme mencionado, a reforma da previdência do governo Lula (EC nº 41/2003), ao fixar um teto de aposentadoria para o RPPS equivalente ao do RGPS, limitou os valores das aposentadorias e pensões dos servidores públicos, permitindo-lhes buscar taxas de reposição de renda mais elevadas nos fundos de pensão. Entretanto, é somente no governo Dilma que a previdência complementar dos servidores é regulamentada através da instituição da FUNPRESP, conferindo um impulso adicional à expansão dos fundos de pensão. A fixação do teto do sistema público de repartição e sua unificação com o regime dos servidores foi, certamente, um veículo de estímulo à expansão da previdência complementar, já que a renda de algumas camadas de servidores públicos supera em muito esse limite (GENTIL, 2020).

Como resultado do “acordo ambíguo” costurado para viabilizar os fundos de pensão no país, entre o ano de 2000 e 2019, verificou-se um notável crescimento das EFPCs. Em dezembro de 2019, o sistema de previdência complementar fechada abrangia 1.153 planos de benefícios, administrados por 299 entidades, cujos ativos se distribuíam em 187 fundos de patrocínio privado, 90 de fundos públicos e 22 fundos de patrocínio instituidor (PREVIC, 2019). No início de 2019, as EFPCs contavam com uma população protegida superior a 7,6 milhões de pessoas, compreendendo 2,8 milhões de participantes ativos, 677 mil aposentados, 183 mil pensionistas e 4,1 milhões de designados - pessoas indicadas pelo participante ou assistido, que podem ter direito a benefícios (PREVIC, 2019). Quanto aos ativos acumulados dos fundos de pensão é possível constatar, a partir do gráfico 1, que houve um crescimento bastante expressivo entre os anos 2005 e 2019, visto que a soma dos recursos saltou de R$320 bilhões em 2005 para R$956 bilhões em 2019.

Gráfico 1– Total dos ativos dos fundos de pensão como % do PIB (2005-2019)

Fonte: ABRAPP (2019).

O ativo representa o disponível + o realizável + permanente. PIB referente ao IV trim/2018 e I, II e III trim/2019.

Cabe destacar que há um imenso potencial para o crescimento da FUNPRESP. Atualmente, a entidade conta com 96 mil participantes, 184 patrocinadores e acumula um patrimônio de R$ 2,58 bilhões, com potencial de superar a Previ (o maior fundo de pensão

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do país) dentro dos próximos 15 anos. Segundo algumas estimativas, os fundos de previdência complementar dos Três Poderes deverão ter um patrimônio líquido de mais de R$ 160 bilhões em 2038 (PREVIC, 2019).

No caso das EAPCs, que puderam se expandir a partir da EC nº 20/1998, verifica-se um grande crescimento de planos privados de previdência ofertados principalmente por bancos e seguradoras. Em 2019, por exemplo, os seus planos mais conhecidos, o Plano Gerador de Benefícios Livres (PGBL) e Vida Gerador de Benefícios Livres (VGBL), possuíam um patrimônio líquido de mais de R$ 900 bilhões (gráfico 2). Os planos VGBL se expandiram fortemente desde a sua introdução em 2003, e representavam cerca de 90% de todo o mercado de previdência privada no início de 2019 (SUSEP, 2020). O crescimento dos planos PGBL e VGBL é estimulado por alguns fatores, quais sejam: tratamento tributário diferenciado aos seus participantes mediante deduções fiscais18, livre escolha do tipo de fundo no qual os recursos serão aplicados (renda fixa ou percentual em renda variável) e portabilidade. Como são produtos do mercado financeiro destinados a grupos que querem receber benefícios de aposentadoria com valores acima daqueles fixados para o teto dos subsistemas públicos, ambas as modalidades de planos têm atraído indivíduos com maiores rendas.

Gráfico 2- Evolução da Provisão dos Fundos PGBL e VGBL no Brasil (2001-2019)

Fonte: Elaboração própria a partir de dados da SUSEP (2020).

Com os governos conservadores de Michel Temer (2016-2018) e do atual presidente Jair Bolsonaro, inaugura-se uma nova conjuntura de reformas no sistema previdenciário. Estas foram perseguidas através de propostas bastante restritivas, trazendo iniciativas mais contundentes no sentido de instrumentalizar as instituições de previdência complementar

18 O PGBL (de caráter previdenciário) permite deduzir do cálculo do Imposto de Renda Pessoa Física (IRPF) os investimentos

em previdência equivalentes a até 12% da renda anual. Já o VGBL (também classificado como seguro de vida) não dá direito à dedução na declaração anual do IRPF, mas garante um imposto menor na hora do saque porque o imposto incide apenas sobre os rendimentos.

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para incentivar o crescimento dos esquemas de capitalização no país, particularmente ofertados por seguradoras e bancos.

Desde 2016, as políticas previdenciárias permanecem subordinadas ao Ministério da Economia, demonstrando a intenção desses governos de tornar o setor previdenciário um mero apêndice da área econômica (LANZARA; SALGADO SILVA, 2018). Vale enfatizar que à frente da secretaria que trata dos assuntos previdenciários foram colocados políticos e burocratas fortemente comprometidos com a adoção de reformas mais restritivas para o sistema de repartição; além de advogarem mecanismos mais frouxos de regulação dos fundos de pensão como incentivo à expansão da previdência privada.19

A Proposta de Emenda à Constituição (PEC nº 287/2016) enviada ao Congresso Nacional pelo governo Michel Temer pretendia unificar as regras de acesso às aposentadorias, reduzindo o valor dos benefícios previdenciários a patamares mínimos. A proposta previa a adoção da aposentadoria por idade (65 anos para homens e mulheres), desconsiderando as desigualdades de gênero e de situações de trabalho. Em compasso com as reformas anteriores, a PEC nº 287/2017 também abria um considerável espaço de atuação para a previdência complementar: obrigava estados e municípios a criar regimes complementares de previdência para os seus servidores, permitindo que fossem contratados planos abertos, oferecidos por entidades do sistema financeiro (DIEESE, 2017).

Apesar de o governo Temer não ter logrado a aprovação da sua reforma, duas medidas conspiraram abertamente contra o arcabouço dos direitos sociais constitucionais, do qual a previdência social é parte integrante. A primeira medida, a Emenda Constitucional nº 95 de 2016 (EC nº 95/2016), fixou por 20 anos um teto para o crescimento das despesas públicas, constitucionalizando as metas de austeridade até 2036. Como apontam alguns especialistas, a finalidade dessa medida é acirrar o conflito distributivo dentro do orçamento público, comprimindo o espaço fiscal para as despesas com seguridade (OREIRO, 2018). A segunda medida foi a aprovação de uma reforma trabalhista em 2017 (Lei nº 13.467). Não se deve subestimar o alcance dessa reforma, pois ela visa, entre outras coisas, desestruturar a base sindical que se constituiu em torno do sistema público previdenciário e afetar negativamente as fontes de financiamento da previdência social.

Sancionada em 12 de novembro de 2019, a Emenda Constitucional nº 103/2019, a reforma da previdência do presidente Jair Bolsonaro, buscou deliberadamente desconstitucionalizar as regras do sistema previdenciário brasileiro. A reforma estabeleceu regras de idade mínima para as aposentadorias no RGPS (62/65 anos, mulheres e homens respectivamente) e taxas de substituição bastante reduzidas (o valor das aposentadorias corresponderá a 60% da média dos salários de contribuição, exigindo 40 anos de

19

Destaca-se aqui a recente proposta de incorporação da Previc pela Susep, numa clara tentativa de esvaziar as atividades de fiscalização sobre os fundos de pensão.

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contribuição para o recebimento integral do benefício). Haverá, nesse sentido, uma diminuição substantiva dos valores das aposentadorias pagas pelo RGPS, o que tende a desestimular a contribuição dos trabalhadores que ganham mais de um salário mínimo.20 Para o RPPS, merece destaque o estabelecimento de alíquotas escalonadas de contribuição previdenciária sobre o salário dos servidores públicos, que podem chegar a 22%.

Fortemente apoiada pela mídia e diante de um cenário de prostração do movimento sindical gerado pelos efeitos negativos da reforma trabalhista e de um contexto macroeconômico de alto desemprego e desvalorização dos salários, a EC nº 103/2019 encontrou poucas resistências na sociedade. Aliás, é importante especular se parte da desmobilização sindical observada em relação à última reforma não foi uma consequência dos efeitos cumulativos gerados pelas reformas anteriores, já que elas promoveram uma migração paulatina das categorias mais mobilizadas de trabalhadores para os fundos de pensão. No entanto, cabe frisar que algumas medidas mais radicais contidas na proposta original, como a adoção unilateral de um regime substitutivo de capitalização, a desvinculação dos reajustes dos benefícios previdenciários do valor do salário mínimo, a redução do valor das aposentadorias rurais e dos benefícios assistenciais (BPC) - e o aumento da idade para o recebimento desses benefícios - foram rechaçadas pelo Congresso.

Embora o regime de capitalização tenha sido rejeitado, várias medidas introduzidas no novo sistema previdenciário, como o achatamento dos benefícios da previdência pública, a possibilidade de privatização dos benefícios não programados (auxílio-doença, licença-maternidade e auxílio-acidente) e a permissão para que a administração da previdência complementar dos servidores estaduais e municipais seja feita através das EAPCs (sem exigência de licitação), se constituem em fortes instrumentos de indução da expansão do mercado privado de previdência (DIEESE, 2019). Corrobora esse argumento o fato de a EC nº 103/2019 ter instituído a obrigatoriedade da criação de fundos de previdência complementar para os entes estaduais e municipais, representando um forte indício de que a previdência pública de estados e municípios será tolhida para abrir espaço à previdência privada. Em suma, provavelmente e de um modo gradual os bancos e as seguradoras privadas se tornarão os principais administradores dos regimes de previdência complementar dos servidores estaduais e municipais.

Cabe ainda destacar, como último comentário, que o processo de expansão da previdência privada complementar tenderá a se acelerar em consequência do pacote de reformas recentemente implementado. Nunca é demais lembrar que a EC nº 95/2016

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Referências

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