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(Des)Construindo a prostituição: considerações psicanalíticas

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Academic year: 2021

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GRANDE DO SUL

DHE – DEPARTAMENTO DE HUMANIDADES E EDUCAÇÃO CURSO DE PSICOLOGIA

KARLA CAILLAVA KRAPF

(DES) CONSTRUINDO A PROSTITUIÇÃO: CONSIDERAÇÕES PSICANALÍTICAS

IJUÍ, RS 2013

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(DES) CONSTRUINDO A PROSTITUIÇÃO: CONSIDERAÇÕES PSICANALÍTICAS

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao curso de Psicologia da Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul, como requisito parcial para obtenção do grau de psicóloga.

Orientadora: Ana Maria de Souza Dias

IJUÍ, RS 2013

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GRANDE DO SUL

DHE – DEPARTAMENTO DE HUMANIDADES E EDUCAÇÃO CURSO DE PSICOLOGIA

KARLA CAILLAVA KRAPF

(DES) CONSTRUINDO A PROSTITUIÇÃO: CONSIDERAÇÕES PSICANALÍTICAS

BANCA EXAMINADORA:

_____________________________________ Prof. Me. Ana Maria de Souza Dias

_____________________________________ Prof. Me. Sonia Fengler

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Hoje, vivo uma realidade que parece um sonho, mas foi preciso muito esforço, determinação, paciência, perseverança, ousadia e maleabilidade para chegar até aqui, e nada disso eu conseguiria sozinha. Minha terna gratidão a todos aqueles que colaboraram para que este sonho pudesse ser concretizado:

Ao meu marido Marcos por fazer deste sonho uma realidade;

Às minhas filhas, Fernanda e Mariana, que sempre estiveram comigo, entendendo as minhas ausências quando necessárias;

Agradeço à minha mãe Vera, heroína que me deu apoio, incentivo nas horas mais difíceis, de desanimo e cansaço;

Ao meu pai, que apesar de todas as dificuldades me fortaleceu. O meu muito obrigado à minha sogra Miriam, e ao meu sogro Paulo.

À minha vó Irená (in memoriam) meu eterno amor, esteja onde estiver, sinto saudades, mas esta vitória também é sua: já que sempre me ouviu, me apoiou. Mesmo eu estando errada, para você eu estava sempre certa.

À professora Ana Dias que com muita paciência e atenção, dedicou seu tempo para me orientar em cada passo deste trabalho;

À minha psicanalista Cristian Giles, que me escutou inúmeras vezes, falando mesmo em análise sobre meu tema a ser escolhido. Aos professores Nilson Heidemann, Tania Souza, Kenia Freire, Janete Goulart, Ubirajara Cardoso e Elisiane Schonardie, pela contribuição na minha vida acadêmica.

À professora Sonia Fengler por também fazer parte desta minha caminhada e por aceitar compor minha banca.

Às minhas colegas de classe, em especial: Cristina, Fabi’s, Luciana, Pati’s, Marluce, as quais aprendi a amar e construir laços. Obrigada por todos os momentos em que fomos estudiosas, brincalhonas, jogadoras e cúmplices. Porque em vocês encontrei verdadeiras amigas. Obrigada pela paciência, pelo sorriso, pelo abraço,

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mesma sem vocês.

Costumo dizer que quem tem amigos nunca esta só. Felizmente estou longe de ser uma pessoa sozinha, por isso agradeço também as minhas amigas Andréia, Fabiane, Barbara, Elis, Ana, e ao amigo Mateus, por todo apoio e cumplicidade, neste momento de tanta preocupação.

A todos que, mesmo não estando citados aqui, fizeram parte da minha formação, o meu muito obrigado!

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Por que a prostituta desperta interesse? Uma coisa que percebo é que as pessoas querem muito saber a respeito da vida sexual da prostituta para entender a sua própria sexualidade.

Chamar a prostituta de “mulher da vida” é uma expressão reveladora. Muitas mulheres não gostam, mas eu acho perfeito. A “vida” é o espaço onde se pode viver o desejo, a “fantasia”. Nesse espaço a prostituta faz seu trabalho profissional, cotidiano e anônimo. Atua na vida. Em outras profissões também há tantas mulheres da vida: enfermeiras, professoras, operárias, secretárias, atrizes, cantoras, terapeutas, lavadeiras, escritoras, cada uma em seu campo de trabalho.

Qual é o campo de uma prostituta? É o do desejo, eu disse há pouco. Da fantasia, do sonho, do mistério.

A prostituta guarda consigo muitas chaves, neste mistério da vida. Inclusive a chave do mistério da sedução entre homem e mulher. Só que esse mistério sempre será mágico, até o final dos tempos. Nunca vai deixar de ser.

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Esta pesquisa de conclusão de curso dedica-se a trabalhar o tema da prostituição feminina e do desejo de prostituição que comumente aparece nas fantasias de mulheres “normais”. Assim, a partir de pesquisa bibliográfica de cunho psicanalítico, estuda-se a evolução histórica da prostituição e a constituição psíquica da mulher, situando o processo edípico feminino, bem como o lugar que o pai ocupa para a mulher na constituição de sua feminilidade e ainda, o pai enquanto uma função que falha, este último que a prostituta terá que dar conta com a entrega de seu corpo nas ruas. Este trabalho ainda analisa uma obra literária e outra cinematográfica a fim de sustentar a hipótese trabalhada na teoria.

Palavras-chave: prostituição; fantasia de prostituição; feminilidade; complexo de Édipo.

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INTRODUÇÃO ... 8

1 SOBRE A PROSTITUIÇÃO ... 10

2 A CONSTITUIÇÃO DA MULHER ... 17

3 DESEJO DE PROSTITUTA E DESEJO DA PROSTITUTA ... 27

CONCLUSÃO ... 36

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INTRODUÇÃO

Comumente ouvimos que a prostituição é a profissão mais antiga do mundo e, com muito mais frequência, está associada às mulheres. Ao longo do tempo criou-se um brilho de espetáculo à figura da prostituta, afinal, ela é aquela mulher que consegue fazer o que as outras não conseguem: gozar livremente de seu corpo.

A partir da leitura de Prostituição: o eterno feminino (2006) de Eliana dos Reis Calligaris, percebemos que esse lugar se tornou um ponto bastante importante na constituição da feminilidade. Por conta disso, resolvi pesquisar sobre o tema. Este trabalho é desenvolvido a partir de pesquisa bibliográfica de cunho psicanalítico e gira em torno de uma questão fundamental, ligada diretamente ao complexo de Édipo na menina, que revelaria uma falha paterna? Estaria então a prostituta se colocando com o corpo à venda na tentativa de refazer um pai, no real, com a intenção de não ficar presa à dívida materna que a colocaria no lugar do nada?

Para desenvolver esta questão, dividiu-se o trabalho em três capítulos. O primeiro conta com uma abordagem histórica, mostrando o papel da prostituta em diferentes épocas, bem como as mudanças que influenciaram muito o lugar da própria mulher. Os autores trabalhados neste capítulo são: Ceccarelli (2008), Calligaris (2006), Martins (2009) e Rago (2008). Ainda, neste capítulo, introduz-se o livro intitulado Folhetim Mariposa: uma puta história (2008) organizado pela psicanalista Maíra Brum Rieck e pela jornalista Rosina Duarte.

O segundo capítulo dedica-se a trabalhar a constituição psíquica da mulher. A partir de textos freudianos como Algumas consequências psíquicas da distinção anatômica entre os sexos ([1925] 1996) e Novas conferências introdutórias sobre a psicanálise ([1933] 1996) e o seminário As formações do inconsciente ([1957-1958] 1999) de Lacan trabalha-se o complexo de Édipo e suas especificidades na mulher. Em seguida, discute-se, com o livro Deslocamentos do feminino (2008) de Maria Rita Kehl e com o artigo Sexualidade feminina (2012) de Gérard Pommier, sobre a feminilidade e sua relação com a instância paterna.

Por fim, no último capítulo volto a fazer referência à Calligaris (2006), discorrendo a respeito da fantasia de prostituição que mulheres neuróticas com

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muita frequência trazem à clínica. Assim, traço um paralelo entre essa fantasia e, a partir do Folhetim Mariposa e do filme Bruna Surfistinha (2011) – que apresentam casos de prostitutas – a fantasia destas em encontrar um lugar de mulher a partir da maternidade, casamento, família “feliz”.

Este trabalho se desenvolve por conta da complexidade que o tema sobre a mulher traz, ainda mais sobre a prostituição. Não viso aqui trazer conclusões definitivas, mas, a partir da teoria, aprofundar um pouco sobre o tema que parece ter ligação direta com o percurso com que cada mulher faz em seu Édipo.

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1 SOBRE A PROSTITUIÇÃO

A prostituição é a “profissão mais antiga do mundo” dizem muitos, porém, para conseguir situar a frase que circula no senso comum é preciso algumas ressalvas e muitas considerações. Primeiro a respeito da representação social que a prostituta tem (prostituta, no feminino, pois apesar de sabermos que homens também fazem sexo em troca de dinheiro, conforme Calligaris (2006), a prostituição feminina é mais frequente). De acordo com Ceccarelli (2008), a prostituta nem sempre carregou o estigma que a sociedade ocidental atual lhe atribui e continua:

Nas sociedades em que a propriedade privada inexistia e a família não era monogâmica, por exemplo, o sexo era encarado de forma bem diferente que a nossa, e ao que tudo indica, não havia prostituição. Já em algumas civilizações tratava-se de um ritual de passagem praticado pelas meninas ao atingirem a puberdade; em outras, os homens iniciavam sexualmente as jovens em troca de presentes. Além disso, a percepção dessa prática muda enormemente segundo a moral vigente. A posição social que a prostituta ocupa hoje na sociedade ocidental é tributária da visão que temos da sexualidade, algo bem diverso da Antiguidade, em que não havia a noção de pecado ligado ao sexo (p. 1).

A segunda consideração diz respeito ao lugar ocupado pela mulher no decorrer da história. Calligaris (2006) diz que a explicação corrente é a de que como os homens possuem necessidades sexuais, foi muito fácil colocar as mulheres nesse lugar de oferecer o “produto” em troca de pagamento: “um necessita e o outro vende” (p. 29), ou seja, parece ser uma relação comercial bastante simples. Porém, segundo a autora, é difícil estabelecer tal norma de forma tão simplista, já que certamente aquela que “vende” o produto, no caso o corpo, também está saciando algo. As questões específicas e que dizem da subjetivação de mulheres prostitutas serão trabalhadas posteriormente neste trabalho.

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Voltemos à história: segundo Martins (2009) em algumas culturas antigas haviam as chamadas “prostitutas sagradas” que tinham um estatuto superior e gozavam de direitos que não eram permitidos a outras mulheres:

No Médio Oriente, numa sociedade matriarcal em que a mulher, sendo o centro da sociedade, era fonte de cultura, de religião e de sexualidade, existiam sacerdotisas, dentro e fora dos templos, que praticavam ritos sexuais, em troca de oferendas. Não existia uma distinção entre as mulheres, não era sentida a carga pejorativa na atividade, nem estigmatização visível, sendo estas independentes e com objetivos de “negócio em nome do sagrado”. Com a evolução destas civilizações e consequente perda destas práticas religiosas e a transformação da uma sociedade matriarcal numa sociedade de cariz marcadamente patriarcal, o papel das mulheres foi sendo desvalorizado e a importância atribuída às deusas também decaiu (MARTINS, 2009, p. 15).

Foi somente na Grécia Antiga que se legislou pela primeira vez a prostituição, quer dizer, ali onde o papel da mulher já havia decaído muito – porém Ceccarelli (2008) lembra que na Grécia, curiosamente, só as mulheres prostitutas tinham acesso ao conhecimento –. Já na antiga Roma, as prostitutas eram socialmente aceitas, Martins (2009) diz que foi somente com a queda do Império Romano e ascensão do Cristianismo que a prática passou a ser amplamente discriminada, assim, a prostituição não foi extinta, mas passou a sobreviver na clandestinidade. Já a Revolução Industrial “trouxe um elemento significativo à prostituição, pois as mulheres tiveram de enfrentar condições desiguais no trabalho em relações aos homens. Prostituir-se em troca de favores, de melhores condições de vida, revelou-se uma opção” (CECCARELLI, 2008, p. 4).

Ceccarelli ainda situa que os primeiros movimentos contra a exploração sexual começaram a ocorrer no final do século XIX. Em 1921 a Liga das Nações criou um comitê para combater o tráfico de mulheres e crianças, em 1946 a ONU tentou erradicar a prática e com a epidemia de AIDS a partir dos anos 1980 novas medidas precisaram ser tomadas. A partir daí ficou impossível tamponar a prostituição a partir de valores morais, foi preciso uma nova reorganização dos “costumes”:

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Nos últimos anos, a grande maioria dos países ocidentais adotou medidas destinadas a descriminalizar a prostituição. Alguns países europeus, como Alemanha, Países Baixos, Dinamarca e Noruega legalizaram a prostituição; em outros, como no Reino Unido, é tolerada. Em Portugal, a prostituição não é ilegal, desde que não haja incentivo para essa atividade. Na França, não é legal nem proibida, embora o proxenetismo seja uma infração [...]. No Brasil a prostituição adulta é legal na medida em que não existe lei que a proíba, mas é incriminada quando existir incitação pública ao ato sexual. Igualmente, o incentivo à prostituição e o comércio do sexo são atividades delituosas (CECCARELLI, 2008, p. 4-5).

Rago (2008) vai dizer sobre o brilho espetacular que o lugar da prostituta passou a ocupar a partir da modernidade: a imagem da independência da mulher, da liberdade e do poder; uma quebra do papel social da mulher dos tempos tradicionais, agora, esta sendo uma figura pública.

Labiríntico como a cidade, o corpo da meretriz – lugar do artifício, da opacidade, da perda de si – convidava para o deciframento de regiões misteriosas e para a experiência de sensações exacerbadas. Como não temer que as jovens que almejavam ou lutavam pela emancipação feminina, mesmo que isso se traduzisse pelo simples desejo de ingresso no mercado de trabalho, não se sentissem fascinadas por essa outra forma de inscrição no mundo moderno? (RAGO, 2008, p. 41-42).

A autora ainda comenta que na virada do século XIX para o XX eram poucos os que discutiam a prostituição (apenas médicos, juristas e alguns intelectuais) e que estes advertiam para os perigos de tal prática. A literatura destinada às mulheres passava longe do tema, afinal essa mulher poderosa, que podia gozar livremente com quantos homens bem queria sem a necessidade de amar e ser amada, assim como a lógica sexual masculina, poderia ser “invejada” pelas moças de “boa família” que precisavam honrar os bons costumes. Logo, a mulher fora do lar precisava se conter, não podia exagerar em decotes, perfumes e gestos a fim de não ser confundida com a figura da prostituta.

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Ao estabelecer nítidas diferenciações entre as duas figuras femininas polarizando-as, a sociedade burguesa encontrou meios para se defender da ameaça representada pela prostituta – mulher imaginariamente livre, descontrolada e irracional. Por mais independente que fosse a “mulher honesta”, sua liberdade estaria sempre limitada no plano simbólico pela presença da meretriz, dimensão que não constituiu uma barreira de ação para o homem. Não é à toa que as feministas do começo do século XX, no Brasil, procurassem continuamente desfazer as possíveis confusões entre liberdade e licenciosidade e propusessem igualdade de direitos mas contenção da mulher do lar [...]. É, aliás, frequente nas revistas femininas do período [...] o argumento de que uma profissão é importante para a mulher, principalmente se enviuvar, ou se não conseguir um bom casamento, pois a habilitação profissional impedirá que necessite recorrer a atividades menos nobres para a sobrevivência material (p. 44-45).

Com essas passagens é possível observar que no imaginário social calcado em valores morais tradicionais, há um grande medo da prostituição, tanto que pareceu ser necessário “esconder” das mulheres essa prática. Praticamente uma medida proibitiva, e aqui podemos colocar uma questão: não é a partir de algo que somos barrados, a partir de uma falta, que se constitui um desejo? No caso, um desejo de prostituição no lado da mulher. Esta questão será trabalhada posteriormente neste trabalho, aqui se fez necessário a fim de situar acerca do lugar idealizado que a prostituta passou a ocupar com o tempo.

Ainda, para dar continuidade à introdução histórica do tema, Rago diz que foi espantoso que a “revolução sexual” dos anos 1960 não foi suficiente para abalar as prostitutas, pelo contrário, parece ter havido uma sofisticação do mercado sexual contemporâneo. O combate da exploração sexual feminina, de ser posta como objeto sexual de um homem teve um efeito inverso:

A autonomização das “trabalhadoras do sexo” em relação às antigas prostitutas não significou que deixaram de vender sexualmente o corpo para integrarem-se à sociedade dita normalizada, como sonhavam os médicos, juristas e escritores românticos, em seus famosos romances do século XIX. Ao contrário, ao se tornarem senhoras de seus próprios corpos, essas mulheres expulsaram os cafetões da zona da prostituição e assumiram elas mesmas a gerência de seus lucrativos negócios sexuais. A prostituição, ao

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que parece, absorveu completa e perversamente as propostas feministas (RAGO, 2008, p. 11-12).

Ainda, a revolução sexual trouxe à tona práticas sexuais antes ilícitas que antes ficavam apenas no mundo daquelas que vendiam seu corpo, como as cintas-liga, objetos eróticos, saias curtas, blusas decotadas, maquiagem pesada... enfim, muito corpo a mostra para qualquer mulher tida como “normal” desfrutar livremente.

O mercado da prostituição também se modernizou, não encontramos prostitutas apenas nas ruas ou em casas especializadas, que antes, apenas os homens burgueses dispunham de dinheiro para usufruir. Ceccarelli (2008) diz que

O campo de atuação não cessa de expandir: nos meios de comunicação é cada maior o número de propostas de “serviços personalizados”, seja por meio de anúncios em jornais e/ou revistas (de forma explícita ou velada), na televisão, via telefone ou MSN. Nos sites da Internet, onde (quase) todas as fantasias sexuais podem ser realizadas mediante pagamento que varia segundo a extravagância da demanda, surgiu a prostituição virtual: sexo vendido por meio de imagens fotográficas, filmes, e mesmo “ao vivo”, via webcam (p. 6-7).

Além disso, é crescente o número de “agências de encontro”, que mantêm um amplo repertório de garotas jovens, bonitas, com nível universitário e, na maioria das vezes, falando mais de um idioma. Estas, contratadas por homens ricos, bem relacionados, etc. são jovens chamadas de “acompanhantes” e se mantem o alto nível das garotas para que não sejam facilmente identificadas como prostitutas. As acompanhantes de luxo circulam em mesmos ambientes sociais que seus clientes, diferente das prostitutas de rua, que geralmente não conseguem subir de vida no sentido econômico.

O que podemos pensar hoje, sobre a prostituição? Já que a repressão sexual parece ter cedido (em partes, claro) e as mulheres já não precisam mais permanecer virgens até o casamento, podem trocar de parceiros inúmeras vezes e desfilar com a roupa que bem entender, por que os homens ainda procuram as prostitutas? Ceccarelli (2008) defende que os valores marcados pela burguesia ainda se

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sustentam, já que o curso da história não se altera tão rapidamente, assim, a prostituição ainda é vista como uma possibilidade de exercer a sexualidade sem entraves e principalmente, livre da questão amorosa.

Historicamente, na construção dessa moral, a mulher foi “dessexualizada”, fazendo emergir a figura da “rainha do lar”. Para que a “moça de bem” se mantivesse virgem até o momento de entregar-se a um só homem, ela deveria aprender a conter seus desejos e a evitar os prazeres carnais e mundanos. Ora, os espaços da prostituição, locais dos prazeres sem limites, foram opostos ao lar, lugar de procriação. Os dois espaços são inconciliáveis; quem frequenta um, não pode ser visto no outro. Ao mesmo tempo, ambos se atraem, pois enquanto a prostituta muitas vezes sonha em mudar de vida, casar-se e tornar-se respeitada dona de casa, sua liberdade sexual não deixa indiferente a esposa que, não raro, imagina a sexualidade da prostituta a partir das fantasias sexuais em geral a ela interditadas (p. 8).

É possível observar essa fantasia da prostituta de mudar de vida na obra intitulada Folhetim Mariposa: uma puta história (2008), esta escrita é resultado de um projeto de trabalho com prostitutas de Porto Alegre, desenvolvido pela psicanalista Maíra Brum Rieck e pela jornalista Rosina Duarte e a história ficcional criada pelas prostitutas que participavam do grupo se deu por acharem que a ficção (livros, novelas, filmes...) não conseguia dar conta do “real” da profissão. Desta forma criaram a história de Francielly (que em casa se chama Ana Maria), mostrando a dura realidade que é o trabalho nas ruas, mas ao mesmo tempo, traz a “novela” romântica do amor e toda a ingenuidade que ele apresenta e a tentativa de mudar de vida. Claro que essa fantasia não é concretizada no livro, a prostituta se mantem no final. Será impossível o abandono de tal profissão? Como afirma Paola, colega de Francielly: “quem entra não sai” (p. 9). Ou ainda, a fantasia da “esposa e mãe carinhosa com os filhos” só acontece por que esse ainda é um ideal feminino? Um contraponto a isso é possível com a obra de Calligaris (2006), onde a autora apresenta a fantasia de prostituição em pacientes “não-prostitutas”, como afirma:

A escuta de mulheres na clínica psicanalítica aponta para a ideia de que a escolha feminina para a sedução (e não para o pudor), e sua consequente

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possibilidade de entregar-se, estejam em uma certa continuidade com a frequente fantasia de prostituição. Essa fantasia surge de forma repetida e em varias nuances, a ponto de não ser excessivo considerá-la uma das fantasias que organizam a sexualidade feminina (p. 13).

Por essa complexidade que diz da construção da mulher e da feminilidade, o capítulo a seguir se dedica a estudar o que torna uma mulher, mulher.

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2 A CONSTITUIÇÃO DA MULHER

Não há como pensar em história da psicanálise sem pensar no papel fundamental que as mulheres desempenharam para isso. Foi a partir das inquietações médicas frente à histeria que Freud começa a construir a sua teoria, escutando aquilo que nenhum outro homem de ciência esteve disposto a escutar: que as mulheres também tinham desejos sexuais. E ainda mais, que a sexualidade já se fazia presente desde muito antes, na infância.

Assim, a partir da escuta de seus pacientes, Freud formula um dos pontos centrais de sua teoria, o chamado complexo de Édipo1, um complexo de sentimentos ambivalentes destinados às figuras parentais, onde todas as pessoas estariam referenciadas no percurso de suas subjetivações. Lacan (1999) diz que o Édipo “tem uma função normativa, não simplesmente na estrutura moral do sujeito, nem em suas relações com a realidade, mas quanto à assunção do sexo” (p. 170-171). Dito de outra forma, a concepção freudiana aponta para um complexo de ideias, que recalcadas, passa a funcionar, ao mesmo tempo, como um “complexo nuclear” de cada neurose e um orientador da vida psíquica em geral. A contribuição decisiva de Lacan tem a ver com uma concepção de estrutura externa ao sujeito e que o determina enquanto tal. Segundo Garcia-Roza (1992), “uma coisa, pois, é o Édipo como complexo; outra coisa é o Édipo como lei” (p. 218).

A base para a formulação edípica sempre foi o menino, sendo que para a menina o processo seria o mesmo, porém por vias contrárias. Porém, em 1925, no texto “Algumas consequências psíquicas da distinção anatômica entre os sexos”, Freud coloca novas questões, principalmente no que diz respeito às meninas:

Nas meninas, o complexo de Édipo levanta um problema a mais que nos meninos. Em ambos os casos, a mãe é o objeto original, e não constitui causa de surpresa que os meninos retenham esse objeto no complexo de Édipo. Como ocorre, então, que as meninas o abandonem e, ao invés, tomem o pai como objeto? (1996, p. 280).

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Assim o autor vai dizer que nas meninas o Édipo atua como uma espécie de formação secundária, o que ficaria em primeiro plano seria o complexo de castração, que nos meninos se observa pelo medo de perder o pênis pelo pai (nos meninos então, o complexo de castração seria o fim do complexo edípico).

Freud ainda identifica nas meninas o que chamou de “inveja do pênis”:

Elas notam o pênis de um irmão ou companheiro de brinquedo, notavelmente visível e de grandes proporções, e imediatamente o identificam como o correspondente superior de seu próprio órgão pequeno e imperceptível; dessa ocasião em diante caem vítimas da inveja do pênis (p. 280).

Assim que sabe que não tem um pênis, quer o ter. Freud continua:

Aqui, aquilo que foi denominado de complexo de masculinidade das mulheres se ramifica. Pode colocar grandes dificuldades no caminho de seu desenvolvimento regular no sentido da feminilidade, se não puder ser superado suficientemente cedo. A esperança de algum dia obter pênis, apesar de tudo, e assim tornar-se semelhante a um homem, pode persistir até uma idade incrivelmente tardia e transformar-se em motivo para ações estranhas e doutra maneira inexplicáveis. Ou, ainda, pode estabelecer-se um processo que eu gostaria de chamar de “rejeição” [...]. Assim, uma menina pode recusar o fato de ser castrada, enrijecer-se na convicção de que realmente possui um pênis e subsequentemente ser compelida a comportar-se como se fosse homem (p. 281-282).

Desta forma, se estabelece quatro deslocamentos para essa inveja nas mulheres:

1) Após se dar conta dessa ferida narcísica, pode desenvolver um sentimento de inferioridade;

2) Ciúme;

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4) Considerado o ponto mais importante por Freud, é a ausência ou dificuldade para a masturbação, que passa a ser vista como atividade masculina. “A eliminação da sexualidade clitoridiana constitui precondição necessária para o desenvolvimento da feminilidade” (p. 283).

Assim, não lhe resta outra saída, senão afastar-se da masturbação para caminhos distintos, o que conduziria a sua feminilidade; a equação “pênis-criança” precisa ser abandonada e neste lugar, a menina vai colocar o desejo de ter um filho. “Com esse fim em vista, toma o pai como objeto de amor. A mãe se torna objeto de ciúme. A menina transformou-se em pequena mulher” (p. 284).

Freud vai dizer que com a travessia do Édipo, as catexias libidinais seriam abandonadas, dessexualizadas e em parte, sublimadas; o resultado disso seria então incorporado ao ego para a partir disso, formar o superego. Para o autor, em casos “ideais” o complexo de Édipo passaria a não mais existir, tendo como único herdeiro o superego. Desta forma, aqui se colocaria uma problematização do lado da mulher, já que seu processo edípico parece ficar em aberto, já que o complexo de castração as inicia no processo, e não interrompe, como nos meninos. Afirma Freud que nas meninas ele pode ser lentamente abandonado, reprimido ou ainda ter seus efeitos persistentes na vida adulta da mulher. O ponto polêmico, então, seria o da fragilidade que o superego feminino teria em relação ao masculino, já que sua herança fica fragmentada. Kehl (2008) discorre sobre isso dizendo que “o retrato final” da feminilidade para Freud foi o de escasso senso de justiça e baixos interesses sociais por conta de um superego menos rigoroso, porém, do mesmo modo, o próprio psicanalista acaba dizendo um homem por volta dos trinta anos ainda parece mais infantil e inacabado do que uma mulher da mesma idade; que elas, no fim das contas, parecem bem mais rígidas e imutáveis em relação aos homens. É um ponto de dúvida para Freud.

Lacan, ao fazer um retorno a Freud, avança na questão do Édipo. Enquanto Freud dá ênfase à novela edípica, Lacan parece se importar mais com a entrada paterna no complexo. Assim, dá ao pai outro lugar, um lugar de significante, ou seja, ele passa a ser uma função2.

2 Para Lacan as operações de castração, frustração e privação executadas a partir do agente paterno

vão dar conta da constituição do sujeito, ou seja, de sua passagem de infans para a condição de sujeito propriamente dito (FREITAS, 2006).

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Desta forma, o pai fica sendo um agente fundamental no Complexo de Édipo, pois é ele que marca a lei da interdição à mãe.

Aqui chamamos de lei aquilo que se articula propriamente no nível do significante, ou seja, o texto da lei. Não é a mesma coisa dizer que uma pessoa deve estar presente para sustentar a autenticidade da fala e dizer que há alguma coisa que autoriza o texto da lei. Com efeito, o que autoriza o texto da lei se basta por estar, ele mesmo, no nível do significante. Trata-se do que chamo de Nome-do-Pai, isto é, o pai simbólico. [...] É o significante que dá esteio à lei, que promulga a lei (LACAN, 1999, p. 152).

O pai é posto como uma metáfora que substitui outro significante: o significante desejo da mãe pelo significante Nome-do-Pai. No início vai ocupar o lugar de tirania, já que ele interdita a mãe da criança, “é aí que o pai se liga à lei primordial da proibição do incesto” (p. 174). Sem essa entrada paterna a criança fica na posição do que Lacan chama de assujeito, quer dizer, assujeitada aos caprichos da mãe. Para que essa “não seja pura e simplesmente um assujeito, é necessário que apareça alguma coisa que lhe meta medo [...]. Essencial que a mãe funde o pai como mediador daquilo que está para além da lei dela e de seu capricho” (p. 196-197).

Lacan ainda diz: “no momento da saída normatizadora do Édipo, a criança reconhece não ter – não ter realmente aquilo que tem, no caso do menino, e aquilo que não tem, no caso da menina” (p. 179). Isso é o falo, aquilo que representa a falta e por consequência, o que constitui o desejo. O pai priva o falo que nem ele tem, já que este só tem existência enquanto símbolo.

Dadas estas considerações acerca do complexo de Édipo, podemos agora avançar no que diz respeito especificamente à mulher, ou ainda, ao feminino. Nas “Novas conferências introdutórias sobre a psicanálise” (1933), Freud inicia dizendo da colagem feita na diferença entre masculino e feminino pela via anatômica, quer dizer, ao apresentarmo-nos, a primeira coisa que salta é: ou sou homem, ou sou mulher. Esta já é um registro dado no ponto em que nascemos. Porém, o que diz respeito à masculinidade e à feminilidade dizem de algo mais amplo, isso “foge do

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alcance da anatomia” (FREUD, 1996, p. 115). Cabe trazer um recorte do argumento freudiano a esse ponto:

Estamos habituados a empregar “masculino” e feminino” também como qualidades mentais, e da mesma forma temos transferido a noção de bissexualidade para a vida mental. Assim, dizemos que uma pessoa, seja homem ou mulher, se comporta de modo masculino numa situação e de modo feminino, em outra. Os senhores, porém, logo percebem que isto é apenas ceder à anatomia ou às convenções. Os senhores não podem conferir aos conceitos de “masculino” e “feminino” nenhuma conotação nova. A distinção não é uma distinção psicológica; quando dizem “masculino”, os senhores geralmente querem significar “ativo”, e quando dizem “feminino”, geralmente querem dizer “passivo” (p. 115).

O que Freud quer dizer com isso é que colar a noção de masculinidade com atividade e feminilidade com passividade pode ser muito perigoso, afinal de contas, em diferentes situações homens acabam sendo passivos e mulheres ativas e vice-versa. O que talvez poderia ser dito é que a feminilidade poderia ter fins passivos, o que é diferente. Mas também, é preciso ficar claro que esta finalidade passiva só é possível porque o lugar dado para a mulher, historicamente, é esse.

Mas de que se trata, afinal de contas, a feminilidade? Kehl (2008) vai dizer que este é um conceito construído pelos homens:

A cultura europeia dos séculos XVIII e XIX produziu uma quantidade inédita de discursos cujo sentido geral foi o de promover uma perfeita adequação entre as mulheres e o conjunto de atributos, funções, predicados e restrições denominado feminilidade (...). A feminilidade aparece aqui como o conjunto de atributos próprios a todas as mulheres, em função das particularidades de seus corpos e de sua capacidade procriadora; a partir daí, atribui-se às mulheres um pendor definido para ocupar um único lugar social – a família e o espaço doméstico –, a partir do qual se traça um único destino para todas: a maternidade (p. 47-48).

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Desta forma, então, a autora explica que a construção do que foi chamado de feminilidade diz de uma construção discursiva masculina, aquilo que os homens esperavam que todas as mulheres desempenhassem. Porém Kehl lembra que as mulheres nem sempre são passivas, a sedução, por exemplo, um dos principais atributos da mulher, exige uma boa dose de atividade. Assim, permanecer ocupando a posição de “Outro3 do discurso”, ou seja, na posição esperada pelos homens, se torna bastante conflitante para as mulheres.

Deste conflito, surge então a histeria, que Kehl (amparando-se em Foucault) diz ser a “salvação das mulheres”, já que foi a única maneira de expressão possível frente à repressão que eles enfrentavam – aquilo que não conseguia ser posto em palavras precisou ser posto em cena com o corpo. A autora ainda lembra que é Freud quem vai dizer que não existe homem ou mulher desde suas origens, ou seja, estes lugares não são dados prontos. Mas ao mesmo tempo, o pai da psicanálise nunca conseguiu reformular por completo a noção de mulher em sua obra, sempre associada à feminilidade, por isso, com muita frequência ele é taxado de machista. Kehl aponta seus “deslizes”, mas ao mesmo tempo lembra que como um bom neurótico, havia algo que fugia a sua escuta. E a teorização sobre o feminino, para ele, parece ter sido bastante delicada, afinal, Freud estava subjetivado e inserido em uma cultura burguesa europeia, de onde surgem todos esses valores do que seria uma mulher.

Vamos retomar as questões da sexualidade feminina a partir de Pommier (2012) que nos faz uma amarragem sobre a constituição via Lacan. O autor situa os três tempos do complexo de castração:

No primeiro tempo, castração do Outro, da mãe, onde o corpo do sujeito funciona como falo imaginário em resposta a demanda da mãe. É o corpo inteiro identificado ao falo (...). No segundo tempo aparece uma rivalidade com o pai, aquele que tem o falo. Este pai vai provocar o amor porque é ele que alivia a criança da angústia do primeiro tempo, relativa à castração do Outro. Assim, torna-se difícil sair deste amor do pai, porque é um amor que

3Lacan denomina o Outro em oposição ao outro, este último caracterizando o semelhante, o parceiro

imaginário; o grande Outro “é uma alteridade que não se resolve” (CHEMAMA, 1995, p. 156). Chemama ainda diz que o sujeito precisa se amparar a uma ordem anterior e exterior a ele – o que pode ser representado primeiramente nas figuras parentais – essa ordem é posta pela palavra, quer dizer, o Outro habita a linguagem.

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salva. Este é um amor feminilizante, porque é o pai quem tem o falo, e, pior, porque é um amor por um rival (p. 13-14).

Pommier lembra que este pai do segundo tempo é somente um rival, não é o pai que dá o nome, assim, aqui, não existe ainda possibilidade de simbolizar o falo. O segundo momento também é o momento de eleição do sexo – uma convocação ligada à anatomia. Assim, se menina e menino ficam feminilizados frente ao pai neste momento, para a menina, via amor ao pai, seu sexo fica ligado à anatomia. Pommier ainda sublinha que

O terceiro tempo do complexo de castração diz respeito a possibilidade de simbolizar o falo pelo nome, pela metáfora paterna. O menino vai tentar tomar o nome de seu pai, tem que tomá-lo atuando e assinando seus atos com esse nome. Atuar é uma maneira de mataforizar o nome próprio. Por isso a masculinidade pode se definir pela atividade – esta definição é a que deu Freud, ao dizer que masculinidade e atividade são a mesma coisa (p. 15).

E continua dizendo que é somente através do percurso pelo complexo de castração que podemos nos deparar com toda a clínica psicanalítica. Porém, é preciso lembrar que o pai do Édipo é um pai contraditório, pois existe um pai (segundo tempo) que é a raiz do sexo, da perversão e do amor e que feminiliza, castra e viola; e por outro lado existe o pai (terceiro tempo) que tenta pacificar o outro, mas é um pai morto, por isso simbólico. Essas contradições paternas dizem da “loucura” do sexo e de toda sua consequente problematização.

Deste modo, podemos passar para a questão do desejo: o desejo feminino, diz Pommier, começa com o pai do segundo tempo, com o amor a este e que tem a ver com sua anatomia:

Por um amor ao pai quando ele alivia a sua filha daquilo que o desejo de sua mãe tem de insuportável. É somente isto que provoca um amor de filha pelo pai. Mas este pai faz isso graças a sua posição sexual, graças ao sexo. E, por isso, ele é amado sexualmente. Porém, trata-se de um amor muito

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cruel, porque ele seduz graças a uma função que implica, por definição, em que ele não pode responder ao desejo que esta função provoca. O desejo é, assim, ao mesmo tempo provocado e impedido, excitado e por isso mesmo proibido – porque o pai é desejado somente na medida em que ele já está com a mãe (...). E, quanto maior for o desejo da filha, quanto maior a força deste, maior será seu sentimento de ser recusada. Isto é um ponto essencial do desejo sexual feminino, este sentimento de ser abandonada, recusada e também, por razões que vou indicar, este sentimento pode voltar em seu contrário, quer dizer, recusar, repelir (p. 18-19).

Assim, o autor parece se opor ao o fato da feminilidade ligar-se a uma passividade por pura e simplesmente repressão social masculina, para ele, essa passividade diz do movimento do próprio desejo feminino. Ainda, é importante lembrar que se o nascimento do desejo sexual é seguido de um sentimento de rejeição, “ele é também o reconhecimento do lugar de onde vem este desejo” (POMMIER, 2012, p. 21), isto quer dizer, da mãe. O pai alivia a castração da mãe. “Assim, o lugar de onde vem o amor do pai é o lugar da mãe, do grande Outro. Há, portanto, a presença de outra mulher que é constante no desejo sexual feminino” (p. 21).

Desta forma, o autor vai lembrar que este sentimento de abandono não se dá exclusivamente em relação ao pai, mas há um primeiro, com relação à mãe:

Há para o ser humano uma dívida impossível de ser paga, porque está além de suas forças responder à demanda da mãe. No primeiro tempo da castração, a criança não pode responder à demanda materna. Se a demanda é a demanda do falo, a criança não pode equivaler-se ao falo sem morrer, porque sua mãe não tem falo. Equivaler-se ao falo quer dizer equivaler-se a nada (...). Assim, existe um primeiro sentimento de recusa para com esta dívida impossível de ser paga, de responder a demanda da mãe, de equivaler-se ao falo, equivaler-se a nada. Vocês podem ver o que pode acontecer de trágico no momento em que há uma rejeição pelo pai.(p. 21).

Pelo fato de desejar o pai e consequentemente ser rejeitada por ele, a filha corre um grande risco de cair em uma dívida com a mãe, o que multiplicaria a

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recusa, tornando-se um dos momentos mais traumatizantes de abandono, o primeiro trauma sexual. É por isso, que, afirma Pommier, para a histérica vale muito inventar um pai violador ao invés de ficar presa na dívida com a mãe.

O autor diz que frente a isso, uma das saídas femininas seria pela via da perversão, não no sentido da estrutura, mas frente ao sentimento de abandono, que passa a ser uma dor, exercer isso de forma masoquista, o que conquistaria e teria eficácia erótica frente ao sadismo do homem; além disso, a função importante que vai passar a ter a sedução feminina. Para Pommier, a sedução feminina certamente é o que comanda o processo dos desejos.

Outro ponto importante a ser destacado é a distinção entre o que é uma mulher e a posição feminina. Ao lermos o texto, podemos nos distanciar de Freud e fazer uma diferença, onde a primeira ficaria a cargo de sua anatomia e a segunda diria respeito a uma posição discursiva frente ao Outro. Vale lembrar que a posição feminina não é o que define a neurose, segundo Pommier é importante frisar que feminino e histeria não são a mesma coisa.

Nas palavras do autor:

A mulher, como diz Lacan, la femme, é uma só palavra, é a única abstração que interessa ao ser humano, isto é, abstração do símbolo da castração, o falo simbólico. Esta abstração, que não é nenhuma mulher em particular, apresenta-se como esta ideia da mulher. Que a mulher seja sempre já abstrata e à distância de tudo o que pode tentar representá-la através de diferentes encarnações particulares, nos permite certamente abordar com tranquilidade uma questão importante – e podemos assegurar-nos sobre um fato levantado pela clínica – que a feminilidade não é equivalente à histeria (p. 29).

O autor sustenta esta ideia com base no aforisma lacaniano A mulher não existe: A mulher com A maiúsculo, quer dizer, uma mulher primeira (como o pai da horda primitiva) que não seria castrada a partir da qual as outras partiriam a serem contadas. Isso quer dizer que é impossível fazer com que as mulheres possam ser contadas em grupo, como os homens, elas só passam a existir uma a uma.

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Com base nessas considerações acerca da constituição da feminilidade, podemos agora passar para a interrogação que este trabalho se dedica, a prostituição. Assim, uma questão se coloca: estaria então a prostituta se colocando com o corpo à venda na tentativa de refazer um pai, no real, com a intenção de não ficar presa à dívida materna que a colocaria no lugar do nada?

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3 DESEJO DE PROSTITUTA E DESEJO DA PROSTITUTA

[...] Na devolução do carro os dois estão no saguão da concessionária. É um início de noite chuvosa e fria; sabem que ali vão separar-se, cada um tomará um táxi, e nada fora regrado como continuidade da relação. Ele retira do bolso um maço de dinheiro, e, neste momento, Laura toma um choque e pensa: “AGORA ELE VAI ME PAGAR” (CALLIGARIS, 2006, p. 16).

Este é um recorte de um fragmento clínico que Eliana dos Reis Calligaris (2006) nos apresenta com a intenção de tratar das fantasias de prostituição que frequentemente são contadas por pacientes mulheres. A autora sustenta que a ideia de prostituir-se, de colocar esse corpo à venda, é um dos fundamentos do feminino. Tentaremos trabalhar esta ideia.

Estamos de volta às questões do Édipo: segundo Calligaris (2006), ao deparar-se com o pai, a menina vê a sua própria diferença anatômica no olhar que recebe e este pode ser aí interpretado como desejante. Porém, se aí esse olhar paterno for tomado por essa via, ela não tem como vir a ser uma mulher, de outro lado, se assim é feito, este não mais ocupa um lugar de pai, mas sim de um homem qualquer: “isso pode começar a nos explicar a necessidade do amor para que a entrega se torne possível” (p. 18). Logo, vemos que amor e entrega sexual não são duas relações fáceis para a mulher. A ameaça de castração para as meninas não passa pela via de perder o pênis como nos meninos, afinal, imaginariamente, elas já o perderam; passa, segundo a autora, por algo externo a seu corpo: a perda do amor. Assim:

Esse amor é a única coisa à qual a mulher parece dever sua possível significação. E, sem amor, entregar seu corpo equivale a perder-se. Curioso, aliás, que justamente a prostituta seja chamada de mulher perdida [...]. O sexo é mais fácil num quadro amoroso, pois só o amor poderia sustentar a descomposição imaginária que um corpo feminino sofre durante e depois da relação sexual (p. 19).

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Outro ponto a ser destacado são as insígnias fálicas que a mulher comporta em seu corpo, “a verdade do corpo feminino, ou sobre o corpo feminino, não pode ser revelada” (p. 21), pois o corpo feminino é recoberto de camadas: cabelo pintado, unhas feitas, maquiagem, brincos, colares, etc, são todos os artifícios femininos que desvendam o falo, “desvendam o desejo de produzir desejo” (p. 19). Porém, vê-se em algumas mulheres a dificuldade de produzir desejo, que surge então como algo proibido. E isso surge no momento em que a menina dirige seu desejo para um homem que não deveria, o pai, assim, nestes casos, para um homem que ocupe um lugar paterno para a mulher, a relação sexual pode se tornar bastante angustiante. Para outros homens, talvez, seus impulsos sexuais podem ser exercidos livremente. Podemos ainda dizer que para as mulheres que com medo de perder o amor do pai, nunca se entregam totalmente a outro homem, isso faz com que permaneçam mulheres sempre, mas muito longe da feminilidade (CALLIGARIS, 2006).

Então, a fantasia de prostituição parece conduzir a mulher a sair da prisão da relação primeira com o pai. É preciso então trair o pai e sofrer, obviamente, com a perda de seu amor, afinal de contas, ficar nessa posição exigiria uma fidelidade absoluta e consequentemente, a castidade.

Para as meninas, segundo a autora, sair do Édipo então, seria abandonar a posição de queixa de que o pai violento tirou-lhe algo (um pênis, um pedaço do corpo). Se essa tentativa fracassa, parece não haver outra saída, senão reeditar esse violento pai no encontro com outros homens, e, pensando na prostituição, deixando seu corpo ao uso deles.

A partir dessas considerações que dizem respeito ao papel fundamental que a puta ocupa na fantasia da mulher, passamos então a tratar de questões específicas daquelas que passam a se prostituir a partir de duas histórias: uma escrita, outra filmada.

Retomemos então a história da prostituta do Folhetim Mariposa: a personagem protagonista tem duas facetas que chamam de “a senhora P” e a “super P”. A senhora é a moça de família (Ana Maria), que saiu do interior, deixando o filho para a avó criar; a super P, é a prostituta (Francielly) que trabalha nas ruas de Porto Alegre, toda montada: lentes de contato, peito falso, salto alto. A baixinha de 1,65m, quando se prostitui, passa a ter 1,80m. Aí está seu “super” poder. É o corpo que tem desejo de desejar.

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A lembrança que Ana Maria tem de sua mãe é apenas através de uma foto de seu aniversário de primeiro ano. A mãe sorridente com sua filha no colo e sozinha, pois seu pai já havia fugido. Essa é sua única lembrança, pois sua mãe morrera quando ela tinha cinco anos e a partir daí, a avó passou a ser sua mãe. Em determinado momento da história, Ana relata da seguinte forma:

Na época em que se envolveu com Armandinho, o filho do dono do armazém, nem suspeitava que ele queria só transar com ela. Estava apaixonada e só pensava em ficar perto dele. Por isso, aceitou conhecer a casa dos seus pais em uma tarde de verão. Precisou mentir para a avó que tina ficado em recuperação de matemática, embora estivesse passada e já em férias (p. 23).

Neste primeiro encontro a sós, Ana conseguiu se livrar de todos os “agarramentos” do rapaz. Na segunda vez, porém, Armandinho lhe oferece vinho, “de colônia”, dizendo que era igual suco de uva. Ana fica bêbada e acaba caindo no sono. Ao acordar, ele lhe diz que “haviam feito”. Bem, como a coisa já tinha acontecido, não pareceu problema para Ana repetir...

Na hora “H”, porém, quando custou a entrar, se deu conta que ele a tinha enganado. Mas era tarde. Voltou para casa de manhã, toda doída e foi recebida com uma surra de cinta pela avó. Era a primeira vez que apanhava dela, mas não protestou. Apanhou quieta e depois foi para o quarto. Agora, além de arder no meio das pernas, ainda ardiam os vergões das cintadas (p. 24-25).

Ana achava que namorava Armandinho, ele nunca a namorou. Logo o rapaz foi morar na capital e nunca mais deu notícias. Deixou Ana sozinha, desesperada esperando um filho. Mas dessa vez a avó não a recrimina, pelo contrário, a acolhe.

Aqui já podemos fazer algumas considerações amparadas em Calligaris (2006): “O menino sai do Édipo com uma dúvida eterna e uma dívida constante. Dúvida eterna: vou ou não ser privado como as meninas? Dívida constante: tudo farei para evitar que isso me aconteça e tudo farei para agradecer este privilégio” (p.

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34). A mulher não corre esse risco, ela não tem essa dívida para com o pai. E no caso de Ana, muito menos, afinal o pai correu; castrou e não permaneceu nem mesmo com seu amor, a ponto de Ana apaixonar-se e entregar-se ao primeiro rapaz que surgiu e, imaginariamente, pôde abusar de sua “inocência”. Mas essa inocência é suposta, pois ela sabia que o seduziu, por isso voltou uma segunda vez.

Também podemos fazer outro desdobramento sobre essa cena: Calligaris (2006), citando Hélène Deutsch, diz que a menina tem dois pais, um do dia e outro da noite. O primeiro marca uma relação amorosa, o último fica encarregado de representar a violência e a sedução.

As fantasias de crueldade e sedução irrompem na hora de pedir que o pai olhe e reconheça a menina, visto que ela só pode imaginariamente ter um corpo feminino (imaginando-o como amputado), ou seja, imaginando que alguma crueldade paterna (também imaginária) foi exercida sobre ele. Essa crueldade é inevitavelmente evocada na hora da sedução que chamaria a atenção paterna. Seduzir o pai significa despertar o pai da noite: ele reconhecerá que o corpo da menina é feminino, pois foi ele que castrou. Só que o pai é também chamado a rasgar a foto da entrega sem limites, ou seja, a foto que, no olhar da mãe, cativa a menina numa eterna primeira comunhão. O pai, em suma, é também o salvador (CALLIGARIS, 2006, p. 57).

Primeiro ponto: a lembrança que Ana Maria tem de sua mãe está imortalizada em uma foto, apenas com ela, sorridente. Como escapar das garras dessa mãe que mesmo morta, não para de demandar? Segundo ponto: ao ser iniciada sexualmente, por essa via praticamente violenta, ao chegar em casa, não há o encontro do pai que protege, o pai do dia. Entra em cena a avó que lhe bate, assumindo o lugar desse pai da noite. O corpo de Ana Maria, e aqui podemos tomar emprestadas as palavras de Calligaris, “foi reconhecido como feminino através de uma violência” (2006, p. 57).

No decorrer da história Ana Maria fala várias vezes de como gostaria de levar seu filho e a avó para Porto Alegre, lhes dar uma vida melhor, parar de se prostituir. No desenrolar do romance, que não me deterei, eis que ressurge Armandinho, agora homem casado e muito bem sucedido. O pai de seu filho então passa a pagar

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pensão, o que possibilita que o menino more com ela em Porto Alegre (a avó não consegue se adaptar à capital, então retorna para o interior). Reproduzo as palavras finais da história:

Chamam as prostitutas de tanta coisa: mulher da vida, china, galinha, quenga, piranha, meretriz, mulher à toa, vadia, perdida, rampeira, trepadeira, piriguete... Tantas e tantas palavras. Umas ofensivas, outras fantasiosas. Mas mariposa é perfeita. Pelo menos para ela, neste momento. “Eu estava toda enrolada. Toda presa como num casulo e agora estou livre, voando. Até onde este voo vai me levar? Até quando vou batalhar? Um dia poderei me apaixonar novamente?” Só o tempo dirá (p. 45-46).

É um final feliz, mas Ana Maria, ou Fran, não larga a prostituição, porém não deixa de fantasiar um futuro onde talvez possa voltar a se apaixonar, que, na leitura do livro citado anteriormente podemos pensar em uma vida longe das ruas e com um companheiro.

Passemos ao filme intitulado Bruna Surfistinha (2011) 4, que conta a história de Raquel Pacheco, uma adolescente de classe média de São Paulo que resolve fugir de casa para se tornar garota de programa. Trago alguns recortes para posterior discussão:

- Já nas cenas iniciais podemos ver uma típica cena de café de manhã familiar com o desprezo da filha adolescente. Mas se observarmos mais detalhadamente, vemos que a mãe de Raquel a convoca o tempo todo, já o silêncio do pai surge como uma queixa: “o silêncio fúnebre do meu pai era uma das coisas que mais me incomodavam. No café dava até pra ouvir ele mastigando o pão, de tão quieto que ficava na minha frente” diz ela. Do outro lado, o irmão, que trabalhava, não incomodava e tinha o amor do pai.

- No filme, mesmo Raquel sendo toda desajeitada, nada vaidosa, um colega a chama para estudar em sua casa (interessante que nos dois casos a desculpa é dada pelo estudo). O rapaz força Raquel a lhe fazer sexo oral, por conta de toda a

4 O filme é uma adaptação do livro autobiográfico de Raquel Pacheco (com título O doce veneno do

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agressividade do colega, ela interrompe e vai embora. No outro dia, a escola inteira ri de sua cara; no quadro está escrito “Raquel boqueteira”. Ela foge de novo, mas se mantém em silêncio para os pais, o que busca é um classificado de empregos. O único emprego que conseguiria para seu perfil era em uma casa de massagem, com salário bastante convidativo, ela sabia que não se tratava de massagem, mas queria mostrar para o pai o quanto era capaz de ganhar.

- Ao fugir de casa, leva as joias que a mãe ganhou do pai e um urso de pelúcia. A cena de Raquel saindo de casa, andando pelas ruas nos remete a uma menina, uma criança desamparada (com seu ursinho na mochila) em busca de um olhar.

- No primeiro programa, enquanto a câmera mostra sua expressão de sofrimento, ela narra que não pediu para parar, não chorou, não gritou. Só conseguia pensar na família e, principalmente, no silêncio do pai. Este primeiro cliente passa a tratá-la de maneira diferente, ele a protege; em determinada cena, Bruna (seu nome de trabalho), lhe pergunta se ela fosse sua filha e se ele descobrisse que ela se prostitui, o que faria? Ele responde que primeiro lhe daria uma surra, depois a pediria em casamento. “O bom é que você finge que se importa” responde ela. Este mesmo cliente, no decorrer do filme, lhe dá joias – um colar e brincos, assim como os da mãe –, ela não consegue aceitar, diz que são lindos, mas prefere o dinheiro e assim, sai para outro programa.

Calligaris (2006) teoriza que:

A dívida feminina é paga, ou tenta se pagar, com o corpo, por onde também se dará a possibilidade de a mulher ser reconhecida como sujeito. É dessa forma que o reconhecimento do pai acontece; é assim, por sua intervenção (por imaginária que seja) sobre o corpo da menina, que o pai realiza sua tarefa de representar a realidade em oposição à mãe.

Depois dessa intervenção, o corpo da mulher não tem mais nada a perder, a não ser ele mesmo. É um corpo que já teve sua primeira foto rasgada: como constituir outra? Para que o corpo não se perca, um olhar deve ser preservado: o olhar do pai. Esse pai oscila entre cruel e sedutor, ele é também o pai que recebe nos braços a filha que foi investida sexualmente por outros homens. E, ao mesmo tempo, é o pai que entrega a filha aos braços de outro homem, o futuro marido, na hora do casamento, mas

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justamente, por efetuar a entrega, garante sua proteção. São esses alguns ritos de passagem da feminilidade, ritos que dizem respeito ao corpo da menina (p. 59-60).

Assim, a mulher precisa trabalhar no sentido de fazer com que seu corpo seja protegido do desejo paterno e abrigado sob o amor. No caso da prostituição, mesmo que também as prostitutas se sustentem com uma fantasia neurótica feminina, o que elas procuram é um encontro com o pai cruel, o pai imaginário, aquele que priva – o pai da noite. “É aquele pai que só as reconheceria pelo real do seu corpo e que não se colocaria como exceção, que as desejaria como qualquer outro” (CALLIGARIS, 2005, p. 60-61).

Bruna, ao sair de casa menina, desamparada apenas com as joias da mãe, busca esse olhar paterno, um pai que não fique em silêncio, no entanto, a única forma de procurar esse amor é ofertando o corpo. Assim, Bruna não consegue aceitar as joias que lhe colocariam no mesmo lugar da mãe, “é mais importante o pagamento” que ela consegue colocando seu corpo à venda.

Bruna até comenta em determinado ponto que muitas vezes valia mais a pena sentir que um cliente a desejava do que o pagamento propriamente dito, mas é um discurso difícil de ser mantido, pois há algo anterior na relação com o pai que dificulta esse deixar ser seduzida por um único homem. Calligaris (2006) diz que ao sair às ruas então em busca do pai, como a única possibilidade é o “pai da noite”, não existe a possibilidade de algo da ordem simbólica entrar em cena, a noite é cruel: “esse pai imaginário não parece ser socialmente contido, corrigido por um pai simbólico” (p. 66), assim, só lhe resta oferecer o corpo sem fim. A autora ainda comenta que essas meninas só não caem em uma psicose, porque a prostituta possui um lugar marcado socialmente.

Nestes casos, tanto de Raquel como de Ana Maria, não se trata de fantasia de prostituição, como algo constituinte da feminilidade, mas sim da prostituição propriamente dita. Nas palavras da autora, é “como uma atuação de um momento decisivo na subjetivação de uma mulher, ao qual a chance não foi dada de simplesmente acontecer. Um momento decisivo para que uma mulher possa ter acesso ao feminino nela mesma” (CALLIGARIS, 2006, p. 67).

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Em entrevista concedida a Marília Gabriela5, Raquel Pacheco diz ter

abandonado a prostituição, estava casada e pretendia ter filho. Abandonou a prostituição, mas não a personagem. A personagem Bruna Surfistinha continuava escrevendo, mas agora, mais no sentido de auxiliar mulheres que tem dúvidas sobre a sexualidade, que não conseguem produzir em seus corpos, desejo. Cito Rieck (2009):

É impossível não lembrar da função das histéricas do século XIX ou das anoréxicas e bulímicas de hoje, que dizem algo através do corpo que não pode ser simbolizado através do discurso oficial. Dizem, através de seus corpos, de todos, mas pagam o preço de sua escolha individualmente. Mas o que é que essas mulheres encarnam exatamente? Qual é o discurso encarnado em questão? O que é do sexual que permanece na ordem do Real?

Dizem algo da ordem do inominável, algo impossível de se dizer, encarnam o que está recalcado em todos, recalcado no social. Seus corpos personificam o interdito e é por isso que as mantemos longe. São seres contaminados, virulentos, que explicitam o que deve ficar nas sombras. Lugar que lembra a posição que Édipo ocupa em Édipo em Colono. Depois de sofrer todos os males possíveis, de transgredir as grandes leis organizadoras, de incorporar o interdito; depois de morto, dizem os oráculos, seu corpo será uma espécie de “talismã da sorte”. Quem possuir seu corpo e bem-dizê-lo, ao longo das gerações da polis, terá proteção constante. Depois de morto, Édipo, de maldito passa a bendito, muda de

status. Seu corpo, ninguém pode tê-lo, se esvai, evapora, desmaterializa,

desaparece. O interdito, portanto, deve virar discurso. Édipo, a pior das criaturas, ao virar discurso, transforma-se em outra coisa, renasce no discurso (p. 27-28).

E continua:

Se há uma encarnação do interdito por parte das prostitutas, talvez a única forma de não precisarem encarnar individualmente e “pagar o preço” pelo que diz de todos nós seja através do discurso, do registro e da escrita/inscrição. Se este lugar, estas histórias estiverem registradas no

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centro social, se houver uma marca deixada por elas no mundo, poderão morrer sem desaparecer, morrer para ser outra coisa, seja lá o que for. Poderão deixar esse lugar interdito, essa segunda morte (a morte simbólica) e marcar um lugar, fazer um nome que seja um nome próprio que abarque a multiplicidade, que não as cristalize em dois nomes, o da mulher e o da prostituta (p. 28).

No trabalho do Folhetim Mariposa, desenvolvido por Duarte e Rieck (2008), não temos acesso aos efeitos que a escrita proporcionou às prostitutas envolvidas no grupo. No caso de Raquel Pacheco, nos pareceu fundamental o papel que a escrita teve em sua vida, tanto na época de prostituição quando ficou famosa por seu blog, quando por seus posteriores livros. Além disso, na mesma entrevista citada acima, Raquel diz ter feito análise por um tempo e que pretendia cursar psicologia. Assim, a pergunta que nos fica é: a escrita, e mais, um processo analítico, dá condições para que uma prostituta consiga simbolizar seu corpo e estabelecer uma exceção? Quer dizer, um interdito que possibilite não mais colocar o corpo como mercadoria?

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CONCLUSÃO

Pesquisar sobre a prostituição feminina, me fez compreender muito melhor o processo pelo qual toda mulher passa. Ao mesmo tempo, a partir de minha condição de mulher, foi preciso tomar cuidado para que minhas resistências pessoais não interferissem no processo da pesquisa (e de minha posição enquanto futura profissional da psicologia), que exige abstinência moral de minha parte.

Com esta pesquisa foi possível observar o papel que a prostituta desempenhou no decorrer da história, de acordo com diferentes culturas. Um exemplo, apenas para ilustrar, era o de que apenas essas mulheres tinham acesso ao conhecimento, na Grécia Antiga. Interessante que com o passar do tempo, os homens tentaram esconder a prática das mulheres ditas “de família”, afinal, nos parece que as prostitutas apresentavam (apresentam) um saber sobre seu corpo e, sobre a sexualidade em geral, que não poderia cair em acesso às mulheres marcadas pela moral patriarcal. Não é por acaso, nos parece, que são justamente essas mulheres reprimidas que denunciam a Freud seus sofrimentos. Eis que se funda a psicanálise.

Desta forma foi preciso investigar um dos principais pilares da teoria psicanalítica: o complexo de Édipo. Nesse processo é possível notar a dificuldade que Freud encontrou para teorizar sobre a mulher, pois como nos lembra Kehl (2008), apesar do pai da psicanálise ter aberto um espaço para a fala, ao mesmo tempo ele tropeçava em suas resistências, como um bom “homem neurótico de sua época”. Assim, amparando-se em Freud ([1925], [1933] 1996) e Kehl (2008) concluímos que a história fez com que a feminilidade passasse a ser uma série de atributos dados às mulheres pelas particularidades de seus corpos e de sua capacidade procriadora.

Dito isso, cabe agora discutir o que fica a respeito da questão norteadora desta pesquisa: amparando-se em Pommier (2012) acompanhamos a complexa jornada que a menina precisa fazer em seu Édipo, afinal, ela precisa se amparar no pai (enquanto função) para fugir das “garras” maternas, mas ao mesmo tempo é um

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amor proibido, ou seja, ele precisa ser recusado. Assim, existe uma dívida eterna que vai constituir o desejo feminino: a dívida com a mãe, no momento que ela a recusa e vai em direção ao pai. Uma dívida extremamente difícil de lidar, uma vez que a menina não pode responder à demanda desta, responder do lugar de falo, pois, como a mãe também não o possui, isso significaria permanecer no lugar de nada. Relocamos então nossa questão: seria a prostituição uma forma de refazer esse pai no real a fim de não cair na dívida materna, ou seja, ficar identificada no lugar do nada?

A partir da questão inicial, podemos construir outra pergunta: se todas as mulheres passam por isso, por que então nem todas são prostitutas? Aqui entra um ponto fundamental inserido por Calligaris (2006), de que se a queixa feminina de um pai violento (o do segundo tempo do Édipo) fracassa, aí sim a mulher só encontra lugar reeditando este violentador nas “ruas”, entregando o corpo como objeto de venda.

Analisando o Folhetim Mariposa: uma puta história (2008), e o filme Bruna Surfistinha (2011), é possível observar que em ambas as histórias há uma ausência paterna. De um lado o pai de Ana Maria que abandona a mãe grávida, de outro, o silêncio paterno que tanto incomodava Raquel Pacheco. Em ambos os casos, também, aparece a iniciação sexual de forma bastante “abusiva”, violenta. É preciso destacar aqui, não o ato em si, o primeiro ato sexual, mas sim a forma como ele é acolhido pelo Outro ao qual elas se endereçam; assim, para as duas, não houve o “pai do dia” que pudesse protegê-las, é preciso encontrá-lo (tentar encontrar) na rua, mas se sabe que a rua também é bastante violenta. Assim, a prostituição toma forma nessa repetição sem fim. Ou que pode tomar outra via, desde que algo surja como uma possibilidade de simbolizar esse corpo violentado, como pudemos observar em Bruna Surfistinha, que encontrou na escrita – e posteriormente na análise pessoal – uma forma.

Resta ainda comentar sobre o que Calligaris (2006) diz sobre a prostituição ser um ponto fundamental na construção da feminilidade, é o “eterno feminino”, assim a autora intitula seu livro. Com isso, percebemos o quão difícil se torna a subjetivação da mulher, afinal, para não ficar presa ao amor paterno é preciso que a mulher “traia” o pai, quer dizer, possa se entregar a outros homens em troca de

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amor, diferente da prostituição. Eis a “loucura” da feminilidade. Desta forma, concluo este trabalho com uma passagem bastante significativa de Calligaris (2006):

Quando o amor paterno falta ao apelo, essa mesma necessidade pode expressar-se num destino de violência sexual, sofrida e sem valor erótico. De qualquer forma, a interrogação do desejo dos outros e o horizonte (por fantasmático que seja) de entregar-se a tal desejo parecem constituir um traço do feminino, talvez até seu traço decisivo. O que significa que a questão da prostituição – no mínimo sua fantasia – é um sine qua non da vida de qualquer mulher, mesmo que sua escolha seja a virgindade e o amor ao pai (p. 69).

Referências

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