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Vallejo/Oswald: Trilce antropofágico

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Academic year: 2021

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Amálio Pinheiro

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Ao seccionar o valor lexical e semântico de cada palavra, e não só da frase, indo além das rupturas sintáticas de Mallarmé, César Vallejo radicalizava essa sua prática de conspurcar o tal sentido aprendido, tornando-o potência sonora (o que não quer dizer, isto sim, que algo pluralmente temático semântico não espreite no leito desse plasma alquímico-formal). Há uma luta microfísica que o brasileiro e o peruano travaram contra esse pachorrento e bovino sentido terminal, clássico e conteudista, importado desde o Ocidente. O que passa a ter crucial importância são os ritmos e os polirritmos nas culturas em que a voz no corpo, nas ruas e na natureza se combinam. A voz como um tambor na palavra.

1 Poeta, tradutor e professor do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Semiótica da PUC-SP.

Vallejo/Oswald:

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Como as similaridades são físico-químicas (envolvem conexões político-afetivas, microestéticas e macroculturais recíprocas), a sincronia com Oswald não depende da comunicação direta: Vallejo pouco tinha que ver, literariamente, com os peruanos de seu tempo.

Vallejo e Oswald não se conheceram, em presença ou poesia, apesar de haverem estado em Paris à mesma época e absorvido o mesmo clima vanguardista, com a mesma expectativa de renovação e mudança. Há um quadro geral que os aproxima, acirrando certas questões estéticas, entre a precipitação e revisão do pós-guerra e as ditaduras de caudilhos da América Latina: a interrogação sobre as texturas primitivas, as grandes cidades e as técnicas ditas modernas. O texto cifrado, o texto telegráfico, o texto fílmico, o vigor de um texto musical ao mesmo tempo desviante e dançante. O texto estético-político: Poe, Baudelaire, Mallarmé, Eisenstein, Benjamin, Maiakóvski, a vanguarda hispânica, o modernismo brasileiro. Oswald/Vallejo: o texto indígena-mestiço, mosqueado a partir do ambiente acústico quíchua, quimbundo ou nheengatu. Aquele que embute ou entrelaça vários textos em intertraducão. Intertradução não apenas lateral e horizontal, mas vertical, de baixo para cima, de tal modo que a natureza também se enxerta na letra e na sílaba. Comparação via mobilidade estrutural de códigos mestiço-imigrantes2.

Trata-se aqui de fazer Vallejo ser também lido como que no palimpsesto dos manifestos/teses/poemas oswaldianos, uma espécie textual com que nunca pôde contar no Peru daqueles tempos. Operação de sintonia para remendar as pegadas da história.

Para encontrar el sincronismo verdadera y profundamente estético, hay de tener, en cuenta que el fenómeno de la producción artística es, en el sentido científico de la palabra, una auténtica operación de alquimia, una transmutación.

César Vallejo, El Arte y la Revolución, p. 48. Só me interessa o que não é meu. Lei do homem. Lei do antropófago.

Oswald de Andrade, Manifesto Antropófago, p.13.

2 Seria penoso apenas alinhar coincidências de frases e temas entre os autores (que são muitas): contra a “obra de tese” contra o “gabinetismo” etc.

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Há uma interrogação de base que congrega o pensamento de Oswald de Andrade e César Vallejo: a necessidade de rever a tradição historiográfica conforme uma inovadora correlação de forças entre o amálgama etnolinguístico primitivo e as aquisições tecnocientíficas da chamada “modernidade” cosmopolita. Isso significa indagar, com o instrumental da linguagem, por uma possível ou latente, ou inacabada, estruturação espacial/temporal para a América Latina. Exercício de uma nova física existencial, constatada a exaustão caduca dos paradigmas, muito embora permanentes, ocidentalizantes de se organizar o mundo. Contra a herança retórico-messiânica peninsular, que castrara, a partir da Reconquista, a vertente hispano-afro-árabe.

Num continente que, nas primeiras décadas deste século, tinha dois terços de analfabetos, resgatam taticamente, numa abrupta reversão, a vigência barroquizante e a polifonia ritmicovocovisual destes últimos, em estado de movediça tradução; entricheiram-se contra o analfabetismo alfabetizado dos letrados, que petrifica as palavras nos fósseis-temas de uma emocionalidade fácil, política e esteticamente acomodada. Nessa nova frequência distributiva e sensitiva dos signos e das funções perceptivas, formas de produção primitiva e atual engastam-se, e mudam-se as marchas das aptidões corpo-cerebrais.

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A contribuição atualíssima de Oswald está, a partir da nossa propensão histórica à mestiçagem de códigos, no ato contínuo de digestão, em termos de possível nativismo expandido, daquilo que é alheio, civilizado e tecnológico. Antropofagia como prática de intertradução, que projeta tendências e imagens correlativas, terceiras, contra o fascismo do nativismo xenófobo, exótico e embandeirado e contra o indigenismo das utopias de importação. Carnavalizam-se o central e o periférico. A polivalência linguística da paródia e a erotização das vogais entram no cerne da produção, com os ingredientes do sarcasmo, do grotesco, da pilhéria e da ironia, para desentranhar as potências sonoras do idioma.

No bojo da deglutição esgrime-se com a importante descoberta de uma aparelhagem formal: uma certa lúcida inocência e impacto

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original construtivos3 que, podando os férreos mofos dos “cipós”

maliciosos da sabedoria e das “lianas da saudade universitária” (ANDRADE, Oswald de. “Manifesto da Poesia Pau-Brasil”, em Do

Pau-Brasil à Antropofagia e às Utopias, p. 6), fazem, pela vontade

de enxugamento verbal e pelos saltos metonímicos, aproximarem-se a miscigenação plurilinguística e as potencialidades da civilização urbana. Oswald: “o Brasil profiteur. O Brasil doutor. E a coincidência da primeira construção brasileira no movimento de reconstrução geral. Poesia Pau-Brasil” (Idem. Ob. cit., p. 7).

Reinstaurado um matriarcado, manifesta-se o projeto, lúdico e não-linear, destrutivo-construtivo. Escola de ócio poético: “Sobre o Faber, o Viator e o Sapiens, prevalecerá então o Homo Ludens” (Idem. “A Crise da Filosofia Messiânica”. Ob. cit., p. 83) . A devoração antropofágico-linguística dá a Oswald uma mobilidade experimental de liberdade: novas situações de linguagem e pré-linguagem contra o passadismo, a ontologia, as ideias. A necessidade atualíssima de praticar – com direito a todos os barbarismos e cosmopolitismos – a remontagem foto-cinemática e vocal-telegráfica do presente. “No jornal anda todo o presente”. “Nenhuma fórmula para a contemporânea expressão do mundo. Ver com olhos livres” (Idem. Ob. cit., p. 9). Mas para acompanhar uma nova cronometria de velocidade/liberdade é necessário ter olhos peritos em ler essa espécie de repaginação gráfica da vida. Como diz Haroldo de Campos do próprio Oswald: “Ao invés de embalar o leitor na cadeia de soluções previstas e de inebriá-lo nos estereótipos de uma sensibilidade de reações já codificadas, esta poesia, em tomadas e cortes rápidos, quebra a morosa expectativa desse leitor, força-o a participar do processo criativo” (CAMPOS, 1972, p. xxiii)4.

3 Cite-se esta importante frase de Benedito Nunes, que elucida uma situação, em termos gerais, ainda em vigor: “A inocência construtiva da forma com que essa poesia sintetiza os materiais da cultura brasileira equivale a uma educação da sensibilidade, que ensina o artista a ver com

olhos livres os fatos que circunscrevem sua realidade cultural, e a valorizá-los poeticamente,

sem excetuar aqueles populares e etnográficos, sobre os quais pesou a interdição das elites intelectuais, e que melhor exprimem a originalidade nativa. Nasce daí a teoria já crítica da cultura brasileira, focalizando a oposição, que foi um dos móveis da dialética do Modernismo, entre o seu arcabouço intelectual de origem europeia, que integrou a superestrutura da sociedade e se refletiu no idealismo doutoresco de sua camada ilustrada, e o amálgama de culturas primitivas, como a do índio e a do escravo negro, que teve por base”. (A antropofagia ao Alcance de Todos, estudo introdutório a Do Pau-Brasil à Antropofagia e às Utopias, pp. xx-xxi).

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O festim antropofágico da Lima de Vallejo era uma mescla dançante e musical que se insemina como pauta sonora em Trilce. Nem os traumas classistas da miscigenação (“Eres cholo y basta”, dizia-se na Colônia), poderia impedir essa abrupta confluência dissonante de vozes populares e versos múltiplos ao mesmo tempo descentrados e compactados, em estado de máxima festa barroquizante. Pedro Granados chega acertadamente a falar “en el baile de jarana que es todo este libro”, a começar pelas entranhas sonoras do próprio título.

Pois, por outro lado, Lima era Lima: mescla de raças e informações, o bairro chinês, luzes e cartazes, ouro e sol metamorfoseando tudo, uma nova mobilidade espacial. Aprendizado mundano e profano. A punção do atual estreitando limites milenares, minando, a lances perceptivos, os sobrenomes hispanizantes e a quadratura das praças. Uma pincelada sincrônica aproxima Baudelaire, Benjamin, Oswald e Vallejo: “...o apaixonado da vida universal entra na multidão como se ela fosse um enorme reservatório de eletricidade” (BAUDELAIRE, Charles. O Pintor da Vida moderna, p. 25). Inventores de texturas. O corpo, liberado dos conteúdos, e os ritmos da cidade.

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Oswald traça com intimidade natural e orgânica seu itinerário poético-teórico, do Manifesto Pau-Brasil até A Marcha das Utopias, colando metonimicamente grandes pedaços de história na direção e a favor de uma reeducação da sensibilidade, que redundaria num terceiro termo: “o homem natural tecnizado” (ANDRADE, Oswald de. Ob. cit., p. 79). O peruano, no entanto, nos chamados Carnets5,

experimentou uma espécie de quase-manifestos, uma produção polivalente e multigêneros, de tiradas sério-humorísticas e frases permutáveis, com que realimentava poemas, contos, cartas e artigos de jornal, reciprocamente. Não somente seu ideário poético converge para o de Oswald como revela o gosto metalinguístico semelhante de lidar com blocos significantes textualmente móveis, projeto que o brasileiro levou a cabo nas Memórias Sentimentais de João Miramar e Serafim

Ponte Grande.

5 Série de apontamentos soltos, contidos nos livros Contra el Secreto Profesional e El Arte y la

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Aquilo que no primeiro dependeu de montagem póstuma foi realizado em vida no segundo. Conforme diz Haroldo de Campos: “o

Serafim é um livro compósito, híbrido, feito de pedaços ou ‘amostras’,

de vários livros possíveis, todos eles propondo e contestando uma certa modalidade de gênero narrativo ou da assim dita arte da prosa (ou mesmo do escrever tout court)” (CAMPOS, 1978, p. 105). Vale aqui ressaltar a semelhante intenção de rotatividade e imbricação crítica dos gêneros da tradição, mestiçagem que Vallejo comprimiu violentamente em Trilce.

Cabe, por enquanto, fazer notar que Vallejo, no seu anteprojeto móbile-calderiano6 de escritura (cuja abertura textual póstuma

se precipita, inclusive, pela caleidoscópica multiplicidade de reordenações7), utiliza-se oswaldianamente da sugestão epigramática,

da mordacidade paródico-carnavalizante, da mordida sincrônica, da repescagem do momentâneo e marginal, ou de seu típico dístico-vacante (que impõe uma situação onde se esperava de boca aberta uma significação), para promover a reabsorção da tradição a par de uma direta e radical liberdade construtiva. É essa liberdade sem libertinagem – criteriosamente radical na sua forma – que interliga primitividade e atualidade junto a uma agilidade composicional destravada do verbalismo ibérico e desta segunda invasão colonizante: o decorativismo exótico-folclorizante e epígono-afrancesado. Diz, nos seus Apuntes para un Estudio: “Libertar el arte hasta matarlo – dice Vallejo hablando de Erik Satie” (VALLEJO, 1973).

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Como Oswald, Vallejo queria desvestir e descatequizar o homem da terra, limpar-lhe o bolor academicista e intelectualista acumulado. Esse projeto termina por ser uma técnica de invenção instalada no 6 Não é à toa que Alejo Carpentier assimila Calder à poética latino-americana: “E são abstratas as formas que assim se movem, giram, se alternam, aproximam-se, afastam-se, chocam, para procurar uma nova trajetória, para cima, para baixo, para o contemplador dos seus invisíveis impulsos? Difícil seria qualificá-las de abstratas, visto que reclamam o que se lhes recusa, quase sempre, no quadro abstrato: ar, profundidade, tempo, possibilidades de retrocesso, de correr atrás de suas próprias sombras. Formas poéticas, melhor: poesia em liberdade” (Calder, Caldeireiro

Prodigioso, em Literatura & Consciência Política na América Latina, pp. 64-5). Se Calder faz

voar o ferro, veremos que Vallejo faz o mesmo com a palavra que se destripa e remonta. 7 As remontagens propostas por G. de Vallejo e Larrea desagradam a grande parte da crítica vallejiana.

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cerne tradutório dos poemas: a seiva ou leito da autoctonia não como tema a ser narrado retilineamente, mas sim como um magma geológico intrínseco à circularidade de formas e à reconstrução das contiguidades sintagmáticas em processo de esclerose. É a contínua percepção de um movimento/velocidade formal, que se reestrutura contra o império logocêntrico-ocidentalizante, não filtrado pela mestiçagem de línguas e estilos, que também aproxima Oswald e Vallejo. Os dois alimentam-se vorazmente de signos próprios e alheios. Opunham à fácil inteligência da lógica herdada os golpes sincrônicos e sintéticos. Frases do Manifesto Antropofágico, tais como “Mas nunca admitimos o nascimento da lógica entre nós” (ANDRADE, Oswald de. “Manifesto Antropofágico”. Ob. cit., p. 15)8, cabem dentro do esforço vallejiano

de recuperação das camadas dérmico-sensitivas do continente, de canalizar as energias conforme a nossa espécie sensível, em estado de linguagem subterrânea e latente.

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Vallejo caminha para Oswald na medida em que justamente afasta-se da idealização mariateguiana do Inca (“¿Sólo los índios sufren y no los cholos y hasta los blancos?”) (VALLEJO, César. “Del Carnet de 1932”. Ob. cit., p. 145), que descarta da polirritmia etnolinguística peruana o negro e o chinês; na medida em que, para além do divisionismo colonizante e das modas incaico-teocráticas, insere na sua técnica produtiva o controle, a remoção e a permuta de enxertos linguísticos, isto é, a “descomposición o vivisección del proceso de creación de un poema” (Idem. “Del Carnet de 1936/37” (1938?), em Contra el Secreto Profesional, p. 97), tendo como húmus isso que o próprio Vallejo chamou em seguida de “tono indoamericano”.

8 Nesses termos, Vallejo situa-se num ponto exacerbado do novo atalho mental, traçado por Haroldo de Campos, para o continente americano, via uma translógica poético-literária: “Já no Barroco se nutre uma possível ‘razão-antropofágica’, desconstrutora do logocentrismo que herdamos do ocidente. Diferencial no universal, começou por aí a torção e contorção de um discurso que nos pudesse desensimesmar do mesmo. É uma antitradição que passa pelos vãos da historiografia tradicional, que filtra por suas brechas, que enviesa por suas fissuras. Não se trata de uma antitradição por derivação direta, que isto seria substituir uma linearidade por outra, mas do reconhecimento de certos desenhos ou percursos marginais, ao longo do roteiro preferencial da historiografia normativa”. Ver Da Razão Antropofágica: Diálogo e Diferença na Cultura

Brasileira, em Boletim Bibliográfico da Biblioteca Mário de Andrade, vol. 1 a 4, 1983, pp.

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Isto é: “O contrapeso da originalidade nativa para inutilizar a adesão acadêmica” (ANDRADE, Oswald de. Ob. cit., p. 8).

As diferenças entre os dois não os impediu de enfrentarem o terreno movediço da interculturação das muitas Américas, anti-Américas, transaméricas, quase-Américas. Por isso, coincidentemente à mesma época, depois de transitório período ativista, deglutiram Marx de modo singular, incorporando-o à nossa história marginal, lúdica e corporal, não àquela que apenas contrapõe antagonismos a nível classista linear e messiânico. De modo semelhante serviram-se do incremento religioso como possibilidade órfica difusa e escavação do mistério.

Diz Oswald: “Contra as sublimações antagônicas. Trazidas nas caravelas”. Ou: “Não tivemos especulação. Mas tínhamos adivinhação. Tínhamos Política que é a ciência da distribuição. E um sistema social-planetário” (Idem. Ob. cit., p. 17). E Vallejo: “Me refiero a Hegel y Marx que no hicieron sino descubrir la ley dialéctica. Paso a mí mismo cuya posición rebasa la simple observancia de esta ley y llega a cabrearse contra ella y llega a tomar una actitud crítica y revolucionaria delante de este determinismo dialéctico” (VALLEJO, César. Ob. cit., p. 99). Espécie de polidialética trílcica intercomplementar, que substitui o apelo ao vindouro pela agilidade das combinatórias não-binárias em presença.

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As dessemelhanças de tonalidade e cadência entre os dois poetas, nascidas do jogo específico de convergências – da mastigação de blocos-palavras eriçado-incaicos à concisa devoração lúdico-caraíba – partem de uma necessidade mútua só praticável no campo da ruptura e resgate linguístico-musical: alimentar-se da América, fazer precipitar a sua mobilidade e instantaneidade rítmicas; jogo duplamente convergente: romper com o passadismo imobilizador, tornar viva a lava cultural presente. Embora sem a gozosa extroversão da palavra oswaldiana, Vallejo dialoga com esta justamente quando coloca sua formação negroincaica a serviço de uma forma que exporta e importa linguagens, que peruaniza-se como calidoscópico arquipélago, longe já desse típico e “forte complexo nacionalista, destinado a funcionar como carapaça na proteção de uma frágil identidade política e social” (KUJAWSKI,

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G. de Mello, “O Brasil e a América Hispânica”, Cultura, E. de S.

Paulo, n° 134, p. 3). Ao fracionamento político-social consequente ao

vice-reino, de que decorre uma certa introversão ufanista e ressentida nos países da América hispânica, Vallejo responde, mesmo rilhando os dentes, com um esqueleto que ri9. Antropofagia trílcica.

LÉXICO E MODERNIDADE

O repúdio de todo classicismo epígono e importado vale-se, no caso latino-americano, dessa enorme bateria de produção de textos que são as grandes cidades: suas circunvoluções diagramam o que seria, a lente de aumento macroscópica, um mapa geográfico neocortical policêntrico ainda não inteiramente em uso. Não há mais, em Lima e menos em São Paulo, certos referenciais apaziguadores da serenidade clássica, conforme mostrou Carpentier, mas textos (texturas, transtextos) relacionais de coisas que indomavelmente transitam do provisório ao provisório, verdadeira fábrica de fisgadas elétricas e cinéticas.

Ver a cidade como uma determinada disposição textual, ou como uma alquimia de energias a ser traduzida, foi uma das tarefas de Oswald, que o especificam, na tarefa de deglutição do tecnológico pelo primitivo, frente a, por exemplo, um Blaise Cendrars. Segundo mostra Haroldo de Campos, ao citar The Times Literary Supplement: “Todavia, diferentemente de alguns escritores de vanguarda europeus – entre os quais seu amigo Blaise Cendrars –, esse reconhecimento do novo não se limitou ao moderno vocabulário dos transportes, trens e telefone, mas estendeu-se integralmente ao tom (mood) e à estrutura do poema” (CAMPOS, Haroldo de. Ob. cit., p. xxxix, nº 55). A atenção às colisões estruturais evitam a facilidade do exótico ou turístico-laudatório, que sobrevive às custas de temas usuais pasteurizados. Trata-se de ter os sentidos atentos a novas configurações: “Um mistério esse negócio de eletricidade. Ninguém sabia como era. Como é que funcionava. Para 9 Desse modo reitero e enfatizo que o humor vallejiano, maxilarmente retorcido, joco-grotesco ou até, por vezes, joco-macabro, exercício da dor na alegria do idioma (“Mi anarquía simple, mi gran dolor compuesto de alegrias”, dissera no Carnet de 1934), se já não se concilia com a pastosa e batida nostalgia andino-incaica, dealgum modo seaproxima da bem humorada gargalhada-estopim oswaldiana. O que sempre se ressalta é a revolução criadora – o bombardeiro linguístico – instaurada por cada um, ao revirarem os paradigmas clássicos e tardios de se interpretar, pela linguagem, o mundo (ajustados a fórceps na América Latina). Cf. também T. LIV: “Arde cuanto no arde y hasta / el dolor dobla el pico en risa”.

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isso as ruas da pequena São Paulo de 1900 enchiam-se de fios e de postes” (ANDRADE, Oswald de. Um Homem sem Profissão – sob as

Ordens de Mamãe, p.34). Daí poemas de pinceladas breves,

sonoro-semoventes, como bonde, onde as deformações intencionais estão a serviço da marcha rítmica e da mescla carnavalizante entre palavras e classes sociais, já metonimicamente contíguas, que a cidade imigrante faz sacolejar pelos trilhos:

O transatlântico mesclado Dlendlena e esguicha luz Postretutas e famias sacolejam

É essa noção do novo como atualidade rítmica incorporada celularmente à sensibilidade e aos centros de distribuição neuro-sensitivos, temos visto, que César Vallejo leva até o fim. Por isso insiste em que “los materiales artísticos que ofrece la vida moderna han de ser asimilados por el artista y convertidos en sensibilidad” (VALLEJO, César. “Poesía Nueva”. Ob. cit., p. 100). Isso é que o transformará num especialista em recombinar sintagmas microscopicamente a partir dos seus grafemas. Desse modo, hiperbolizadas as letras e sílabas como figuras de som e grafia dentro da cadeia sintagmática, ainda que pertencentes a palavras semanticamente dicionarizáveis, fica traduzida de modo não imitativo a intercomunicabilidade textual da vida, que se faz presente em termos de feixes e faixas de sonoridade e eletricidade. Verdadeira dissecação neurovocabular, já anunciada pelo título-pauta Trilce. Redigitalização (mais vocal que digital) que dissipa a distância clássica e a rigidez classista dos gêneros, remontados agora em espaço e tempo móbiles, conforme o agora convulso e multilíngue das cidades latino-americanas, onde blocos divergentes/convergentes de vozes e leituras se contagiam:

Hitos vagarosos enamoran, desde el minuto montuoso que obstetriza y fecha los amotinados nichos de atmósfera.

Verde está el corazón de tanto esperar; y en el canal de Panamá! hablo con vosotras, mitades, bases, cúspides! retoñan los peldaños, pasos que

suben,

pasos que baja-n.

Y yo que pervivo y yo que sé plantarme.

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Oh valle sin altura madre, donde todo duerme horrible mediatinta, sin ríos frescos, sin entradas de amor. Oh voces y ciudades que pasan cabalgando en un dedo tendido que señala a calva Unidad. Mientras pasan, de mucho en mucho, gañanes de gran costado sabio, detrás de las tres tardas dímensiones.

Hoy Mañana Ayer (No, hombre!)

(T. LXIV)

Vallejo transforma em verso uma semidesinência verbal (“baja/n”) que, em gaguejo ultrabreve, melisma gutural anterior ao signo, parodia a divisão silábica e radicaliza a dispersão mallarmeana desde a garganta. Concentração máxima de afeto e energia numa contrassílaba de canto interno culminante.

Contemporaneamente a Trilce, Oswald, dentro de uma situação específica e diferencial, realizava, em Memórias Sentimentais de João

Miramar, um projeto revolucionariamente semelhante. A distinção

se dá pela série sintagmática escolhida, de modo preferencial (não exclusivo) por cada um. Trata-se de uma escolha em espécie material, não em ordem de valor.

De modo análogo a Vallejo, Oswald, conforme elucida Haroldo de Campos, atua “em plena operação metonímica, selecionando elementos fornecidos pela realidade exterior e transformando-os em dígitos, para depois recombiná-los livremente e hierarquizá-los numa nova ordem, ditada pelos critérios de sua sensibilidade criativa” (CAMPOS, Haroldo de. “Estilística Miramarina”, em Metalinguagem, p. 91). A diferença interessante reside no fato de que a tendência oswaldiana é de montar e remontar, conforme diz Haroldo, a respeito do radical Serafim Ponte Grande, as “grandes unidades sintagmáticas que estruturam a mensagem narrativa num livro dado – ou, em outras palavras, que armam essa mensagem como corpo de linguagem sobre o eixo de contiguidade” (Idem. Ob. cit., p. 107). Vai-se aí levando às últimas consequências a técnica de desmontagem lúdico-capitular iniciada no Brasil por Machado de Assis: toda a ideologia da competência ordenatória de um livro ou de um romance é levada, no Miramar e mais no Serafim, por águas abaixo, nesse lance de se tomarem os grandes blocos sintagmáticos como dígitos, que encolhem-se numa fraencolhem-se ou hiperbolizam-encolhem-se, enxertam-encolhem-se de múltiplas linguagens ou condensam-se num poema, ou então provocam o vazio das tmeses,

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dos cortes bruscos, da biplanearidade. “Oswald, ‘bricoleur’, fez um livro de resíduos de livros, um livro de pedaços metonimicamente significantes que nele se engavetam e se imbricam” (Idem. Ob. cit., p. 106).

Vallejo, por seu turno, leva o emprego poético-digital à contorção do grafema, à improbabilidade do sentido vocabular e a uma mutilação sintática que, combinados à proliferação de neologismos, tecnicismos e barbarismos, mais as inversões cubo-barrocas, comprometem a sanidade de qualquer leitura que não saiba caminhar em várias direções antagônicas. Pela sua conhecida hiperestesia e talvez por herdar as taras de um idioma que comandava a retórica da América hispânica (não é gratuitamente que Paz atribui a abrupta ruptura mallarmeana também ao logocentrismo do idioma francês), Vallejo destrincha e sonoriza os tambores das letras e sílabas como à própria anatomia. Embute assim, uns nos outros, as ranhuras vocais populares, as citações e o experimento intertextual:

Rechinan dos carretas contra los martillos hasta los lagrimales trifurcas,

cuando nunca las hicimos nada. (. . .)

Tendime en són de tercera parte, mas la tarde – qué la bamos a hhazer – se anilla en mi cabeza, furiosamente a no querer dosificarse en madre. Son los anillos.

(T. IV) Destílase este 2 en una sola tanda, y entrambos lo apuramos.

Nadie me hubo oído. Estría urente abracadabra civil.

La mañana no palpa cual la primera, cual la última piedra ovulandas

a fuerza de secreto. La mañana descalza. (. . .)

Buena! Buena!

(T. XVII)

A mesmidade e implacabilidade do transcurso temporal no poema Trilce II é um escalafrio no mito-nome:

Tiempo Tiempo.

Mediodía estancado entre relentes Bomba aburrida del cuartel achica tiempo tiempo tiempo tiempo

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Era Era

Gallos cancionan escarbando en vano. Boca del claro día que coniuga era era era era.

Mañana Mañana. El reposo caliente aún de ser. Piensa el presente quárdame para mañana mañana mañana mañana

Nombre Nombre.

¿Qué se llama cuanto heriza nos? Se llama Lomismo que padece nombre nombre nombre nombre.

Este poema mostra como a prisão foi para o peruano uma lição de leitura e escritura, de duração e intervalo. A mania nervosa da repetição até o esvaziamento dá a Vallejo o poder de fazer eriçar-se ou ouriçar-se gráfico-sonoramente o poema, encrespando-ouriçar-se certos grafemas, pela sua inclusão, situação e tamanho inéditos. Na última estrofe, a tensão chega àquele limite auditivo tão típicos de Trilce. Repare-se que “heriza nos” (afora incluir herir e erizar) contém, por paronomásia, os vários “era”. Aumenta assim – “heriza nos” – a brutalidade do ontem no agora. Jornal da temporalidade impresso em séries escriturais.

A compressão metonímica (Vallejo sempre desprezou a volúpia metafórica)10 e o violento enxugamento informacional escancaram o

acúmulo de rupturas num espaço exíguo, a partir de uma interrogação oral-coloquial criteriosamente dinamitada (o primeiro verso da última estrofe é uma completa licença sintática). O grafema E maiúsculo imprevisível, que transtorna a métrica, é uma espécie de tomada fílmica que obriga a leitura ao revés da mesmice do batismo nominal de todas as coisas. A quadratura cubista da cela despe-se de qualquer resíduo figurativo. Os elementos onomatopaicos tornam-se uma cadência

(h)erizada, voco-interrogante, que perpassa por Trilce como uma

intermitente orquestra de unhas e membranas rombudas.

Digamos que o antifigurativismo vallejiano prende-se à língua-corpo, enquanto instância vertebral produtora de eletricidades sonoras e gráficas. Não se fala na estrofe citada de T. II em jornal ou telégrafo: exercitam-se conexões gráfico-telegráficas, que conclamam as associações corticais ao desemboloramento. Por isso que, tão 10 Com seus enigmas triádicos, Vallejo critica uma certa facilidade metafórica: “Hacedores de metáforas, no olvidéis que las distancias se anuncian de tres en tres”. Em Poesía e Impostura, ob. cit., p. 63.

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aparentemente pouco declamáveis, possuem os versos vallejianos um impulso oral-acústico que, sem dúvida, pedem uma voz que pulsasse e dissecasse as palavras além e aquém do meramente escandi-las, num vínculo entre os órgãos da fala e o ambiente acústico.

Daí que Vallejo tenha dito, por exemplo: “Muchas veces las voces nuevas pueden faltar. Muchas veces un poema no dice ‘cinema’, poseyendo, no obstante, la emoción cinética, de manera obscura y tácita, pero efectiva y humana” (César Vallejo. «Poesía Nueva”. Ob. cit., pp. 100-1). Trata-se de uma visão estrutural que estoura as articulações dessa discursividade ibero-colonizante, reinstaladas nos ismos de superfície de uma modernidade nominal e importada. O interessante é que essa “nova escala” de leitura vallejiana possa ser dada, mais que pelos críticos do poeta, pelo Manifesto da Poesia Pau-Brasil:

O reclame produzindo letras maiores que torres. E as novas formas da indústria, da viação, da aviação. Postes. Gasômetros. Rails. Laboratórios e oficinas técnicas. Vozes e tics de fios e ondas e fulgurações. Estrelas familiarizadas com negativos fotográficos. O correspondente da surpresa física em arte. (ANDRADE, Oswald de. Ob. cit., p. 9)

O índio, o “cholo”, o caboclo Vallejo no cruzamento das novas tecnologias: “El cinema embrionario trabaja con escenas, y episodios enteros, es decir, con masas de imágenes. Hoy empieza a trabajar con elementos más simples, con imágenes instantáneas y al millonésimo de segundo, combinadas y ‘decoupées’ según el sentido cinemático del realizador” (VALLEJO, César. Eléctrones de la Obra de Arte)11.

Santiago de Chuco é já uma bateria intersticial de linguagens num mosaico maior, um módulo, um código de base, um nó construtivo. “Indio después del hombre y antes de él!”, como dirá, num quase programa cholo-antropofágico, em Telúrica y Magnética; e antes, no mesmo poema: ‘Molécula ex abrupto! !Átomo terso!”. Cosmopolitismo andino-latino-mundial a partir da cela de Trujillo. Elétrons ancestrais da atualidade.

Daí que “a paisagem urbana”, segundo Jorge Schwartz o “protagonista principal de grande número de poemas” (SCHWARTZ, Jorge. Vanguarda e Cosmopolitismo, p. 181) em Oswald e Girondo, 11 Ver Vallejografia, Roberto Paoli, p. 135

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esvazie-se em Vallejo como tema, passando a vigorar como impulso eletromagnético. Vallejo trabalha de corpo inteiro nessa zona densa de sinais ainda não linguisticamente conscientes ou ordenadas, fora do léxico, a que imprime uma forma.

Concisão, Condensação

A vontade de purgar a produção literária de “todos os importadores de consciência enlatada” (ANDRADE, Oswald de. Ob. cit., p. 14) levou Vallejo a uma negatividade reconstrutora, sadiamente anarco-iconoclasta, perante a América, somente comparável, na sega das diluições, ao Oswald da 2ª dentição da Revista de Antropofagia12.

Dizia: “De la generación que nos precede no tenemos, pues, nada que esperar. Ella es un fracaso para nosotros y para todos los tiempos. Si nuestra generación logra abrirse un camino, su obra aplastará a la anterior. Entonces, la história de la literatura española saltará sobre los últimos treinta años, como sobre un abismo” (VALLEJO, César. “Estado de la Literatura Española”, na revista Favorables Paris Poema, nº 1, Paris, 1926). Para tal revolução historiográfica é necessário um segundo golpe ou reação deglutidora de quem, depois de nutrir-se do alheio, despoja-se do cosmopolitismo barato. O “tono indoamericano”, que Vallejo faz circular num processo de endosmose/exosmose. “O

instinto Caraíba” oswaldiano (ANDRADE, Oswald de. Ob. cit., p,

15). O retorno despido de qualquer mito verde-amarelista: “Se alguma

coisa eu trouxe das minhas viagens à Europa dentre duas guerras, foi o Brasil mesmo” (Idem. Ponta de Lança, p. 96).

Nesse sentido, a separação que faz Jorge Schwartz entre as primeiras obras de Oliverio Girondo (exclua-se o radical En La

Masmédula) e a expansão antropofágica oswaldiana serve para Vallejo:

“Para Oswald, a distância atua como fator de exacerbada consciência do nacional” (SCHWARTZ, Jorge. Ob. cit., p. 212). No limiar entre o regional e o internacional, o peruano revigora a sensibilidade latino-americana pela alquimia formal de linguagens em cruzamento. Um arquipélago linguístico-musical adubado pelo guano, como em T. I. Uma estética orgânico-musical-fecal.

12 Consulte-se a respeito Revistas Re-Vistas: Os Antropófagos, em Poesia, Antipoesia,

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Nada poderia encaixar-se mais às aspirações vallejianas do que frases como: “Suprimamos as ideias e outras paralisias” (ANDRADE, Oswald de. Ob. cit., p. 18). E ainda, do Manifesto Pau-Brasil: “Nenhuma fórmula para a contemporânea expressão do mundo. Ver com olhos

livres” (Idem. Ob. cit., p. 9). Uma vontade de limpeza da catequese,

que Vallejo arrolou nos seus Apuntes: “‘La grandilocuencia en arte./

Lo declamatorio: arenga, proclama./ Lo oratorio./ Lo apostolizante y sacerdotal en el arte” (VALLEJO, César. Ob. cit., p. 165). É a luta

pela expressão seca, desnuda, atual, direta, que Vallejo queria fosse como um soco no peito. O ritmo que se geometriza em arestas, no papel. A escultura primitiva sob o crivo da técnica índio-moderna. A aguda “consciência do nacional” se dá pela retirada das muletas da narratividade clássica e também pela condensação lapidar daquilo que, num Ulisses joyceano, é experimento radical na direção da proliferação extensiva. Pratica-se aqui a proliferação que se compacta e estaca dentro do conciso. Fragmento em si e móvel com relação a outros sistemas.

Não há dúvida de que o nosso Oswald pratica uma desinfecção risonha e espreguiçante da tradição – a sua específica tonalidade – que difere do híspido e escarpado autor de Trilce (este atua, ponhamos, no exosqueleto cantante das grafias). A montagem crítica limite de

amor

humor

É como uma mordaça-piada fonética na boca do ritual amoroso discursivo (que faz lembrar, no plano dramático, o Vallejo do não conto carcerário, já citado, Muro Occidental: “Aquella barba al nivel de la tercera moldura de plomo”). Isto é: o temático-ideológico sempre se dando no microestético. A política como escavações linguísticas, a partir da física molecular das elocuções.

É justamente essa inocência construtiva indo-mulata (“Ágil e cândida como uma criança”. “Contra o gabinetismo, a prática culta da vida”. Incluída “a contribuição milionária de todos os erros”) (ANDRADE, Oswald de. Ob. cit., p. 6), que levou Oswald à exploração intervocálica sintética de, por exemplo,

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207

América do Sul América do SoI América do Sal

Vallejo, sem a mesma unidade gráfico-serial, desenvolve o mesmo filão. Daí levar também em conta, ao escrever contra o culteranismo afetado em voga, esse “aire nene que no conoce aún las letras” (T. LII), que favorece a entrada no reino dos significantes pré-lógicos e o saborear jogos articulatórios mínimos do castelhano (o coloquial popularesco subitamente mofando-se da oposição langue/

parole saussureana):

le tomas el pelo al peón decúbito

que hoy otra vez olvida dar los buenos días, eses sus días, buenos con b de baldío, que insisten en salirle al pobre por la culata de la v

dentilabial que vela en él.

Tal reaprendizado lúdico (Oswald: “Aprendi com meu filho de dez anos / Que a poesia é a descoberta / Das coisas que eu nunca vi”), por um ressoletrar da língua, é uma constante metalinguística em

Trilce. Temos aí que palpar as letras, de modo não-digital, para além e

aquém de b e v, l, r, d, t, etc., como coisas vivas dentro da boca.

Essa necessidade de “deletrear los enredos” é concomitante àquela de não contar e sim concentrar o que “heriza nos”. Somente tocando cordas inéditas seria possível resgatar o que chamou de “pureza de gesta de América”. Daí que tenha cinzelado uma poesia que corta nexos e explode pontes conceptuais, ao mesmo tempo que procura imprimir o soco do instante no papel. Diz: “odio las calles y los senderos (...) ... la idea es mera historia del hecho de vida, y los caminos en el mundo son mera historia de la marcha ya efectuada”. Tal impressão de uma qualidade gráfica colada à pele é que o diferencia de Huidobro: “heme libre hasta de pensamientos. Sí. (Ah, mi querido Vicente Huidobro, no he de transigir nunca con usted en la excesiva importancia que usted da a la inteligencia en la vida. Mis votos son siempre por la sensibilidad (...) ... la sensibilidad como función más que psíquica, fisiológica, de que le he hablado a usted algunas veces, mi querido Vicente” (VALLEJO, César. “Entre Francia y España”, em

Mundial, nº 290, Lima, 1926, pp. 52-3)13.

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O que nas teses e textos oswaldianos sempre repercute em Vallejo é essa intenção de fazer as incursões cosmopolitas – depois da desconstrução da história – reincidirem sobre as novas categorias linguístico-mentais de uma América Latina que pede novas medidas de leitura.

MONTAGEM, JOGO, POLIFONIA

A contribuição do erro é também, assim, vista e usada como um expediente de excesso, dispêndio, para compactar gramas fonéticos, reinstaurar o divertimento lúdico contra a busca do resultado, o processo contra a finalidade, o prazer, que se detém na própria palatal adstringência cíclica, em vez do trabalho, que implica destinação. Como disse Severo Sarduy, “erotismo como atividade que é sempre puramente lúdica, que não é mais do que uma paródia da função de reprodução, uma transgressão do útil, do diálogo ‘natural’ dos corpos” (SARDUY, Severo. “O Barroco e o Neobarroco”, em América Latina

em sua Literatura, p. 177). Erotismo como mobilidade convulsiva de

fonemas e de vozes. Por aí se vê a atualidade política de Oswald: “O inexplicável para críticos, sociólogos e historiadores, muitas vezes decorre deles ignorarem um sentimento que acompanha o homem em todas as idades e que chamamos de constante lúdica” (ANDRADE, Oswald de. “A Crise da Filosofia Messiânica”. Ob. cit., p. 126).

É o próprio manuseio do Serafim (afora sua colagem de excertos oportunamente deslavados, afora sua parafernália linguístico-carnavalizante) que, preludiando em muito o aparecimento de livros como Último Round, de Cortázar, propõe-nos uma aproximação obrigatoriamente lúdico-táctil-corporal, ao arrepio de toda ordem sequencial. O que não quer dizer, pelo contrário, que essa sintaxe de colisões (não de emparelhamento) metonímicas não fosse levada ao corpo mesmo das frases. Oswald inclusive chega, às vezes, a interligar prática teórica e linguística, projeto antropofágico e poético, como nas breves pinceladas de Musicól:

Periquitos, ursos, onças, avestruzes, a animal animalada. Rosáceas sobre aspargos da plateia. Condimentos. As partes pudendas nos refletores. Síncopes sapateiam cubismos, deslocações. Alterando as geometrias. Tudo

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se organiza, se junta coletivo, simultâneo e nuzinho, uma cobra, uma fita, uma guirlanda, uma equação, passos suecos, guinchos argentinos. Serafim, a vida é essa. (ANDRADE, Oswald de. Memórias sentimentais de João

Miramar e Serafim Ponte Grande, p. 210)

E mesmo já nos flagrantes cinematográficos e hiperbólicos do

Miramar:

E tínhamo-nos juntado no grande doce e carnoso grude dum grande beijo mudo como um surdo. (Idem. Ob. cit.,

p. 75)

Quanto a Vallejo, sua intenção hipersensível aos sentidos e à grafia do corpóreo (e à corporeidade do gráfico), se retorce em diversos procedimentos. Pode fazer levantar-se da página branca um grafema ou uma palavra, prática decerto aprendida em Poe, Mallarmé e com as revistas ultraístas, que utiliza segundo seus propósitos poéticos:

Centrífuga que sí, que sí, que Sí,

que sí, que sí, que sí, que sí: NO!

Este poema, que fala justamente da “esfera terrestre del amor”, mostra como em Vallejo a colisão entre o afirmativo e negativo aparece-lhe descontínua, desarmônica. A enxuta percussão desses três versos monossilábicos são, nessa linha, uma poética metalinguística que perpassa diferenciadamente por Trilce e que aponta para uma singularidade ósseo-vocal que não se soluciona, fazendo-o muitas vezes dirigir-se ao leitor através de uma contra-oratória do absurdo:

Intervenid en el conflicto de puntas que se disputan en la más torionda de las justas el salto por el ojo de la aguja! (T. XXXVI)

O antes citado T. LIX também revela o pendor vallejiano de trazer o plano da interrogação cósmica, mesmo que contra sua própria aspiração, para o mais telúrico-sexual: a punctualidade do carnal seria inesquivável (“el corralito consabido”). Daí as suas guinadas gráfico-cinemáticas, nascidas da necessidade, como em T. XXVI, de, câmera em zum, ressaltar o desterro do corpo e seus paradoxos pendulares:

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Las uñas aquellas dolían

retesando los propios dedos hospicios De entonces crecen ellas para adentro, mueren para afuera,

y al medio ni van ni vienen, ni van ni vienen.

Espaço para Benjamin, distinguindo a câmera dos olhos:

Se é banal analisar, pelo menos globalmente, a maneira de andar dos homens, nada se sabe com certeza do seu estar durante a fração de segundo em que estica o passo. Conhecemos em bruto o gesto que fazemos para apanhar um fuzil ou uma colher, mas ignoramos quase todo o jogo que se desenrola realmente entre a mão e o metal, e com mais forte razão ainda devido às alterações introduzidas nesses gestos pelas flutuações de nossos diversos estados de espírito. É nesse terreno que penetra a câmera, com todos os seus recursos auxiliares de imergir e emergir, seus cortes e isolamentos, suas extensões do campo e suas acelerações, seus engrandecimentos e suas reduções. (BENJAMIN, Walter. “A Obra de Arte na Época de suas técnicas de Reprodução”, em Os Pensadores, p. 29) A câmera dissociadora de Vallejo, através de cortes e tmeses, saltando enormes distâncias articulares e polissindéticas, propõe à leitura silabações e atalhos díspares, fragmentos divergentes de estrofe a estrofe. Certos poemas de Vallejo são uma colagem de uma série de estrofes-haicai, um relato mutilado, com blocos de prosa poética, excertos de refugos coloquiais, exercícios anafórico-aliterativos, absurdos interrogatórios, gagueiras infantis, mini-citações mutiladas etc. Isso é consequência do seu afanoso trabalho intertextual, inclusive na prisão. Como se aquilo que Oswald desnudou nos blocos-sintagmas-capítulos de seus dois não-romances fosse levado às partes de que se compõem um poema (daí também, aliás, a difícil legibilidade do brasileiro e do peruano: perceberem que toda mudança deve passar pela reorganização metonímico-digital-sintagmática). O traço de progressão-regressão é dado apenas por certas frágeis pontes díspares, ou pela importantíssima redistribuição de sons. Entre vários exemplos, tomemos T. XLII, de onde não se pode descartar uma aglutinação oral/ facial/gestual (Zumthor) de continente desacostumado à linearidade verbal ocidental-guttenberguiana:

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Esperaos. Ya os voy a narrar todo. Eperaos sosiegue

este dolor de cabeza. Esperaos. ¿Dónde os habéis dejado vosotros que no hacéis falta jamás? Nadie hace falta! Muy bien. Rosa, entra del último piso. Estoy niño. Y otra vez rosa: ni sabes a dónde voy.

¿Aspa la estrella de la muerte? O son extrañas máquinas cosedoras dentro del costado izquierdo. Esperaos otro momento. No nos ha visto nadie. Pura búscate el talle.

¡A dónde se han saltado tus ojos! Penetra reencarnada en los salones de ponentino cristal. Suena

música exacta casi lástima.

Me siento mejor. Sin febre, y ferviente. Primavera. Perú. Abro los ojos.

Ave! No salgas. Dios, como si sospechase algún flujo sin reflujo ay.

Paletada facial, resbala el telón cabe las conchas.

Acrisis. Tilia, acuéstate.

Com seus esconderijos onomásticos (“Rosa”, “Tilia”), com seus saltos sintáticos, deformações e espelhamentos (“Esperaos sosiegue”), com seus arcaísmos e neologismos (“cabe”, “Acrisis”), com suas mutações fonossemânticas a partir do desmembramento do significante grafemático (“ay” em vez do homófono “hay”), com suas nervuras coloquiais (p. ex., “Ave! No salgas”), com suas rememorações insistentes de uma poética travada, de abalroamento sonoro (“O son extrañas máquinas cosedoras / dentro del costado izquierdo”; “Suena / música exacta casi lástima”) e com seus sedimentos biográficos, etc., T. XLII é uma espécie de oficina experimental de Trilce, com passagem por Escalas Melografiadas. Em La Vida, Esta Vida..., dos

Poemas Humanos, o arcaico “cabe” repercutirá complicado: “Cave los

albañales sesgar sus trece huesos”.

Tal polifonia oral inscrita na grafia, aproxima-se daquilo que Paul Zumthor denomina “culturas de ritmo rápido”, em oposição às de “ritmo lento”. Naquelas há “um predomínio geral dos ritmos” derivados da poesia oral, nestas “o texto escrito, visto que subsiste, pode assumir plenamente sua capacidade de futuro”. Vallejo e Oswald, querendo manter no gráfico a brevidade, “o múltiplo, cumulativo, matizado, por vezes diverso até à contradição”, dos textos orais, deram-se conta

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de algo fundamental: de que este continente tem outra geometria temporal, atípica, não podendo assimilar sem grave dano a unidade de sentido clássica, verbal e tendente à permanência. Daí parecerem os poemas vallejianos e oswaldianos lapidar isso que Zumthor chama de “agregados provisórios” (ZUMTHOR, Paul. “Le Discours de la Poésie Orale”, em Poétique, nº 52, 1982, pp. 394-6)14, formas migrantes e

imigrantes, grupos de vozes e de gestos díspares formando galáxias ou arquipélagos.

Mas o que passa da voz para a grafia é justamente o ritmo, a polifonia, a garganta, a “tiplisonancia”: não os temas. Não é por acaso que as guitarras de todo o folclore em Vallejo mudam-se em nervuras instrumentais. Interessa a voz, que abalroa a escritura, não o que ela diz. Desse modo, o impulso vocal de, por exemplo, um Martín Fierro (“Aqui me pongo a cantar / al compás de la vigüela”), que já é uma coletânea de múltiplas canções e quadras de várias regiões, é levado às máximas consequências. Vallejo esforça-se por carrear o desempenho da oralidade para os gramas escriturais, o que resulta numa nova extensão intertradutória impressa em cada grafema. Aguça-se assim ao mais alto grau a relação do fácil com o difícil, do artificial com o vínculo vocal da tribo e/ou da espécie.

A vontade linguística de se deixar para trás uma certa noção eufemística e alambicada de coração e de intelecto implica a exposição gráfica de um balé orgástico.

Oh Consciencia,

pienso, sí, en el bruto libre

que goza donde quiere, donde puede. Oh, escándalo de miel en los crespúsculos. Oh estruendo mudo.

¡Odumodneurtse!

que quer superar, através da dança das letras e de uma certa inocência rítmica reinauguradora, as dicotomias herdadas. Ou seja, no dizer de Oswald: “Contra todas as catequeses”. Ou: “O que atropelava a verdade era a roupa, o impermeável entre o mundo interior e o mundo exterior. A reação contra o homem vestido”. E ainda: “O espírito recusa-se a

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conceber o espírito sem o corpo. O antropomorfismo. Necessidade da vacina antropofágica” (ANDRADE, Oswald de. Ob. cit., pp. 13-5)15.

Desencadeamento dos instintos como forma de liberdade pela mobilidade textual, que Oswald leva ao paroxismo burlesco-erótico no Serafim. Liberdade em bruto, como nos Esplendores do Oriente: “– Encosto a cabeça na tua, aí por esses foquestrotes, por esses charlestões. Encosto a língua na tua, mole, babosa, salivosa” (ANDRADE, Oswald de. Ob. cit., p. 253). Como queria Oswald, uma nova forma de tempo, “eletro-ética” (Idem. Ob. cit., p. 253).

Tal idioma, de bruta agilidade, tinha descortinado Vallejo ao falar da dança: “Yo querría algo más radical: la danza que dance

la danza y que esté tan lejos de la literatura, como de la música”

(VALLEJO, César. “La Danza sin Música”, Ob. cit., p. 55).

A saber, Vallejo estrategicamente põe em evidência que o movimento desviante das linguagens de invenção não se perfaz pela fácil via do apoio temático de uma a outra, mas pela intersecção de formas construtivas. Daí a sua tentativa de recriação técnica de uma nova cinematografia musical da anatomia humana, que desdobrará até os poemas póstumos, dizia, como um “sañudo antropóide”. Inocente orfandade integrada à técnica construtiva:

Tal siento ahora el meñique demás em la siniestra.

(...)

¡Ceded al el nuevo impar potente de orfandad!

(T. XXXVI)

O CORPO E O CONTINENTE

Daí que Vallejo dedique-se a esquadrinhar, lupa à mão, a fala dos poros e dos líquidos, essa dança elétrico-erótica microssexual (“Guante de los bordes borde a borde. / Olorosa verdad tocada en vivo”; “Lavaza de máxima ablución”: T. XXX) até transformar-se a pupila poética numa câmara-lenta sensibilíssima que flagra na linguagem o lúdico-erótico a partir das miúdas similaridades palato-vaginais entre

b e v:

15 Sobre a importância do texto como corpo ern Vallejo, especialmente nos casos de T. XIII e T. XX, ver Eduardo Peñuela Canizal, Duas Leituras Semióticas, pp. 11-16.

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Vusco volvvver de golpe el golpe. Sus dos hojas anchas, su válvula que se abre en suculenta recepcíón de multiplicando a multiplicador, su condición excelente para el placer, todo avía verdade

Busco volvver de golpe el golpe.

A su halago, enveto bolivarianas fragosidades A treintidós cables y sus múltíples,

se arrequintan pelo por pelo

soberanos belfos, los dos tomos de la Obra, y no vivo entonces ausencia,

ni al tacto.

Fallo bolver de golpe el golpe. No ensillaremos jamás el toroso Vaveo de egoísmo y de aquel ludir mortal de sábana,

desque la mujer esta

¡cuánto pesa de general! Y hembra es el alma de la ausente. Y hembra es el alma mía.

(T. IX)

Trata-se de um trágico divertimento lúdico-afásico, ou melhor, de uma acumulação gradual lúdico-afásico-metonímica de grafemas, conforme o diapasão da fala membranosa do ato sexual. Troca inocente de grafemas no eixo paradigmático e sua colagem/colisão no eixo metonímico. O impacto do instantâneo e artificialidade construtiva. Atente-se ao jogo anagramático-anafônico, em “válvula”, “Fallo”, “Vaveo”. Repare-se também a lúcida montagem dos golpes sonoros entre b e v com a contingência histórico-geográfica de alta voltagem: “enveto bolivarianas fragosidades / a treintidós cables y sus múltiples”. Isso implica a inclusão dessa lírica amorosa em bruto, “pelo por pelo”, na própria dura busca da liberdade americana, além de, ao mesmo tempo, repropor uma poética: o ato amoroso-sexual, a descoberta do continente e a independência da escritura são “bolivarianas fragosidades” difíceis de se domar. Texturas sociais, urbanas e corporais se encontram na prática linguística. O escarpado também é dado pela diminuição da série em v a cada estrofe/golpe. O individual no político.

Somos obrigados a soletrar e, de fato, sopesar as sílabas e semissílabas de modo íngreme e penhascoso. Ao modo de Satie, que pesava sons, Vallejo se apraz em medir e pesar fonemas, engasgos de fonemas. Satie considerava-se um fonometrógrafo: “Conheceis a limpeza dos sons? É uma imundície total. Desfiá-los, é o mais

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adequado”16. Meticulosa fabricação de qualidades sonoras amelódicas.

Serve para essa linguagem avariada de Vallejo aquilo que Foucault diz de Borges: “O que faz rir quando se lê Borges aparenta-se por certo ao profundo mal-estar daqueles cuja linguagem se arruinou: ter perdido o ‘comum’ do lugar e do nome. Atopia, afasia”17.

A compressão lúdico-acumulativa do fonético quer martirizar esse vazio entre grafemas, lábios, amantes, mobilizar um ainda que falível e iminente equilíbrio:

Grupo dicotiledón. Oberturan

desde él petreles, propensiones de trinidad, finales que comienzan, ohs de ayes

creyérase avaloriados de heterogeneidad. ¡Grupo de los dos cotiledones!

Este ato de transformar as virtualidades sentimentalóides num pictografema ósseo aproxima outra vez Vallejo de Oswald: “O trabalho contra o detalhe naturalista – pela síntese; contra a morbidez romântica – pelo equilíbrio geômetra e pelo acabamento técnico; contra a cópia, pela invenção e pela surpresa” (ANDRADE, Oswald de. Ob. cit., p. 8). Este corpo gráfico não só libera as ações lúdico-concretas das abstrações teológicas como estende o próprio conceito de texto nas suas possibilidades de manuseio e intercâmbio. Corpo textual e texto corporal. A extensão do conceito de corpo de algum modo é análoga à extensão do conceito de texto. Por isso Paz diz que “ao palpá-lo, se reparte (como um texto) em porções que são sensações instantâneas: sensação que é percepção de uma coxa, um lóbulo, um mamilo, uma unha, um pedaço quente da virilha, a nuca como o começo de um crepúsculo”18.

Nessa trilha, o que faz a poética vallejiana é recuperar e fincar no possível presente plurilinguístico-racial da América Latina a vertente hispano-árabe, castrada pela Reconquista, e subterraneamente rediviva num Quevedo e no Siglo de Oro. Agudamente expõe Juan Goytisolo:

16 Ver Satie: Sotie, em José, nº 4, 1976, nota, seleção e tradução de Sebastião Uchoa Leite, p. 32. 17 Ver Michel Foucault, Prefácio de As Palavras e as Coisas, p. 7.

18 PAZ, Octavio, El Mono Gramático, citado por Juan Goytisolo, El Lenguage del Cuerpo, em

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Coincidindo com o eclipse militar dos mulçumanos, o saboroso erotismo dos textos medievais deserta paulatinamente da cena literária espanhola, não sem adotar antes a forma exasperada e convulsa que tanto choca, hoje ainda, a numerosos ‘especialistas’ no Siglo de

Oro. A partir de então assistimos a uma institucionalização

da repressão do signo ‘corpo’ que, conjugada com a do intelecto, passou a ser um dos elementos essenciais da moderna personalidade hispânica. Até o momento, nenhum historiador ou ensaísta calibrou como se deve a importância deste fenômeno e seu formidável impacto na configuração mental e vital do país. (GOYTISOLO, Juan. Ob. cit., p. 300)

Contra esse confisco histórico, adotado pelo vice-reino do Peru e retomado pela trajetória caudilhesca das repúblicas da América hispânica, Vallejo replica com a avaria verbal, o grafema licencioso, o tráfego de línguas.

A antropofagia antipatriarcal e antimessiânica, de sensual intercurso idiomático, que perpassa pelo Serafim (e todo o pensamento de reconstrução oswaldiano), com ingredientes castelhano-arabizantes, é também informada por essa vertente “exogâmica”, que Oswald acompanhou até nós. Diz: “A Reconquista foi um fenômeno político e militar de superfície” (ANDRADE, Oswald de. “A Marcha das Utopias”, Ob. cit., p. 157). “Os árabes foram tão compreensivos que no grande califado de Córdoba era permitido o uso de meia dúzia de línguas, desde o árabe clássico dos escritores até o latim eclesiástico e o dialeto que daria o castelhano. Em oito séculos de dominação, não foi imposta a língua do vencedor” (Idem. Ob. cit., p. 154). No mesmo âmbito de ideias, como que preludiando a Bakhtin, retraça o que chama de “geografia do riso”, do “grito rabelaisiano” ao Quixote: “as molas do riso, tanto em Gargântua como em Pantagruel, brotam às vezes da colocação de uma frase, dum trocadilho, duma invenção vocabular” (Idem. Ob. cit., p. 169).

É esta remontagem da história no presente, através da desconstrução linguística, que realiza Vallejo. A estirpe da tradição é selecionada esteticamente, e entramada à linguagem presente. Nos poemas póstumos, os procedimentos trílcicos, em Trilce criptográficos, permearão paródico-carnavalizadamente o bíblico, o mundano e o grotesco, o humano e o animal, o corpóreo e o musical, a lírica amorosa, a guerra civil espanhola e o Peru:

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Amadas sean las orejas Sánchez

O título-dístico desse poema – Traspié Entre dos Estrellas – que anagramatiza a numérica vallejiana numa trituração de ecos aliterantes, paronomásticos e interstelares, parece dialogar chaplinescamente com o ungarettiano “Daquela solidão de estrela / àquela solidão de estrela”19 e, conforme mostra Paoli, “nos reconduz à área de um gosto

cubo-futurista à Maiakóvski” (PAOLI, Roberto. “Hacia una Definición Materialista de Poemas Humanos”, em Mapas Anatómicos de César

Valleio, p. 58). Como um jato fanopaico-poundiano (e com a colisão

de campos semânticos paradoxais redimensionados pela aproximação fônica: “traspié” “estrellas”), este luminoso contrapublicitário, pela inclusão do manco e do desarmônico numericamente, retoma e reverte o diálogo abstrato-espacial mallarmeano, ao modo de um Artaud20

peruano-antropófago, para as confluências rítmicas da América Latina.

19 Ver de Haroldo de Campos, Ungaretti e a Estética do Fragmento, em A Arte no Horizonte do

Provável, pp. 77-90, onde também consta a sua tradução, “num ensaio-homenagem”, do texto

citado.

20 Sobre aproximações entre Vallejo e Artaud, ver Jason Wilson, Vallejo y Artaud: Dos Fracasos

Fecundos, Eco, nº 165, 1974, Bogotá. Diz, às páginas 300-301: “Essa forma de tocar a vida em

seu palpitar físico e concreto e expressá-lo no poema, o que Artaud chama de ‘a vitalidade nervosa dos miolos’ como caminho à verdade, exclui a maioria da sociedade, que ‘são a maior parte’, porque não estão à intempérie, mas ‘protegidos’ por formas, por palavras, por poemas”. E à página 302, encerrando: “À pergunta de T. S. Eliot ‘onde está a vida que perdemos vivendo’, André Breton responde que ‘a verdadeira vida está mais além’, tendo respondido, por sua vez, Artaud e Vallejo que ‘a verdadeira vida está aqui, agora’”.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Mira-mar / Serafim Ponte Grande, R.J., C. Brasileira, 1978.

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de João Miramar/Serafim Ponte Grande, R.J., C. Bras., 1978.

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Referências

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