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Corpo : protagonista perpétuo das dores do mundo

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Academic year: 2021

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CAMPINAS – SP 2019

UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS Faculdade de Educação Física

SANDRO BORELLI

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CAMPINAS – SP 2019

SANDRO BORELLI

CORPO – PROTAGONISTA PERPÉTUO DAS DORES DO MUNDO

Dissertação apresentada à Faculdade de Educação Física da Universidade Estadual de Campinas como parte dos requisitos exigidos para a obtenção do título de Mestre em EDUCAÇAO FÍSICA, na Área de EDUCAÇÃO FÍSICA E SOCIEDADE

Orientador: Prof. Dr. Odilon José Roble

ESTE TRABALHO CORRESPONDE À VERSÃO FINAL DA DISSERTAÇÃO DEFENDIDA PELO ALUNO SANDRO

BORELLI, E ORIENTADA PELO

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Prof. Dr. Odilon José Roble

Universidade Estadual de Campinas – UNICAMP

Prof.ª Maria Helena Franco de Araujo Bastos Universidade de São Paulo – USP

Prof.ª Marina Souza Lobo Guzzo

Universidade Federal de São Paulo – UNIFESP

A Ata da defesa com as respectivas assinaturas dos membros encontra-se no SIGA/Sistema de Fluxo de Dissertação/Tese e na Secretaria do Programa da Unidade.

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Aos mitos Tântalo, Sísifo e Íxion. À filosofia de Nietzsche e Schopenhauer. À obra de Augusto dos Anjos e Franz Kafka.

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A mim mesmo, pelo ímpeto de produzir este argumento medíocre. À Vanessa, como inspiração e incentivo.

Aos meus filhos Gabriel, Clara e Isadora.

A Odilon, pela paciência e por me suportar durante todo o processo. Aos artistas do grupo Meandros, por tentarmos ir juntos ao Tártaro. À Leticia, pela revisão.

A Fidel, pela generosidade.

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Eu não sou mais um ser humano, eu sou uma ideia.

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Este estudo propõe relacionar aspectos dos mitos gregos de Tântalo, Sísifo e Íxion às conjuntu- ras contemporâneas, evidenciando o papel de protagonismo eterno do corpo nas dores, nos fla- gelos e nas torturas que a sociedade o submete. Para tal, alimenta-se das referências filosóficas de Arthur Schopenhauer e Friedrich Wilhelm Nietzsche, assim como se ampara na literatura de Franz Kafka e se inspira na poesia de Augusto dos Anjos para propor um olhar de cunho políti- co e cultural sobre o corpo enquanto lugar de sentido, de reflexão, permanentemente refém das barbáries corporais e psicológicas evidenciadas em sua trajetória. Além das reflexões teóricas referidas, também expõe um trabalho coreográfico em que o escopo criativo se situa no Tártaro, que, na mitologia grega, é considerado o lugar de martírio e de cumprimento de pena eterna, estabelecida aos que afrontaram as leis estabelecidas por Zeus.

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This study proposes to relate aspects of the Greek myths of Tantalus, Sisyphus and Ixion to contemporary conjunctures, highlighting the role of eternal protagonism of the body in the pains, the flames and the tortures that society submits. For this, it feeds on the philosophical references of Arthur Schopenhauer and Friedrich Wilhelm Nietzsche, as well as it is based on the literature of Franz Kafka and is inspired in the poetry of Augusto dos Anjos to propose a political and cultural look on the body as a place of sense, of reflection, permanently hostage to the corporal and psychological barbarities evidenced in its trajectory. Beyond theoretical reflections referred to, also exposes a choreographic work in which the creative scope lies in Tartarus, which in Greek mythology is considered the place of martyrdom and fulfillment of eternal punishment, established to those who faced the laws established by Zeus.

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Figura 1 – Sobreposições. Desenhos de Roberto Alencar. Disponível em:

<https://pikdo.net/p/robertoalencardesenhos/1823423453752232136_5884902288>. Acesso em: 20 de janeiro de 2019...13

Figura 2 – Tantalus. Reprodução da obra de Gioacchino Assereto (1600-1649). Disponível em:

<https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Tantalus_Gioacchino_Assereto_circa1640s.jpg>. Acesso em: 2 de janeiro de 2018 ... 17

Figura 3 – Fotografia de Júnior Cecon (2016) sobre a coreografia Colônia Penal (2013).

Inspirada na obra de Franz Kafka e na tortura da Ditadura militar brasileira. Intérprete: Mainá Santana e Alex Merino. Disponível em: <http://www.ciacarneagonizante.com.br/>. Acesso em: 12 de março de 2018 ... 21

Figura 4 – Fotografia de Júnior Cecon (2015) sobre a coreografia, Não te abandono mais, morro contigo (2015). Inspirada na obra homônima de Franz Kafka. Com Everton Ferreira e

Alex Merino. Disponível em: <http://www.ciacarneagonizante.com.br/>. Acesso em: 23 de março de 2018 ... 23

Figura 5 – Fotografia de Júnior Cecon (2017) sobre a coreografia A Metamorfose (2002).

Inspirada na obra homônima de Franz Kafka. Com elenco da Cia. Carne Agonizante. Disponível em: <http://www.ciacarneagonizante.com.br/>. Acesso em: 13 de maio de 2018 ... 26

Figura 6 – Fotografia de Júnior Cecon (2017) sobre a coreografia O Processo (2003). Inspirada

na obra homônima de Franz Kafka. Com Everton Ferreira e Amanda Santos. Disponível em: <http://www.ciacarneagonizante.com.br/>. Acesso em: 15 de maio de 2018 ... 28

Figura 7 – O suplício de Sísifo. Franz Von Stuck (1862-1928). Disponível em: <http://lounge.obviousmag.org/vendedor_de_laranjas/2012/09/a-inutil-tarefa-de-sisifo.html>. Acesso em: 4 de fevereiro de 2019 ... 29

Figura 8 – Fotografia de Inês Correa (2011). Coreografia Eu em Ti de Sandro Borelli. Intérpretes:

Mariana Molinos e Alex Merino. Disponível em: <http://www.ciacarneagonizante.com.br/>. Acesso em: 8 de fevereiro de 2018. ... 31

Figura 9 – Reprodução de foto do jornal Folha de São Paulo (29/09/2017) – “Promotoria

investiga vídeo em que criança interage com artista nu”. Apresentação da performance La Bête com Wagner Schwartz ... 35

Figura 10 – Foto: Reuters/João Castellano. Manifestação contra a homofobia na 19ª Parada

do Orgulho LGBT. Fonte: G1, 2015 ... 37

Figura 11 – Autor desconhecido. Scratch marks on the wall of the Auschwitz gas chamber.

Disponível em: <https://segredosdomundo.r7.com/como-era-a-morte-nas-camaras-de-gas-nazistas/>. Acesso em: 2 de março de 2019 ... 39

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Acesso em: 5 de março de 2018 ... 41

Figura 13 – Fotografia de André Prado (2008). Imagem do espetáculo Senhor dos Anjos – O Lamento das Coisas (2008). Inspirado na obra do poeta Augusto dos Anjos. Disponível em:

<http://www.ciacarneagonizante.com.br/>. Acesso em: 2 de agosto de 2018 ... 46

Figura 14 – O Mito de Sísifo, Max Klinger, 1914 ... 49 Figura 14.1 – Desenho à mão. Sandro Boreli, 2018 ... 49 Figura 15 – Fotografia de Junior Cecon (2018). Imagem do espetáculo A Metamorfose (2002).

Inspirado na obra homônima de Franz Kafka. Disponível em:

<http://www.ciacarneagonizante.com.br/>. Acesso em: 15 de maio de 2018 ... 51

Figura 16 – Ixion Enchained in Tartarus - Abel de Pujol (1785-1861) - PD-art-100. Disponível

em: <http://www.greeklegendsandmyths.com/uploads/5/3/1/3/53133595/ixion_orig.jpg>. Acesso em: 21 de abril de 2018... 55

Figura 17 – Alex Merino (2018). Fotografia da coreografia Balada da Virgem – Em nome de deus. Inspirada em Joana D’Arc. Disponível em: <http://www.ciacarneagonizante.com.br/>.

Acesso em: 6 de agosto de 2018 ... 58

Figura 18 – Juliette by Marquis de Sade. A ilustração é de uma impressão holandesa de Juliette

de 1789 ... 62

Figura 19 – André Prado (2008). Imagem da coreografia Jardim de Tântalo (2001). Com

Robson Ferraz e Edson Calheiros. Disponível em: <http://www.ciacarneagonizante.com.br/>. Acesso em: 13 de agosto de 2018 ... 63

Figura 20 – Imagem da coreografia Tártaro. Inspirada no submundo da mitologia grega para

onde são levados os que se opuseram a Zeus. Coreografia: Sandro Borelli. Com Meandros – Grupo de extensão da Faculdade de Educação Física da Unicamp. Fotografia: Alex Merino. 11 de maio de 2019 ... 64

Figura 21 – Fotografia de Gal Oppido (2003). Imagem do espetáculo Kasulo. Com Roberto

Alencar, Sônia Soares e Renata Aspesi. Disponível em:

<http://www.ciacarneagonizante.com.br/>. Acesso em: 15 de março de 2019 ... 66

Figura 22 – Osmar Zampieri (2018). Encontros Improváveis com Sandro Borelli, Leonardo

Alkmim e Osmar Zampieri. Print screen de vídeo. (1min22s). Disponível em: <https://youtu.be/NSUCO7R8hMU>. Acesso em: 8 de setembro de 2018 ... 68

Figura 23 – Osmar Zampieri (2018). Encontros Improváveis com Sandro Borelli, Leonardo

Alkmim e Osmar Zampieri. Print screen de vídeo. (8min07s). Disponível em: <https://youtu.be/NSUCO7R8hMU>. Acesso em: 1 de abril de 2019 ... 69

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1 INTRODUÇÃO . . . 14 2 TÂNTALO – O INCONFIDENTE . . . 16 2.1 Insubordinação . . . . . . 18 2.2 Insólito . . . 20 2.3 Autofagia Incessante . . . 21 2.4 Culpa e Corpo . . . 25 2.5 Sentença e Pena . . . 27

3 SÍSIFO – UMA TRAGÉDIA ANUNCIADA . . . 29

3.1 Subterrâneo das Sensações . . . 30

3.2 Status Quo do Poder . . . 34

3.3 As Crueldades . . . 42

3.4 Criador de Utopias . . . 47

4 ÍXION E SUA LIBIDO INDOMÁVEL . . . 53

4.1 Tragédia, fatalidade e dor . . . 54

4.2 Quebra de Padrão . . . 58

4.3 Poeta Errante . . . . . . . . . . . . . . . . . . 60

5 SEGMENTO COREOGRÁFICO . . . 64

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS . . . 65

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Figura 1 – Sobreposições. Desenhos de Roberto Alencar. Disponível em:

<https://pikdo.net/p/robertoalencardesenhos/1823423453752232136_5884902288>. Acesso em: 20 de janeiro de 2019.

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1 INTRODUÇÃO

Para me lançar em mais uma empreitada ou em mais um campo de batalha, com o desafio de passar para a escrita da forma mais organizada possível, também lidando com as minhas vontades em conjunção com as minhas representações e, assim, tentar construir um argumento que pudesse abarcar minimamente a complexidade, a profundidade e a beleza his- tórica acerca da tragédia dos mitos de Tântalo, Sísifo e Íxion, personagens emblemáticos da mitologia grega, precisei transitar em um terreno pantanoso e cheio de armadilhas. Para me sentir protegido e amparado para esta guerra, fui buscar armas nas filosofias de Schopenhauer e de Nietzsche, mas a estratégia não surtiu o efeito esperado, pois as obras de ambos com que pude ter contato, em um primeiro momento, apresentaram-se como armas poderosíssimas para enfrentar o que me propunha realizar, porém, sem munição alguma, foi como se eu detivesse o poder sem a mínima condição de usá-lo com a sabedoria necessária. Fui buscar refúgio na literatura de Kafka, mas a bibliografia kafkiana me revelou caminhos obscuros e de agonia constante. Quanto mais adentrava neste universo insólito, as incertezas iam se materializando e a famosa frase, possivelmente dita pelo escritor, “Há esperança, só não para nós, portanto, de- sista” – talvez reconhecida como a síntese mais completa de sua obra, na qual o indivíduo, sem alternativa, torna-se prisioneiro dele mesmo, sendo incapaz de perceber sua ínfima importância frente a um sistema construído unicamente para poder imobilizá-lo e escravizá-lo – delinea- va-se como norte destes escritos. Tal qual um homem transformado em uma barata depois de uma noite repleta de pesadelos, como em A Metamorfose, pareceu comprovar o quanto somos incapazes de reagir ao que a vida nos propõe.

Em busca do arete1 do homem grego da antiguidade, não me dei por vencido, fui buscar munições negadas pelos filósofos e pelo escritor de Praga na poesia de Augusto dos Anjos e, mais uma vez, deparei-me com uma insofismável certeza trágica do ser humano: a de cedo ou tarde, tornar-se matéria orgânica no interior das catacumbas dos cemitérios. Ou seja, os quatro autores supracitados apontaram caminhos onde a solidão e a infalibilidade do nada ser foram ficando evidentes quanto mais me aprofundava na pesquisa.

Ao aceitar o desafio para a batalha de construir um argumento acadêmico ins- pirado nas tragédias dos mitos de Tântalo, Sísifo e Íxion, interagindo com as referências de Schopenhauer, Nietzsche, Kafka e Augusto dos Anjos, percebi que, para ter alguma chance de vitória contra os temíveis Titãs e cruéis Titânides2, que também ousaram desafiar a supremacia de Zeus na ânsia pelo poder, eu deveria anunciar e unir o corpo, castigo, dor, suplício e morte em uma espécie de orgia conceitual e criativa.

É bom que se diga que foi inevitável buscar referências na minha experiência pes- soal como artista do corpo para poder dar alguma sustentação reflexiva no modo de ver e pensar

¹ Palavra de origem grega, que expressa o conceito de excelência ou virtude. ² Titãs e Titânides, ancestrais dos deuses olímpicos.

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os mitos gregos. Assim sendo, foi necessário olhar estes personagens sob meu ponto de vista íntimo, na forma mais humana possível, para tentar tirar deles a pecha da imoralidade que a mitologia grega lhes reservou. Apenas, mais um modo de compreender toda energia simbólica que nos reserva o homem grego antigo.

CORPO – PROTAGONISTA PERPÉTUO DAS DORES DO MUNDO nada mais é do que o homem lançado na vertigem de um grande abismo sem fim que é o mundo, um lugar de luta acirrada pelo poder, para firmar-se diante de um universo absurdo e cruel, onde os ecos de suas perguntas se findam no silêncio. Uma queda rumo ao nada, sem qualquer possibilidade de regresso. O corpo alçado ao papel principal do grande espetáculo trágico que protagoniza a humanidade na sua eterna luta contra a finitude física e espiritual.

Schopenhauer compreendeu a vida como uma sucessão de aflições diárias com um final previsível:

Desse modo, ser-nos-á mais fácil compreender que, do lado da representação, isto é, no mundo dos fenômenos, assistimos ora a uma aparição que vem do nada, ora a uma aniquilação absoluta do ser que nasceu, e que do outro lado, o lado da coisa em si, temos diante de nós, ao contrário, uma existência a qual, se aplicadas as noções de nascimento e de morte, estas não possuem mais nenhum sentido. (SCHOPENHAUER, 2001, p. 62)

Se o “sentido da vida é que ela termina”, como estigmatizou Franz Kafka de for- ma pragmática em grande parte da sua obra, isto posto, é possível compreender o tempo des- provido de qualquer mistério, ou seja, ele simplesmente passa, envelhecemos a cada minuto. Cedo ou tarde, um dia teremos que morrer, virarmos pó, desaparecermos por completo e ponto final, certo? Além disso, aparenta ser composto de situações sempre contínuas, repleto de mo- mentos que vão se transformando em acontecimentos irreversíveis e imutáveis, como relógio programado para estar sempre estruturado, sem oscilações, alterações ou novidades. Ainda, se considerássemos o tempo como um espetáculo cênico, fatalmente a vida faria parte do elenco, mas não passaria de uma simples bailarina figurante de uma representação sem fim, como se fosse uma insignificante brisa inserida em um turbilhão, quase sem nenhuma importância para a construção da história.

Sendo assim, a derrota será sempre inevitável e necessária, pois decorrerá através desta realidade que se apresenta diariamente diante de nós. Aparenta ser um aviso, um susurro em nossos ouvidos para que nos livremos da busca intermitente da felicidade, que nada mais é do que um modo de nos manter distraídos e inoperantes ao mundo que nos cerca, segundo os apontamentos de Schopenhauer, que considero impossível de ser questionado.

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2 TÂNTALO - O INCONFIDENTE

Ao iniciar estas reflexões, proponho a licença poética de relacionar o mito grego de Tântalo a um importante personagem da história política brasileira, chamado Joaquim José da Sil- va Xavier (1746-1792), conhecido pelo codinome de Tiradentes. Minha proposta se dá por conta da possível similaridade dos delitos de ambos, nas condenações e nos castigos, enquanto um foi condenado a cumprir pena por toda a eternidade, o outro, sentenciado à morte por enforcamento.

Segundo sentença3 promulgada em 1792 por Sebastião Xavier de Vasconcelos (Chanceler da Rainha) e outros:

[...] Mostra-se que entre os chefes e cabeças da conjuração, o primeiro que suscitou as ideias de república foi o réu Joaquim José da Silva Xavier, por alcunha o Tiradentes, alferes que foi da Cavalaria paga da Capitania de Minas Gerais, o qual há muito tempo que tinha concebido o abominável intento de conduzir os povos daquela Capitania a uma rebelião pela qual subtraíssem da justa obediência devida à dita Senhora formando para este fim publicamente discursos sediciosos que foram denunciados ao Governador de Minas antecessor do atual, e que então sem nenhuma razão foram des- prezados como consta a folhas 74 folhas 68 verso folhas 127 verso e folha 2 do apên- dice número 8 da devassa principiada nesta cidade; e suposta que aqueles discursos não produzissem naquele tempo outro efeito mais do que o escândalo a abominação que mereciam, contudo como o Réu viu que o deixaram formar impunemente aquelas criminosas práticas. [...] (COUTINHO et al, 1792)

Tiradentes foi considerado um traidor da coroa portuguesa por insuflar uma revolta do povo pobre contra as altas taxas de impostos cobradas pela monarquia e tramar a indepen- dência do Brasil, até então, colônia de Portugal. Ele não foi o único acusado e capturado pelas tropas a serviço da monarquia portuguesa, havia outros insurgentes, jovens oriundos de famílias tradicionais com estudos na Europa, com ideias consideradas libertárias que iam de encontro ao sistema vigente. Tiradentes, contudo, era de origem social diversa, possuindo uma condição bastante humilde. Talvez, por essa discrepância de classe social foi o único dos insurgentes que não mereceu clemência da rainha Maria I, sendo enforcado em praça pública, em seguida, esquartejado e salgado a fim de que suas vísceras se preservassem por um tempo maior para serem expostas em diversos locais da região, com o intuito de manter a população sob o refú- gio do medo. Seu sangue foi usado pelos representantes do Estado para cunhar um documento oficial, informando que a sentença havia sido cumprida, muito provavelmente como forma de ratificar o poderio domesticador e doutrinador instaurado para manter o cidadão obediente e temeroso. Um indivíduo que ousou desafiar o poder estrangeiro-invasor, estabelecido à custa de muita opressão e sangue derramado.

Por conta de uma morte tão cruel e, ao mesmo tempo, épica, em alguns aspectos semelhante a um roteiro de espetáculo trágico grego, a história acabou sendo condescendente com esta figura, perpetuando-a como um herói que tentou se opor ao regime de opressão de sua

3 Disponível em: <http://www.historianet.com.br/conteudo/default.aspx?codigo=612>. Acesso em: 05 de feverei-

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época em que países, que eram potências bélicas, sobrepunham-se aos menos desenvolvidos ou militarizados.

Se observarmos o fait accompli4 histórico deste drama, poderemos traçar paralelos com os aspectos trágicos de alguns mitos gregos. Talvez seja plausível delinear perspectivas entre este fato da história brasileira e Tântalo, com suas ações que o levaram à punição eterna e (ou) a revolucionários ligados às lutas pelas causas sociais contra a opressão, tais como Simon Bolívar (1783-1830), Carlos Marighella (1911-1969), Che Guevara (1928-1967) e tantos outros.

Quando apresento a figura do Rei da Frígia, filho de Zeus, em algumas versões, falo de um soberano abastado, famoso e influente, principalmente por conta de sua nobre origem. Em razão de seu prestígio junto à cúpula divina do Olimpo, a ele foi dado o direito de se sentar à mesma mesa com seu pai e outros deuses e, dessa forma, poder conhecer códigos inacessíveis aos mortais, inclusive sendo possível saborear as iguarias sagradas do Olimpo. Com os conhecimen- tos adquiridos por meio desta convivência íntima e por ter tido contato com as delícias provindas dos manjares dos deuses, que concediam a imortalidade a quem as experimentasse, Tântalo, em ato de extrema ousadia, trai seu pai, distribuindo valiosos segredos aos meros mortais.

Figura 2 – Tantalus. Reprodução da obra de Gioacchino Assereto (1600-1649). Disponível em:

<https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Tantalus_Gioacchino_Assereto_circa1640s.jpg>. Acesso em: 2 de janeiro de 2018.

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2.1 Insubordinação

Seu grave delito acabou sendo descoberto pela alta cúpula divina e, por conta disso, punido e condenado ad eternum5 a passar sede e fome no Tártaro, um lugar com água abundante ao seu redor, mas sendo incapaz de sorvê-la, assim como fartas frutas em árvores, às quais não conseguia alcançar para saciar sua fome. Uma eterna tortura física e psicológica, sem qualquer possibilidade de acesso à morte.

Junito de Souza Brandão assim definiu Tântalo, em sua publicação intitulada Mito-

logia Grega I volume:

O tema mítico de Tântalo, na luta interior contra a vã exaltação, simboliza a elevação e a queda. Seu suplício corre paralelo com sua hamartia6: o objeto de seu desejo, a água, os frutos, a liberdade, tudo está diante de seus olhos e infinitamente distante da posse. No fundo, Tântalo é o símbolo do desejo incessante e incontido, sempre insaciável, porque está na natureza do ser humano o viver sempre insatisfeito. Quanto mais se avança em direção ao objeto que se deseja, mais este se esquiva e a busca recomeça. (BRANDÃO, 2009, p. 79)

Sendo assim, é possível avaliar que os castigos, as torturas e os martírios se per- petuam porque carregamos um invólucro corpóreo de intensa sensibilidade à dor, um fardo pesado e punitivo diário. O corpo parece nos afirmar diariamente que viver é interagir a todo o momento com o sofrimento físico e psicológico à espera de um equívoco que deverá, em al- gum instante, ser fatal. Um aviso contínuo de que a vida é um produto perecível com prazo de validade. Um recado constante de que viver não tem sentido prático algum, como nos afirmou Arthur Schopenhauer, em vários momentos na sua obra.

A própria questão do desejo é assumida por Schopenhauer em sentido muito seme- lhante à interpretação de Junito Brandão sobre Tântalo. A inconfidência de Tântalo é resultado do desejo ou da vontade, como prefere Schopenhauer. Contudo, para além da esfera do sujeito, encontramos a disputa que esse personagem propõe ao poder acima dele, o inevitável conflito entre heróis e deuses. O que também encontro, neste momento, é o que Nietzsche denominou “Vontade de Poder”7

, dando outra interpretação a esse conceito filosófico. Tântalo não quis se subordinar aos deuses e, por conta disso, revela os segredos que, fora do Olimpo, colocariam em risco o poder da alta cúpula divina.

O grande valor simbólico de Tântalo também pode ser reconhecido e exaltado exa- tamente pelo seu delito, por que não? Ou seja, abre-se uma possibilidade de interpretá-lo como um personagem transgressor da mitologia grega pela sua ousadia desmedida em passar infor- mações sigilosas do poder supremo aos mortais. Sendo assim, entendo ser admissível abrir mais um leque de entendimentos acerca do seu ato e inseri-lo no campo simbólico das relações humanas, pois pode ser entendido como uma insubmissão dos mais fracos em relação aos po- derosos, propondo mais uma, em meio a tantas, batalhas no mundo por equidade entre os que

5 Latim. Tradução: eternamente.

6 Grego. Falta ou erro causador da queda de um herói trágico.

7 Assim como os feromônios, o humano exala em todo momento a “Vontade de Poder”. Segundo Nietzsche

(2005, p. 19): “Uma criatura viva quer antes de tudo dar vazão a sua força – a própria vida é vontade de poder –: a autoconservação é apenas uma das indiretas, mais frequentes consequências disso.”.

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dominam e os dominados, entre os que têm e os desprovidos ou entre a elite e os pobres, casa grande e senzala, na eterna luta pelo poder.

Por este ato de ousadia e rebeldia, cogito ser plausível considerar o rei da Frígia como um dos maiores e mais importantes subversivos da mitologia grega. Uma espécie de Zumbi dos Palmares8 (1655-1695), outro insurgente, além de Tiradentes, contra a Coroa Por- tuguesa. O ato e castigo de Tântalo geraram algumas conclusões que caíram no gosto popular, uma delas é a afirmação de que “Quem muito quer nada tem”, uma frase que parece convenien- te a um Estado domesticador, ou mesmo a uma moral judaico-cristã, para os quais o querer ser ou ter costuma ser entendido como um atrevimento social ou, até, falha de caráter.

Deparamo-nos, aqui, com a fraqueza da “Moral de Rebanho”, tão execrada e combatida por Nietzsche, em busca do indivíduo liberto destas amarras. Schopenhauer tam- bém nos assegura, em A Vontade De Amar, que:

O mundo é um vasto campo de batalha onde os seres somente devorando-se uns aos outros conseguem conservar e defender a vida; onde todo animal carnívoro é o túmulo vivo de tantos outros; onde o viver significa sofrer longos tormentos; onde a capaci- dade para a dor aumenta na proporção da inteligência, e atinge, portanto, no homem o mais elevado grau. (SCHOPENHAUER, 1985, p. 89)

A tragédia de Tântalo nos permite avaliar a vida como se estando inserido em uma gaiola, ou seja, com uma ampla visão de mundo ao seu redor, onde tudo, naturalmente, apre- senta-se muito próximo, um mundo pujante e fascinante esperando poder ser acessado, mas apenas se apresentando como uma ilusão ou, tão somente, como possibilidades aparentemente concretas de domínio de uma situação, mas impossível de revertê-la em realidade palpável. Apenas uma vontade de poder desencarnada, interditada pela lógica da vida, um eterno devir, “uma transcendência que não se realiza”9

. Um Tântalo, de certo modo, também transformado em fênix, aprisionado no seu dramático renascer das cinzas. Como em um destino trágico, tudo está próximo de se concretizar, a tortura parece se instalar exatamente aí.

Quando mencionamos tortura, tragédia e dor, provavelmente, estamos evocando o corpo na sua mais primitiva essência, não há martírio sem corpo que o possa receber, não há sentido observar um espetáculo com fogueira condenatória, se não houver uma carcaça ainda com vida para ser o astro principal da barbárie, como ocorreu, por exemplo, com Joana d’Arc10

(1412-1431). Ou seja, como em uma cena coreográfica ou teatral, não há possibilidade real de refletir e abordar os tormentos dos heróis gregos ou dos mitos, caso não trouxermos o corpo para o centro da discussão. Sem ele (corpo), tudo estará aprisionado no campo das ideias, ou do vir a ser. Mesmo nos castigos psicológicos, o alvo parece ser sempre ela, a carne, pois é nela que se obterá a dor e o padecimento.

8 Disponível em: <http://brasilianafotografica.bn.br/?tag=zumbi-dos-palmares>. Acesso em: 30 de janeiro de 2018. 9 In: O lamento das coisas. Augusto dos Anjos. Disponível em:

<https://revistausina.com/instantaneos/augusto-dos-anjos-poemas-nao-recolhidos-em-livro-pelo-autor/>. Acesso em: 24 de fevereiro de 2018.

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2.2 Insólito

A atração incontrolável em torturar o outro e subestimá-lo parece ser insofismável, uma espécie de excitação sexual permanente à crueldade, que mantém o indivíduo apto ao coito a qualquer momento. Nesta insólita relação sexual que menciono, a sensação de estar no lugar do ativo se confunde com o do passivo, um ato que manifesta uma relação de duas vias, ou seja, o prazer em proporcionar a dor no outro se assemelha com o de receber, um sadomaso- quismo intermitente e insaciável. Um prazer em si mesmo, muito próximo de uma masturbação solitária. A impressão que se tem, é de que não somos levados totalmente aos desvarios desta natureza porque a sociedade se baseia na conveniência hipócrita, na busca do cumprimento das leis do Estado ou de um lugar no reino dos céus.

Relato aqui uma experiência vivida por mim quando estive em um processo criativo para a gestação de um espetáculo de dança, intitulado Colônia Penal11, inspirado na tortura da ditadura militar brasileira (1964-1985)12 e na obra homônima de Franz Kafka.

Durante meses a fio, na construção cênica e criação dos movimentos coreográficos, que necessariamente (por opção minha) deveriam retratar os atos cometidos pelos torturadores e sentidos pelos torturados da maneira mais objetiva e próxima possível, uma estranha sensação de prazer se apossou de mim durante o trabalho criativo. Quanto mais criava situações corpo- rais que remetiam às barbáries da época retratada, mais tinha vontade de preservar a situação. Em vários momentos do processo, flagrei-me gargalhando por conta das dificuldades físicas e emocionais enfrentadas pelos intérpretes. Colônia Penal13 estreou em São Paulo, em julho de 2013, com duração de aproximadamente 60 minutos de muita perversidade e de extrema violência corporal, mas a reflexão que pude fazer nos dias que vieram a seguir da estreia foi o quanto somos criadores e criaturas das nossas próprias mazelas, sádicos por essência.

Em certos momentos, agimos como abutres embrutecidos em torno de uma carcaça abandonada, disputando nacos de ventres podres. A morte por si só, já se nos apresenta como uma espécie de gran finale14, não há como não perecer sem estar inserido em um momento espetaculoso. Qualquer morte, por mais esperada que seja, deverá apresentar um pathos15, o

momento mais arrebatador do aguardado ultimum actum16.

A grande cena esperada por todos no teatro. Como, por exemplo, no solo do ballet

A Morte do Cisne17, no qual a plateia aguarda ansiosamente o desenlace do belo animal de plumas brancas, a fim de poder descarregar as emoções represadas durante o sofrimento da ave, para acessar o tão esperado momento catártico. É possível pensar, ainda como exemplo,

11 Disponível em:

<https://cultura.estadao.com.br/noticias/geral,dialogo-possivel-e-necessario-entre-danca-e-politica-imp-,1053054>. Acesso em: 31de janeiro de 2018.

12 Disponível em: <https://brasil.elpais.com/brasil/2014/12/10/politica/1418212909_598291.html>. Acesso em:

24 de fevereiro de 2018.

13 Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=LWnLJwIdRD4>. Acesso em: 31 de janeiro de 2018. 14 Francês. Final glorioso.

15 Grego. Tradução: paixão, excesso, catástrofe. 16 Latim. Tradução: último ato.

17 Disponível em: <https://lituraterre.com/2010/12/11/a-morte-do-ciste-a-morte-da-arte/>. Acesso em: 15 de

(21)

que se Romeu e Julieta, de William Shakespeare, na tragédia escrita entre 1591 e 159518, não tivessem um final funesto e sim outro mais agradável, talvez muito do impacto e legado da obra seriam reduzidos.

Figura 3 – Fotografia de Júnior Cecon (2016) sobre a coreografia Colônia

Penal (2013). Inspirada na obra de Franz Kafka e na tortura da Ditadura militar

brasileira. Intérprete: Mainá Santana e Alex Merino. Disponível em:<http://www.ciacarneagonizante.com.br/>. Acesso em: 12 de março de 2018.

Quando abordo o filho inconfidente de Zeus, imediatamente o corpo surge como ator principal das tragédias humanas, quando falarmos em tortura, será sempre ressaltado o des- taque destinado a ele como o de receptor maior das barbáries sociais conduzidas por um Estado, por vezes, doutrinador, opressivo e assassino.

2.3 Autofagia Incessante

Além da morte, a desgraça humana vem sendo incessantemente abordada nos am- bientes artísticos e filosóficos das mais variadas formas, as tragédias gregas, de certo modo, comprovam o quanto este universo tem seduzido o homem desde os primórdios da civilizção ocidental. Cada tijolo posicionado na construção da história da sociedade foi fixado com muito sofrimento e sangue derramado nos campos de batalhas. Portanto, nada mais adequado afir- mar nestas reflexões o quão atraente pode ser transitar por caminhos aparentemente obscuros, onde o fracasso humano em todos os níveis, a desesperança do indivíduo no seu eterno devir exibem-se a todo instante. Seria praticamente impossível conseguir gestar obras cênicas se não houvesse daemones19 neste universo.

18 Disponível em: <https://www.culturagenial.com/romeu-e-julieta-de-william-shakespeare/>. Acesso em: 13 de

março de 2019.

(22)

É sabido que para a terra se tornar fértil, as suas profundezas deverão estar re- pletas de restos mortais de todo tipo, assim, no futuro, produzirão alimentos que nutrirão os viventes, que serão os próximos a perecer e, consequentemente, novamente engolidos pelo solo. Uma lógica impossível de ser negada, um processo orgânico de transformação ad con-

tinuum20 através de uma autofagia incessante e necessária. Um círculo que gira em torno de si mesmo, que faz lembrar Íxion, outro membro da estirpe de Tântalo e Sísifo, considerados vilões na mitologia grega, mas, entendo ser pertinente serem também compreendidos como revolucionários, fiéis representantes da insubordinação, mensageiros da imortalidade, antíte- se da efemeridade.

O poeta Augusto dos Anjos simplifica com maestria o que ressaltei acima ao afirmar em “A psicologia de um vencido”: “Já o verme, este operário das ruínas que o sangue podre das carnificinas come, e à vida em geral declara guerra. Anda a espreitar meus olhos para roê-los, e há de deixar apenas os cabelos, na frialdade inorgânica da terra!”21.

Uma aparente desordem, que nada mais é do que a luta pela manutenção da vida e da espécie, como tanto nos afirmou Arthur Schopenhauer, pode muito bem ser encaixada em uma batalha épica de grandes proporções pela manutenção da existência como a única verdade inconteste. É exatamente aí que é possível observar as semelhanças entre o mito de Tântalo e o artista do corpo, mas apenas quando estão em conjugação o momento da criação ao sentimento de ira, da denúncia e de insubordinação.

Por vezes, o cidadão necessita fervorosamente de um líder, que ele reconheça como mais forte e poderoso, para que aponte um caminho a ser seguido, ou seja, é semelhante à alu- são a um pássaro que, por anos preso em uma gaiola, quando solto de seu cativeiro, não reco- nhece a liberdade, morrendo de fome e solidão.

Apresento mais um depoimento pessoal, dado ao projeto de vídeo-dança intitulado “Gestos Mortos”, em 201122

, que entendo ser pertinente incluir nestas reflexões:

Jamais conseguiria criar alguma coisa se eu não tivesse demônios na minha cabeça, sabe? Jamais conseguiria criar alguma coisa se eu me sentisse pleno, jamais consegui- ria criar algo se eu estivesse bem, inteiramente resolvido interiormente como pessoa, a minha relação com o mundo, sabe? Este tipo de coisa para mim é muito importante, me faz mais gente, sabe? A arte não pode ser contemplativa, não deve ser para mim. Por exemplo, se eu chegar para você e falar assim: “Hoje estou bem, estou ótimo, acordei feliz e estou inspirado para criar algo”, você não vai criar coisa (alguma). Você pode até criar, mas...

Estes fantasmas, estes problemas existenciais, são a verdadeira droga do artista. Quan- do falo de fantasmas, eu falo de perturbações, de tudo (relacionado a isso). Existir já é uma perturbação, sabe?

Você lidar com você mesmo já é uma grande perturbação, e também quanto mais você vai aprendendo e adquirindo conhecimento das coisas, mais perturbado você vai ficando, mais triste você vai ficando, é assim, sempre foi assim. [...]

20 Latim. Tradução: contínuo.

21 Eu e outras poesias. São Paulo: Editora Bertrand Brasil, 2001, p. 98.

(23)

Talvez o maior perigo do conhecimento pleno, do conhecimento total, é o aniqui- lamento físico, é de repente a pessoa perceber que não vale a pena existir. Existir é apenas um não ter sentido. Enfim, mas agora eu já comecei a viajar, eu e as moscas [...] (BORELLI, 2011)

Há incontáveis modos de ver e sentir o mundo que se apresenta para nós segundo a segundo. Por vezes, parecemos ser uma usina com a finalidade de produzir um tipo de energia finita a partir da matéria-prima encontrada na vontade, tal qual Schopenhauer nos apontou em sua obra. No âmbito artístico e criativo, esta mesma vontade parece transitar potente a todo ins- tante para várias direções, dentre estes vários caminhos, podemos inserir o da gestação de obras artísticas a partir de um olhar crítico ao modus operandi23 da sociedade. Um tipo de proposição que procura, a todo o momento, recusar o maniqueísmo estético.

Parece que para a arte ser avassaladora e demolidora, será necessário chafurdar no caos e no “pântano das desgraças humanas” (em latim, pastu paludis virecta cladium consaepta). Um sentimento íntimo de desordem deverá ser posto à mesa, como em um jogo de cartas, onde o risco está presente a cada lance jogado e a derrota deverá ser o resultado mais lógico.

Figura 4 – Fotografia de Júnior Cecon (2015) sobre a coreografia, Não te abandono mais, morro contigo (2015). Inspirada na obra homônima de Franz Kafka. Com Everton Ferreira e Alex Merino. Disponível em: <http://www.ciacarneagonizante.com.br/>. Acesso em: 23 de março de 2018.

(24)

Leiamos Nietzsche, nesse sentido:

Aquela repugnante beberagem mágica de volúpia e crueldade viu-se aqui impotente: somente a maravilhosa mistura e duplicidade dos afetos do entusiasta dionisíaco lem- bram – como um remédio lembra remédios letais – aquele fenômeno, segundo o qual os sofrimentos despertam o prazer e o júbilo arranca do coração sonidos dolorosos. Da mais elevada alegria soa o grito de horror ou o lamento anelante da perda irreparável. (NIETZSCHE, 2013, p. 31)

Como toda concepção criativa que tenha a intenção de desnudar o indivíduo ou sequestrá-lo do adestramento, tudo leva a crer que serão necessárias implosões íntimas que alterem os estados psíquicos para que um manifesto artístico surja de fato. São as rupturas ou quebras de paradigmas que poderão proporcionar um renascer dos escombros.

Sobre a morte, lemos em Schopenhauer (2001, p. 35): “A morte ou a vida do indi- víduo não importa nada: é esta sua categórica afirmação. Ela expressa esse fato abandonando a vida de cada animal, e também a do próprio homem, aos acasos mais insignificantes, sem intervir por sua salvação.”.

É da nossa natureza relutarmos em aceitar a morte, insistimos a todo custo na busca da prorrogação de poder estar por aqui, nestas paragens, não importa de que maneira. A pos- sibilidade factual de não existirmos mais parece ser aterrorizante e desastrosa, pois queremos ser algo que possivelmente nunca seremos. Talvez, por isso, temos a tendência de reverenciar nossos mártires através da música, da poesia, em alguns momentos na dança e no teatro.

A morte nos causa comoção, o batimento cardíaco aumenta consideravelmente quando nos defrontamos com o perigo eminente de perecermos e nos compadecemos ao máxi- mo quando alguém próximo ou idolatrado encontra seu fim. Não sabemos ao certo se Tântalo preferiu a morte ao invés de viver em castigo eterno, ou se aceitou passivamente seu calvário solitário, simplesmente acatou a sentença deferida a ele.

Ademais, é impressionante como os castigos aplicados a Tântalo e a Sísifo suscitam relações com métodos de torturas determinados pelos vencedores aos vencidos na sociedade ocidental e, praticamente, entregam-nos roteiros e cenas prontas para serem aproveitadas, inspi- radas ou baseadas nos sofrimentos experimentados por esses mitos. Incluo aqui, também, Íxion24, não tão conhecido como o rei da Frígia e de Éfira, mas de importância simbólica e cultural do mesmo porte, como veremos no capítulo 4 deste trabalho.

Associo alguns castigos/espetáculos/shows que geraram êxtase no ocidente: o presidente do Iraque Saddan Hussein, enforcado em dezembro de 200625; em 16 de dezem- bro de 2017, milhares de chineses vão a um estádio de futebol assistir a um fuzilamento de 10 condenados por tráfico de drogas26; o episódio do fuzilamento do poeta espanhol

24 Disponível em: <https://www.webartigos.com/artigos/o-mito-dos-centauros/73446>. Acesso em: 03 de janeiro

de 2018.

25 Disponível em:

<http://g1.globo.com/globo-news/jornal-das-dez/videos/v/saddam-hussein-e-enforcado-no-iraque/1627912/>. Acesso em: 01 de março de 2018.

26 Disponível em:

(25)

García Lorca27, em 1936, por soldados do general Franco; as famosas execuções ocorridas em Londres na era Vitoriana (1837 a 1901), quando, inclusive, eram consideradas atração turística28, entre outros. Há também casos mais recentes ocorridos aqui, no Brasil, onde a barbárie psíquica e corporal ganha trajes de um grande espetáculo. Em 3 de fevereiro de 201429, um jovem negro é confundido como ladrão no Rio de Janeiro e, por conta disso, torturado e amarrado a um poste em pleno ambiente público por justiceiros, em nome da moral, da ordem e dos bons costumes, por exemplo.

2.4 Culpa e Corpo

Talvez possamos relacionar culpa e corpo como amantes inseparáveis das agonias humanas se compreendermos a vida ou existência como uma sucessão constante de sofrimentos congregados. Pelo visto, o sentido da vida somente poderia ser encontrado fora dela, na solidão do niilismo, no vazio do nada.

Como na poesia “O Lamento das Coisas”, do poeta Augusto dos Anjos, escrita no início do século passado, no ano de 1914, em terras paraibanas:

Triste, a escutar, pancada por pancada, A sucessividade dos segundos,

Ouço, em sons subterrâneos, do Orbe oriundos, O choro da Energia abandonada!

É a dor da Força desaproveitada - O cantochão dos dínamos profundos, Que, podendo mover milhões de mundos, Jazem ainda na estática do Nada!

É o soluço da forma ainda imprecisa... Da transcendência que se não realiza... Da luz que não chegou a ser lampejo... E é em suma, o subconsciente aí formidando, Da natureza que parou, chorando,

No rudimentarismo do Desejo! (ANJOS, 2001, p.181)

Outra questão, que considero possível anunciar nas reflexões construídas nesta pes- quisa, é a relação entre Tântalo e a loucura. Analisando a insanidade no âmbito poético, é ima- ginável compreendê-la como um modo de fomentar, perceber e até mesmo de pensar o mundo. Neste universo, as regras são outras e construídas a cada momento, a noção de tempo, de ética e de moral se diferem da normalidade estabelecida pelo Estado domesticador, criando a figura do “marginal” urbano com o propósito de separar o que é socialmente repelido por uma coleti-

27 Disponível em:

<https://oglobo.globo.com/cultura/livros/poeta-espanhol-garcia-lorca-foi-preso-morto-por-militares-revelam-documentos-15959278>. Acesso em: 01 de março de 2018.

28 Disponível em: <https://mapadelondres.org/tag/execucoes-publicas/>. Acesso em: 03 de janeiro de 2018. 29 Disponível em:

(26)

vidade contaminada pelo vírus da intolerância e do higienismo social.

Acompanho a premissa de que onde há poesia, há loucura, onde a insanidade habi- ta, o grotesco estará presente como forma desafiadora dos padrões estabelecidos pelo cultura- lismo conservador.

Leiamos uma consideração sobre a questão do grotesco nas artes da cena:

Ao representar o ser humano em sua condição mais primitiva, as personagens gro- tescas se distanciam da ideia de comportamento civilizado. Essa inversão de valores, disforme e obscena, torna as personagens estranhas e ridículas, pois quebra regras básicas de organização social. Essa ponte entre o humano civilizado e sua inexorável condição natural alimenta o incômodo, pertinente ao grotesco. (ROBLE; ARAÚJO, 2016)

O corpo bizarro, estranho, esquisito e burlesco amedronta o indivíduo capturado pelo sonho do poder efêmero, pois esta condição é sinônimo de impossibilidade total de crescimento social, então, ele o repele de todas as maneiras e de todas as formas possíveis. Também podemos analisar a insanidade e o bizarro como uma vertigem fascinante de uma eminente queda ao abismo ou a uma metralhadora em ação, alvejando a hipocrisia, as regras e as obviedades.

Figura 5 – Fotografia de Júnior Cecon (2017) sobre a coreografia A Metamorfose (2002). Inspirada na obra homônima de Franz Kafka. Com elenco da Cia. Carne Agonizante. Disponível em: <http://www.ciacarneagonizante.com.br/>. Acesso em: 13 de maio de 2018.

Se a genialidade pode ser também entendida como uma possível ramificação da loucura, pois ambas são ambientes onde tudo é viável, instantaneamente, Nietzsche me vem à memória, já que o homem que concebeu O Anticristo, em 1895, terminou seus dias em Weimar, na Alemanha, em completa demência mental.

(27)

do Belo,

Menciono uma reflexão de Arthur Schopenhauer acerca do gênio, em A Metafísica

Um erudito é aquele que estudou muito de sua época e das precedentes; já um gênio é aquele de quem sua época e as vindouras têm muito a estudar.

O que me conduziu a essa abordagem foi o fato de ter encontrado em manicômios, sujeitos com inegáveis indícios de disposições geniais que, devido à raridade pro- porcional da loucura, mais até que o gênio, não podem ser atribuídas ao acaso, mas justamente confirmam o que sempre se observou e eu explicitei – que o gênio de algum lado faz fronteira com a loucura, sim, com facilidade a ultrapassa.

(SCHOPENHAUER, 2003, p. 79)

2.5 Sentença e Pena

Parece não haver dúvida de que o atrevimento praticado por Tântalo, ao questionar, ludibriar e tentar conceber um poder paralelo ao de Zeus, fez com que ele se tornasse uma espé- cie de mentor dos indomáveis, dos heróis e dos sabotadores do poder consolidado.

Permito-me considerar esse filho infiel de Zeus como um audacioso destemido e, até mesmo, um herói ou mais, um anti-herói kafkiano, pois, certamente, ele devia ter a convicção de que seria quase impossível vencer seu pai, mas, mesmo assim, seguiu seus próprios impulsos utópicos, repletos de devaneios. Tântalo parecia saber que fatalmente seria descoberto, porém, aceita o embate. Deste modo, a energia revolucionária desse mito parece se cruzar com o ímpeto criativo do artista do corpo, daquele que se abastece das angústias, do caos, da ira e da indignação para poder expressar, através da arte, escrituras ou manifestos para o mundo.

Com provas, sem provas, baseado em evidências ou em convicções (cabe aqui men- cionarmos a teoria do domínio do fato30) o veredito já está estabelecido ab aeterno31.

Como em O Processo, de Franz Kafka, quando K, acusado sem conhecer a razão da acusação, e posteriormente condenado, recebe o veredito da pena de morte. Em suas últimas palavras proferidas em vida, com um punhal penetrado em seu peito, balbuciou: “Como um cão. Era como se a vergonha devesse sobreviver a ele.” (KAFKA, 2001, p. 278).

Parece justo reconhecer em Tântalo a grandeza por sua incontrolável utopia (uma variação da insanidade?), talvez um herói inconteste, assim como os artistas na sua essência, onde o erro e o equívoco ressurgem como libertadores de verdades momentâneas e fúteis, onde as respostas deverão ser sempre provisórias.

Encerro estas reflexões sobre Tântalo, ressaltando as tragédias que o corpo vem experimentando na história, com o momento final do Oficial, personagem criado por Kafka em Na Colônia Penal, morto em uma engrenagem de metal construída para torturar e executar condenados:

30 Disponível em: <https://canalcienciascriminais.com.br/teoria-do-dominio-do-fato/>. Acesso em: 14 de feverei-

ro de 2018.

(28)

Neste ato viu quase contra a vontade o rosto do cadáver. Estava como tinha sido em vida; não se descobria nele nenhum sinal da prometida redenção; o que todos os outros haviam encontrado na máquina, o oficial não encontrou; os lábios se comprimiam com força, os olhos abertos, tinham uma expressão de vida, o olhar era calmo e convicto, pela testa pas- sava atravessada a ponta do estilete de ferro. (KAFKA, 1996, p. 48)

Penso Tântalo como provedor do ato resiliente e doloroso, porém necessário, um contínuo murro em ponta de faca32.

Figura 6 – Fotografia de Júnior Cecon (2017) sobre a coreografia O Processo (2003). Inspirada na obra homônima de Franz Kafka. Com Everton Ferreira e Amanda Santos.

Disponível em: <http://www.ciacarneagonizante.com.br/>. Acesso em: 15 de maio de 2018.

32 Disponível em: <https://institutoaugustoboal.org/tag/murro-em-ponta-de-faca-2/>. Acesso em: 20 de fevereiro

(29)

3 SÍSIFO – UMA TRAGÉDIA ANUNCIADA

Há versões importantes acerca do infortúnio de Sísifo na mitologia grega, uma de- las pertence a Albert Camus33, prêmio Nobel de Literatura, em 1957.

Os deuses condenaram Sísifo a empurrar incessantemente uma rocha até o alto de uma montanha, de onde tornava a cair por seu próprio peso. Pensaram, com certa razão, que não há castigo mais terrível que o trabalho inútil e sem esperança.

Se dermos crédito a Homero, Sísifo era o mais sábio e prudente dos mortais. Mas, segundo uma outra tradição, ele tendia para o ofício do bandido. Não vejo contradição nisso. As opiniões diferem sobre os motivos que o levaram a ser o trabalhador inútil dos infernos. (CAMUS, 2016, p.121)

Figura 7 – O suplício de Sísifo. Franz Von Stuck (1862-1928). Disponível em: <http://lounge.obviousmag.org/vendedor_de_laranjas/2012/09/a-inutil-tarefa-de-sisifo.html>. Acesso em: 4 de fevereiro de 2019.

(30)

Por conta das afirmações supracitadas do filósofo argelino, é possível perceber o quanto a tragédia perpétua de Sísifo assemelha-se à desgraça cotidiana do indivíduo comum, também conhecido por “zé-ninguém” ou anônimo. Sabemos que há várias interpretações a res- peito deste mito, o arcabouço cultural da mitologia grega é também valioso por este aspecto. Visto e compreendido a partir daquele ponto de vista, entendo ser possível construir mais este paralelo, que, a meu ver, parece nutrir muitas semelhanças e congruências. Sendo assim, não há como não associá-las, pois os meios edificados e oferecidos por Zeus (representante maior da justiça e do destino na mitologia grega) aos mortais e o poder do Estado podem se coadunar se inserirmos o corpo como elemento principal no âmbito da tragédia, na sociedade, no castigo e na dor. A essa estirpe de cidadãos, a única saída mais objetiva parece ser a de labutar inutilmente até o fim da vida em busca de um triunfo improvável. Uma maneira de experimentar a morte diariamente em um ir e vir sem sentido algum.

Quando Camus nos garante, acima, “ofício do bandido”, compreendo como uma forma de recusa ao sistema introduzido, posto por uma lógica totalitária, uma maneira de in- submissão ao soberano do monte Olimpo. Neste caso, o inferno, além de diário, também parece ser o fim em si mesmo.

A tendência ao “ofício do bandido” de Sísifo ganha força, no meu modo de ver, a partir do momento em que se incorporam as peripécias do artista do corpo34, do fazedor de movimentos e de gestos, do “ressignificador” da ação corporal que compreende esta arte como uma possibilidade e um meio eficaz de enfrentamento contra a coisificação humana. Aquele que entende a arte como uma constante construção de sentidos, que opera no terreno onde a lógica cria sua própria ética e suas próprias regras (mudadas a cada momento, quando necessário). É bom que se diga que o artista ao qual me refiro, pertence à falange dos que compreendem o corpo como uma zona de conflito permanente, um espaço repleto de

daemones ligados à ira, indignação, violência e angústia. Em suas entranhas deverão ser

sempre produzidos e expelidos mísseis direcionados à dissimulação. Por se tratar de um corpo transgressor, insolente e pronto para a guerra, não há e jamais poderá haver um tratado de paz com o Estado, a religião e tartufismo da família estabelecida nos moldes judaicos cristãos. Um corpo laico e pagão por definição. Mas é importante afirmar que este se trata de um conceito estritamente pessoal o qual, inclusive, tem tido uma importância capital na construção deste argumento acadêmico em que me debruço.

3.1 Subterrâneo das Sensações

No viés que Camus nos insere, é possível perceber que, assim como Sísifo, o artista tem, em seu DNA, a genética do tormento e da transgressão, que pode ser um tipo de conhe- cimento, onde a dor, a angústia, o subterrâneo das sensações são necessários para satisfazer o

34 Disponível em: <https://revistacult.uol.com.br/home/cinco-artistas-brasileiras-corpo-instrumento-artistico/>.

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ímpeto para a criação de uma obra de arte, onde o corpo e o movimento podem ser considerados uma espécie de bactéria com potencial de causar transformações múltiplas em um ambiente social. Inclusive, poderíamos até relacionar a incansável e necessária resistência do artista a um Sísifo contemporâneo, condenado pelo poder supremo por ter descoberto e acessado uma senha proibida que o levou a novas descobertas, derivando disso um leque de incertezas e, portanto, novos e intermináveis reinícios.

Figura 8 – Fotografia de Inês Correa (2011). Coreografia Eu em

Ti de Sandro Borelli. Intérpretes: Mariana Molinos e Alex Me-

rino. Disponível em: <http://www.ciacarneagonizante.com.br/>. Acesso em: 8 de fevereiro de 2018.

Esse tipo de artista, movido pela centelha lendária do filho do rei Éolo, age como se fosse um abutre astuto em sua sôfrega, intermitente e desesperada busca por alimentos que são rejeitados pelo poder, ou restos de mortes diárias em série. Parece-nos que é desta maneira que se mantém de pé, vivo e digno. Por conta disso, ele carrega uma consciência que o desconsola, o condena, pune e ironiza a si mesmo. As suas inquietações são constantes e incontroláveis, porém, parece haver sabedoria no seu modo de observar e compreender o mundo ao seu redor. Exatamente como Kafka detalhou o personagem K, em O Processo35, onde situações absurdas

35 Disponível em:

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vão se sucedendo até parecerem coerentes. Uma normalidade cruel, um modo de compreender a vida, a morte, a verdade e a mentira como um jogo em que o mais fraco jamais poderá sair vencedor deste confronto.

Mas, é preciso reconhecer que todas as evidências sobre a obra mencionada acima nos levam a distinguir que K usou das armas que ainda detinha para se defender inutilmente do poder judiciário, considero que coragem não lhe faltou, pois parecia saber que dificilmente ganharia a batalha jurídica, e a aceitou. Com esta atitude virtuosa, segundo minha ótica, ele se iguala a Sísifo ad eternum. Portanto, parece-me pertinente retomar a citação de Nietzsche em uma de suas afirmativas que nos obriga a relacionar Sísifo e o famoso condenado anti-herói de Franz Kafka em O Processo: “Uma criatura viva quer antes de tudo dar vazão a sua força – a própria vida é vontade de poder – a autoconservação é apenas uma das indiretas, mais frequen- tes consequências disso.” (NIETZSCHE, 2017, p. 19).

Se Sísifo pagou um preço muito alto por toda eternidade pela sua ousadia, na sua dor eterna do recomeço constante, através do seu movimento contínuo ao topo da montanha, ao artista do corpo não restou alternativa a não ser reencarnar diversas vezes seu infortúnio em uma busca utópica pela quebra de um paradigma social e religioso que compreende corpo como propriedade privada e divina, portanto intocável. Ou seja, um condomínio intrans- ponível, com elevados muros eletrificados, com quase nenhuma possibilidade de acesso a estranhos.

Sendo assim, poderia relacionar o comportamento inabalável e a força vital de Sísi- fo, cumprindo sua eterna condenação, como aquele que compreende os chamados de Dionísio e de Apolo, apresentando uma constatação poderosa, onde não há e nunca houve uma verdade ou uma mentira estabelecida, o eterno retorno se instaura, como se fosse uma ampulheta sen- do virada a todo instante e que, além disso, não poderia ser atrelada ao mal e muito menos ao bem. Nestes domínios (destino) não há espaço para o maniqueísmo. Seguindo este raciocínio, poderia explicitar mais uma frase provinda da metralhadora giratória de Nietzsche, quando afirma que “Deus está morto”, portanto, as dores do mundo seriam uma constatação necessária do corpo e da consciência.

Assim sendo, parece-me provável a possibilidade de abrir mais um leque de consi- derações no sentido de haver uma ligação íntima e filosófica entre o rei de Corinto e os artistas, especialmente os que usam o corpo como meio de expressão ou os que usam este invólucro sensível para confrontar o status quo36 e o establishment37. São tão intrínsecos entre si que é crível relacioná-los como criador e criatura provindos de uma mesma essentia38, heróis asso- ciáveis às profundezas filosóficas de Schopenhauer, que exalta o pessimismo de quem aceita a vida apenas como um prazo de validade por vencer algum dia, reconhecendo e aceitando sua dolorosa tragicidade.

36 Latim. Tradução: estado atual.

37 Inglês. A ordem ideológica, econômica, política e legal que constitui uma sociedade ou um Estado. 38 Latim. Tradução: essência

(33)

É de Camus uma definição sobre o filho do vento que também reforça minhas reflexões acerca deste mito:

Este mito só é trágico porque seu herói é consciente. O que seria a sua pena se a es- perança de triunfar o sustentasse a cada passo? O operário de hoje trabalha todos os dias de sua vida nas mesmas tarefas, e esse destino não é menos absurdo. Mas só é trágico nos raros momentos em que se torna consciente. Sísifo, proletário dos deuses, impotente e revoltado, conhece toda a extensão de sua miserável condição: pensa nela durante a descida. A clarividência que deveria ser seu tormento consuma, ao mesmo tempo, sua vitória. Não há destino que não possa ser superado com o desprezo. (CA- MUS, 2016, p. 123)

Quando enfatizo essas argumentações acima, percebo a necessidade de fazer uma analogia às trágicas e perversas relações humanas de poder nos âmbitos social e político, onde a dominação oferece cartas já marcadas ao seu eterno subjugado para um jogo em que a pos- sibilidade de vitória do escravizado será praticamente nula. Tem sido assim. Esta parece ser a estratégia de quem detém o poder, como nos indica Maquiavel, na sua obra clássica O Príncipe: “Um príncipe sábio, portanto, constantemente usará métodos que façam com que os cidadãos de seu Estado, sempre e em qualquer circunstância, sintam necessidade de sua autoridade.” (MAQUIAVEL, 2009, p. 109).

A história tem demonstrado fatos que interpreto ser importante mencionar nesta investigação teórica, dada a sua extrema relevância quando adentramos no âmbito do desenvolvimento social da humanidade. É possível admitir acerca das possibilidades praticamente nulas de se construir uma riqueza material em tão pouco tempo de exis- tência por estas paragens terrenas, se considerarmos a hipótese de vida produtiva de uma pessoa ser em torno de cinquenta anos, ou, um pouco mais, é crível perceber que não haveria tempo suficiente para construir fortuna. Logo, parece-me pertinente supor que as grandes fortunas podem ou devem ter sido construídas à custa de muitos Sísifos combalidos e castigados por conta de uma miséria secular conduzida pelos donos do poder, meros indivíduos reduzidos a estatísticas ou números, sonhando com possibilidades utópicas quase que totalmente inviáveis de se tornarem realidade, inatingíveis por conta do seu aparentemente eterno calvário. Um constante e obrigatório recomeço e um regresso intermitente para lugar nenhum, sem um ponto de partida lógico que aparente haver qualquer possibilidade de transcendência, um lugar onde o Cháos39 diário se confunde em kósmos40, onde não há devir e o nexus41 de inteligibilidade se traveste de ressentimento, não havendo, portanto, qualquer vitalidade, pois sobreviver é emergencial, além disso, demonstra ser a única opção.

Parece pertinente trazer e transcrever Fiódor Dostoiévski, em Notas do Subsolo, que nos remete ao anti-herói kafkiano:

39 Grego. Tradução: caos.

40 Grego. Tradução: ordem, organização, harmonia. 41 Latim. Tradução: conexão.

(34)

Todo homem honesto neste nosso tempo é e deve ser um covarde e um escravo. Essa é a sua condição normal. Estou profundamente convencido disso. Ele foi feito assim e para isso foi construído. E não é só no tempo presente, por causa de algumas cir- cunstâncias eventuais, mas em geral, em todos os tempos o homem honesto deve ser covarde e escravo. É uma lei natural para todos os homens da terra. E se acontece de algum deles se mostrar valente perante alguma coisa, isso não deve ser motivo de con- solo ou de entusiasmo: fatalmente ele irá se acovardar diante de outras circunstâncias. (DOSTOIÉVSKI, 2008, p. 56)

A partir destas conclusões expressas pelo escritor e filósofo russo, intuo que a trans- gressão proposta pelo mito pode nos levar ao acesso e ao alcance de um novo tipo de conheci- mento, mas, também, a uma forma de martírio incomensurável ao indivíduo que a adentrar, se relacionarmos este procedimento aos dias atuais.

Ao que parece, quanto maior for o acesso à sabedoria, maior será a possibilidade de percebermos nossa total insignificância perante a coerência da vida momentânea. Da mes- ma maneira que a rocha rola de volta ao seu lugar inicial, fazendo com que o filho de Éolo retome sua subida ao topo do nada para regressar a lugar nenhum. Sendo assim, compreendo que a transgressão, de certa forma, relaciona-se com o heroísmo e, por conta disso, pode levar a grandes possibilidades de conquistas no âmbito do conhecimento, ou, ao alcance do saber, mas, muito provavelmente ao sofrimento, pois, todo herói deverá pagar um preço alto pela sua coragem e pelo seu atrevimento, a mitologia grega nos demonstra esta saga a todo o momento. Seguindo esta lógica, poderíamos dizer que a conquista do domínio total da razão ou do conhe- cimento absoluto, provavelmente, poderia nos levar ao aniquilamento, o sentido em estar vivo não teria nenhum significado prático. Ou seja, existir não valeria a pena, seria apenas um acaso da natureza, sem nenhum valor prático, como nos assegurou Schopenhauer: “Durante toda a vida, sempre possuímos apenas o presente, e nada mais. A única diferença é que, no começo, vemos um longo futuro diante de nós e, no fim, um longo passado atrás de nós.” (SCHOPE- NHAUER, 2006, p. 247).

3.2 Status Quo do Poder

Poderá haver sempre um valor de ordem íntima respeitável a ser despendido quando se pretender quebrar paradigmas, pois o status quo do poder deverá julgar e, possivelmente, punir a consciência e o corpo que experimentou outras possibilidades de manifestação, senão as impostas.

Posso citar, por exemplo, o fato ocorrido na 35ª mostra Panorama de Arte Brasilei-

ra42 de 2017, no Museu de Arte Moderna de São Paulo, quando o performer Wagner Schwartz43 foi acusado de ser pedófilo por boa parte da conservadora classe média brasileira por conta de um trabalho artístico, de sua autoria, inspirado nas esculturas de Lygia Clark44 (1920-1988), intitulado La Bête, onde atuava nu. Mais uma vez o corpo, desta vez despido, pagou um preço

42 Disponível em: <http://mam.org.br/exposicao/35-panorama/>. Acesso em: 28 de fevereiro de 2018. 43 Disponível em: <https://www.wagnerschwartz.com/>. Acesso em: 28 de fevereiro de 2018.

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alto em nome da hipocrisia e de uma moral de rebanho, por certo, de origem cristã, que em muitos momentos consegue compreendê-lo apenas como agente de intermitentes possibilidades de pecado. O fato despontou o elevado grau de intolerância incrustrado na sociedade atual, fa- zendo com que uma grande parcela da população, idiotizada e manipulada pelas elites, pelo ca- pitalismo e pela velha mídia conservadora, regurgitasse seu ódio e sua intolerância contra tudo que entendesse ser contra seu princípio ético e moral, ou que pudesse corromper sua estrutura psicológica baseada na busca da felicidade, custe o que custar, em detrimento do outro. Pessoas em estado terminal civilizatório que diziam amar a Deus sobre todas as coisas, ou simpatizan- tes do capitão da reserva que se tornou presidente recentemente (aquele que cunhou o lema “Brasil acima de tudo, Deus acima de todos”), mas que não relutaram em vociferar impropérios ignorantes ou discursos de ódio contra as minorias e contra tudo que não compreendem, tais como: “A lei Rouanet dá dinheiro para artistas vagabundos”, “bandido bom é bandido morto”, “morte aos petralhas comunistas”, “é preciso acabar com os gayzistas” e outros mais. Muitos deles, inclusive acreditam que não há provas convincentes de que a terra é redonda e que ela é, inclusive, plana45, os que comungam com a teoria de que a terra não orbita o sol46 e os que acreditam na possibilidade de Jesus ter aparecido em cima de um pé de goiaba, como afirmou a atual ministra da pasta Mulher, Família e Direitos Humanos47.

Figura 9 – Reprodução de foto do jornal Folha de São Paulo (29/09/2017).48

“Promotoria investiga vídeo em que criança interage com artista nu”. Apresentação da performance La Bête, com Wagner Schwartz.

45 Disponível em:

<https://noticias.uol.com.br/ciencia/ultimas-noticias/redacao/2016/02/03/a-terra-e-plana-acredite-ou-nao-essa-e-a-teoria-de-conspiracao-do-ano.htm>. Acesso em: 14 de março de 2019.

46 Disponível em:

<https://noticias.uol.com.br/ciencia/ultimas-noticias/redacao/2019/01/09/o-que-a-ciencia-diz-sobre-a-terra-ser-o-centro-do-universo.htm>. Acesso em: 14 de março de 2019.

47 Disponível em: <https://oglobo.globo.com/cultura/jesus-num-pe-de-goiaba-23306029>. Acesso em: 14 de

março de 2019.

48 Disponível em:

(36)

O corpo e o gesto têm representado um anacronismo sem fim em grande parcela da sociedade contemporânea, no primeiro caso (corpo), levaram-no à condição de um invólucro que deverá se purificar diuturnamente e se transformar em alma rumo ao céu, ou se, por acaso, ceder às tentações terráqueas, deverá ser incinerado no fogo eterno, abraçado com satã. No se- gundo caso, o gesto, enquanto movimento, apresenta-se como um veículo vital para que o corpo exista e tenha sentido, portanto, poderá produzir inúmeras manifestações físico-corporais com os mais diversos significados culturais e entendimentos simbólicos.

Mas, é relevante dizer que corpo, movimento e gesto também deverão produzir in- findáveis representações, bem como me parece razoável constatar que, por conta disso, poderão ser muitas vezes reféns da avaliação e da aprovação de outro olhar e, se este for desprovido de senso crítico (voyeurismo hipócrita) ou de conteúdo cultural amplificado, o corpo sofrerá as consequências do seu protagonismo, ao menos tem sido assim. Em um ambiente tolerante será ponderado de uma maneira, em um meio intolerante, de outra forma.

Enunciamos o filósofo alemão: “Não sei quem asseverou que todos os indivíduos, enquanto indivíduos, são cômicos e, portanto, não trágicos.” (NIETZSCHE, 2007, p. 66).

Cito outro exemplo recente que foi divulgado pela mídia, tendo causado uma grande repercussão na opinião pública: dois homens foram espancados em uma festa no interior de São Paulo49 porque estavam simplesmente abraçados. Os agressores imaginaram se tratar de homossexuais, não se atentaram que eram pai e filho. Esta mesma cena em um espaço livre de conceitos conservadores e fascistas, seria encarada com naturalidade pelos presentes.

Outro exemplo, que entendo ser necessário mencionar, foi o caso da transexual “crucificada” em uma manifestação gay, realizada em São Paulo em 201550

, fazendo alusão a Jesus Cristo. Bem, é possível presumir o que aconteceu depois desta ação performática. A ma- nifestante foi execrada por uma parcela da população, partidária de uma moral um tanto quanto questionável, agindo como se fosse cão de guarda da tradição família e propriedade, a moral cristã reapareceu, mais uma vez, recoberta de ressentimento e ódio.

Esta tem sido a regra imposta pelo poder domesticador na sociedade atual, repleta de conservadorismos, com tendências alarmantes ao fascismo, voltada apenas ao consumo de- senfreado de vaidades e uma luta incessante por domínios aparentemente fúteis e hipocritamen- te tementes a “Deus”. O corpo tem sido a principal vítima.

Em qualquer sociedade razoavelmente civilizada, ações de intolerância promovidas contra a diversidade de pensamento, como as que grupelhos afiançados por políticos ligados às bancadas políticas denominadas de “BBB” (da bíblia, da bala e do boi) vêm praticando, seriam rechaçadas rapidamente pelos que obram as leis no país. Ao que parece, não tem sido assim. Associar a nudez, a diversidade sexual e de gênero, intensamente abordados na história da arte

49 Disponível em:

<https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2011/07/19/apos-confessar-agressao-a-pai-e-filho-por-confundi-los-com-casal-gay-suspeito-e-libertado.htm>. Acesso em: 28 de fevereiro de 2018.

50 Disponível em:

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