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Maria Alice Gonçalves Antunes O RESPEITO PELO ORIGINAL. Tese de Doutorado. Uma análise da autotradução a partir do caso de João Ubaldo Ribeiro

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Academic year: 2021

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Maria Alice Gonçalves Antunes

O RESPEITO PELO ORIGINAL

Uma análise da autotradução a partir do caso de João Ubaldo Ribeiro

Tese de Doutorado

Tese apresentada ao Programa de Pós-graduação da PUC-Rio como requisito parcial para a obtenção do título de Doutor em Letras.

Orientadora: Profa. Dra. Marcia Amaral Peixoto Martins

Rio de Janeiro, 28 de fevereiro de 2007

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Livros Grátis

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(3)

Maria Alice Gonçalves Antunes

O respeito pelo original – uma análise da

autotradução a partir do caso de João

Ubaldo Ribeiro

Tese apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Doutor pelo programa de Pós-Graduação em Letras do Departamento de Letras do Centro de Teologia e Ciências Humanas da PUC-Rio. Aprovada pela Comissão Examinadora abaixo assinada.

________________________________________________ Profa. Marcia do Amaral Peixoto Martins Orientadora Departamento de Letras – PUC-Rio

________________________________________________

Profa. Maria Paula Frota

Departamento de Letras – PUC-Rio

________________________________________________

Profa. Leila Cristina de Mello Darin

Faculdade de Comunicação e Filosofia – PUC-SP

________________________________________________

Profa. Maria Aparecida Andrade Salgueiro

Departamento de Letras Anglo Germânicas – UERJ

________________________________________________ Prof. José Luís Jobim de Salles Fonseca Instituto de Letras – UERJ

________________________________________________ Prof. Paulo Fernando Carneiro de Andrade Coordenador Setorial do Centro de Teologia e Ciências Humanas – PUC-Rio Rio de Janeiro, 28 de fevereiro de 2007

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orientador e da universidade.

Maria Alice Gonçalves Antunes

Graduou-se em Letras (Inglês e respectivas literaturas) na UERJ (Universidade do Estado do Rio de Janeiro) em 1985. Cursou Especialização em Língua Inglesa pelo Departamento de Letras da UERJ de março de 1989 a dezembro de 1989. É Mestra em Lingüística Aplicada pela UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro).

Ficha Catalográfica

CDD: 400

Antunes, Maria Alice Gonçalves

O respeito pelo original : uma análise da autotradução a partir do caso de João Ubaldo Ribeiro / Maria Alice Gonçalves Antunes; orientadora: Márcia Amaral Peixoto Martins. – 2007.

270 f. : il. (col.) ; 30 cm

Tese (Doutorado em Letras)–Pontifícia

Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2007.

Inclui bibliografia

1. Letras – Teses. 2. Autor-modelo. 3. Autotradutor. 4. Original. 5. Tradução. I. Martins, Márcia Amaral Peixoto. II. Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Departamento de Letras. III. Título.

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Aos meus pais, à minha irmã e à minha querida Clarinha, sempre.

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A João Ubaldo Ribeiro, pela generosidade.

À professora Dra. Susan Bassnett, pelo interesse demonstrado através de contribuições valiosas e do diálogo constante.

Às professoras Dras. Maria Clara Castellões e Maria Paula Frota e ao professor Paulo Henriques Britto (notório saber), pelas contribuições que fizeram por ocasião do exame de qualificação desta tese.

Às professoras Dras. Leila Cristina de Mello Darin, Maria Aparecida Andrade Salgueiro, Maria Paula Frota, Maria Cristina Batalha e Maria de Lourdes Duarte Sette e ao professor Dr. José Luis Jobim, pela participação na Banca.

Às colegas do setor de inglês, em especial, e do departamento LAG, pelo apoio e pelo interesse.

Aos amigos, pelo incentivo, pelas apresentações em seminários e conversas produtivas e, principalmente, pela paciência.

À Luzia, Beatriz, Mônica e Lúcia Cláudia, pelo incentivo ao início de minha vida acadêmica e pela amizade incondicional.

À jornalista Beatriz Marinho Strauss, por possibilitar meu primeiro contato com João Ubaldo Ribeiro.

À Carolina Alfaro de Carvalho, pela revisão precisa e interessada.

À Francisca Ferreira de Oliveira, Secretária da Pós-Graduação da PUC-Rio, pela eficiência e paciência infinitas.

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pelo apoio financeiro.

E, em especial, à Profa. Dra. Marcia Amaral Peixoto Martins, minha orientadora, pelo incentivo a minha entrada no Doutorado, pelo entusiasmo com que acolheu meu desejo de pesquisar a autotradução e o caso de João Ubaldo Ribeiro, pela leitura atenta deste e de outros trabalhos, pelas contribuições valiosas, e por tudo aquilo que eu certamente esqueci de mencionar aqui.

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Antunes, Maria Alice Gonçalves; Martins, Marcia Amaral Peixoto. O respeito pelo original – uma análise da autotradução a partir do caso de João Ubaldo Ribeiro. Rio de Janeiro, 2007. 270p. Tese de Doutorado – Departamento de Letras, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.

Esta tese se insere no âmbito dos estudos descritivos da tradução e investiga a autotradução a partir do caso do escritor brasileiro João Ubaldo Ribeiro. Com base em uma nova concepção do autor-modelo (Eco, 1979a; 1979b; 1994), este estudo investiga se o exercício da autotradução pode ser visto, no caso do escritor brasileiro, como uma possibilidade de continuação, por assim dizer, do processo de escrita original. Para tal investigação, utiliza-se um corpus constituído por: (i) o artigo “Suffering in translation”, de autoria de João Ubaldo; (ii) entrevistas (publicadas ou não) e declarações diversas concedidas pelo escritor; (iii) os textos – original e tradução – produzidos por ele; (iv) resenhas escritas por críticos norte-americanos e publicadas nos Estados Unidos; e (v) livros escritos por críticos brasileiros sobre a obra do autor. Utiliza-se ainda instrumentos de pesquisa distintos: (i) a comparação entre original e tradução, freqüentemente feita por estudiosos da tradução; (ii) o modelo para análise de traduções de Lambert e van Gorp (1985); e (iii) a entrevista por e-mail (Mann & Stewart, 2000). Além da análise do corpus em si, este estudo apresenta um histórico da autotradução e relatos dos casos dos autotradutores Vladimir Nabokov, Samuel Beckett, Milan Kundera, escritores catalães e poetas escoceses. Esta apresentação tem por objetivo proporcionar o diálogo entre as diversas práticas autotradutórias.

Palavras-chave

Autor-modelo; autotradutor; original; tradução.

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Antunes, Maria Alice Gonçalves; Martins, Marcia Amaral Peixoto Martins (Advisor). Respect for the original text – an analysis of self-translation based on the case of the Brazilian writer João Ubaldo Ribeiro. Rio de Janeiro, 2007. 270p. PhD Dissertation – Departamento de Letras, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.

The present work presents a study of self-translation based on the case of the Brazilian writer João Ubaldo Ribeiro. Using in the revisited concept of model author, this thesis seeks to analyse whether the practice of self-translation can be seen, in the case of the Brazilian writer, as the continuation of the process of original writing. The elaboration of the answer to this question is based on the analysis of the corpus, which consists of: (i) the article “Suffering in translation”, by João Ubaldo Ribeiro; (ii) published and unpublished interviews given by the author; (iii) original and self-translated texts produced by João Ubaldo; (iv) reviews written by North American critics and published in the USA; and (v) books written by professional readers about João Ubaldo’s works. Also, the investigation uses different research instruments: (i) the comparative analysis between original and self-translated texts; (ii) Lambert and van Gorp’s model for the analysis of translated literature; and (iii) e-mail interview. Besides the analysis of the corpus, this study presents a brief historical account of self-translation and general critical reports of self-translators’ – Vladimir Nabokov, Samuel Beckett, Milan Kundera, Catalan writers and Scottish poets – works. Rather than provide readers with a detailed critical analysis of these writers’ texts, these reports seek to make the dialogue between distinct self-translation practices possible.

Keywords

Model-author, self-translator, original, translation.

(10)

1 Introdução... 11

1.1 Apresentação da questão ... 11

1.2 As origens deste estudo sobre João Ubaldo Ribeiro, autotradutor ... 15

1.3 A autotradução como objeto de pesquisa ... 24

1.3.1 Objeto, corpus e questões do estudo de caso ... 25

1.4 A organização do trabalho... 28

2 Considerações teóricas e metodológicas ... 30

2.1 Introdução... 30

2.2 O autor-modelo de Umberto Eco ... 30

2.3 Metodologia... 47

2.3.1 O modelo de Lambert e van Gorp (1985)... 49

2.3.2 A entrevista por e-mail ... 54

2.3.2.1 A entrevista por e-mail com João Ubaldo Ribeiro ... 57

2.4 Considerações finais... 60

3 Autotradução ... 62

3.1 Introdução... 62

3.2 Autotradução: conceituação ... 62

3.3 Breve histórico da autotradução e das pesquisas sobre o tema ... 66

3.4 A autotradução na academia... 75

3.4.1 A tese de Helena Tanqueiro: Autotradução – autoridade, privilégio e modelo... 76

3.4.2 A tese de Verena Jung: English-German self-translation of academic texts and its relevance for translation theory and practice... 95

3.4.3 A tese de Lillian DePaula Filgueiras: A invenção do original via tradução, pseudotradução e autotradução... 112

3.5 Autotradução e autotradutores: motivações e questões teóricas ... 121

3.5.1 O caso de Vladimir Nabokov (1899-1977) ... 122

3.5.2 O caso de Samuel Beckett (1906-1989) ... 134

3.5.3 O caso de Milan Kundera (1929) ... 143

3.5.4 O caso do autotradutores catalães... 153

3.5.5 O caso dos autotradutores escoceses ... 158

(11)

4.2 João Ubaldo Ribeiro: biografia resumida... 164

4.3 O caso de João Ubaldo Ribeiro: as pré-condições e o tipo de autotradução ... 169

4.4 O processo de publicação e os paratextos ... 177

4.5 Original e tradução: análise comparativa ... 194

4.5.1 Os itens de especificidade cultural ... 209

4.5.2 O sergipês ... 225

4.5.3 Os erros em Viva o povo brasileiro... 231

4.5.4 As alterações mais significativas... 233

5 Considerações finais... 245 6 Referências Bibliográficas... 252 7 Anexos... 267 7.1 Anexo 1 ... 267 7.2 Anexo 2 ... 268 7.3 Anexo 3 ... 269 7.4 Anexo 4 ... 270

(12)

1

Introdução

Estes segredos... são parte de um grande conhecimento, conhecimento este que ainda não está completo, mesmo porque nenhum conhecimento fica completo nunca, faz parte dele também que sempre se queira que ele fique completo. (Júlio Dandão, personagem de Viva o povo brasileiro, p. 211)

1.1

Apresentação da questão

A pesquisa que apresento aqui tem como objeto de estudo a chamada autotradução – a tradução de um original pelo próprio autor – a partir de um caso particular, o do escritor brasileiro João Ubaldo Ribeiro. Autor consagrado em território nacional, membro da Academia Brasileira de Letras, é campeão de vendas da editora Nova Fronteira, com aproximadamente três milhões de exemplares vendidos até o momento1. João Ubaldo verteu2 para o inglês dois de seus romances mais famosos: Sargento Getúlio ([1971]1982) e Viva o povo

brasileiro (1984), mas suas autotraduções não têm despertado a curiosidade de

acadêmicos e pesquisadores no Brasil (Gomes, 2005, p. 75) e no exterior, e poucos são aqueles que já escreveram sobre o assunto, que considero especialmente relevante por envolver uma série de questões relacionadas às concepções de língua, tradução e autoria, como discutirei nas seções e capítulos posteriores.

João Ubaldo Ribeiro não se declara (e jamais se declarou) tradutor. Afirma não se interessar por traduções mais do que um leitor comum se interessaria (e-mail, 03/12/2003). Nega qualquer tentativa de reflexão acerca do processo tradutório (ibidem) e afirma, em e-mails a mim enviados, que não aprecia traduzir nem os desafios que a atividade apresenta (e-mail, 08/10/2003, 06/11/2003). Afirma também que não apreciou o processo de verter seus dois romances para o

1 Fonte: Valéria dos Santos, secretária do escritor na Nova Fronteira (e-mail, 24/11/2006).

2 O verbo “verter” é usado, em português, para descrever o processo de transformação de um texto

em português para uma língua estrangeira e o verbo “traduzir” é utilizado para descrever o processo contrário (transformação de um texto em língua estrangeira para o português). Apesar de reconhecer a distinção entre os dois processos, neste trabalho utilizarei os dois verbos como sinônimos, bem como os substantivos “versão” e “tradução”, por motivos de ordem prática.

(13)

inglês (Ribeiro, 1990, p. 3) e freqüentemente me responde por e-mail que não se lembra de razões para suas escolhas tradutórias (e-mail, 18/07/2003; 25/07/2003; 02/09/2003; 18/10/2003; 03/05/2005; 20/09/2005) ou que se recorda apenas de um “critério subjetivo” (e-mail, 25/07/2003). Em outros momentos, João Ubaldo declara que nunca pretendeu apagar as marcas da cultura brasileira em seus textos traduzidos (e-mail, 24/09/2003) e que teve problemas com seus editores, que atribuíram algumas de suas soluções mais literais ao conhecimento falho que, segundo editores norte-americanos, um falante não-nativo geralmente tem da língua inglesa (Ramaswamy, 2006; Burkeman, 2006; Smith, 2006). Diz de forma clara (e nas entrelinhas também) que a tradução é impossível (e-mail, 01/08/2003) em virtude das “peculiaridades” de seu estilo, tais como ritmo, jogos de palavras e rimas, por exemplo (e-mail, 07/08/2003). Evidentemente o longo período de tempo que separa a autotradução de João Ubaldo de minhas questões sobre o tema – cerca de 15 anos – contribui para que nem sempre seja possível discutir mínimos detalhes. Entretanto, acredito que, além das informações por ele fornecidas, são interessantes também as visões sobre aspectos da tradução que construo através da leitura dos e-mails que o escritor generosamente me envia em resposta a meus questionamentos.

Ao observar as declarações de João Ubaldo, além do trabalho de autores que traduziram ou traduzem seus próprios originais, como Samuel Beckett, Vladimir Nabokov e Milan Kundera, verifico, inicialmente, que a autotradução não é um processo que se dá de forma coerente ou homogênea. Não se trata simplesmente de um autor que traduz seu próprio original, como verbetes de enciclopédias e dicionários de tradução tendem a nos informar. O processo autotradutório tem características particulares que dependem do autor que realiza a tradução, de sua visão acerca do que é a tradução, do tipo de texto traduzido, do propósito a que tal texto se destina e do intervalo de tempo que separa a produção do original da tradução. A autotradução de textos literários é vista, em certos casos, como tradução stricto sensu, porém com marcas da liberdade do autor (Tanqueiro, 2002), enquanto em outros casos ela é tida como a produção de novo original (Whyte, 2000; 2002; Jung, 2002). A autotradução de textos acadêmicos, por sua vez, não é vista como uma atividade cujo produto é um novo original (Jung, 2002). Diante da complexidade da prática autotradutória (e do comportamento

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humano em geral) não será possível alcançar generalizações absolutas a respeito dela. Como discutirei no capítulo 2 (seção 2.2), a generalização a que aspiro nesta tese é aquela denominada “qualitativa” (Tripp, 1985, p. 33-34). Ou seja, é a acumulação de estudos de caso que possibilitará a elaboração, processual e constante, de um arcabouço teórico. Será possível, contudo, construir crenças que informam a prática de João Ubaldo Ribeiro como tradutor de seus dois romances e aquelas em que se baseiam reflexões anteriores sobre a prática de outros autotradutores, como farei neste trabalho.

A função que textos autotraduzidos exercem no sistema literário a que se destinam também não é sempre semelhante. Os textos autotraduzidos por Beckett são apresentados como originais por seus editores e, na maioria das vezes, analisados como tal por leitores profissionais. Nas vezes em que esses textos são estudados como autotraduções, as marcas da presença do autor são freqüentemente ressaltadas (Fitch, 1988; Connor, 1989). Os romances traduzidos por Nabokov são apresentados como autotraduções realizadas em colaboração, e as produções de Milan Kundera são divulgadas como “versões definitivas, revisadas pelo autor”. Outras ainda, como as de Raymond Federman e Hector Feliciano, são apresentadas como “traduções aumentadas pelo autor”. Finalmente, o romance Cantique de plaines, traduzido do inglês para o francês pela própria autora (a canadense Nancy Huston) e lançado ao mesmo tempo que o “original”,

Plainsong, foi premiado pelo governo do Canadá na categoria ficção, provocando

grande polêmica quando cinco editores quebequenses protestaram alegando que a obra não poderia ter concorrido na categoria, já que, na visão desses editores, se tratava de uma tradução. Cinco anos mais tarde, o livro The mark of the angel, também uma autotradução da escritora, foi proibido de concorrer ao mesmo prêmio na categoria ficção com a justificativa de que se tratava de uma tradução (L’empreinte de l’ange havia sido publicado ao mesmo tempo que a versão em inglês) (Almeida, 1995). Ou seja, a autotradução é uma atividade que oferece inúmeras questões e possibilidades para novas discussões sobre temas freqüentemente debatidos, tais como a noção de original e da tradução, ou sobre assuntos que ainda não foram explorados pela comunidade de estudiosos, como a influência que o fato de um texto ter sido traduzido pelo próprio autor terá no processo de lançamento de uma obra junto a um novo público-leitor.

(15)

Com base nas reflexões apresentadas acima defino agora o objetivo deste estudo de caso sobre as autotraduções de João Ubaldo Ribeiro, com o qual espero contribuir para a área dos estudos da tradução e também da literatura brasileira, que tem nele um de seus escritores mais prestigiados. Com base na noção de autor-modelo (Eco, 1979a; 1979b; 1994), pretendo verificar se ao exercer o papel do leitor-modelo do texto original no processo de traduzi-lo, o autor introduz alterações que serão atribuídas e permitidas ao autor-modelo desse original. Em outras palavras, pretendo verificar se o exercício da autotradução pode ser visto, no caso de João Ubaldo Ribeiro, como uma possibilidade de continuação, por assim dizer, do processo de escrita da obra. Examinarei, conseqüentemente, se o escritor brasileiro, no uso de sua autoridade sobre original e tradução, registra no texto autotraduzido marcas que têm conferido a esse tipo de texto um status diferente, com características específicas, distintas daquelas apresentadas pelo texto traduzido propriamente dito.

Discutirei as noções de autor-modelo e leitor-modelo no segundo capítulo desta tese. Por ora apresento o autor-modelo simplesmente como aquele que se torna visível durante o ato cooperativo da leitura e a quem são atribuídas escolhas registradas no texto narrativo (Eco, 1979a; 1979b; 1994). O leitor-modelo, por outro lado, cumpre duplo papel: ele impulsiona o processo de escrita e, durante o ato cooperativo da leitura, movimenta-se interpretativamente da forma que o autor-modelo previu durante a geração do texto. João Ubaldo Ribeiro afirma que foi “muito respeitoso com o original”, “não reescrevendo ou retocando nada”, já que não queria “ser acusado de copidescar” sua própria obra (e-mail, 18/07/2003). A partir da perspectiva de Eco, apresentada em detalhe no capítulo 2, considero que João Ubaldo pretendeu que o autor-modelo reconstruído pelo leitor-modelo do texto traduzido fosse semelhante àquele criado durante a leitura do texto original. Entretanto, não será possível atingir tal objetivo, nem mesmo quando o tradutor profissional é responsável pelo trabalho de tradução, já que o tradutor transforma a obra para atingir outro leitor-modelo que, inserido em um contexto estrangeiro, tem competência enciclopédica distinta, a qual utiliza ao cooperar com o texto traduzido. Nessa transformação, o tradutor deixa suas marcas ao explicitar o não-dito, simplificar a linguagem ou a mensagem, seguir modelos e práticas da língua-alvo e homogeneizar características textuais (Baker, 1996, p.

(16)

176-7), escolhendo formas que julga terem efeito sobre os novos leitores. Em suma: o leitor-modelo registrado na tradução sempre será diferente daquele registrado no original.

1.2

As origens deste estudo sobre João Ubaldo Ribeiro, autotradutor

Dois momentos distintos, que registro aqui, motivam o que constitui meu interesse pela pesquisa sobre autotradução. Em função da importância que os dois momentos representam, descrevo-os a seguir.

Em dezembro de 2002, apresentei uma monografia à PUC-Rio como requisito da disciplina LET 2379 – Tópicos em estudos da tradução (relações

entre tradução, cultura e literatura a partir de estudos de caso), ministrada pela

professora Marcia Martins no programa de Pós-Graduação em Letras, na área de Estudos da Linguagem. Na monografia, fiz um estudo exploratório sobre os dois romances de João Ubaldo Ribeiro traduzidos pelo próprio autor: Sargento Getúlio ([1971]1982) e Viva o povo brasileiro (1984). Apoiada no modelo investigativo descrito por Lambert e van Gorp (1985), na teoria dos polissistemas literários (Even-Zohar, 1990) e também nas idéias de Toury (1995), Venuti (2002) e Lefevere (1990), procurei compreender a função dos romances traduzidos por João Ubaldo Ribeiro dentro do polissistema literário norte-americano e as opções do autotradutor brasileiro. Através da leitura e análise crítica de entrevistas concedidas e artigos produzidos por ele, investiguei ainda como João Ubaldo descreve sua atividade de traduzir e a compara com a atividade de escrever.

A teoria dos polissistemas literários (Even-Zohar, 1990) e os estudos descritivos da tradução (DTS, doravante) (Toury, 1995) constituem parte importante da pesquisa que relato nesta tese exatamente porque possibilitam sua execução. Ambas as teorias serão discutidas de forma breve em seção posterior e, neste momento, apenas saliento rapidamente a relevância deste arcabouço teórico para esta pesquisa.

Em primeiro lugar, a teoria dos polissistemas postula a existência de um sistema de literatura traduzida, o que se trata de uma proposta inédita, já que as

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traduções de textos literários não costumam ser vistas como fazendo parte da literatura do sistema receptor. Por sua vez, os estudiosos descritivistas, ao tratarem a tradução como um fato da cultura de chegada, consideram que todo texto que funciona como tradução em uma dada cultura por algum tempo é um objeto de estudo legítimo, mesmo que depois se constate que não se trata de uma tradução no sentido estrito. Lawrence Venuti (2002) descreve como o livro Les

chansons de Bilitis, apresentado como tradução por seu autor Pierre Louÿs, foi

estudado por muito tempo como uma tradução antes que se percebesse que essa obra havia sido inventada, ou que se tratava de uma pseudotradução (p. 71-72). As autotraduções também são muitas vezes apresentadas como traduções, sendo, contudo, dado a elas com certa freqüência, um status privilegiado, especialmente quando são publicadas em edições bilíngües (Whyte, 2000). Mostrarei no capítulo 4 que resenhistas norte-americanos avaliam a tradução feita por João Ubaldo Ribeiro. Assim, a noção de tradução apresentada por descritivistas é aquela que adoto em meu trabalho. Esclareço, contudo, que ao partir da premissa de que João Ubaldo faz traduções de seus romances, não excluo a possibilidade de concluir que seus textos autotraduzidos trazem marcas do trabalho do autor que, ao assumir o papel de leitor-modelo durante a leitura do original, introduz novas marcas em seu próprio texto, marcas essas que não são geralmente permitidas aos tradutores.

O segundo momento que motivou meu interesse pela autotradução são as conclusões a que cheguei após a pesquisa descrita brevemente acima. Em uma busca por autores que traduziram suas próprias obras e que discutiram o processo de autotradução, encontrei o artigo de Rainer Guldin intitulado “Traduzir-se e retraduzir-se: a prática escrita de Vilém Flusser” (s/d), onde o autor discute a tradução como método de escrita do filósofo. Na epígrafe ao artigo, Vilém Flusser afirma que “a única tradução verdadeira é aquela tentada pelo autor do original3” [Grifo do autor]. Na mesma epígrafe, Jeffrey M. Green, ele mesmo um autotradutor, afirma que “ao traduzir sua própria obra, o escritor bilíngüe provavelmente produzirá uma versão paralela ao original e não uma tradução propriamente dita” e que “se a versão produzida pelo autor é uma tradução verdadeira, então todos os tradutores devem desejar produzir um trabalho

3 Todas as citações extraídas de originais em inglês foram traduzidas por mim e são de minha

responsabilidade.

(18)

semelhante”. As palavras lidas imediatamente levantaram algumas questões e me fizeram procurar e comprar o livro de autoria de Green, onde ele afirma que, ao traduzir seu próprio texto, toma liberdades que não tomaria caso não fosse o autor do texto que traduz e que “faz o que quer com o texto” porque é o dono do original (2001, p. 39). Não é rara em outras reflexões acerca da autotradução a visão do autor que traduz seu próprio texto como o profissional que tem liberdade para introduzir alterações. O autor pode mudar seu texto sem que seja julgado por “traição” ao original, como acontece com outros tradutores. Sugiro uma breve

reflexão sobre as questões que as afirmações de Flusser e Green podem levantar. Flusser afirma, sobre o “gesto da escrita”4, que “a única tradução verdadeira

é aquela tentada pelo autor do original”. É interessante observar que o filósofo usava a tradução como uma espécie de instrumento para o refinamento do significado. Seu processo de escrita se dividia em várias etapas. Na primeira, redigia o original na língua que considerava apropriada para o tema sobre o qual desejava escrever. Em seguida, produzia uma sucessão de traduções indiretas, uma a partir da outra para diversas línguas, até re-traduzir o último texto para a língua da publicação, aquela em que havia escrito o primeiro texto. Flusser nos fala também da tradução como uma atividade cuja perfeição só pode ser atingida se for executada pelo próprio autor de um texto. Creio que as palavras do filósofo refletem opiniões de leitores profissionais – segundo Lefevere (1992, p. 3), professores e alunos de literatura além de críticos literários. Afinal, quem melhor do que o próprio autor de um texto para conhecer suas intenções, contidas no original? Quem, além dele, saberá as palavras exatas para exprimir suas idéias, emoções, sentimentos? Quem, senão o autor, interpretará a obra sem cometer enganos? Quem, além dele, poderá selecionar com total liberdade os momentos em que deseja manter-se apegado ao texto original ou libertar-se dele? Tudo indica que essas questões expressam a percepção de leitores profissionais de uma tradução, como, por exemplo, a estudiosa da autotradução Helena Tanqueiro (2002).

No segundo excerto, Green expressa sua visão acerca da obra autotraduzida: ela é “uma versão paralela ao original e não uma tradução propriamente dita”

4 O “gesto da escrita” é um conceito discutido em manuscrito inédito (com o mesmo título) de

autoria de Vilém Flusser.

(19)

(2001, p. 17). De fato, essa afirmação reflete uma questão presente nos estudos sobre a autotradução. Em tese recente, Tanqueiro (2002) faz a defesa do autor como tradutor ideal de sua obra (p. 50) e pergunta: “poder-se-á considerar um autotradutor como tradutor?” (p. i). Ou, em outras palavras, será o produto do trabalho do autor que traduz sua própria obra visto como uma tradução propriamente dita? No caso do escritor irlandês Samuel Beckett, o resultado da autotradução não tem sido considerado uma tradução e, sim, a produção resultante de uma etapa do seu processo criativo (Fitch, 1988, p. 229), uma espécie de rascunho produzido pelo autor do original em um processo infinito de lapidação da obra. Além das pesquisas que relatam tal visão sobre a obra autotraduzida de Beckett, comprovei através de investigação informal em sites de universidades estrangeiras que os textos desse autor são tratados como originais, e sua obra é estudada de maneira isolada na França e na Inglaterra, ou seja, em ambos os países seus livros são considerados originais e estudados como tais.

Instigada pela mesma afirmação de Green (2001, p. 17), me pergunto por que os romances Sergeant Getúlio e An invincible memory, sendo produtos do trabalho do autor, são tratados por leitores profissionais como traduções e não como novos originais, ainda que An invincible memory, especialmente, tenha um

status privilegiado, sugerido pela expressão translated by the author, impressa nas

páginas iniciais do romance. Em outras palavras, por que o produto do trabalho de João Ubaldo Ribeiro é, contrariando a visão sobre as obras de Beckett, considerado uma tradução por resenhistas? Creio, conseqüentemente, que outros fatores influenciam a posição de uma obra no polissistema literário ao qual ela se destina, como, por exemplo, o fato de o escritor ter adotado a segunda língua para expressar-se originalmente ou ainda a consagração alcançada pelo autor no polissistema que publica suas autotraduções. Os casos de Beckett e Nabokov ilustram ambas as situações, já que os dois autotradutores adotaram a segunda língua como língua de expressão original e atingiram o status de autores canônicos nos polissistemas literários estrangeiros a que suas obras se destinavam.

Em seguida, Green refere-se ao autor como o modelo a ser seguido pelo tradutor em sua atividade, já que o autor é aquele que produz a tradução

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verdadeira (ibidem). Conseqüentemente, os procedimentos5 usados pelo autotradutor para lidar com dificuldades inerentes ao fazer tradutório serão aqueles que o tradutor deverá utilizar, pois eles refletem a “fidelidade” do autor a suas “intenções”. É também essa a opinião de Helena Tanqueiro (2002). Por outro lado, Green afirma que o autotradutor só será capaz de uma tradução “verdadeiramente fiel ao original” (2001, p. 17) se a estrutura gramatical e lexical das duas línguas envolvidas assim o permitirem, e se o autotradutor as conhecer suficientemente bem. Ou seja, a partir da perspectiva de Green, pode-se dizer que nem sempre o autor será o melhor tradutor.

Finalmente, Green descreve seu comportamento ao traduzir seu próprio texto: “tom[a] liberdades que não tomaria caso o texto não fosse de [sua] autoria” (2001, p. 39). Portanto, a fidelidade é obrigação do tradutor, mas o autor tem liberdade quando traduz sua própria obra. Green conclui reafirmando sua autoridade em relação ao original e sua liberdade para “fazer o que quiser com o texto” (ibidem). O autor de Thinking through translation expressa a visão do autor como proprietário exclusivo do texto, de forma que, ao se autotraduzir, é livre para ir além dos limites impostos ao tradutor. Acredito que poucos autores tenham expressado tão claramente a opinião compartilhada por leitores profissionais.

As palavras de Flusser e de Green refletem, em meu entender, a visão que parte do público tem sobre a autotradução – e, necessariamente, uma visão acerca da tradução, que passo a apresentar aqui.

Flusser e Green acreditam na existência de uma tradução que é ideal, verdadeira ou definitiva, o modelo que só pode ser produzido pelo próprio autor do texto e aquela que o tradutor deve desejar produzir. Se essa tradução existe, também é possível, conseqüentemente, resgatar significados contidos no texto original, pois só essa presença poderá garantir a interpretação adequada do texto. Na verdade, Flusser e Green parecem acreditar que “há no texto ou na realidade

5 A expressão “estratégia de tradução” é usada neste trabalho em referência ao conjunto de passos

comportamentais usados para atingir um objetivo. As expressões “técnica de tradução” e “procedimento técnico de tradução” são usadas em referência à maneira escolhida para lidar com um problema específico (as referências culturais, por exemplo). A “domesticação” é, portanto, uma estratégia que implica a utilização de um conjunto de técnicas distintas, como, por exemplo, a “tradução integral do nome próprio” ou a “naturalização”.

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um significado ‘presente’, latente que, além de não depender do sujeito que o ‘compreende’, pode ser recuperado, descoberto ou resgatado em sua plenitude” (Arrojo, 1992, p. 68). Ou ainda, a crença dos dois autores parece apoiada na “concepção de um texto ‘original’, estável e imutável, depositário de intenções e dos significados (conscientes, apenas) de um autor, recuperáveis através da leitura [...] um processo neutro” (p. 74). Concluo que Green acredita em um “texto ‘original’ estável e imutável” que pode garantir a existência da “tradução verdadeira”, que, por sua vez, só pode ser feita se o texto original, depósito de significados estáveis, for compreendido sempre da mesma forma por um leitor obrigatoriamente neutro. Além disso, verifico que Green crê ainda que o autor, dono do original, pode mudar seu texto, reforçando assim uma já tradicional percepção do autor e do original como superiores ao tradutor e ao texto traduzido, respectivamente (Bassnett & Trivedi, 1999, p. 2). O autor é livre para introduzir em sua autotradução as modificações tidas por ele como adequadas porque é o dono do original, enquanto que o tradutor, por outro lado, ao fazer determinadas mudanças será um “traidor”.

A concepção de Flusser e Green acerca da tradução e do papel do tradutor não é, contudo, aquela que vem sendo defendida por teóricos da tradução contemporâneos. O estudioso norte-americano Lawrence Venuti (1995, p. 1-2) fala da “intervenção crucial do tradutor no texto estrangeiro” e afirma que “a tradução pode ser considerada a comunicação de um texto estrangeiro, mas é sempre uma comunicação limitada pelo público-leitor específico ao qual se destina” (p. 8-9). Mais recentemente, no livro The translator as writer (Bassnett & Bush, 2006), as intervenções conscientes do tradutor são destacadas em textos escritos por vários profissionais da tradução, atividade que é obrigatoriamente uma transformação, pois sofre sempre a “intervenção crucial” de um profissional assujeitado a “valores, crenças e representações” do público e cultura alvos (Venuti, 1995, p. 18). Entretanto, creio que será necessário, além de “insistirmos na idéia de que o indivíduo é a elas [língua e história] inevitavelmente assujeitado”, pensarmos também na “história particular de um sujeito” (Frota, 2000, p. 284) como influenciadora do processo tradutório. Em outras palavras, creio que a tradução é, inevitavelmente, transformação feita por um sujeito que intervém em um texto e, nesse processo, é influenciado por valores, crenças e

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representações circulantes na cultura-alvo, mas também influenciado por sua própria história. É essa a concepção de tradução à qual me alinho. Entretanto, é importante destacar que, a meu ver, a transformação não é ilimitada. Finalmente, é necessário considerar que pensar a tradução como transformação não resolve a questão do estabelecimento de fronteiras entre a atividade de traduzir e de autotraduzir, por exemplo.

Em artigo intitulado “When is a translation not a translation?” (1998), Susan Bassnett questiona a compreensão atual da tradução como uma operação que envolve a transferência de um texto de uma língua para outra (p. 27) e argumenta que questões como autenticidade e originalidade, poder e posse, dominação e subserviência são discutidas com base nessa definição que classifica como “tênue”. Bassnett pergunta então: “Mas podemos estar sempre certos de que sabemos o que é uma tradução?” (p. 27) e discute tipos de textos, entre eles as autotraduções, que demonstram a necessidade de reflexão acerca dos limites da tradução e do papel do tradutor.

A leitura dos textos citados acima propicia o surgimento de outras indagações: por que um texto autotraduzido nem sempre é visto como uma tradução? Em geral, as pesquisas que advogam o status de um segundo original para o texto traduzido pelo próprio autor tendem a calcar suas análises nas diferenças introduzidas na tradução. Assim, a obra autotraduzida tende a ser considerada um outro original porque o autor introduz mudanças consideradas significativas por leitores profissionais que têm acesso aos dois textos – original e tradução. Entretanto, todas as mudanças são permitidas se o autor do original é também o tradutor. Por outro lado, o profissional da tradução que introduzir o mesmo tipo de mudanças poderá ser, como no conto “O Tradutor Cleptomaníaco” de Dezsö Kosztolányi (1996), condenado ao ostracismo porque o produto de seu trabalho supostamente trai o original, mas, ainda assim, seu trabalho muitas vezes será considerado uma tradução e tratado como tal.

Um texto traduzido pelo próprio autor pode ainda não ser visto como uma tradução porque o tradutor é também o autor do original. Autor e, portanto, dono do texto, i.e., conhecedor privilegiado da intenção autoral tão buscada por tradutores, ele não precisa se preocupar com o resgate dessa intenção, pois a conhece e parece natural que possa retrabalhá-la ou alterá-la sem que isso acarrete

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críticas da comunidade de leitores a que a obra se destina. O tradutor, por outro lado, funciona como um transportador da intenção autoral sem poder para modificá-la.

Se o profissional que traduz é o fator determinante das fronteiras entre a tradução e a autotradução, pergunto-me se um romance vertido por um profissional apresentado pela editora como tradutor será sempre uma tradução. Provavelmente, muitos de nós já ouvimos falar de traduções que “traíram” os originais, ou de tradutores como “traidores”. Contudo, mesmo as traduções “traidoras” foram por muito tempo lidas, estudadas, criticadas como traduções. Pensando ainda no profissional, lembro dos autores que foram ou são também tradutores. Em estudo recente, Adriana Pagano (2001) analisa as estratégias usadas pelo escritor e tradutor literário Érico Veríssimo durante o boom editorial ocorrido no Brasil entre 1930 e 1950. A pesquisadora cita, entre outras características desse período da história da tradução no Brasil e na Argentina, o fato de que vários autores, hoje aclamados pela crítica em seus países de origem e no exterior, trabalharam como tradutores para editoras emergentes. Entre eles, Pagano cita Jorge Luis Borges, Adolfo Bioy Casares, Rodolfo Walsh, Julio Cortázar, Silvina Ocampo e Alfonsina Storni na Argentina, e Monteiro Lobato, Érico Veríssimo, Mario Pedrosa, Rachel de Queiroz, Cecília Meireles e Graciliano Ramos no Brasil. Pagano demonstra, em seu estudo, que Veríssimo introduziu várias alterações nos originais que traduziu e o próprio escritor, admitindo o comportamento impróprio, confessa que “movido pelo enorme tédio causado pelo livro, decidiu ajudar o autor e tomar algumas liberdades respeitando a trama, mas mudando o estilo” (1972). A partir da perspectiva de Eco, portanto, Érico Veríssimo introduziu alterações que marcam a atividade de um novo autor-modelo, “tomando liberdades”, amparado e autorizado provavelmente por sua condição de escritor respeitado no polissistema literário a que a obra traduzida se destinava. A produção de Veríssimo pode dar margem a questões acerca do que significa traduzir uma obra. Entretanto, em nenhum momento Pagano questiona o fato de que Veríssimo produziu traduções, mesmo porque a pesquisadora não se propôs a discutir a natureza da atividade de tradução. Em nenhum momento, o status tradutório do trabalho de Veríssimo foi posto em dúvida (o que não significa que

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não deva ser em investigações futuras voltadas para a definição de fronteiras entre adaptação, tradução, imitação, etc.).

Assim como esse, muitos casos que poderiam levantar dúvidas acerca do

status de uma obra traduzida não o têm feito. O público-leitor provavelmente

acreditava, em todos os casos descritos, estar diante de traduções. Ou talvez o público-leitor aceite uma obra como uma tradução porque ela é apresentada como tal no polissistema literário alvo. Sob essa perspectiva, a tradução de um original produzida por um tradutor (profissional ou não) será sempre uma tradução, e as possíveis diferenças entre os dois textos talvez sejam criticadas por leitores profissionais, mas o status do texto produzido não será questionado. A tradução de um romance realizada por outro autor será também uma tradução, e as possíveis diferenças entre as obras também podem causar questionamentos do mesmo grupo de leitores. Da mesma forma, o público-leitor não-profissional poderá, no máximo, discutir a qualidade das traduções, mas raramente questionará o fato de que está diante de traduções. Gideon Toury (1995) afirma que “quando um texto é apresentado como uma tradução, ele é prontamente aceito bona fide como uma tradução, sem questionamento” (p. 138).

Constato, depois de minhas reflexões, que a atitude de leitores profissionais pode variar entre os dois extremos: ora o texto autotraduzido é tratado como uma tradução, ora como um novo original. Pode-se adotar qualquer uma das posições, mas não se pode deixar de reconhecer que as palavras translated by the author escritas na capa de um livro ou em suas páginas iniciais alteram o status de uma obra e sinalizam, de certa forma, que serão permitidas alterações mais significativas ou que o tradutor é mais gabaritado porque conhece mais profundamente seu texto. Minha tarefa, então, é a de interpretar a expressão

translated by the author verificando os sentidos que lhe têm sido atribuídos,

especialmente em relação aos trabalhos assim sinalizados, como os de João Ubaldo Ribeiro.

Constato também, após exaustivas buscas sobre o tema, que a autotradução não tem sido objeto de estudo freqüente. As muitas questões levantadas acima refletem o fato de que a prática da autotradução tem sido pouco estudada ou talvez pouco divulgada. Portanto, minha reflexão levanta também questões acerca das características que definem uma tradução stricto sensu.

(25)

1.3

A autotradução como objeto de pesquisa

Conforme constatei anteriormente, a autotradução não tem sido objeto de pesquisa freqüente. Pude observar através de buscas em bibliotecas físicas e virtuais que apenas três tentativas de preenchimento dessa lacuna nos estudos da tradução foram feitas recentemente, por meio de pesquisas que serão discutidas em detalhe posteriormente. São elas:

1. A tese de doutorado de Helena Tanqueiro (2002), defendida na Universidade Autônoma de Barcelona, intitulada “Autotradução: autoridade, privilégio e modelo”, que apresenta o trabalho do autotradutor como modelo para traduções literárias e tenta descobrir, através da análise de autotraduções de escritores catalães, normas que possam orientar o trabalho de tradutores e críticos literários, bem como o ensino da tradução literária.

2. A tese de Verena Jung (2002), defendida na Universidade de Dusseldorf, discute a autotradução de textos acadêmicos. Jung (2002) comparou textos traduzidos por acadêmicos alemães contemporâneos às traduções dos mesmos textos por um grupo de alunos. A autora pretendia descobrir “o que o autor quis preservar, que nível da linguagem ou do conteúdo era considerado importante na autotradução” (p. 13).

3. A tese de doutorado de Lillian DePaula Filgueiras (2002), defendida na USP, que tem um objeto de estudo bastante original e, até certo ponto, curioso. A pesquisadora estudou o trabalho de Reinaldo Santos Neves, autor brasileiro contemporâneo que produziu uma pseudotradução em português, a autotradução desta para o inglês e a retradução do texto autotraduzido para o português. Com o objetivo de “problematizar questões referentes à originalidade, fidelidade e criação na atividade tradutória” (p. 8), a pesquisadora acompanhou o processo de autotradução do português para o inglês e a “retradução” (p. 10) do inglês para o português, que estava sendo produzida durante a elaboração da tese, segundo informação da pesquisadora.

Duas teses estão em andamento. Na Universidade de Edimburgo, Corinna Krause estuda o caso dos poetas-autotradutores escoceses e na Universidade de

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Pavia, Luana Pasi estuda as autotraduções (feitas por Samuel Beckett) de suas peças teatrais En attendant Godot / Waiting for Godot e Fin de partie / Endgame. Essas teses não serão discutidas em detalhe aqui, pois ainda não foram defendidas. Entretanto, alguns artigos de Krause e algumas conclusões iniciais de Pasi serão citados no capítulo 3, em que apresento o caso das autotraduções de Beckett e dos poetas escoceses.

Em minha tese, que envolve o estudo do caso do escritor brasileiro João Ubaldo Ribeiro e suas autotraduções para o inglês, pretendo verificar se, ao traduzir o próprio texto, o autotradutor introduziu alterações atribuíveis ao autor-modelo original e assim contribuir para a discussão acerca de possíveis limites entre tradução e autotradução. Finalmente, desejo ressaltar um ponto em comum entre os estudos relatados por Tanqueiro (2002) e Filgueiras (2002): a autotradução é vista como tradução, ou seja, diferentemente de estudiosos contemporâneos como Brian Fitch (1988), que acaba por definir a atividade como “parte do processo de escrita” (p. 70), as duas pesquisadoras conferem ao texto autotraduzido o status de tradução. Helena Tanqueiro parte da premissa de que o texto autotraduzido constitui um modelo para outros tradutores porque foi produzido por um tradutor privilegiado, o autor do original, que sabe suas intenções e que, por isso, seleciona procedimentos apropriados para lidar com o texto. Jung (2002), entretanto, acrescenta que o caso da autotradução do texto acadêmico – uma prática relativamente comum entre pesquisadores – é diferente. Para ela, a definição proposta por Fitch (1988) sobre a obra literária pode ser inadequada para uma classificação dos textos acadêmicos. Jung sugere, portanto, que um texto literário traduzido por seu autor poderá constituir um outro original, enquanto os textos acadêmicos traduzidos por seus autores serão sempre traduções.

1.3.1

Objeto, corpus e questões do estudo de caso

Interessa-me como objeto de pesquisa, conforme relatado acima, o processo de autotradução de Sargento Getúlio e Viva o povo brasileiro para o inglês. Na tentativa de compreender esse processo, analisarei o seguinte corpus: (i) Sargento

Getúlio e Viva o povo brasileiro e as autotraduções de João Ubaldo para o inglês;

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(ii) entrevistas concedidas pelo escritor; (iii) o artigo “Suffering in translation” escrito por João Ubaldo; (iv) artigos, resenhas e livros que têm a obra do escritor brasileiro como tema; e, (v) entrevista por e-mail que vem sendo concedida a mim desde 2003 por João Ubaldo.

Discutirei, no terceiro capítulo desta tese, as três pesquisas sobre autotradução recentemente apresentadas: Tanqueiro (2002), Jung (2002) e Filgueiras (2002). No mesmo capítulo, apresentarei uma discussão acerca do trabalho dos autotradutores contemporâneos Samuel Beckett, Vladimir Nabokov e Milan Kundera, além de grupos de autotradutores provenientes de regiões (bilíngües ou não) em que a autotradução é uma atividade freqüente, como a Catalunha e a Escócia contemporâneas. Evidentemente, outros autores – como a canadense, anglófona Nancy Huston, autora de mais de 19 textos de ficção e não-ficção e (auto)tradutora de três romances de sua autoria – traduzem seus próprios textos, mas desconheço estudos sobre a prática desses autotradutores e relatos minimamente detalhados dos próprios autores sobre o tema, o que, no momento, impede minha reflexão sobre seus casos particulares.

Em minha análise acerca da autotradução, abordarei temas que até então não foram discutidos, pelo menos profundamente, por teóricos da tradução. Devo ainda esclarecer que discutirei a autotradução a partir dos casos dos autotradutores estrangeiros citados acima para estabelecer, em minha análise, uma espécie de diálogo entre eles e o autor brasileiro João Ubaldo Ribeiro. Enfatizo, entretanto, que não pretendo discutir o trabalho dos autores estrangeiros em profundidade. Eles servirão, fundamentalmente, para enriquecer minha análise do caso ubaldiano através da comparação com informações advindas de outras fontes. Para tal, o trabalho de Samuel Beckett, Vladimir Nabokov, Milan Kundera, de escritores catalães e poetas escoceses, que tem despertado maior interesse de pesquisadores em geral, fornece, por assim dizer, maiores possibilidades de diálogo. Considero relevante destacar que minha discussão acerca do trabalho dos autotradutores citados e de João Ubaldo Ribeiro constitui a primeira pesquisa formal que abrange escritores localizados em situações distintas e que aponta particularidades em cada processo autotradutório.

Na minha análise da autotradução em si e tal como praticada por João Ubaldo Ribeiro, apresentada no capítulo 4, pretendo abordar noções como as de criação e tradução a partir da discussão de Paulo Henriques Britto. Em artigo

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intitulado “Tradução e criação” (1996), o tradutor, professor e poeta contrasta o processo de tradução de um poema ao processo de criação de outro, e conclui que os dois processos têm características distintas. Britto afirma que “em ambos os casos, há momentos de autonomização e de aproximação, mas enquanto na tradução a estrutura é mais ou menos equilibrada, no caso da criação o movimento de autonomização é claramente predominante” (p. 250-251). Minha análise se concentrará na seguinte questão:

• o autotradutor João Ubaldo Ribeiro exibe movimentos de autonomização em relação ao original ou de aproximação? Em que momentos?

As noções de autoridade e fidelidade serão abordadas nos capítulos 3 e 4. Ainda que elas tenham sido exaustivamente discutidas por teóricos da tradução, elas são estudadas de um único ponto de vista, ou do autor ou do tradutor. A visão de outros sujeitos – os autotradutores por mim enfocados – poderá lançar novas perspectivas e luzes sobre as noções. Entretanto, a fidelidade e a autoridade serão discutidas, em especial, no capítulo 4, onde apresento o caso de João Ubaldo Ribeiro. Algumas questões podem ajudar a iluminar a reflexão acerca dessas noções, tais como:

• João Ubaldo Ribeiro introduz alterações permitidas por sua autoridade para compreender o texto original? O grau das transformações as faz diferentes daquelas introduzidas por tradutores profissionais?

• João Ubaldo se mantém próximo ao texto original, sendo fiel à sua manifestação linear?

Além das questões acima apresentadas, tentarei, sempre que possível, lançar luzes sobre os motivos que levam os autores estudados a traduzirem sua própria obra: o autor traduz seu original porque, sendo o dono do texto, entende que este não pode ou não deve ser traduzido por outro que não seja seu próprio autor? O autor “desconfia” de tradutores de maneira geral? O autor gosta de traduzir e prefere ver seu texto traduzido por si mesmo para que suas escolhas permaneçam inalteradas? O autor tem motivos mais práticos: ele precisa da tradução, pelas mais diversas razões, conhece os idiomas que a tradução envolve e então resolve enfrentar o desafio? Os relatos dos autotradutores e as pesquisas sobre a autotradução poderão fornecer respostas para tais questões.

(29)

1.4

A organização do trabalho

Para que a compreensão de um processo tão complexo como a autotradução tal como praticada por João Ubaldo Ribeiro seja possível, organizarei meu trabalho da seguinte forma.

No segundo capítulo, trato dos conceitos de autor-modelo e leitor-modelo. Com base nos trabalhos de Eco, The role of the reader (1979a), Lector in fabula (1979b) e Six walks in the ficctional woods (1994), discuto esses conceitos e procuro contribuir para uma revisão do primeiro. No mesmo capítulo, defino a metodologia adotada e descrevo o contexto da pesquisa. Aqui discorro brevemente sobre a validade do estudo de caso como metodologia de pesquisa (Bassey, 1999) e sua adequação para a investigação aqui proposta. Os estudiosos da tradução têm desenvolvido várias pesquisas desse tipo, o que comprova a relevância da aplicação desse modelo. Entre eles, cito as pesquisas sobre autotradução que listei acima, bem como os trabalhos de Marcia Martins (1999), sobre os Hamlets brasileiros; Teresa Carneiro Cunha (1997), sobre Mário de Andrade traduzido para o francês; Ofir Bergemann de Aguiar (1999), sobre o papel da tradução dos folhetins na introdução de um novo gênero literário no polissistema literário brasileiro; e muitos outros estudos sobre autores brasileiros em tradução, especialmente para o francês e o inglês. No segundo capítulo, trato também dos instrumentos utilizados em minha pesquisa: o modelo para a descrição de traduções de Lambert e van Gorp (1985) e a entrevista por e-mail (Mann & Stewart, 2000). A teoria dos polissistemas (Even-Zohar, 1990) e os DTS (Toury, 1995 e Lefevere, 1990) serão brevemente discutidos durante a apresentação do modelo de Lambert e van Gorp (1985). Considero tal discussão relevante, já que um estudo sobre a autotradução só será possível dentro de uma abordagem teórica que considera a tradução como um fato da cultura-alvo e, conseqüentemente, define a tradução como dependente do sistema a que se destina. Os estudiosos descritivistas não partem, portanto, de uma concepção a

priori da tradução, mas consideram como objeto passível de estudo todo texto que

for aceito como tradução por uma dada cultura (Carvalho, 2005, p. 40-41).

(30)

No terceiro capítulo, a autotradução é discutida a partir da análise de três teses recentes – Tanqueiro (2002), Jung (2002) e Filgueiras (2002) – e da análise do trabalho dos autotradutores Samuel Beckett, Vladimir Nabokov, Milan Kundera e dos grupos de autotradutores catalães e escoceses.

No quarto capítulo, trato da análise dos dados. Apresento uma breve biografia do autor brasileiro que é objeto de estudo desta tese, enfocando dados que considero relevantes para o processo da autotradução. Em seguida, apresento minha análise dos romances Sargento Getúlio / Sergeant Getúlio e Viva o povo

brasileiro / An invincible memory, escritos e traduzidos por João Ubaldo Ribeiro.

As considerações finais versam sobre as questões que se sobressaíram na discussão acerca do processo de autotradução em geral e de meu sujeito de pesquisa, em particular.

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2

Considerações teóricas e metodológicas

O leitor-modelo acha e atribui ao autor-modelo o que o autor empírico pode ter descoberto ao acaso. (Eco, 1994, p. 44)

2.1

Introdução

Neste capítulo, tenho por objetivo discutir o conceito de autor-modelo de Umberto Eco (1979a, 1979b, 1994), analisando-o criticamente e procurando contribuir para a compreensão e o aprofundamento do mesmo. Em seguida, defino a metodologia adotada e discorro brevemente sobre a validade do estudo de caso como metodologia de pesquisa (Bassey, 1999). Trato também do modelo investigativo proposto por José Lambert e Hendrik van Gorp (1985), da entrevista por e-mail como instrumento de pesquisa (Mann & Stewart, 2000) e, finalmente, da entrevista com o autor João Ubaldo Ribeiro.

Antes de iniciar minha análise do conceito de autor-modelo, considero importante ressaltar que ele se mostrou apropriado para o estudo de caso sobre o escritor brasileiro porque este vê o texto como o controlador do processo autotradutório. Percebi, durante a análise do caso ubaldiano feita durante a elaboração da monografia que descrevi brevemente no capítulo anterior, que, para João Ubaldo, o texto escrito é uma peça fundamental que deve ser respeitada pelo autotradutor. Assim, o conceito de autor-modelo de Umberto Eco, um construto do texto, me pareceu apropriado. Passemos então a explorá-lo.

2.2

O autor-modelo de Umberto Eco

Acredito que a teorização de Umberto Eco – semioticista, crítico literário, escritor e professor da Universidade de Bolonha – acerca do ato cooperativo da leitura ilumina a análise do trabalho do autor que traduz a própria obra. Entretanto, não pretendo aqui apresentar uma análise crítica acerca de todos os pressupostos teóricos que Eco apresenta e nos quais se apóia em suas análises.

(32)

Não pretendo discutir em detalhe todos os estágios do ato cooperativo da leitura, já apresentados e discutidos por Eco em The role of the reader (1979a) e Lector in

fabula (1979b). Entretanto, explicarei alguns dos conceitos de Eco no decorrer

desta seção, pois eles são fundamentais para minha discussão e para a análise dos dados que apresentarei no capítulo 4. São eles o autor e o leitor empíricos, a competência enciclopédica, as circunstâncias de enunciação, a noção de vazio e o sentido literal. Enfatizo, porém, que meu foco de interesse é o autor-modelo, delineado por Eco nos volumes citados acima e em Six walks in the ficcional

woods (1994). A definição do autor-modelo depende, contudo, do entendimento

da outra via desse ato cooperativo – o leitor-modelo.

Eco, que já havia apresentado o conceito de “obra aberta” em seu livro de ensaios Obra aberta (1962), inicia sua exposição do papel do leitor afirmando que “um texto ‘aberto’ não pode ser descrito como uma estratégia comunicativa se o papel de seu destinatário (o leitor, no caso do texto escrito) não tiver sido considerado no momento de sua geração como texto” (Eco, 1979a, p. 3). Está implícita nessa afirmação a crença na escrita como uma atividade comunicativa e no fato de que, já que é comunicação, será preciso um leitor que exerça o papel de destinatário da mensagem, sem que este seja, contudo, o único papel exercido por ele. Para Eco, além de destinatário, o leitor é também co-participante do processo gerativo de um texto, pois “o autor tem de prever um modelo de leitor (o leitor-modelo) supostamente capaz de interpretar o texto da mesma maneira que o autor previu durante o processo de geração do mesmo” (p. 7). Isto significa que o leitor-modelo funciona como agente propulsor da produção escrita, levando o autor a fazer escolhas apropriadas ao leitor que tem em mente e registrá-las no texto. O fato de que Eco atribui ao leitor-modelo a tarefa de “interpretar o texto da mesma maneira” pode levar-nos a crer que a interpretação é um processo de descoberta de significados estáveis contidos em um texto. Entretanto, veremos mais adiante que essa hipótese não será ratificada e que o leitor interfere, de certa forma, na própria criação na medida em que elabora significados ao seguir pistas registradas no texto, consciente ou inconscientemente, pelo autor do mesmo. Esclareço também que o leitor-modelo está presente no texto sob a forma de uma estratégia textual e que a interpretação consiste na reconstrução dessa estratégia, um processo potencialmente sem fim, mas que tem limites, já que haverá

(33)

interpretações que, por não serem sustentadas pela coerência interna do texto, serão vistas como “sem êxito” por Eco (1979b, p. 41).

Considero a função do leitor como co-participante do processo gerativo de um texto bastante pertinente e, de certa forma, semelhante àquela descrita por Henry Widdowson, lingüista aplicado inglês, em seu artigo intitulado “New starts and different kinds of failure” (1984, p. 54-67), em que ele apresenta sua visão da escrita como atividade comunicativa. Para Widdowson, o escritor imagina um diálogo entre ele e um leitor, e registra o resultado dessa interação em uma folha de papel. Assim, o leitor impulsiona o processo de escrita e, ao ler o texto, dialoga com o escritor recriando o significado, produzido pela interação entre os participantes do processo comunicativo mediado pelo texto escrito (p. 58). Em minha dissertação de mestrado, explorei exatamente o processo de interação de professores de Expressão oral e escrita6 com aprendizes de inglês como língua

estrangeira, mediado pelas redações produzidas por esses alunos como parte dos requisitos necessários para aprovação na disciplina Língua inglesa IV. Investigando os comentários escritos pelos professores nas redações e o processo de produção desses comentários através da utilização da técnica de protocolo verbal (Faerch & Kaasper, 1987), meu objetivo foi o de verificar se os professores assumiam o papel de leitores interessados na construção do significado (Antunes, 1994), ou, em outras palavras, na interação com os alunos, registrando esse interesse em seus comentários escritos. Os resultados de minha pesquisa introspectiva demonstram que a interação se dava durante o processo de leitura das redações, quando os professores faziam observações em relação aos esquemas de conteúdo ativados pelo texto, mas elas não eram registradas na forma de comentários às margens de cada redação. Os comentários escritos veiculavam, na grande maioria das vezes e como é freqüente, informações acerca de erros gramaticais e da forma considerada gramaticalmente correta do uso de determinadas estruturas. Concluí, com base em minha investigação, que: (i) o conhecimento sistêmico é visto como essencial pelos professores que tomaram parte de meu estudo; (ii) a correção gramatical é mais importante; e, (iii) a escrita de redações é tida como uma atividade que proporciona a prática de estruturas

6 Expressão oral e escrita é um componente da disciplina Língua Inglesa, que integra o currículo

do curso de licenciatura em Inglês e respectivas Literaturas, do Instituto de Letras da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

(34)

morfossintáticas. Minha dissertação demonstra também (à luz do arcabouço teórico que utilizo nesta tese) que há pistas ou marcas que sinalizam para o leitor maneiras de cooperar com o texto. Voltemos então a Umberto Eco.

Durante o ato cooperativo da leitura, o leitor empírico – o “sujeito concreto dos atos de cooperação” (Eco, 1979b, p. 45-46) ou, em outras palavras, qualquer leitor que seleciona um texto para leitura – constrói hipóteses acerca do leitor-modelo presente no texto e faz conjecturas acerca do autor-leitor-modelo (Eco, 1979b, p. 45-46), atribuindo a este, e não às intenções do autor empírico – o sujeito concreto do processo de escrita –, as pistas deixadas no texto. O leitor empírico é quem formula hipóteses sobre o autor-modelo que, por sua vez, não espera simplesmente que o leitor-modelo exista, já que nem sempre a competência do leitor será semelhante à do autor. Na verdade, “todo ato de leitura é uma transação difícil entre a competência do leitor e o tipo de competência que um texto postula para ser lido de maneira econômica” (Eco, 2000, p. 84). Por isso, o texto deve “[contribuir] para produzi-la” (p. 40)7.

A competência do leitor, ou sua competência enciclopédica, é uma noção importante que passo a definir agora. Ela abrange “um complexo sistema de códigos e subcódigos” (Eco, 1979b, p. 60): um léxico sob a forma de dicionário básico elementar e que permite que o leitor identifique as propriedades semânticas das expressões; conhecimentos gramaticais, relativos aos operadores de coesão textual; as encenações comuns (conhecimento organizado de mundo partilhado pela maior parte dos membros de uma cultura) e intertextuais (o conhecimento que o leitor tem de outros textos e que nem todos os membros de uma determinada cultura possuem); as seleções contextuais e circunstanciais que permitem, por exemplo, saber quando e em que circunstâncias, uma dada expressão é usada não em sentido literal, mas em sentido retórico; e, por fim, uma dada perspectiva ideológica. Ou, nas palavras de Rabenhorst, podemos dizer que a competência enciclopédica abrange o “registro de funcionamento de uma língua em toda a sua complexidade, contemplando regras de significação e instruções pragmaticamente orientadas” (2002, p. 8). Considero também que a competência enciclopédica abrange um conjunto de competências – competência gramatical, sociolingüística, discursiva e textual – além do conhecimento prévio do leitor

7 Um exemplo da construção da competência do leitor-modelo está em Lector in fabula (Eco,

1979b, p. 40).

Referências

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