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O REALISMO NO CINEMA: ANDRÉ BAZIN E JEAN RENOIR 1. Julia Fagioli 2

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O REALISMO NO CINEMA: ANDRÉ BAZIN E JEAN RENOIR1

Julia Fagioli2

Resumo: Discute-se neste trabalho a teoria de André Bazin, sobre o cinema realista e como essas

teorias podem ser claramente identificadas no cinema que Jean Renoir fez. O objetivo é caracterizar o caráter inovador da obra de Renoir e, isso é feito através da análise de dois filmes que são particularmente experimentais. O primeiro deles é A Regra do Jogo (1939), pela utilização da profundidade de campo e do plano seqüência e o segundo é O Testamento do Doutor Cordelier (1959), pela captação de imagem com câmeras múltiplas, que criam um efeito de “imagem ao vivo”. Além disso, pretende-se mostrar que o realismo baziniano, ainda hoje, se faz fortemente presente nas produções e nos estudos cinematográficos.

Palavras-Chave: realismo, André Bazin, Jean Renoir, imagem ao vivo

.

1. Introdução

O objetivo deste trabalho é, num primeiro momento, retomar as teorias do cinema realista como postuladas, principalmente, por André Bazin (1918-1958). Posteriormente, pretende-se mostrar o caráter inovador do cinema de Jean Renoir (1894-1979), fundamental para a compreensão das formulações de Bazin. Renoir, além de precursor do cinema realista, soube acompanhar em sua obra os avanços tecnológicos que influenciaram o cinema, destacadamente, a televisão, sua linguagem e suas técnicas. Trataremos desse importante aspecto na parte final deste artigo.

Nessa trajetória serão analisados dois filmes de Renoir que trazem inovações técnicas que repercutem em uma linguagem nova para o cinema. O primeiro deles é A Regra do Jogo (La Règle du Jeu, 1939), em que utiliza-se pela primeira vez de forma marcante o plano seqüência e a profundidade de campo. É este o filme que Bazin considera a obra prima que inaugura o realismo. O segundo filme a ser analisado é também de Renoir, mas realizado vinte anos depois. Em O Testamento do Doutor Cordelier (Le Testament du Docteur

Cordelier, 1959), filme realizado para a televisão francesa, Renoir novamente experimenta

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Trabalho apresentado ao Grupo de Trabalho Estudos do Audiovisual, do II Ecomig, UFMG, Belo Horizonte, setembro de 2009.

2 Julia Fagioli é mestranda do Programa de Pós Graduação em Comunicação pela Universidade Federal de

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uma nova linguagem ao utilizar técnicas características da linguagem da televisão, permitindo um diálogo entre os dois meios.

Bazin e Renoir possuem uma relação em certa medida complementar no que diz respeito ao realismo – um o pensa e o outro o realiza. Isso ocorre pois o cinema de Jean Renoir inspirou as teorias de Bazin, ao mesmo tempo que as críticas e idéias de Bazin em relação o cinema influenciaram as produções de Renoir. O realismo de Renoir o orientará em direção à abertura da possibilidade de incorporação de características da linguagem da televisão, tal como a imagem ao vivo, tornando-o o precursor dessa técnica.

Um dos principais artifícios da imagem televisiva é a possibilidade de exibir a imagem ao vivo, e Renoir nos mostra uma linguagem que produz um efeito de imagem ao vivo no cinema, com a utilização de técnicas de captação com câmeras múltiplas, que é exatamente o que cria esse efeito. Portanto, pretende-se mostrar como a imagem ao vivo e o tempo real no cinema estão enraizados no realismo e a importância das idéias de André Bazin para o cinema do real.

2. O realismo de André Bazin

André Bazin tinha formação em filosofia e literatura mas, a partir de 1942, apaixonou-se pelo cinema e passou a apaixonou-se dedicar somente a ele. Organizou um grupo de estudos, criou um cineclube e, em 1951, criou a Revista Cahiers du Cinéma, que se tornaria a mais importante revista de crítica de cinema do mundo, o que possibilitaria o surgimento de uma nova corrente de estudos cinematográficos.

Até meados dos anos 1920, defendia-se um cinema “puro”, que tem como características a fidelidade ao roteiro e a busca por uma plástica perfeita, através da montagem. As idéias de Bazin rompem com esse purismo herdado dos teóricos da vanguarda e nos mostram a possibilidade de um cinema realista. A maior parte de sua teoria está em suas críticas e debates sobre filmes, ela se dá de forma diluída nesse tipo de trabalho; não há uma obra que a contenha de forma organizada.

A câmera possui capacidade mecânica de filmar a realidade e produzir uma imagem do mundo sem a participação direta do homem; suas aptidões são semelhantes às do olhar. No entanto, é necessário relativizar essa idéia, uma vez que, para Bazin, o realismo não se

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resume apenas à técnica, ele diz respeito a um estilo. Para este autor, o ator é mais importante que o personagem e a cena é mais importante que o roteiro. A idéia central dos escritos de Bazin é que o cinema cria epifanias do real; ele não constrói uma realidade, mas permite vê-la.

Uma das principais premissas do realismo é a continuidade, como explica Ismail Xavier (2005):

Sua [de Bazin] teoria do cinema será a proclamação do reinado da continuidade, tomada em seu sentido mais absoluto: não apenas no nível lógico (consistência no desenvolvimento das ações), mas também no nível da percepção visual (desenvolvimento contínuo da imagem sem cortes). (XAVIER, 2005: 79).

Esse efeito de continuidade se dá pela utilização do plano seqüência, uma vez que ele confere duração à cena e reproduz melhor a passagem do tempo e a representação do espaço. Aliada ao plano seqüência, a profundidade de campo acentua essas características na cena, tornando-a mais próxima da realidade. São recursos utilizados para filmar a aparência do mundo e a relação dos personagens com as coisas. Para Xavier, este é um exemplo de uma tradução da técnica na linguagem. É nesse sentido que Bazin se opõe à utilização da montagem como artifício responsável pela ilusão cinematográfica. O autor afirma também que quando são filmados dois acontecimentos que possuem grande relevância dentro da narrativa, e que se relacionam, a montagem é proibida, o que torna essencial o plano seqüência.

Quando o essencial de um acontecimento depende de uma presença simultânea de dois ou mais fatores da ação, a montagem fica proibida. Ela retoma seus direitos a cada vez que o sentido não depende mais da contigüidade física, mesmo se ela é implicada (BAZIN, 1991: 62)

O plano seqüência possibilita ver além daquilo que se via antes no cinema, que era o resultado de uma montagem que se pretendia “invisível”. Esse tipo de montagem, para Bazin, faz com que o espectador simplesmente adote o ponto de vista do diretor. Já no realismo baziniano, o espectador adquire poder de escolha ao assistir filmes que utilizam profundidade de campo e plano seqüência. A decupagem clássica não dá margem a ambigüidades, enquanto no cinema realista há mais democracia e a participação do espectador é essencial,

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uma vez que há mobilidade no campo e mostra-se mais de um acontecimento ao mesmo tempo, o que permite que o espectador escolha de forma consciente ou não o direcionamento de sua atenção.

Para Bazin, o cinema é naturalmente capaz de captar o mundo que flui a nosso redor, ele admite e persegue o acaso. O interesse desse autor não baseia-se em uma realidade duplicada no cinema, mas em tornar o real mais significativo, conhecê-lo melhor. As técnicas de transparência3

Stam faz essa afirmação ao se referir à idéia de Bazin de que a imagem das coisas é a imagem da sua duração, o que nos remete novamente à importância que possui o plano seqüência e a profundidade de campo. O filósofo Gilles Deleuze (1990) – leitor de André , por exemplo, não são utilizadas no realismo, pois nesse caso, o personagem não constrói uma relação com o ambiente. A filmagem in loco permite o acaso, que pode ser incorporado ao filme, proporcionando ao personagem uma relação direta com o ambiente. As impurezas que a transparência tem como objetivo evitar são características da realidade e podem acrescentar significado ao filme.

Outra forte característica do realismo baziniano é a presença de temas do cotidiano. O cinema possibilita um registro do cotidiano imprevisível e de um mundo em devir. De acordo com Robert Stam (2003), “os “realistas”, que entendiam que sua especificidade artística (bem como sua raison d’être social) era de oferecer representações confiáveis da vida cotidiana” (STAM, 2003: 91). Para o autor, essa característica garante a especificidade artística do cinema realista. Além disso, o objetivo era que, no cinema, os fatos registrados pela câmera, parecessem ser contados por eles mesmos, aproximando a arte e a vida real.

Bazin acreditava que a câmera é que garante a objetividade do cinema, no entanto, essa não é apenas uma capacidade mecânica, mas também uma estética democrática e igualitária, o que confere credibilidade à imagem cinematográfica e permite que os acontecimentos falem por si mesmos. Sobre isso, Stam afirma ainda que:

É essa “impessoalidade” que torna os filmes, para Bazin, comparáveis ao processo de embalsamento e “mumificação”. O cinema materializa um desejo profundamente enraizado de substituir o mundo por seu duplo. Combina a mimese fotográfica estática à reprodução do Tempo. (STAM, 2003: 93).

3 A transparência é uma técnica utilizada para cenas em ambientes exteriores. Filma-se o local em que se passa a

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Bazin – fez importantes contribuições ao estudo do cinema ao afirmar que a imagem-tempo é o ato principal do cinema e a sua organização temporal se dá através da montagem. O autor caracteriza o tempo como uma representação indireta da montagem que, por sua vez, conecta as imagens, pois é ela que nos dá uma imagem do tempo. O autor afirma ainda que o tempo é pleno e que a duração é uma representação daquilo que permanece. Sobre a profundidade de campo, Deleuze explica que ela tem como função a exploração de regiões do passado.

Queremos dizer que a profundidade de campo cria certo tipo de imagem-tempo direta, que se pode definir pela memória, pelas regiões virtuais do passado, pelos aspectos de cada região. Seria menos uma função de realidade que uma função de memorização, de temporalização: não exatamente uma lembrança, mas “um convite a se lembrar...”. (DELEUZE, 1990: 134)

Assim, o objetivo não é alcançar um real que existe independente da imagem, mas algo que não se separa da imagem, criando uma apresentação direta do tempo. Para entender melhor tal proposta, é preciso recorrer à análise que Deleuze faz sobre as teses de Bergson sobre o tempo, de uma duração subjetiva: “o passado coexiste com o presente que ele foi; o passado se conserva em si, como passado em geral (não-cronológico); o tempo se desdobra a cada instante em presente e passado, presente que passa e passado que se conserva” (DELEUZE, 1990: 103).

Todas as características descritas acima, de acordo com André Bazin, conferem realismo a um filme. No entanto, o autor fez uma abordagem fenomenológica do cinema, o que implica que não há em seu trabalho uma definição exata do que é o realismo no cinema. Bazin postula suas idéias a partir da existência dos filmes e não anteriormente a eles. Ele os assiste, os analisa e ao perceber tendências, formula sua teoria. A concepção de realismo foi desenvolvida através da descrição de filmes e do trabalho de diretores. Nesse sentido, um dos mais importantes diretores foi Jean Renoir, filho do pintor impressionista Pierre-Auguste Renoir. Para Bazin, Renoir (re)descobre o mundo através do cinema. E foi a partir de seus filmes que Bazin formulou grande parte de sua teoria, uma vez que afirmava que Renoir foi precursor de diversas técnicas de linguagem do cinema. Pode-se dizer assim, sobre a grande afinidade entre o crítico e o diretor, que ao mesmo tempo em que os filmes de Renoir são matéria das teorias de Bazin, essas teorias iluminam o cinema de Jean Renoir.

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3. O realismo de Jean Renoir: da Regra do Jogo ao Testamento do Doutor Cordelier

Os primeiros filmes de Jean Renoir foram Cathérine e La Fille d’Eau de 1924 e, o último foi Le Petit Thèâtre de Jean Renoir de 1969. Apesar de ter começado sua carreira nos anos 1920, seu trabalho só foi de fato reconhecido nos anos 1950. Renoir foi o precursor da utilização da profundidade de campo e do plano seqüência e é em A Regra do Jogo (La Règle

Du Jeu, 1939) – trabalho considerado por Bazina obra prima do diretor – que essas técnicas ganham força pela primeira vez. Segundo André Bazin, no artigo Renoir français, publicado na Revista Cahiers du Cinéma em 1952, “este ponto de vista realista que ultrapassa o conteúdo da imagem para interessar as estruturas mesmo da encenação, conduziu Renoir, dez anos de Orson Welles, à profundidade de campo” 4

4 Trecho retirado do artigo Renoir français, traduzido por Mário Alves Coutinho, p. 43. Impresso pela primeira

vez na Revista Cahiers du Cinéma, número 8, janeiro de 1952. .

A profundidade de campo em Renoir permite uma unidade maior entre o cenário e atores, dá mobilidade aos personagens e, acima de tudo, possibilita uma sensibilidade do espectador frente ao mundo, através da relação espaço-temporal que cria. Ela confere duração à cena e, com isso, liberdade de mise-en-scène aos personagens.

Além da profundidade de campo e do plano seqüência, o realismo que André Bazin tanto admirou no cinema de Renoir se deve à relação que criava entre atores e personagens e entre roteiro e cena. O diretor tem amor pelos atores que escolhe e deixa o roteiro de seus filmes aberto a transformações e a imprevistos. Ao mesmo tempo em que tem uma visão crítica de seus personagens, Renoir os ama. Se distancia e vê as fraquezas e limites de seus personagens. Para ele um roteiro pronto não significa um filme pronto, o que cria o que Bazin define como um “movimento dialético do realismo”, em que a cena a fazer é diferente da cena que, de fato, se faz. Essa característica pode ser percebida com facilidade na seqüência da festa no castelo em A Regra do Jogo, em que a câmera se torna invisível e adquire uma função de testemunha dos acontecimentos e das cenas. Em um dado momento, nessa festa, há um plano seqüência de cerca de um minuto em que um garçom atravessa o salão e nesse percurso vários acontecimentos se desenrolam em cena até o final do plano em que o garçom retorna ao ponto inicial.

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A Regra do Jogo é um filme moderno desde o seu primeiro plano em que é mostrada

uma emissão de rádio. Ele estabelece uma relação direta com a época, com a sociedade e os personagens, é um filme moderno, que percebe um sentimento comum da sociedade, marcado pelo medo daquilo que está por vir. A obra retrata a nobreza, a burguesia e o operariado na França de 1939; fala das minorias exemplificadas nos personagens. Christine é a estrangeira, ela vem da Áustria, Marquês é um judeu (na iminência da eclosão da Segunda Guerra Mundial), há ainda os criados e Octave, que não consegue sobreviver sem a ajuda dos amigos. Além disso, mostra a violência entre os homens e a sua crueldade, o que aconteceria na guerra que estava prestes a acontecer. Assim, Renoir constrói uma consciência de sua época.

Bazin entende da seguinte forma essa escolha de Renoir em relação ao roteiro e os personagens: “Renoir não constrói seus filmes a partir de situações e desenvolvimentos dramáticos, mas sobre seres, coisas e fatos; esta constatação, que explica sua maneira de dirigir os atores e de tratar o roteiro nos dá também a chave de sua encenação” 5

Admiramos nele não somente a expressão mais acabada da escola realista francesa antes da guerra, da qual Renoir é o maior representante, mas ao mesmo tempo e mais ainda a prefiguração dos elementos os mais originais da evolução cinematográfica dos quinze anos seguintes. Esta mensagem estética ainda não está esgotada.

. Em Renoir, esta chave está na significação que o cinema realista dá à realidade de fato, não como uma restituição fiel, mas como um resgate da sua singularidade. São esses os motivos que levam Bazin a considerar Jean Renoir o maior realizador francês e A Regra do Jogo uma obra prima. Bazin afirma, em uma apresentação do filme:

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Através dessa fala de Bazin é possível perceber que o crítico, além de perceber antes da maioria a grandiosidade de A Regra do Jogo – que foi um fracasso comercial quando lançado em 1939 – prevê ainda a tendência à inovação do trabalho de Jean Renoir. Assim, é possível prosseguir na análise do trabalho de Renoir e seu caráter experimental na técnica e na linguagem.

5 Ibidem, p. 39. 6

Texto de André Bazin, traduzido por Mário Alves Coutinho. Nota de François Truffaut: Este texto é a retranscrição de uma apresentação de um trecho de A Regra do Jogo provavelmente diante de sócios de um cine-clube. Não encontramos nem data nem o lugar desta apresentação, mas publicamos este texto porque temos a certeza que ele foi relido e remanejado por Bazin em 1957, depois do lançamento de Elena et les Hommes.

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Em 1940, Renoir se muda para os Estados Unidos por causa da guerra, se torna um cidadão americano, mas retorna à Europa nos anos 1950. E é justamente na passagem dos anos 1950 para os anos 1960 que ocorre o fim do cinema clássico e o início do cinema moderno, época em que surge também a televisão. Este é um cinema do pós-guerra, aquele idealizado por Bazin nos Cahiers du Cinéma, o cinema de “autor” ocorre entre os anos 1945 e 1975 e abre espaço à Nouvelle Vague.

É no cinema moderno que se passa a incorporar características da televisão, criando um forte diálogo entre esses dois meios. Isso acontece principalmente no que diz respeito à linguagem e a percepção temporal, através da interpelação direta do espectador, interrupção e frontalidade, como explica Philippe Dubois (2004): “O importante é notar que nesta época, incontestavelmente, os efeitos de televisão sobre o cinema “moderno” concernem sobretudo às estratégias enunciativas e aos dispositivos de encenação da linguagem”. (DUBOIS, 2004: 181).

Em 1959 – um ano após a morte de André Bazin – Renoir realiza mais um filme inovador, ao trazer para o cinema características de linguagem e técnicas de filmagem próprias da televisão. O filme é O Testamento do Doutor Cordelier (Le Testament du

Docteur Cordelier, uma adaptação do romance The strange case of Dr. Jekyll and Mr. Hyde,

de Robert Louis Stevenson. No filme, realizado para a televisão francesa, a RTF, um famoso psiquiatra abandona seus pacientes para se dedicar apenas a seus experimentos. Dr. Cordelier descobre uma poção que permite se livrar de sua consciência, transformando-o em Opale.

O Testamento do Doutor Cordelier começa com a chegada de Renoir à emissora RTF;

ele entra em um estúdio de televisão para gravar um programa do qual é o apresentador. Renoir narra o início da história e durante essa narração, a imagem de uma pequena tela dentro do estúdio toma toda a tela e é aí que começa de fato a história de Dr. Cordelier. Nesse fato, pode-se perceber, assim como em A Regra do Jogo, a importância que Renoir confere à modernidade e à tecnologia, ao mostrar o funcionamento e os bastidores de um estúdio de televisão. Além disso, trata questões relacionadas aos avanços científicos e a uma possibilidade de controle do cérebro humano e da consciência dos indivíduos.

O filme é realizado com técnicas de filmagem com câmeras múltiplas, o que o assemelhava à direção de TV e criava efeitos similares aos de captação ao vivo. Sobre isso, Dubois afirma que: “O cinema abre a possibilidade de ver tudo o tempo todo de todo lugar e

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quase simultaneamente” (DUBOIS, 2004: 189). O efeito ao vivo criado pela captação em câmeras múltiplas permite obter várias versões de um mesmo acontecimento; outros procedimentos da televisão também permitem continuidade da cena, interpretação na duração e tomadas longas. No entanto, Renoir não deixa de explorar as técnicas que para Bazin eram essenciais para conferir realidade à cena – o plano seqüência e, principalmente a profundidade de campo.

A utilização de mais de um ângulo pode ser claramente percebida em alguns momentos, como por exemplo, no encontro de Opale com Dr. Severin, a única pessoa que sabia em que consistiam os experimentos de Dr. Cordelier; no momento em que os empregados de Dr. Cordelier estão todos na sala de sua casa escutando os gritos vindos do laboratório e, principalmente, no momento final em que Dr. Cordelier revela toda a verdade a seu advogado e amigo, Maître Joly.

Apesar de utilizar as técnicas da televisão, Renoir filmou em película e, em apenas catorze dias, um tempo muito pequeno para se filmar um longa-metragem. No entanto, ele tinha várias versões das mesmas cenas, e com isso fazia quase que uma montagem ao vivo. Segundo Dubois, ele chegou a utilizar oito câmeras e doze microfones ao mesmo tempo. É este método que permite a duração e a continuidade da cena. De acordo com Dubois:

Iniciada a cena, é preciso ir até o fim, se agüentar nos encadeamentos, deslizar pelas imbricações técnicas, adiar o tempo todo a catástrofe que se crê iminente, experimentar esta tensão que une a equipe na filmagem e acaba também por agir sobre o espectador. (DUBOIS, 2004: 206).

São essas características que possibilitam criar um efeito de imagem ao vivo, mesmo em imagens feitas em película. Renoir não repetia as tomadas, pois ao vivo não é possível fazer isso. Essa maneira de se fazer televisão vem do fato de que no início, a televisão só captava as imagens ao vivo – até 1960 – e não possuía meios para arquivá-las. De acordo com Arlindo Machado (2005), “a televisão nasceu ao vivo, desenvolveu todo seu repertório básico de recursos num momento em que ainda operava ao vivo e esse continua sendo seu traço distintivo mais importante dentro do universo audiovisual”. (MACHADO, 2005: 125).

O hibridismo entre o cinema e a televisão trouxeram renovação ao cinema e contribuíram para um cinema ainda mais realista. A captação direta de som e imagem tomou

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força na década de 60, afirmando o cinema, a televisão e o vídeo7

Assim pretende-se explicar que, como nas idéias de Bazin, essa “inscrição verdadeira” e o realismo estão relacionados não somente à impressão do mundo, mas a um tempo comum como um fluxo audiovisual. Como analisa Ivana Bentes (2003), esse fluxo define a linguagem do vídeo e da televisão e, ao mesmo tempo, proporciona ao cinema “a fluidez do real e do aqui e agora”. Esse fato nos remete novamente às idéias de André Bazin, como nos lembra Ismail Xavier, ao dizer que:

A realidade da coisa transfere-se para sua imagem (este é o modelo) e, na reprodução, dada a impassividade da câmera, esta imagem é oferecida livre de preconceitos. Resultado, a coisa aparece virgem e o fato depurado, revelando aquilo que eles são em si mesmos. Temos uma imagem “natural” de um mundo que não sabemos ou não podíamos ver (Bazin não se refere aqui a regiões intangíveis como o mundo microscópico, mas à realidade de todo dia). (XAVIER, 2005: 82-83)

Assim, a imagem com um “efeito de ao vivo”, mesmo não vista por Bazin, uma vez que o crítico faleceu em 1958, pode ser associada às suas teorias, pois ela torna o cinema ainda mais impuro, aberto ao acaso e, conseqüentemente, mais verossímil, constituindo um testemunho da realidade. E é nesse sentido que podemos reafirmar que Jean Renoir trouxe renovação ao cinema, como Bazin conseguiu prever ao notar sua genialidade. Jean-Louis Comolli (2008), que foi redator-chefe da Revista Cahiers du Cinéma entre 1966 e 1971,cineasta, teórico e crítico de cinema, traz novamente à tona a discussão sobre a realidade apropriada e retratada no cinema, ao afirmar que o cinema está sempre sob o risco

do real, que ele ameaça a cena. Este autor traduz o realismo de André Bazin à idéia de

“inscrição verdadeira”:

Sabemos que um primeiro nível (o grau zero) do realismo cinematográfico não é senão a relação – real, sincrônica, cênica – do corpo filmado com a máquina filmadora: chamo de “inscrição verdadeira” e “cena cinematográfica” à especificidade do cinema de colocar junto, em um mesmo espaço-tempo (a cena) um ou vários corpos (atores ou não) e um dispositivo maquínico, câmera, som, luzes, técnicos. (COMOLLI, 2008: 219).

7 O vídeo surge a partir da metade dos anos 1960 e as primeiras experiências do cinema com o vídeo ocorrem

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entre a ação e seu registro, à simultaneidade. Para Comolli (2008), o cinema vai de encontro ao mundo, está em fricção com ele. Bazin afirmava que o cinema realista não tem como objetivo retratar o mundo exatamente como ele é, mas sua singularidade e, segundo Comolli, essa singularidade da realidade no cinema está naquilo que não é visível: na passagem do tempo e na sua percepção. O cinema filma a relação das coisas com o tempo.

4. Conclusão

Ao associarmos o realismo teórico de Bazin ao cinema realista produzido por Renoir, compreendemos melhor dois momentos distintos em que a inovação técnica possibilita novas linguagens e modos diferentes de se perceber o cinema: o primeiro deles em A Regra do

Jogo, pela utilização do plano seqüência e da profundidade de campo. O segundo, n’O Testamento do Doutor Cordelier, com a captação com câmeras múltiplas e o efeito de imagem ao vivo.

O realismo baziniano ainda hoje se faz fortemente presente nas discussões em torno da produção cinematográfica. Para Alain Bergala, “mesmo se ele morre, está claro que todos os filmes que vão ser feitos imediatamente depois é exatamente como se ele não estivesse morto, eles representam a continuidade de seu pensamento”8

5. Bibliografia:

. É importante notar também as fundamentais contribuições do cinema de Renoir à evolução da linguagem cinematográfica, como este diretor soube trazer não só novas técnicas, mas também, novas maneiras de se fazer e se perceber o cinema, que até hoje permeiam a produção e os estudos cinematográficos.

BAZIN, André. O cinema. São Paulo: Brasiliense, 1991.

BENTES, Ivana. Vídeo e Cinema: rupturas reações e hibridismo. In: Arlindo Machado. (Org.). Made in Brasil - Três Décadas do Vídeo Brasileiro. São Paulo: Editora Iluminuras Ltda, 2007, v. , p. 111-128.

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COMOLLI, Jean-Louis. Ver e poder. A inocência perdida: cinema, televisão, ficção, documentário. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008.

DUBOIS, Philippe. Cinema, vídeo, Godard. São Paulo: Cosac Naify, 2004.

DELEUZE, Gilles. A imagem-tempo. São Paulo: Brasiliense, 1990.

MACHADO, Arlindo. A televisão levada a sério. São Paulo: SENAC, 2005. 4ª Ed.

STAM, Robert. Introdução à teoria do cinema. Campinas: Papirus Editora, 2003.

WOLLEN, Peter. Paris Hollywood: writings on film. London: Verso, 2002.

WOOD, Robin. Personal Views, explorations on film. London: Gordon Fraser, 1976.

XAVIER, Ismail. O discurso cinematográfico: a opacidade e a transparência, 3ª edição revista e ampliada. São Paulo: Paz e Terra, 2005.

Referências

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