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ESTRIGAS: O NARRADOR DE UMA HISTÓRIA DA ARTE NO CEARÁ

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ESTRIGAS: O NARRADOR DE UMA HISTÓRIA DA ARTE NO CEARÁ Luiza Helena Amorim Coelho Cavalcante

Mestranda em História Social (UFC). Bolsista CAPES.

luiza.helena.amorim@gmail.com

RESUMO

Em 1951, o dentista e artista cearense Nilo de Brito Firmeza, mais conhecido como Estrigas, inicia uma série de trabalhos de memória sobre a História da Arte no Ceará, partindo de experiências pessoais e de outros artistas, com quem conviveu ou pesquisou. Ainda hoje, esses materiais arquivados ou produzidos por ele, são referências para os pesquisadores. Ele era o que Ricardo Basbaum (2013) conceituou por artista-etc, aquele cujo trabalho desdobra-se em muitas camadas, estabelecendo conexões com a “arte&vida e arte&comunidades”. No caso de Estrigas, além de aquarelas e telas de pinturas à óleo, dedicou-se à outras atividades, todas de alguma forma, interligadas à memória: crítica de arte, arte educação, organização de exposições, museologia, entre outras. Destacamos nesse percurso, a escrita e publicação de livros, entre eles, diários, que tratam de uma memória coletiva; publicação de artigos e colunas na imprensa local; realização de entrevistas com artistas; arquivamento de catálogos de exposição e recortes de jornal que são disponibilizados no Centro de Documentação, do museu que ele fundou com a esposa e também artista, Nice Firmeza, o Minimuseu Firmeza. O que levou o artista a esse comportamento narrativo? O que esses trabalhos de memória nos informam sobre a história da arte no Ceará? Partindo dessas perguntas e de outras, esse artigo apresenta discussões que estão presentes na Dissertação de mestrado, em andamento, que tem apoio do CAPES. A presente pesquisa está inserida no contexto de uma História dos Museus e do Patrimônio, assim, interessa-nos compreender os papéis de Estrigas no mundo das artes.

Palavras-chave: Estrigas, Minimuseu Firmeza, Museologia, Patrimônio, Memória.

TRAJETÓRIA DE UM ARTISTA-ETC

Em uma entrevista veiculada no documentário “Estrigas”, produzido pela TV Assembleia, em 2019, Nilo de Brito Firmeza, mais conhecido como Estrigas afirmou: “A arte tem essa coisa, de chamar a gente e, a gente não sabe quem está chamando.” O vídeo feito em comemoração ao centenário do artista cearense, falecido em 2014, fornece

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algumas informações para se compreender como se deu esse encontro com a arte e como ele respondeu ao convite. Aprofundando questões sobre a participação dele, na cadeia operacional da museologia e do patrimônio, interessa-nos questionar e tentar responder : Que influências ele teve ao optar pelo mundo das artes (BECKER, 2010)? Quais motivos levaram-no a se colocar como um narrador da história da arte no Ceará? De que forma o gesto patrimonial de e guardar essa história da arte e criar um museu repercutiu ?

Nilo de Brito Firmeza nasceu em Fortaleza, em 19 de setembro de 1919, caçula de treze irmãos. Filho do Sr. Hermenegildo Brito Firmeza, que era rábula, professor, político e jornalista e d. Bárbara Brito Firmeza. Cresceu em um lar de muita cultura: dispunha de uma boa biblioteca do pai; um dos irmãos, o Milton Mozart, frequentou a Escola Nacional de Belas Artes, sendo contemporâneo de Portinari. O apelido Estrigas foi uma brincadeira de adolescente, quando era estudante secundarista do Liceu. Estriguini era um malabarista muito forte, de um circo que chegou à Fortaleza, os rapazes ao verem o novato e franzino Nilo, deram-lhe tal alcunha. Quando tornou-se artista, passou a assinar Estrigas.

Entretanto, antes dessa identidade artística, Nilo teve outra profissão: formou-se em Odontologia, em 1947, por orientação do pai, pois, já havia muitos advogados na família. Trabalhou em consultório próprio, depois foi nomeado dentista pela Secretaria de Educação, atendendo em grupos escolares, no Serviço de Educação Odontológica Escolar. A partir do envolvimento com as artes, na década de 1970 passou a exercer atividades educativas e artísticas em espaços, como o Passeio Público, sendo “emprestado” enquanto servidor público, para a exercer funções diferentes das de dentista, até chegar ao ponto de sair do consultório de vez.

Nilo já apreciava arte, frequentava exposições na cidade, lia livros da rica biblioteca do pai, gostava de rabiscar a partir de ilustrações de revistas e até conhecia alguns artistas que frequentavam o sítio da família, no bairro Mondubim. De acordo com Estrigas, “Antes de penetrar no mundo artístico eu gostava de ler. Eu gostava da história. Eu não via tanto os artistas, eu via mais a história, e era isso que me levava mais para a arte” (CARVALHO, 2019, p.31). Todas essas influências corroboraram para que ele se integrasse à Sociedade Cearense de Artes Plásticas (SCAP), matriculando-se no Curso

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Livre de Desenho e Pintura. Passou a ler também sobre crítica de arte e frequentar os espaços onde os artistas se reuniam, como os cafés: “Isso foi me dando um lastro de conhecimento e desenvolvendo, ainda mais, o desejo de melhorar o que estava sendo absorvido em conversa e leitura” (CARVALHO, 2019, p.32).

Ao referir-se à SCAP faz-se necessário reconhecer a primeira entidade representativa de artes plásticas da cidade, o Centro Cultural de Belas Artes (CCBA), fundada pelo advogado, artista e líder Mário Baratta, em 1941, o primeiro “despertar dos artistas de um modo geral” (ESTRIGAS, 2012, p.15). Ele foi responsável por realizar os primeiros grandes salões de arte da cidade. Em 1944, o CCBA é extinto e Baratta funda a SCAP, dessa vez com o apoio de jovens escritores que participavam do grupo Clã (Clube de Literatura e Arte). Ela seguia os passos da antiga entidade, reunia os artistas, promovia uma profissionalização já que não havia na capital escola de belas artes, assim os mais experientes ensinavam os artistas mais jovens, através das práticas nos ateliês coletivos.

Eles promoviam animadas caravanas para pintar ao ar livre, no Poço da Draga, Pirambu, Montese, entre outros lugares. De acordo com Carvalho (2019, p.19), eles queriam trazer a liberdade de criação, com o “intuito de implodir o academicismo da arte confinada aos ateliês”. As pinturas e desenhos feitas durante esses passeios seguiam o que eles chamavam de “impressionismo”, que na concepção deles era cada um registrar uma cena daquele lugar a partir das impressões pessoais e técnicas livres. Essa forma de compartilhar a arte, que tanto influenciou nos projetos futuros de Estrigas, pode ser analisada a partir do conceito de mundo das artes e da Teoria da Ação Coletiva, de Howard Becker (2010), que traz a noção do processo artístico como algo a ser realizado a partir de uma ampla rede de cooperação.

Para Estrigas, a experiência da SCAP que durou de 1944 a 1958 representou a fase renovadora da arte cearense a partir de novas técnicas, novos temas. A Sociedade patrocinou exposições e assumiu a organização do Salão de Abril o mais importante evento de artes do estado, ainda hoje. A Sociedade foi responsável pelo segundo Salão de Abril, realizado em 1946, ao décimo quarto em 1958. Participar dessa atmosfera de criação, foi tão inspiradora, que ele inicia a escrita de um diário pessoal, onde passou a

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fazer anotações sobre os livros que leu, impressões sobre trabalhos artísticos, visitas que recebeu, além da pauta cultural da cidade de Fortaleza, a partir das exposições e salões, ações da SCAP, entre outros temas. Este foi seu primeiro trabalho de memória que viria a ser revisitado e publicado em dois volumes, posteriormente. Estes registros são a principal fonte, para a escrita deste artigo, que nos permitem compreender a atuação de Estrigas enquanto membro cooperador dos mundos da arte, que integra e participa das atividades da cadeia operatória do patrimônio/museologia, fazendo parte da organização do patrimônio cultural.

TRABALHOS DA MEMÓRIA

No intróito do livro “A fase renovadora na arte cearense”, Estrigas comenta sobre como percebeu a necessidade de começar a registrar a história da arte no Ceará. Um dos pontos principais foi a constatação da fragilidade de como “guardar esse passado”, “de uma fase heroica artisticamente valiosa que levou o Ceará ao plano internacional da arte” (ESTRIGAS, 1983, p.10). Em 1958, as atividades da SCAP são encerradas por dificuldades financeiras, falta de apoio e dispersão dos artistas, entre outras questões. Como os scapianos não dispunham de um lugar, para guardar os pertences da entidade, tiveram que buscar um lugar provisório, até resolverem o problema da falta de uma sede própria ou alugada. O acervo, que incluía documentos, obras e livros, foi armazenado em um sótão da Academia Cearense de Letras (ACL). Outra parte do material como mesas cadeiras e outros móveis foram levados para a Universidade Federal do Ceará.

Em 1966, as artes no Ceará ganham um novo fôlego com a criação da Secretaria de Cultura do Estado do Ceará e o Conselho de Cultura, onde para cada linguagem foi eleito um conselheiro. De acordo com Carvalho (2012, p.16) muitos integrantes de grupos ligados à cultura, como o Clã, tomaram posse como conselheiros ou algum cargo na nova secretaria. Uma das principais ações foi a criação da Casa Raimundo Cela (Centro de Artes Visuais), em 1967, com o objetivo de expor obras, promovendo a comercialização

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e trazer artistas e críticos de arte de outros polos do país para elaborar um programa de atividades para a Casa (SOUSA, 2018, p.2).

Com a abertura desse novo espaço, um grupo de ex-scapianos resolveu pegar o material para levar para a Casa. Contudo, foram informados de que os cupins destruíram tais pertences. Ao tomar conhecimento dessa situação, Estrigas interessa-se por dedica-se à escrita dessa história. Assim, passou a fazer entrevistas com artistas para ouví-los tanto sobre o passado quanto sobre o tempo presente.

Estendi a pesquisa quando me dispus mesmo a escrever este trabalho e busquei as fontes que pude. Retirei o máximo de informações dos artistas e verifiquei que alguns já estavam confundindo os fatos em suas recordações. Mas então constatei que a história da SCAP acabaria se tornando apenas um borrão irreconhecível, e, para que tal não acontecesse tratei de colher os dados necessários para reconstruir a imagem verdadeira. Reuni todos os elementos e com esse material reconstruí a sua história colocando os acontecimentos e as pessoas em seu tempo e lugar certos. (ESTRIGAS, 1983, p.10)

Além dos hiatos, o artista queixava-se da pouca importância dada à arte e aos artistas. Para exemplificar isso, ele cita a publicação, deste livro, que ficou dois anos na Imprensa Universitária, ligada à Universidade Federal do Ceará (UFC), sem perspectiva de publicação. Depois de muita insistência, o livro foi impresso e lançado em 1983. O artista lamentou sobre o episódio, em seu diário pessoal, no dia 13 de setembro desse ano, classificando-o como um descaso com as artes no estado:

Fortaleza é um lugar onde as artes plásticas são marginalizadas, principalmente na sua história, crítica, ou simplesmente na sua crônica, enfim no seu estudo escrito. As entidades culturais não incentivam nem se interessam em publicar estudos sobre nossa arte. A prova é a bibliografia mínima existente sobre nossa arte. Em 1949 Barboza Leite publicou Esquema da Pintura no Ceará, e o fez por conta própria. Depois de vinte anos é publicado Arte – aspectos pré-históricos no Ceará, por mim escrito, composto e impresso na Imprensa Oficial, tendo eu pago o papel. [...] Continuando desse jeito a história da nossa arte pode ficar totalmente perdida ou cheia de lacunas e deturpações. Como se vê, em vinte anos somente dois livros sobre artes foram publicados em Fortaleza por falta de quem se interesse em editar.

Paralelo à escrita dos diários, Estrigas iniciou o arquivamento de catálogos de exposições, recortes de jornais sobre arte, entre outros tipos de materiais que ele julgava importantes. Ele passou a colaborar com este meio, de forma cada vez mais intensa, vivenciando várias fases do fazer artístico: formação, crítica de arte, mediação, avaliação

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de obras em exposições, entre outras, que proporcionaram um conhecimento aprofundado sobre o campo das artes. Devido a sua articulação, sua notoriedade e circulação pelo meio cultural da cidade, em 1963, ele passou a uma nova fase desses registros, quando foi convidado para ter uma coluna no jornal Tribuna do Ceará, intitulada “Arte e artistas”. No ano seguinte, ele inicia um novo projeto e passa a entrevistar artistas locais, conforme podemos verificar no volume I do livro “Arte na dimensão do momento”. Tem-se anotações sobre a entrevista que fez com Barrica, grande amigo e frequentador assíduo da residência de Estrigas.

Pouco a pouco, ele vai adicionando mais funções, em seu currículo de artista-etc e tomou para si a responsabilidade, colocando-se na posição de ser o narrador da história das artes no Ceará. Além das colunas de jornal, que manteve ao longo dos anos, na Tribuna do Ceará e posteriormente no Diário do Nordeste, o artista passou a fazer pesquisas e transformá-las em livros para o conhecimento circular. Produziu livros sobre arte e biografias de artistas.

A partir de suas experiências pessoais e estudos, Estrigas se autolegitima como alguém que pode evitar essa perda da história. Em 1997, ele lança pela Imprensa Universitária, o primeiro volume do “Arte na dimensão do momento”, abrangendo o período de 1951 a 1971. Ele volta a reafirmar a importância do gesto preservacionista e comunicacional: “É uma contribuição para que não se desfaçam de todo, na força do tempo e do descaso, esses acontecimentos que foram a vida ativa da arte e dos artistas, a própria história da arte e dos artistas em ebulição no caminho da vida (...)” (1997, p.7). Para Estrigas ainda há o perigo de algumas publicações que não correspondem à verdade dos fatos:

(...) é necessário explicar a razão de certos acontecimentos para os leitores de hoje. (...) E eu prezo muito a verdade. Acho que muitas dessas verdades poderão ser corrigidas. Farei o que puder para que as pessoas interessadas tenham uma ideia, a mais aproximada possível, da verdade dos acontecimentos (SOEIRO, 2010, p.26)

O segundo volume do diário foi lançado em 2002, com recorte temporal de 1973 a 1994. Seguindo o mesmo estilo, de modelo tradicional de diário com a data dos escritos, a seleção dos textos publicados demonstram que o projeto do artista com essa escrita

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memorialística era muito maior do que fixar-se em sua autobiografia, ele ocupa-se de falar sobre os artistas em suas trajetória de criação e consolidação no campo das artes. Dessa forma, encarregava-se de tratar de uma memória coletiva e não apenas de uma escrita de si (GOMES, 2004), ao tornar público determinados acontecimentos, envolvendo terceiros, talvez tenha recebido críticas, por isso escreveu na epígrafe: “Eu apenas registrei os acontecimentos para a história. Se há culpa nos fatos é de quem os cometeu mesmo que sejam meus amigos”. Os diários produzidos por Estrigas, mostram-se como uma fonte importante para mostram-se conhecer a história da arte no Ceará, contudo é preciso ter consciência da sua carga subjetiva, que o que foi publicado é parte de uma seleção muito pessoal, do que deveria, na opinião dele, ser preservado para a posteridade e o que deveria ser esquecido ou silenciado:

O que passa a importar para o historiador é exatamente a ótica assumida pelo registro e como o autor se expressa. Isto é, o documento não tratar de “dizer o que houve”, mas de dizer o que o autor diz que viu, sentiu e experimentou, retrospectivamente, em relação a um acontecimento (GOMES, 2004, p.15). A palavra é valorizada pelo artista como uma forma de poder, sua expressão volta-se para uma defesa da arte e dos artistas. Para Carvalho (2019, p.20), Estrigas construiu um projeto de mapeamento de grandes nomes e momentos das artes no Ceará, por isso escreveu biografias dos artistas: Raimundo Cela, Chico da Silva, Barrica (Clidenor Capibaribe) e Antônio Bandeira. Publicou uma obra sobre o Salão de Abril e compilou publicações jornalísticas em “Artecrítica”, que era o nome de uma coluna que ele manteve durante muitos anos no jornal Diário do Nordeste.

Quer dizer, eu passei a escrever sobre arte não foi por outra coisa, não, foi porque eu achava que o meio não estava recebendo a arte com muita consideração. Os acontecimentos eram muito desfavoráveis: a arte e aos artistas. Então, quando eu tinha oportunidade de escrever alguma coisa para o jornal, era em torno disso, era protestando, era sugerindo, era comentando o que se fazia, o que deveria ser feito, o que não deveria ser feito, enfim era uma tomada de posição em favor da arte e do artista. O princípio para que eu começasse a escrever foi este: defender a arte e o artista e batalhar para que os dois mais bem colocados perante o meio. (CARVALHO, 2009, p. 14)

No livro Artecrítica, ele traz um texto publicado na imprensa, em 04 de setembro de 1960, sem identificar qual era o jornal, no qual critica a coberta jornalística sobre as artes, reclama que não secções especializadas sobre o tema e quando as têm, “feitas por

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leigos que de arte pouco sabem e nem se interessam, a não ser dizer qualquer coisa para fazer jus ao que ganham” (2009, p.34). Ele afirma ainda que as poucas notícias que circulam foram levadas pelos artistas à imprensa, pois, a parcela de jornalistas que o fazem de forma espontânea era minúscula. Estrigas procura apropriar-se desse espaço, por perceber a importância dos artistas ocuparem espaço nos meios de comunicação para “fazer mais e melhor pela arte em nossa terra”.

Fazer uma exposição, segundo Estrigas, em um texto de 1960, era um “(...) ato heroico de apelos, andanças, conversas, controvérsias, escolhas, imposições, negativas e cooperações para no fim ver se dá certo ou não” (2009, p.30). Elas eram vistas, por ele, como uma forma de comunicar sobre arte para o grande público: “Acreditamos que a sensibilidade e o gosto artístico dos que lá estiveram, os tornaram mais aptos para uma nova visão da arte em sua dinâmica” (2009, p.33). Tal observação demonstra a preocupação dele com formação de público não especializado. Em outra passagem, ele lamenta da realidade ao comentar do comportamento do público diante de uma exposição:

Durante os dias de funcionamento não faltará gente para dizer: - Que diabo é isso?!

Motivo da exclamação: falta de conhecimento e ambiente artístico. E assim continuará ?! Parece! (2009, p.31)

O projeto de arte e memória era mais complexo ainda. Em 1969, quando fundou com a esposa e também artista Nice, no sítio em que moravam o Minimuseu Firmeza, ele coloca o Centro de Documentação e a biblioteca à disposição dos visitantes, tornando-se um lugar de referência para pesquisadores. O apagamento e aceleração da história, levou o escritor a procurar estabelecer lugares de memórias das artes, pois, de acordo com Nora, (1993, p.7), “O sentimento de continuidade torna-se residual aos locais. Há locais de memória porque não há mais meios de memória”. Assim, era preciso fixar essa história em objetos e espaços para que se remetam aos acontecimentos e eles sejam lembrados, por isso, monumentos e museus são considerados lugares de memória.

O Minimuseu foi o maior projeto de arte realizado pelo casal, em um exercício de imaginação museal (CHAGAS, 2003), tendo a “poética das coisas” como um aliado para unir arte e afeto, proporcionando mais do que contemplação, mas uma experiência única a visita ao sítio. Uma materialização da arte e vida, ao compartilhar a da própria casa para

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visitação de artistas e pessoas interessadas em arte, onde três cômodos foram destinados para exposição das obras (telas e esculturas) e disponibilizado espaço para realização de um ateliê coletivo dentro de casa e debaixo das frondosas árvores do quintal.

Paralelo ao trabalho no museu, Estrigas deu continuidade aos escritos. O terceiro diário que ele publicou foi o “Entre o dia e a noite” e Diário paralelo (1982-1991)”, como se fossem dois livros, em um só volume, sendo a primeira parte uma seleção de crônicas que assemelham-se aos textos do diário, contudo, sem datas e a segunda parte, as memórias. Por fim, temos “Hoje e o tempo passado: um encontro com as lembranças”, cuja escrita iniciou em 2011, tendo passado o luto pela partida da Nice, em 2013, e concluído em 2014, ano de sua morte. Aqui, ele entrega-se à nostalgia, às reminiscências, às passagens autobiográficas que remontam à infância do artista à fase adulta.

CONCLUSÃO

Ao analisar os quatro diários publicados por Estrigas entendemo-los enquanto um projeto de arte, um experimento social, ou ainda como um objeto que personificaria uma busca pela própria transcendência e da memória dos trabalhadores da arte no Ceará. Segundo Artières (1998, p.11), “Arquivar a própria vida é se pôr no espelho, é contrapor à imagem social a imagem íntima de si próprio, e nesse sentido o arquivamento do eu é uma prática de construção de si mesmo e de resistência”. Ao pensar nesse tipo de escrita, de prática arquivística, é fácil fazer relação a uma atitude íntima, autobiográfica, contudo, o que encontramos está além das experiências pessoais, é uma narrativa sobre os bastidores do mundo das artes no Ceará, que remete a um coletivo de pessoas.

Pensar e agir dessa forma, parece ser algo natural para o artista devido às experiências artísticas que ele vivenciou. Ruoso (2020, p.765) defende que a formação artística, recebida por Estrigas na SCAP, concedeu a ele uma sensibilidade, uma noção de cooperação muito forte, de forma que “Os trabalhos de memória nasceram da elaboração de uma escuta sensível que foi resultado de uma ação coletiva no mundo das artes”.

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Ao pôr em prática trabalhos da memória em plataformas diversas, materiais e imateriais, ele prestou um importante serviço à comunidade, tanto que eles são considerados referência para quem quiser conhecer a história da arte no Ceará. Segundo o prof. Dr. Antonio Wellington de Oliveira Junior, no prólogo do livro A Grande Arte de Estrigas, “Estrigas viveu o século (o vinte e a vida) fiando o futuro de novos artistas com sua arte, sua ação política, seu cuidado com a memória das artes por aqui e para além. E não será possível pensar a arte cearense nesse século sem pensar: Estrigas”.

A leitura dos diários remete-nos a uma reflexão sobre a geopolítica do mundo das artes, das relações sobre o binômio centros/periferias das artes, pois, o nordeste estava nessa periferia das artes, tanto que muitos artistas migraram para o Rio de Janeiro ou São Paulo em busca de melhores condições de desenvolver seus trabalhos. Destarte, o artista que estava fora desse eixo, sentia as consequências, o peso de estar no ostracismo do mundo das artes. Vale ressaltar que, durante muito tempo, a historiografia ocupou-se de concentrar-se apenas nos fatos que eram sempre a respeito dos centros hegemônicos artísticos, desprezando o que se passava nos outros lugares de cultura. Os registros de Estrigas mostram a circulação de artistas em âmbito local, nacional e internacional, bem como a necessidade ou o desejo de mudar-se para onde a cadeia operatória artística era mais reconhecida e garantia visibilidade, como o sudeste do país ou até mesmo para o grande centro das artes, Paris.

Portanto, os diários são fontes importantes para se compreender as artes no Ceará, tanto no fazer; nas relações internas e externas, travadas neste campo de trabalho; os conflitos com o poder público, entre outras temáticas. Cada obra traz suas especificidades, exigindo um olhar crítico tanto para o conteúdo, quanto para a forma e contexto em que foram produzidas.

Referências

BASBAUM, Ricardo. Manual do artista-etc. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2013. BECKER, Howard S. Mundos da Arte. Lisboa: Livros Horizonte, 2010.

CARVALHO, Gilmar de. A Grande Arte de Estrigas: Memória Crítica. Fortaleza: Expressão Gráfica, 2009.

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Gilberto Freyre e Darcy Ribeiro. Tese (Doutorado em Ciências Sociais), Programa de

Pós-graduação em Ciências Sociais, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2003.

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