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Análise de obras literárias morte e vida severina

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Academic year: 2021

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Análise de obrAs literáriAs

morte e vida severina

JoÃo CAbrAl de Melo neto

Rua General Celso de Mello Rezende, 301 – Tel.: (16) 3603·9700 CEP 14095-270 – Lagoinha – Ribeirão Preto-SP

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suMário

1. Contexto soCiAl e HistÓriCo ... 7

2. estilo literário dA époCA ... 8

3. o Autor ... 10 4. A obrA ... 14 5. exerCíCios ... 35 A ol -11

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morte e vida severina

JoÃo CAbrAl de

Melo neto

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1. Contexto soCial e HistÓRiCo

O ano de 1945 marca o fim da Segunda Guerra Mundial e mostra o mun-do que sobreviveu a Hitler e aos campos de concentração, à bomba atômica de Hiroshima e a todos os demais horrores da guerra.

No Brasil, esse ano marca o fim do Estado Novo de Getúlio Vargas e o início de certa experiência democrática que terminará bruscamente em 1º de abril de 1964. Nesse meio tempo, entre 1945 e 1964, o Brasil terá a Constituição de 1946, o retorno de Getúlio Vargas entre 1950 e 1954, as eleições de 1955, a presidência de Juscelino Kubitschek entre 1956 a 1960, a criação de Brasília e a sua inauguração como capital do Brasil em 21 de abril de 1960, e a renúncia de Jânio Quadros em agosto de 1961, que acabou por levar à presidência João Goulart, deposto pelo golpe militar de 1964.

De 1945 a 1964, o tema do desenvolvimento e subdesenvolvimento do país ocupa boa parte do trabalho dos intelectuais brasileiros. O Primeiro Congresso Brasileiro de Escritores, ocorrido em São Paulo no ano de 1945, avaliou os aspectos positivos e negativos do movimento modernista. O próprio Mário de Andrade, uma semana antes de morrer, classificou o movimento como “verdadeira legitimação da dignidade pela inteligência brasileira”, lamentando, entretanto, que a poesia tivesse sido acolhida pelo grande público como algo embaraçoso e pedante. A partir daí, deixou de existir a divisão ideológica entre o artista popular e o hermético (aquele que faz um trabalho de difícil compreensão), porque entende-se agora que todos fazem uma crítica sobre o material que examinam, desmitificando tal material. Assim, tanto fazem um trabalho crítico os poetas concretistas, (Augusto e Haroldo de Campos), como Guimarães Rosa, Clarice Lispector e os compositores de canções populares.

Pode-se dizer que, entre 1945 e 1964, o Brasil começa a ser percebido como componente de uma realidade global, não obstante seus problemas internos, como analfabetismo em massa e injustiças sociais. Procura-se pensar o país não como uma nação isolada, mas como parte de um processo geral, analisando-se as relações entre o local e o global, entre o atraso e o progresso, no intuito de se chegar a uma interpretação capaz de proporcionar solução realista para os nossos problemas.

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A terceira fase do Modernismo, também chamada de Neomodernismo, preocupa-se, na prosa, com a invenção linguística, enquanto na poesia há clara rejeição à geração de 22. Pertencem a esse período Guimarães Rosa, Clarice Lis-pector e João Cabral de Melo Neto (poesia).

Dentro dessa nova concepção, Clarice Lispector busca uma literatura inti-mista, de sondagem introspectiva e, por isso, voltada para a análise do interior das personagens. Ao mesmo tempo, com Guimarães Rosa, os temas regionalis-tas, analisados mais profundamente, adquirem uma nova dimensão que busca o universalismo nas questões que envolvem os sertanejos do Brasil central. Também destaca-se, nesse momento, a preocupação com o uso da linguagem – traço comum Guimarães Rosa e Clarice Lispector. Ambos, por esse motivo, são chamados de instrumentalistas.

Na poesia, os poetas de 45 têm sua estreia marcada pela publicação da Revista orfeu (1947), no Rio de Janeiro. A poesia dessa fase defende um estilo mais rigoroso e equilibrado que rejeita as revoluções artísticas dos modernistas da geração de 22, ou seja, a liberdade formal, as ironias, as sátiras, o poema-piada etc. Segue um modelo mais formal e uma linguagem mais precisa e exata. Os modelos voltam a ser os parnasianos e simbolistas. Dentre os grandes nomes que representam essa geração (Ledo Ivo, Péricles Eugênio da Silva Ramos, Geir de Campos e Darcy Damasceno), destaca-se, no fim dos anos 40, João Cabral de Melo Neto, considerado um dos grandes nomes da literatura no Brasil.

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3. o aUtoR

João Cabral de Melo Neto nasceu em Recife, Pernambuco, em 9 de janeiro de 1920. Nos primeiros anos da infância, viveu João Cabral em engenhos de cana nos arredores da cidade de Moreno. De volta à capital, estudou no colégio dos Irmãos Maristas até a conclusão do 2º grau. Ainda em Recife, passou a frequentar o Café Lafayette, onde conheceu o escritor e crítico Willy Lewin, a quem dedi-cou Pedra do sono e de quem recebeu forte influência, e o pintor Vicente do Rego Monteiro (que, em 1922, havia participado da semana de arte moderna), citado em seu poema morte e vida severina, conforme trecho a seguir:

– minha pobreza tal é que pouco tenho o que dar: dou da pitu que o pintor monteiro fabricava em Gravatá (p.175).

Com 20 anos de idade já se encontrava no Rio de Janeiro, onde travou amizade com poetas que marcaram a chamada geração de 30, como Murilo Mendes, Carlos Drummond de Andrade e Jorge de Lima, este último abrindo o seu consultório médico para as frequentes reuniões literárias. De funcionário

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público passou a diplomata de carreira, aos 25 anos de idade. Por essa época, João Cabral já havia lançado os livros de poemas Pedra do sono, os três mal-amados e o engenheiro (obra custeada pelo poeta, editor e descobridor de Graciliano Ramos, Augusto Frederico Schmidt). Nesta mesma obra, podemos notar a forte influência recebida do poeta e engenheiro pernambucano Joaquim Cardozo.

Estabilizado em seu emprego, casou-se com Stella Maria Barbosa de Oli-veira, neta de Rui Barbosa, com quem teve 4 filhos.

Com uma prensa manual, editou, em pequenas tiragens, vários poetas, dentre eles, Manuel Bandeira (seu primo) e Vinícius de Moraes.

Como diplomata, passou a viver em diversos países, dentre eles, Inglater-ra, Senegal, Paraguai, Equador, Honduras, mas foi na Espanha que João Cabral de Melo Neto inspirou-se (palavra esta que não fazia parte do seu dicionário) para a construção de seus melhores poemas, principalmente aqueles referentes a Sevilha:

nasceste pra ser sevilha. sevilha em mapa de mulher. teu andar faz novas sevilhas das itaperunas que houver. Faz sem limites o pequeno, Faz, na medida curta e certa de teu corpo e do de sevilha: Faz a alma de quem vai à festa. de ir à festa: é como melhor Posso definir a alma armada de ambas, que viveis para a festa Que virá do horizonte da alma.

Com a morte de sua mulher em 1986, após 40 anos de união, contraiu se-gundas núpcias com a poeta Marly de Oliveira, autora da obra retrato.

Em 1990, já com fama de maior poeta vivo da literatura nacional, aposentou-se de suas funções diplomáticas, passando a residir no Rio de Janeiro.

João Cabral de Melo Neto morreu em 1999, aos 79 anos de idade, cercado de glórias, tendo sido enterrado no mausoléu da Academia Brasileira de Letras, entidade da qual era membro desde 1969.

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CRonologia das oBRas

1942 – Pedra do sono 1943 – os três mal-amados 1945 – o engenheiro

1947 – Psicologia da composição 1950 – o cão sem plumas

1956 – duas águas (contendo os livros anteriores e morte e vida severina; Paisagens

com figuras e Uma faca só lâmina)

1960 – Quaderna 1961 – dois parlamentos 1961 – terceira feira 1962 – serial

1966 – a educação pela pedra 1976 – museu de tudo 1981 – a escola das facas 1984 – auto do frade 1985 – agrestes

1987 – Crime na calle relator 1989 – andando sevilha 1994 – sevilha andando

Em 1997, a Editora Nova Fronteira reuniu todas as obras de João Cabral de Melo Neto em dois volumes: serial e antes e a educação pela pedra e depois (contendo também um CD com poemas recitados pelo próprio poeta).

João Cabral era o poeta que dispensava a inspiração. Para ele, escrever era um exercício diário, daí o título de poeta-engenheiro, sempre preocupado com a construção e com a precisão do poema, de forma que o fazer-poético era verdadeira obsessão. Por isso tornou-se insuperável nos chamados metapoemas, como neste “O poema”, retirado de o engenheiro:

o papel nem sempre é branco como a primeira manhã. É muitas vezes o pardo e pobre papel de embrulho;

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A ol -11 É de outras vezes de carta aérea, leve de nuvem. mas é no papel, no branco asséptico, que o verso rebenta. Como um ser vivo pode brotar

de um chão mineral?

Assumidamente antissentimental, porém de sensibilidade espantosa, João Cabral é o poeta da razão, da objetividade e do equilíbrio, prerrogativas que fazem dele um poeta de características clássicas.

Assim como o árcade Cláudio Manuel da Costa, João Cabral também é o poeta da pedra. Se para Cláudio Manuel a pedra só simbolizava a insensibilidade das pessoas, para João Cabral, ela representava além da aridez humana, também a aridez da terra nordestina.

O poeta amava o seu Pernambuco, porém a sua grande paixão foi, sem dúvida nenhuma, Sevilha, cidade que, segundo Marly de Oliveira, é “lugar feito à medida do homem, perfeito para viver”.

Portanto, João Cabral de Melo Neto é o poeta de Pernambuco, de Recife, do rio Capibaribe, do engenho, do banguê, do fogo morto, da usina, da caatinga, da seca, do agreste, das cabras, dos canaviais, dos mangues, da pedra, da faca, da lâmina, da Espanha, de Sevilha, dos castelhanos, do flamenco, da Andaluzia, da morte e da vida severina...

Além das influências recebidas de Joaquim Cardozo e Willy Lewin, João Cabral também admirava o surrealista Murilo Mendes, a quem dedicou a obra

Quaderna, o romancista dos engenhos, José Lins do Rego, a quem dedicou serial e

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QUanto à ConCepção

No início da década de 50, João Cabral de Melo Neto foi denunciado por subversão e acusado de ser comunista, o que lhe valeu perder, temporaria-mente, a condição de diplomata, passando, então, a residir em Recife. Por essa época, encontrou a teatróloga Maria Clara Machado, que, juntamente com o seu pai, o contista Aníbal Machado, havia fundado o famoso Teatro Tablado. Neste encontro, Maria Clara Machado encomendou a João Cabral um auto de Natal para que ela dirigisse a sua montagem e supervisão. Assim nascia

morte e vida severina (ou auto de natal pernambucano), um texto sob encomenda.

Surpreendentemente, a peça foi devolvida, não interessando à diretora. Como João Cabral estava em vias de publicar a sua antologia poética, um tanto fina ainda, resolveu tirar todas as marcações comuns numa peça de teatro, deixando somente o poema, utilizando-o, dessa maneira, para engrossar o futuro livro.

Numa entrevista concedida a Antônio Carlos Secchin, João Cabral de Melo Neto confessou:

esse texto não poderia ser mais denso. era obra para teatro, encomendada por ma-ria Clara machado. Foi a coisa mais relaxada que escrevi. Pesquisei num livro o folclore pernambucano, publicado no inicio do século, de autoria de Pereira da Costa. eu era consciente de que não tinha tendência para teatro, não sabia criar diálogos no sentido de polêmica. meus diálogos vão sempre na mesma direção, são paralelos. observe o episódio das pessoas defronte do cadáver: todos trazem uma imagem para a mesma coisa. a cena do nascimento, com outras palavras, está em Pereira da Costa, “Compadre, que na relva está deitado” é a transposição desse folclorista, pois no Capibaribe há lama, e não grama. “todo céu e a terra lhe cantam louvor” também é literal do antigo pastoril pernambucano. o louvor das belezas do recém-nascido e os presentes que ganha existem no pastoril. as duas ciganas estão em Pereira da Costa, mas uma era otimista e a outra pessimista. eu só alterei as belezas e os presentes, e pus as duas ciganas pessimistas. Com Morte e vida severina, quis prestar uma homenagem a todas as literaturas ibéricas. os monólogos do retirante provêm do romance castelhano. a cena do enterro na rede é do folclore catalão. o encontro com os cantadores de incelenças é típico do nordeste. não me lembro se a mulher da janela é de origem galega ou se está em Pereira da Costa. a conversa com severino antes de o menino nascer obedece ao modelo da tenção galega.

QUanto à inflUênCia ReCeBida

Seguindo, portanto, a tradição medieval (ou ibérica), João Cabral cons-truiu seu auto(1) tendo, principalmente, como modelo o primeiro teatrólogo da

língua portuguesa: Gil Vicente. Foram três os grandes autores que, na literatura brasileira, destacaram-se nesse estilo: Padre José de Anchieta, que, no distante

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século XVI, procurava catequizar os índios encenando peças religiosas, tendo como tema o duelo entre o bem e o mal, como podemos verificar em seu auto na

festa de são Lourenço; Ariano Suassuna, autor da magnífica peça auto da Compade-cida, que nos faz recordar os bons momentos de Gil Vicente com sua trilogia das barcas, principalmente, e o impagável auto da barca do inferno; e, claro, João Cabral

de Melo Neto, com seu auto de natal pernambucano ou morte e vida severina.

QUanto à foRma empRegada

Adotando, quase sempre, a medida velha (também uma tradição medieval), dando preferência aos versos redondilhos maiores (heptassílabos) e às rimas pares (por vezes toantes, por vezes consoantes), já que raros são os versos livres na obra, o autor facilitou aos atores decorarem as falas.

Se o sucesso não veio com Maria Clara Machado, veio com a encenação de outras companhias, algumas amadoras, outras profissionais, como, por exemplo, a da atriz Cacilda Becker. O certo é que morte e vida severina ganhou não só os palcos brasileiros, mas também os do exterior.

Quanto à linguagem, João Cabral adotou a coloquial, de fácil compreensão, condizente com as personagens da peça.

Para ilustração, segue-se a metrificação (ou escansão) dos seis versos finais da primeira cena:

“Mas – pa – ra – que – me – co – nhe – (çam)” 1 2 3 4 5 6 7

“Me – lhor – Vo – ssas – Se – nho – ri – (as)” 1 2 3 4 5 6 7

“E – me – lhor – po – ssam – se – guir” 1 2 3 4 5 6 7

“A his – tó – ria – de – mi – nha – vi – (da)” 1 2 3 4 5 6 7

“Pa – sso a – ser – o – Se – ve – ri – (no)” 1 2 3 4 5 6 7

“Que em – vo –ssa – pre – sen – ça e – mi – (gra)” 1 2 3 4 5 6 7

Veja o que diz o poeta Geir Campos em seu Pequeno dicionário de arte poética, com relação às rimas toantes e consoantes:

toantes – também chamadas assoantes, são as rimas em que é obrigatória

a correspondência sonora da última vogal tônica e das que se lhe seguem.

Consoantes – são as rimas em que há correspondência da última vogal

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Peguemos, então, dois exemplos, em morte e vida severina, de rimas toantes e consoantes, respectivamente:

severino retirante, deixe agora que lhe diga: eu não sei bem a resposta da pergunta que fazia, se não vale mais saltar fora da ponte e da vida; nem conheço essa resposta, se quer mesmo que lhe diga...

***

desde que estou retirando só a morte vejo ativa, só a morte deparei e às vezes até festiva

Rimas consoantes

Rimas toantes

QUanto aos temas

Mesmo não pretendendo fazer poesia de cunho social, é inegável o enga-jamento do poeta. Em 6 de janeiro de 1990, João Cabral de Melo Neto concedeu esta entrevista ao jornal Folha de s. Paulo:

minha poesia é social na medida em que é nordestina, em que fala da minha experiência de nordestino, de menino de engenho. Eu nunca pretendi fazer poesia social. Meu desafio sem-pre foi o de pensar na forma poética: como fazer um poema narrativo sem cair no romanceiro e não crônica? agora, como a situação do nordeste mudou muito pouco, continua a ser de uma extrema injustiça, então esses textos acabam tendo um sentido político de denúncia, que infelizmente ainda é atual. Hoje, no nordeste, existe uma espécie de modernização aparente em algumas regiões. mas o povo continua muito sofrido. Hoje eu percebo que a televisão, por exemplo, tem uma força muito grande, que antes não tinha. no essencial, porém, o nordeste continua a ser aquele cenário desolado de onde saem os retirantes.

Temas presentes em morte e vida severina: A seca (e consequentemente a retirada) O coronelismo

A decadência dos engenhos (e consequentemente o surgimento das usinas) O duelo entre a vida e a morte

A metáfora do nascimento de Cristo

Pelos três primeiros temas elencados acima, é possível perceber que João Ca-bral seguiu a linha dos autores nordestinos da geração de 30, que, em chocantes e dolorosos romances, souberam como ninguém traçar a saga dos retirantes. São eles:

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o paraibano José Américo de Almeida, a cearense Rachel de Queiroz, o alagoano Graciliano Ramos, o baiano Jorge Amado e o paraibano José Lins do Rego, este tam-bém um menino de engenho como o foi João Cabral de Melo Neto. Vale ressaltar que esses escritores não exploraram só a seca, mas os vários problemas dela decorrentes, como, por exemplo, o fanatismo religioso, a prostituição, o cangaço etc.

tempo e espaço

em morte e vida severina, pode-se considerar o tempo como atual, já que, como disse o próprio poeta, nada mudou no Nordeste com relação à seca.

Com relação ao espaço, isto é, o local (ou os locais) onde se passa a história, têm-se:

Caatinga, região formada por pequenas árvores espinhosas que perdem

as folhas durante a seca.

agreste, campo não cultivado, rude, rústico, áspero, tosco, severo, hirsuto. Zona da mata, região fértil, propícia para o plantio da cana-de-açúcar. Recife, em especial o mangue, região em que predomina o lamaçal e se

pratica a pesca de camarão, siri e caranguejo.

(...) não desejo emaranhar o fio de minha linha nem que se enrede no pelo hirsuto desta caatinga.

***

Agora afinal cheguei nessa terra que diziam. Como ela é uma terra doce para os pés e para a vista.

***

mas não senti diferença entre o agreste e a Caatinga, e entre a Caatinga e aqui a mata a diferença é a mais mínima.

***

– e a língua seca de esponja que tem o vento terral veio enxugar a umidade do encharcado lamaçal.

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foCo naRRativo

Como ja vimos, a obra está estruturada em 18 cenas, distribuídas em monólo-gos e diálomonólo-gos. Desse modo, percebemos que a primeira pessoa predomina no texto. Em alguns trechos, é Severino quem fala, como se observa na primeira cena:

– o meu nome é severino, não tenho outro de pia. Como há muitos severinos, que é santo de romaria, deram então de me chamar severino de maria;

Noutros momentos são os interlocutores de Severino que falam (“irmãos das almas”, mulher à janela, seu José, mestre carpina, entre outros), sempre predominando a primeira pessoa.

Leia um pequeno trecho do diálogo entre Severino e Seu José:

– seu josé, mestre de carpina, que habita este lamaçal, sabes me dizer se o rio a esta altura dá vau? sabes me dizer se é funda esta água grossa e carnal? – severino, retirante, jamais o cruzei a nado; quando a maré está cheia vejo passar muitos barcos, barcaças, alvarengas, muitas de grande calado.

Note o discurso de Severino.

Note o discurso de Seu José.

enRedo

morte e vida severina está estruturado em 18 cenas, distribuídas em

monólo-gos e diálomonólo-gos. Da primeira à décima quarta cena, os monólomonólo-gos e os diálomonólo-gos se alternam. A partir da décima quinta até a décima sétima cena, em que Severino não participa, só há diálogos. Na décima oitava cena, acontece o monólogo de seu José mestre carpina, finalizando a obra.

Vamos, então, ao resumo de cada cena, exemplificando-a com trechos do poema:

na 1ª cena (primeiro monólogo), Severino se apresenta ao leitor antes de começar a sua retirada com destino à cidade de Recife, isto é, da seca para o

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mar. Em sua fala, podemos perceber uma tentativa (frustrada) de se identificar. Severino sem sobrenome, filho de uma Maria, como tantas outras, seduzida por um coronel* de fazenda:

– o meu nome é severino, não tenho outro de pia. Como há muitos severinos, que é santo de romaria, deram então de me chamar severino de maria; como há muitos severinos com mães chamadas maria, fiquei sendo o da Maria do finado Zacarias.

*Notem que, já de início, João Cabral toca no tema do coronelismo. Como todo Severino, este é magro, subnutrido e tem a cabeça grande, o ventre crescido e as pernas finas. É interessante ressaltar que a região em que vive (a serra da Costela) tem a mesma constituição de Severino:

(...) vivendo na mesma serra magra e ossuda em que eu vivia. somos muitos severinos

iguais em tudo na vida: na mesma cabeça grande Que a custo é que se equilibra, no mesmo ventre crescido Sobre as mesma pernas finas...

Esta já é uma descrição clássica do sertanejo. Euclides da Cunha, em sua grandiosa obra os sertões, já o havia assim descrito:

É desagracioso, desengonçado, torto. Hércules-Quasímodo reflete no aspecto a fealda-de típica dos fracos. O andar sem firmeza, sem aprumo, quase gigante e sinuoso, aparenta a translação de membros desarticulados. agrava-os a postura normalmente abatida, num manifestar de displicência que lhe dá um caráter de humildade deprimente. a pé, quando parado, recosta-se invariavelmente ao primeiro umbral ou parede que encontra; a cavalo, se sofreia o animal para trocar duas palavras com o conhecido, cai logo sobre um dos estribos, descansando sobre a espenda da sela. Caminhando, mesmo a passo rápido, não traça traje-tória retilínea e firme. Avança celeremente, num bambolear característico, de que parecem ser o traço geométrico os meandros das trilhas sertanejas (Os sertões).

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Para que o leitor conheça, de antemão, toda a rudeza e o sofrimento presen-tes na vida (neste trecho a palavra severina está associada diretamente à morte) dos sertanejos, Severino diz:

(...)e se somos severinos iguais em tudo na vida, morremos de morte igual, mesma morte severina: que é a morte de que se morre de velhice antes do trinta, de emboscada antes dos vinte, de fome um pouco por dia (de fraqueza e de doença é que a morte severina ataca em qualquer idade, e até gente não nascida).

Não demora muito para Severino se deparar com a presença da morte ao encontrar dois homens, carregando, em uma rede, um defunto para ser enterra-do no cemitério de Toritama. Este defunto era um lavraenterra-dor, proprietário de um pedaço de chão, assassinado, possivelmente, numa emboscada idealizada por algum latifundiário que pretendia esticar ainda mais as suas terras. Usando a metáfora “ave-bala” (pássara), João Cabral denuncia os coronéis zacarias, muitos deles criminosos impunes, que enriquecem explorando, roubando e assassinando sertanejos, assunto este já tratado por autores como José Lins do Rego e Jorge Amado. Assim, o erro deste Severino-defunto foi ter uns hectares de terra, mesmo de terra pouco produtiva. Trata-se da 2ª cena (primeiro monólogo).

– e o que havia ele feito irmãos das almas e que havia ele feito contra tal pássara?

– ter uns hectares de terra, irmãos das almas,

de pedra e areia lavada que cultivava.

(...)

– e agora o que passará, irmãos das almas,

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o que é que acontecerá contra a espingarda?

– mais campo tem para soltar, irmãos das almas,

tem mais onde fazer voar as filhas-bala.

Mesmo levando uma vida miserável, a solidariedade se faz sempre presen-te, por isso Severino se oferece para ajudar a levar o defunto para o cemitério. Já sozinho, na 3ª cena (segundo monólogo), Severino faz do rio Capibaribe a sua “estrela-guia”. Entretanto, tem medo de se perder, pois o rio secou. É bom lem-brar que o rio Capibaribe é intermitente corta (quando a seca chega) desde a sua nascente até a cidade pernambucana de Limoeiro. De lá ao Recife, o Capibaribe é perene não corta (seca) jamais.

(...) Pensei que seguindo o rio eu jamais me perderia: ele é o caminho mais certo, de todos o melhor guia. mas como segui-lo agora que interrompeu a descida? vejo que o Capibaribe, como os rios lá de cima, é tão pobre que nem sempre pode cumprir sua sina e no verão também corta, com pernas que não caminham.

A uma certa distância, ouve uma cantoria. Em sua inocência, Severino chega a acreditar que ali pode estar acontecendo uma festa. É a presença da esperança do sertanejo, mesmo que fugaz.

(...) ouço somente a distância o que parece cantoria. será novena de santo, será algum mês de maria; quem sabe até se uma festa ou uma dança não seria?

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Ao se aproximar do local, Severino percebe que a cantoria, na verdade, são excelências (ladainhas, cantigas de velório) cantadas por mulheres enquanto velam o corpo de mais um Severino. O interessante nesta 4ª cena (segundo diá-logo) é que, enquanto as mulheres cantam suas excelências, um homem, usando perspicácia e ironia, parodia a cantilena, ressaltando a condição severina (fome, sede, privação) que o Severino levou em vida:

– Finado severino,

quando passares em Jordão e os demônios te atalharem perguntando o que é que levas... – dize que levas cera,

capuz e cordão

mais a virgem da Conceição. Finado severino,

etc...

– dize que levas somente coisas de não:

fome, sede, privação.

Cansado de só encontrar a morte pela frente, Severino resolve, assim como o rio Capibaribe, interromper a sua viagem e procurar algum trabalho. Neste trecho da 5ª cena (terceiro monólogo), Severino conclui que a vida é ainda mais severina para aquele que se retira, mas sua esperança se renova ao ver na janela uma mulher que talvez poderia ajudá-lo na busca por um trabalho.

(...) e o pouco que não foi morte foi de vida severina

(aquela vida que é menos vivida que defendida, e é ainda mais severina para o homem que retira). (...)

vejo uma mulher na janela, ali, que se não é rica, parece remediada ou dona de sua vida: vou saber se de trabalho poderá me dar notícia.

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Severino e a mulher na janela travam interessante diálogo. Ela é uma rezadora da região (melhor que essa profissão na região não há), portanto só trabalha com a morte. Como Severino não é rezador (sabia apenas acompanhar algumas cantigas) nem coveiro, tampouco enfermeiro e médico (profissionais que lidam diretamente com a morte e, como bem disse a mulher: retirantes às avessas, que sobem do mar para cá), não há trabalho algum para ele naquele lugar. Desta 6ª cena (terceiro diálogo), retiramos o seguinte trecho:

(...)

e se pela última vez me permite perguntar: não existe outro trabalho para mim neste lugar? Como aqui a morte é tanta, só é possível trabalhar nessas profissões que fazem da morte ofício ou bazar. imagine que outra gente de profissão similar, farmacêuticos, coveiros, doutor de anel no anular, remando contra a corrente da gente que baixa ao mar, retirantes às avessas, sobem do mar para cá. só os roçados da morte compensam aqui cultivar, e cultivá-los é fácil:

simples questão de plantar; não se precisa de limpa, de adubar nem de regar; as estiagens e as pragas fazem-nos mais prosperar; e dão lucro imediato; nem é preciso esperar pela colheita: recebe-se na hora mesma de semear.

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Severino novamente se decepciona, pois, não encontrou trabalho. Ao chegar à Zona da Mata, região canavieira, a sua esperança renasce mais uma vez. E mais uma vez pensa em interromper a sua viagem, já que numa região tão verde e tão fértil (daí chamá-la de feminina), trabalho não há de faltar para um lavrador. A sua esperança é tal que, por não encontrar nin-guém, pensa ser feriado e os lavradores estão, merecidamente, descansando. é a 7ª cena (quarto monólogo):

(...)

decerto a gente daqui jamais envelhece aos trinta nem sabe da morte em vida, vida em morte, severina; e aquele cemitério ali, branco na verde colina, decerto pouco funciona e poucas covas aninha.

Como sabemos, toda esperança de Severino é efêmera, surgindo logo uma cruel realidade para dissipá-la. As pessoas não estão na labuta diária porque pres-tam uma última homenagem a um trabalhador de eito que está sendo enterrado. Nesta 8ª cena (quarto diálogo) temos uma triste e dura constatação: a terra tanto sonhada pelo lavrador em vida finalmente é conquistada por ele, na hora da sua morte: a cova é a terra que foi dividida, cabendo a ele o seu quinhão. Este trecho foi, magnificamente, musicado por Chico Buarque em Funeral do lavrador.

– essa cova em que estás, com palmos medida, é a conta menor que tiraste em vida. – É de bom tamanho, nem largo nem fundo, é a parte que te cabe deste latifúndio. – não é cova grande, é cova medida, é a terra que querias ver dividida.

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– viverás, e para sempre na terra que aqui aforas: e terá enfim tua roça. – Aí ficarás para sempre, livre do sol e da chuva, criando tuas saúvas. – agora trabalharás só para ti, não a meias, como antes em terra alheia. – trabalharás uma terra da qual, além de senhor, serás homem de eito e trator. – trabalhando nessa terra, tu sozinho tudo empreitas: será semente, adubo, colheita.

Parece ser esse o pior momento de Severino: numa terra onde tudo é verde e os rios correm com sua água vitalícia, a morte se apresenta tão viva quanto na caatinga. Resolve, então, apressar a sua viagem e chegar o mais rapidamente a seu destino, a cidade do Recife. E assim, nesta 9ª cena (quinto monólogo ), Severino justifica o porquê de sua retirada aos leitores:

– nunca esperei muita coisa, digo a vossas senhorias. o que me fez retirar não foi a grande cobiça; o que apenas busquei foi defender minha vida da tal velhice que chega antes de se inteirar trinta; se na serra vivi vinte, se alcancei lá tal medida, o que pensei, retirando, foi estendê-la um pouco ainda. mas não senti diferença entre o agreste e a Caatinga, e entre a Caatinga e aqui a mata a diferença é mais mínima.

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está apenas em que a terra é por aqui mais macia; está apenas no pavio, ou melhor, na lamparina: pois é igual o querosene que em toda parte ilumina, e quer nesta terra gorda quer na serra, de caliça, a vida arde sempre com a mesma chama mortiça.

Finalmente Severino chega ao Recife. Para descansar, encosta-se no muro de um cemitério e escuta o que falam dois coveiros. Após comentarem a pró-pria profissão, os coveiros passam a falar dos retirantes que chegam em grande quantidade, sonhando encontrar trabalho e só encontram miséria e cemitérios esperando por eles (consequentemente aumentando, e muito, o trabalho de co-veiros dos cemitérios pobres, enquanto os coco-veiros dos cemitérios ricos pouco trabalham e muitas são as gorjetas). No final, a conclusão melancólica de um dos coveiros: os retirantes vinham seguindo o próprio enterro. Desta 11ª cena (quinto diálogo), retiramos o seguinte trecho:

– eu também, antigamente, fui do subúrbio dos indigentes, e uma coisa notei

que jamais entenderei: essa gente do sertão

que desce para o litoral, sem razão, fica vivendo no meio da lama, comendo os siris que apanha; pois bem: quando sua morte chega, temos de enterrá-los em terra seca. – na verdade, seria mais rápido e também muito mais barato

que os sacudissem de qualquer ponte dentro do rio e da morte.

– o rio daria a mortalha e até um macio caixão de água:

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e também o acompanhamento que levaria com passo lento o defunto ao enterro final a ser feito no mar de sal. – e não precisava dinheiro, e não precisava coveiro, e não precisava oração e não precisava inscrição. – mas o que se vê não é isso: é sempre nosso serviço crescendo mais cada dia; morre gente que nem vivia. – esse povo lá de riba de Pernambuco, da Paraíba, que vem buscar no recife poder morrer de velhice, encontra só aqui chegando cemitérios esperando. – não é viagem o que fazem, vindo por essas caatingas, vargens; aí está o erro:

vêm seguindo seu próprio enterro.

Severino, desolado, chega a um dos cais do Recife. Novamente justifica aos leitores, nesta 11ª cena (sexto monólogo), a sua retirada. A dura conclusão do coveiro faz com que pense em se matar, deixando-se afogar nas águas do Capibaribe.

(...) e chegando, aprendo que, nessa viagem que eu fazia, sem saber desde o sertão, meu próprio enterro eu seguia. só que devo ter chegado adiantado de uns dias; o enterro espera na porta: o morto ainda está com vida.

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a solução é apressar a morte a que se decida e pedir a este rio,

que vem também lá de cima, que me faça aquele enterro que o coveiro descrevia: caixão macio de lama, mortalha macia e líquida, coroas de baronesa

junto com flores de aninga, e aquele acompanhamento de água que sempre desfila (que o rio, aqui no recife, não seca, vai toda a vida).

Uma das mais comoventes cenas da obra morte e vida severina é a

12ª cena. Neste sexto diálogo, travado entre Severino e um dos moradores do

mangue, temos um prenúncio de que a vida se sobreporá à morte. Interessado em saber a profundidade do rio Capibaribe, Severino deixa transparecer o seu trágico intento: o suicídio. Entretanto, seu José, mestre carpina, nascido em Nazaré... da Mata (aí uma nítida alusão a José carpinteiro, pai de Jesus), vai respondendo de forma sábia suas perguntas, tentando demovê-lo da triste ideia. Deste diálogo, três momentos foram selecionados:

– seu José, mestre carpina, que habita este lamaçal, sabe me dizer se o rio a esta altura dá vau? sabe me dizer se é funda esta água grossa e carnal? – severino, retirante, jamais o cruzei a nado; quando a maré está cheia vejo passar muitos barcos, barcaças, alvarengas, muitas de grande calado. – seu José, mestre carpina, para cobrir corpo de homem

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não é preciso muito água: basta que chegue ao abdome, basta que tenha a fundura igual à de sua fome. – severino, retirante, pois não sei o que lhe conte; sempre que cruzo este rio costumo tomar a ponte; quanto ao vazio do estômago, se cruza quando se come. (...)

– seu José, mestre carpina, e que diferença faz

que esse oceano vazio cresça ou não seus cabedais, se nenhuma ponte mesmo é de vencê-lo capaz? há muito no lamaçal apodrece a sua vida? e a vida que tem vivido foi sempre comprada a vista? – severino, retirante,

sou de nazaré da mata, mas tanto lá como aqui jamais me fiaram nada: a vida de cada dia

cada dia hei de comprá-la. (...)

– seu José, mestre carpina, que diferença faria

se em vez de continuar tomasse a melhor saída: a de saltar, numa noite, fora da ponte e da vida?

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Podemos considerar a pergunta mostrada como um “divisor de águas” nesta obra, pois, com a chegada de uma mulher, anunciando o nascimento do filho de seu José, mestre carpina, temos o início da montagem de um presépio. Com exceção desta 13ª cena (sétimo monólogo), as demais são diálogos baseados em uma obra folclórica de Pereira da Costa, Folclore pernambucano: subsídios para

a história da poesia popular em Pernambuco.

É importante relacionar a pergunta de Severino (se a melhor saída não seria pular, numa noite, fora da ponte e da vida) com a fala da mulher, ao dizer que o filho de seu José havia pulado para dentro da vida. Aí está a antítese nascer/morrer.

– Compadre José, compadre que na relva estais deitado: conversais e não sabeis que vosso filho é chegado? estais aí conversando em vossa prosa entretida: não sabeis que vosso filho saltou para dentro da vida? saltou para dentro da vida ao dar seu primeiro grito; e estais aí conversando; pois sabei que ele é nascido.

Nesta 14ª cena (sétimo diálogo), temos, na voz dos moradores dos mocambos, a transformação mágica do cenário com o nascimento da criança: tudo o que enfeia ou lembra a pobreza do mangue dá lugar a um ambiente digno de se viver.

(...)

– todo o céu e a terra lhe cantam louvor e cada casa se torna num mocambo sedutor. – Cada casebre se torna no mocambo modelar que tanto celebram os sociólogos do lugar. – e a banda de maruins que toda noite se ouvia

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por causa dele, esta noite, creio que não irradia. – e este rio de água cega, ou baça, de comer terra, que jamais espelha o céu, hoje enfeitou-se de estrelas.

Até mesmo a água turva, escura, do Capibaribe nesta noite sublime tornar-se-ia cristalina a ponto de espelhar um céu estrelado. Há também que se ressaltar a referência que João Cabral faz ao sociólogo e romancista pernambucano Gilberto Freyre, autor de mocambos e sobrados e Casa grande & senzala. Em 1926, Gilberto Freyre (1900-1987) havia promovido no Recife o primeiro encontro de regiona-listas nordestinos, com o intuito de discutir a seca e os problemas decorrentes dela, que afetavam, principalmente, os severinos.

na 15ª cena (oitavo diálogo), moradores do mangue, tal como os três reis magos, ofertam presentes aos pais e ao recém-nascido.

Num gesto de solidariedade, vêm trazendo, cada qual com sua pobreza, as mais diferentes oferendas: caranguejos, leite materno, papel de jornal, água de bica, canário-da-terra, bolacha-d’água, cachaça etc. Notem a bem-humorada troca que há nos quatro últimos versos do fragmento:

– minha pobreza tal é

que não tenho presente melhor: trago papel de jornal

para lhe servir de cobertor; cobrindo-se assim de letras vai um dia ser doutor. (...)

– trago abacaxi de Goiana e de todo o estado rolete de cana. – eis ostras chegadas agora, apanhadas no cais da aurora. – eis tamarindos da Jaqueira e jaca da tamarineira. mangabas do Cajueiro e cajus da mangabeira.

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no 16ª cena (nono diálogo), duas ciganas preveem o futuro do recém-nascido. Há sempre uma discussão em torno da fala da segunda cigana, que, não sendo propriamente otimista (vimos no depoimento do poeta que ele colocou as duas pessimistas), acaba, de certa forma, contradizendo o que a primeira cigana havia preconizado: uma vida miserável como a de todos os que vivem no mangue. Quando a primeira, por exemplo, diz que o menino, já crescido, viverá sempre enlameado de pescar camarão, a segunda diz que ele está sujo, mas é de graxa de uma máquina, portanto não será um pescador, mas um operário. Entretanto, não há nenhuma dife-rença entre viver num mocambo nos mangues do Capibaribe, como frisa a primeira cigana, e viver num mocambo nos mangues do Beberibe, como afirma a segunda.

– atenção peço, senhores, para esta breve leitura: somos ciganas do egito, lemos a sorte futura. vou dizer todas as coisas que desde já posso ver na vida desse menino acabado de nascer: aprenderá a engatinhar por aí, com aratus, aprenderá a engatinhar na lama, com goiamuns, e a correr o ensinarão os anfíbios caranguejos, pelo que será anfíbio como a gente daqui mesmo. Cedo aprenderá a caçar: primeiro, com as galinhas, que é catando pelo chão tudo o que cheira a comida; depois, aprenderá com outras espécies de bichos: com os porcos nos monturos, com os cachorros no lixo. (...)

– atenção peço, senhores, também para a minha leitura: também venho dos egitos, vou completar a figura: (...)

não o vejo dentro dos mangues, vejo-o dentro de uma fábrica:

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se está negro não é lama, é graxa de sua máquina, coisa mais limpa que a lama do pescador de maré

que vemos aqui, vestido de lama da cara ao pé.

Após a leitura das ciganas, vizinhos, amigos e parentes celebram o recém-nascido. Mesmo sendo uma criança enclenque (frágil) e setemesinha (nascida de sete meses), é bela porque simboliza a renovação da vida. Nesta

17ª cena (décimo diálogo), João Cabral de Melo Neto constrói, na última

estro-fe, um inusitado jogo de palavras, dando valores positivos a termos negativos (corromper, infeccionar, contagiar):

– e belo porque com o novo todo velho contagia. – Belo porque corrompe com sangue novo a anemia. – infecciona a miséria com vida nova e sadia. Com oásis, o deserto, com ventos, a calmaria.

Finda a montagem do presépio, seu José, mestre carpina, volta-se para Se-verino, que se manteve à margem de toda a celebração, para tentar responder-lhe a pergunta que ficou suspensa durante todo esse tempo: a melhor saída não seria o suicídio? Nesta 18ª cena (oitavo monólogo) temos a justificativa do título dado à obra, morte e vida severina, isto é, vida, mesmo sendo mais uma vida severina, é de qualquer forma vida e vale a pena ser vivida:

– severino retirante, deixe agora que lhe diga: eu não sei bem a resposta da pergunta que fazia, se não vale mais saltar fora da ponte e da vida; nem conheço essa resposta, se quer mesmo que lhe diga; é difícil defender,

só com palavras, a vida, ainda mais quando ela é,

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esta que vê, severina; mas se responder não pude à pergunta que fazia, ela, a vida, a respondeu com sua presença viva. e não há melhor resposta que o espetáculo da vida: vê-la desfiar seu fio, que também se chama vida, ver a fábrica que ela mesma, teimosamente, se fabrica, vê-la brotar como há pouco em nova vida explodida; mesmo quando é uma explosão como a de há pouco, franzina; mesmo quando é a explosão de uma vida severina.

5. exeRCíCios

1. fuvest-sp

É correto afirmar que no poema dramático morte

e vida severina, de João Cabral de Melo Neto:

a) a sucessão de frustrações vividas por Severino faz dele um exemplo típico de herói moderno, cuja tragicidade se expressa na rejeição à cul-tura a que pertence.

b) a cena inicial e a final dialogam de modo a

indicar que, no retorno à terra de origem, o retirante estará munido das con-vicções religiosas que adquiriu com o mestre carpina.

c) o destino que as ciganas preveem para o recém-nascido é o mesmo que Severi-no já cumprira ao longo de sua vida, marcada pela seca, pela falta de trabalho e pela retirada.

d) o poeta buscou exprimir um aspecto da vida nordestina no estilo dos autos me-dievais, valendo-se da retórica e da moralidade religiosa que os caracterizam. e) o “auto de natal” acaba por definir-se não exatamente no sentido religioso, mas

como reconhecimento da força afirmativa e renovadora que está na própria natureza.

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2. Ufpe

severino retirante, deixe agora que lhe diga: eu não sei bem a resposta da pergunta que fazia se não vale mais saltar fora da ponte e da vida; nem conheço essa resposta, se quer mesmo que lhe diga; é difícil entender,

só com palavras, a vida, ainda mais quando ela é esta que vê, severina; mas se responder não pude à pergunta que fazia, ela, a vida, a respondeu com sua presença viva.

João Cabral de Melo Neto. morte e vida severina.

Sobre o poema de João Cabral, assinale a alternativa incorreta:

a) Escrito em versos, é um auto de natal nordestino e tem como personagem principal Severino, um favelado recifense, que quer saltar “fora da ponte e da vida”.

b) Os versos transcritos representam a voz de outra personagem (seu José, o mestre carpina), que dá a Severino alguma esperança.

c) “A vida a respondeu com sua presença viva” é alusão ao filho recém-nascido de seu José.

d) A expressão “severina” (formada por derivação imprópria) significa, aqui, anônimo, igual aos demais, e realça a linguagem despojada do texto.

e) A poesia de Cabral é engajada com o seu meio, embora contida, chegando a demonstrar desprezo pela confissão sentimental.

3. pUCCampi-sp

– A leitura integral de morte e vida severina, de João Cabral de Melo Neto, permite a correta compreensão do título desse “auto de natal pernambucano”:

a) Tal como nos Evangelhos, o nascimento do filho de seu José anuncia um novo tempo, no qual a experiência do sacrifício representa a graça da vida eterna para tantos “severinos”.

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b) Invertendo a ordem dos dois fatos capitais da vida humana, mostra-nos o poeta que, na condição “severina”, a morte é a única e verdadeira libertação. c) O poeta dramatiza a trajetória de Severino, usando o seu nome como adjetivo

para qualificar a sublimação religiosa que consola os migrantes nordestinos. d) Severino, em sua migração, penitencia-se de suas faltas e encontra o sentido

da vida na confissão final que faz a seu José, mestre carpina.

e) O poema narra as muitas experiências da morte, testemunhadas pelo migran-te, mas culmina com a cena de nascimento, signo resistente da vida nas mais ingratas condições.

4. fuvest-sp

decerto a gente daqui Jamais envelhece aos trinta nem sabe da morte em vida, vida em morte, severina.

João Cabral de Melo Neto, morte e vida severina

Neste excerto, a personagem do “retirante” exprime uma concepção da “morte e vida severina”, ideia central da obra, que aparece em seu próprio título. Tal como foi expressa no excerto, essa concepção só não encontra correspondência em: a) “morre gente que nem vivia”.

b) “meu próprio enterro eu seguia”.

c) “o enterro espera na porta: o morto ainda está com vida”. d) “vêm é seguindo seu próprio enterro”.

e) “essa foi morte morrida ou foi matada?”

5. fuvest-sp

– Finado severino,

quando passares em Jordão e os demônios te atacarem perguntando o que é que levas... – dize que levas somente coisas de não:

fome, sede, privação.

As “coisas de sim” estão , correspondentemente, em: a) Vacuidade – repleção – carência.

b) Fartura – carência – vacuidade. c) Repleção – carência – saciedade. d) Satisfação – saciedade – fartura. e) Vacuidade – fartura – repleção.

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6. Ufmg-mg

Sobre o adjetivo severina, da expressão morte e vida severina que intitula a peça de João Cabral de Melo Neto, todas as alternativas estão certas, exceto:

a) Refere-se aos migrantes nordestinos que, revoltados, lutam contra o sistema latifundiário que oprime o camponês.

b) Pode ser sinônimo de vida árida, estéril, carente de bens materiais e de afeti-vidade.

c) Designa a vida e a morte dos retirantes que a seca escorraça do sertão e o latifúndio escorraça da terra.

d) Qualifica a existência negada, a vida daqueles seres marginalizados determi-nada pela morte.

e) Dá nome à vida de homens anônimos, que se repetem física e espiritualmente, sem condições concretas de mudança.

7.

Com relação à obra morte e vida severina, assinale a alternativa incorreta:

a) Quanto ao número de sílabas poéticas, o poeta deu preferência aos versos redondilhos maiores.

b) Quanto à estrutura, a obra é formada por monólogos e diálogos, à maneira dos romanceiros medievais.

c) João Cabral optou por uma linguagem coloquial, já que os personagens são gente humilde e sem escolaridade.

d) João Cabral sofreu influência dos autos pastoris de Juan Del Encina, teatrólogo espanhol que sucedeu Gil Vicente.

e) O personagem Severino, ao se despersonalizar, passa a representar o coletivo, isto é, os sertanejos desvalidos.

8.

João Cabral de Melo Neto se aproxima dos autores da geração de 30 do Moder-nismo, mas foi _______________________________ o autor com quem ele mais se identificou. O nome que preenche a lacuna é:

a) Graciliano Ramos. b) José Lins do Rego. c) Rachel de Queirós.

d) José Américo de Almeida. e) Jorge Amado.

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9. pUC-Rs

o lápis, o esquadro, o papel; o desenho, o projeto, o número: o engenheiro pensa o mundo justo, mundo que nenhum véu encobre.

A estrofe acima ilustra a assertiva de que a poesia de João Cabral de Melo Neto revela rigor _______________ e preocupação com o ____________________. a) técnico – problema social.

b) semântico – fazer poético. c) estilístico – ambiente regional. d) formal – momento político. e) métrico – conflito estético.

10.

Com relação à obra morte e vida severina, responda às questões: a) Explique o título acima.

b) severina pode ser um substantivo e um adjetivo. Por quê? c) Por que o subtítulo auto de natal pernambucano?

(40)

gaBaRito

1. e 2. A 3. e

4. e 5. d 6. A

7. d 8. A 9. A

10.

a) Em sua retirada, Severino se depara a todo instante com a morte, fazendo com que, já no Recife, a ideia do suicídio povoe a sua mente, entretanto, com o nascimento de

mais uma vida severina, a vida acaba se sobrepondo à morte.

b) severina pode ser nome próprio como tam-bém severidade, rudeza, miséria.

c) Porque se trata da metáfora do nascimento de Jesus Cristo, o que caracteriza a funda-mentação religiosa do texto, justificando a identificação como Auto de Natal.

Referências

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