• Nenhum resultado encontrado

SOB O MANTO AZUL DE NOSSA SENHORA: A COR NOS TERNOS DE CATOPÊS EM MONTES CLAROS

N/A
N/A
Protected

Academic year: 2021

Share "SOB O MANTO AZUL DE NOSSA SENHORA: A COR NOS TERNOS DE CATOPÊS EM MONTES CLAROS"

Copied!
7
0
0

Texto

(1)

SOB O MANTO AZUL DE NOSSA SENHORA: A COR NOS TERNOS DE CATOPÊS EM MONTES CLAROS

Sicília Calado Freitas Doutoranda- PPGAV/UFRJ Resumo

Este trabalho apresenta uma análise de aspectos simbólicos e estéticos da cor azul no contexto da performance dos grupos de Catopês, em Montes Claros – MG. Com base numa pesquisa bibliográfica e dados coletados em campo, este estudo possibilita compreender o significativo papel do azul na estruturação simbólica e estética das imagens que compõem o ritual congadeiro nesta cidade.

Abstract

This paper presents an analysis of the symbolic and aesthetic aspects of the blue in the context of Catopês groups, in Montes Claros - MG. Based on a literature search and data collected in the field, this study allows to understand the significant role of the blue in the structuring of the symbolic and aesthetic Congado images in this city.

Palavras-chave: Congado, Catopês, cor, azul. Key words: Congado, Catopês, color, blue.

O Congado pode ser compreendido como um festejo popular de caráter religioso, resultante de influências afro-luso-brasileiras, que agrega, em sua performance, diversificados elementos plástico-visuais, coreográficos e musicais. Em Montes Claros, cidade do norte de Minas Gerais, esta manifestação é mantida e reinventada pelas crenças, saberes e tradições dos Marujos, Catopês e Caboclinhos, grupos que, a cada ano, renovam e comemoram sua fé a Nossa Senhora do Rosário, São Benedito e ao Divino Espírito Santo, na Festa de Agosto1.

Os Catopês trazem, em sua performance, elementos mais próximos das influências da cultura africana, especialmente em sua música e dança (QUEIROZ, 2005). Em Montes Claros, hoje, existem três Ternos de Catopês: dois devotos de Nossa Senhora do Rosário, sendo um liderado pelo Mestre João e o outro por Mestre Zanza; um devoto de São Benedito, liderado por Mestre Zé Expedito. Dentre os elementos visuais e simbólicos que compõem a performance dos Catopês, as cores possuem um significativo valor ritual, estruturando e materializando características, significados e saberes no universo da cultura congadeira. Para compreender parte dos sentidos e aspectos que constituem as cores nesta manifestação, destaco o azul como objeto de análise deste estudo, considerando

(2)

seu importante significado e valor simbólico, visual e estético no contexto do ritual congadeiro.

A cor como manifestação cultural e simbólica no Congado

As cores exercem um importante papel nas manifestações culturais, representando, constituindo e expressando parte da vida simbólica, artística e cultural das sociedades. Ao longo da história do uso e da presença da cor na vida e na arte, podemos observar ligações profundas e complexas deste fenômeno associadas às atividades socioculturais humanas. A cor, que pode ser definida, a princípio, como um fenômeno físico, em contextos culturais assume valores e significados socioculturais que se agregam aos processos da percepção humana e que são de fundamental importância para a compreensão de seu papel nas sociedades.

Para Pastoureau, “a cor, mais que um fenômeno natural, é uma construção cultural complexa, relutante a qualquer generalização, senão a toda análise, o que traz muitos problemas e dificuldades [para o seu estudo]” (PASTOUREAU, 2010, p. 11, tradução minha)2. Conforme o autor, a cor é um fenômeno, acima de tudo, social e por essa característica não se limita a constantes universais, ligadas apenas a aspectos físicos, químicos e biológicos, como grande parte das teorias sobre a cor abordam3. As dimensões conceituais da cor se estabelecem, sobretudo, temporal e espacialmente, contextualizadas com a história e os modos de ser e viver de uma determinada sociedade.

Nos contextos rituais, um aspecto que se destaca em relação à cor é a sua constituição como símbolo, compondo as ações, objetos e atividades do culto, principalmente no que diz respeito à manutenção das regras e das tradições; à transmissão dos conhecimentos envolvidos nos ritos; à constituição da identidade e hierarquias dentro do grupo, sendo ainda um importante elemento de natureza estética e artística. Na concepção de Turner, o “símbolo é a menor unidade do rito que ainda conserva as propriedades específicas da conduta ritual; é a última unidade de estrutura específica num contexto ritual” (TURNER, 1980, p. 21)4

. Assim, a cor, sendo esta estrutura mínima que constitui uma atividade ritual, pode agir de forma isolada ou ainda compor outras estruturas simbólicas que atuam no conjunto de regras, princípios e valores de um rito.

(3)

No universo congadeiro, a cor representa um importante elemento da tradição, da fé e da vida dos congadeiros, já que atua, no conjunto das imagens, como um fundamental agente catalizador e gerador de informações e sentidos no contexto religioso, simbólico e sociocultural do Congado. Em Montes Claros, o mundo visual do Congado é estruturado e caracterizado fundamentalmente por quatro cores: azul, vermelho, rosa e branco. Essas cores são dominantes e estão representadas em praticamente todas as imagens, indumentária e ornamentações que compõem a festa. Orientam estética e formalmente a composição visual, bem como fundamentam simbolicamente os ritos congadeiros, compondo as vestes, os adereços, os objetos religiosos e os cenários onde se passam as atividades do festejo.

Os códigos cromáticos presentes na simbologia do ritual congadeiro têm suas referências, de forma geral, nas tradições que orientam e constituem o festejo, especialmente as de ordem religiosa. Entretanto, a cada performance realizada, incorporam mudanças à medida que vão se desenvolvendo novas situações, demandas e necessidades,. Por ser parte significativa da composição ritual religiosa, a cor no Congado tem fortes ligações com as representações das divindades católicas. Assim como ocorre com os demais elementos imagéticos, são as figuras de Nossa Senhora do Rosário, São Benedito e do Espírito Santo que orientam, de modo geral, o uso simbólico da cor.

A cor ainda estabelece relações com outras demandas, que decorrem da realização do festejo, tais como: escolhas estéticas, ligadas ao gosto e preferências dos integrantes e mestres dos grupos; o contato com outros grupos e a troca de informações sobre interferências de instituições públicas e pessoas ligadas à organização do festejo; ou ainda a disponibilidade e praticidade do emprego de materiais. Dentre outros fatores, essas são variáveis consideráveis a respeito da presença e escolha das cores que constituem o repertório visual congadeiro.

A cor azul, neste contexto, tem relevante valor simbólico, compondo as vestimentas e adereços da maioria dos grupos e estabelecendo relações sígnicas fundamentais para as práticas religiosas e festivas do Congado. Assim, com base nas concepções apresentadas, a cor azul será analisada em seus aspectos simbólicos e estéticos, com o intuito de conhecer elementos fundamentais que constituem as imagens dos Catopês e do Congado em Montes Claros.

(4)

O azul

Para os grupos de Catopês é a cor que representa e identifica Nossa Senhora do Rosário, santa de devoção dos ternos do Mestre João Farias e do Mestre Zanza. Essa referência, em relação ao azul, também é compartilhada pelos demais participantes do festejo, incluindo a comunidade que assiste e acompanha as atividades da Festa de Agosto. O azul está presente nas roupas, nos adereços, nas bandeiras, nos instrumentos e na decoração das casas e da Igreja, especialmente no dia em que a santa é homenageada pelos ternos. No dia do Reinado de Nossa Senhora, o cortejo, que desfila pelas ruas da cidade, é tomado por tons de azul que compõem, especialmente, as vestimentas da rainha e do rei, dos príncipes e das princesas, as bandeiras que carregam a imagem da Virgem e os elementos da indumentária que caracterizam os congadeiros devotos de Nossa Senhora.

A tonalidade do azul predominante nos tecidos, objetos e imagens é a popularmente conhecida como “celeste”, ou seja, o azul cerúleo. É uma tonalidade clara do azul, mais aberta, suave e que se aproxima da cor do céu em dia ensolarado, daí a sua denominação. Ela está presente nas bandeiras, cujo brilho e a textura do tecido de cetim ressaltam a luminosidade da cor e sua suavidade.

No século XII, segundo Pastoureau (2010), a pintura ocidental passou a representar a Virgem Maria com vestimentas azuis, um dos fatos que difundiu essa cor como um dos atributos da santa. O azul passa a ser a cor do seu manto, com menor ocorrência do seu vestido e às vezes de toda sua indumentária, como uma referência ao luto da Virgem5, já que a cor azul causa-nos a sensação de profundidade e, segundo Pedrosa (1982) tem analogia com o preto, funcionando como sombra na pintura. A ampla divulgação do culto à Virgem e a repercussão do uso do azul nas representações marianas foi também responsável, neste período, pela divulgação do uso dessa cor, promovendo a sua presença em vários domínios da produção artística. Graças ao culto da virgem, o azul tornou-se, simbolicamente, uma cor divina.

Nas gravuras, presentes nas bandeiras do Congado, a figura da Virgem é composta por um manto azul celeste, cor presente também no manto da imagem esculpida da Nossa Senhora, que tem lugar de honra nos cortejos dos Reinados e nas missas do ritual congadeiro. Para os Mestres dos Catopês, essa referência é fundamental, o azul representando a Virgem e tem lugar de destaque na

(5)

caracterização dos ternos. Mestre João afirma “o azul é um símbolo de Nossa Senhora!” (MESTRE JOÃO, 2012). Nessa mesma direção, Zé Farias, integrante do Terno do Mestre Zanza, tece considerações: “a meu ver, o azul é em referência a Nossa senhora. Porque, no conceito da igreja em si, toda cor azul eles colocaram como... não sei se na história descreve essa cor azul pro manto de nossa senhora, mas o azul é essa referência a Nossa Senhora né, pelo manto azul” (ZÉ FARIAS, 2012)6.

No contexto do catolicismo, o azul, sendo significado de celestial, se refere também à figura de Deus que está nos céus, da sua revelação divina e espiritualidade, como descreve este trecho da Bíblia: “E viram o Deus de Israel, e debaixo de seus pés havia como que uma pavimentação de pedra de safira, que se parecia com o céu na sua claridade” (BÍBLIA SAGRADA, Êxodo 24:10, 2012).

Representando a Nossa Senhora do Rosário, a cor azul compõe ainda a bandeira do mastro que homenageia a santa. Assim como nas bandeiras-estandarte que os catopés ostentam durante a performance, o azul celeste do tecido de cetim reveste a bandeira que demarca um ponto central do ritual congadeiro: o hasteamento do mastro de Nossa Senhora do Rosário, que inicia as atividades da Festa de Agosto.

No Reinado de Nossa Senhora, a cor azul é dominante e obrigatória nas roupas e adereços que compõem o conjunto de príncipes, princesas, o rei e a rainha. A presença do azul, simbolizando Nossa Senhora do Rosário, é bem marcante, caracterizando significativamente o dia e a atividade do festejo destinados à santa.

As tonalidades azuis presentes no cortejo de Nossa Senhora são variadas, característica que valoriza a cor nessa composição monocromática, ressaltando as suas qualidades no que diz respeito à saturação, luminosidade e temperatura. Dessa forma, os azuis mais claros contrastam com os mais escuros, criando uma composição dinâmica, o que contribui significativamente para a beleza da performance do Congado, num dos momentos onde a interação entre os grupos participantes e a comunidade é bastante intensa. Ao desfilar pelas ruas do centro da cidade, o cortejo azul evoca e concretiza a devoção a Nossa Senhora, cumprindo a sua função de símbolo, ao rememorar e representar a figura da santa, intensificando ainda mais a expressividade estética inerente ao festejo.

(6)

Nessa etapa, é possível reconhecer e compartilhar, entre o público e os congadeiros, a função comunicativa e representativa da cor azul no ritual, o que reforça as práticas tradicionais do festejo bem como a identidade e os valores simbólicos que constituem o universo religioso, cultural e estético do Congado.

Considerações finais

Assim como as demais cores, o azul integra uma complexa rede simbólica que estrutura o ritual congadeiro, dando sentido e materializando visualmente concepções religiosas e culturais de um povo que demonstra sua força e fé através de seus festejos. Para os Catopês, é o símbolo de Nossa Senhora, materializando visualmente sua presença e possibilitando o reconhecimento da devoção à santa pelos participantes do festejo. Entretanto, além dos significados religiosos que tem esta cor, o azul ainda é contemplado por agradar esteticamente os integrantes destes grupos, compondo de maneira equilibrada, harmônica e bela suas vestimentas e adereços, bem como os demais elementos que decoram e caracterizam todo o cenário do festejo.

A cor azul, desse modo, possibilita aos Catopês, devotos e demais participantes do Congado a visualização e concretização de suas crenças em Nossa Senhora do Rosário, configurando simbolicamente a presença da Virgem no festejo e ainda promovendo a manifestação estética de suas práticas religiosas em imagens que demonstram e exaltam a beleza dos saberes e tradições da cultura congadeira.

REFERÊNCIAS

BÍBLIA SAGRADA. A. T. Disponível em: < http://www.bibliaonline.com.br/>. Acesso em: 23 jun. 2012. MESTRE JOÃO FARIAS. Montes Claros, jan. 2012. Gravação digital. Entrevista concedida a Sicília Calado Freitas.

PASTOUREAU, Michel. Azul: historia de un color. Barcelona: Páidos, 2010.

PEDROSA, Israel. Da cor à cor inexistente. Rio de Janeiro: Ed Léo Cristiano, 1982.

QUEIROZ, Luis Ricardo Silva. Performance musical nos Ternos de Catopês de Montes Claros. 2005. 237 f. Tese (Doutorado em Música - área de concentração Etnomusicologia) – Programa de Pós-Graduação em Música da Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2005.

TURNER, VICTOR. La selva de los símbolos. Madrid: Siglo XXI, 1980.

(7)

1

A Festa de Agosto é o momento onde os grupos de Congado da cidade se reúnem e realizam suas performances como homenagem aos santos de sua devoção. É realizada anualmente, na segunda quinzena do mês de agosto, durante cinco dias , com atividades diurnas e noturnas.

2

El color, más que un fenômeno natural, és una construcción cultural compleja, reacia a toda generalización, por no decir a todo análizis, que plantea numerosos problemas y dificultades. 3

Grande parte dos estudos sobre a cor baseia-se em pesquisas ligadas à percepção humana, ressaltando aspectos da fisiologia e psicologia dos mecanismos de percepção, ou ainda destacando aspectos físico-químicos dos pigmentos. Nas palavras de Pastoureau: “El color es, ante todo, um fenómeno social. No existe una verdad transcultural del color, como quizieran hacermos creer algunos libros basados en un saber neurobiológico mal asimilado o – lo que es peor – inspirados en una psicología de pacotilla más o menos esotérica” (PASTOUREAU, 2010, P. 11).

4

El símbolo es la más pequeña unidad del ritual que todavía conserva las propiedades específicas de la conducta ritual; es la unidad última de estructura específica en un contexto ritual.

5 Antes do azul ser difundido como a cor símbolo da Virgem, a santa tinha seu manto representado em outras cores, tais como marrom, verde escuro, azul escuro, preto e cinza. Segundo Pastoureau (2010), essas cores estavam ligadas à representação do luto da Virgem pelo seu filho morto na cruz. 6

Em Montes Claros, a cor azul, juntamente com o branco, representa a Nossa Senhora em outros festejos católicos, como por exemplo, a coroação da Virgem no mês de maio, onde a decoração e as vestimentas caracterizam têm as cores azul e branco.

Referências

Documentos relacionados

Foram avaliadas três concentrações de terra diatomácea e carvão ativado como material para purificação do hidrolisado de amido de mandioca.. As alíquotas de hidrolisado foram

Vós que plantastes na Igreja, por meio de vosso privilegiado filho Domingos, o místico remédio do Santo Rosário, fazei que abracemos todos tua santa devoção e

Como objetivo geral refletir sobre os impactos da pandemia COVID-19 na saúde física e emocional dos professores de uma escola pública de Ensino Fundamental dos anos

“Se Nossa Senhora não levar o Padre Jarecki para o Céu, então não há esperança alguma para nós.”. Mas há esperança para nós, sim – e graças, em parte, ao

• The definition of the concept of the project’s area of indirect influence should consider the area affected by changes in economic, social and environmental dynamics induced

(D) O serviço extraordinário será remunerado com acréscimos de 50% (cinquenta por cento) em relação à hora normal de trabalho, quando o fizer de segunda à sexta-feira, sendo

Como instrumento guia das discussões foi utilizado um questionário abordando: [1] grau de conhecimento prévio sobre ferramentas digitais de projeto, [2] frequência