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AS PESSOAS DE CLARICE: VIDAS QUE SE ENCENAM

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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA – UFBA

INSTITUTO DE LETRAS

MESTRADO EM LITERATURA E CULTURA

MÔNICA DE JESUS LOPES

AS PESSOAS DE CLARICE: VIDAS QUE SE ENCENAM

Salvador 2014

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AS PESSOAS DE CLARICE: VIDAS QUE SE ENCENAM

Dissertação apresentada ao Mestrado em Literatura e Cultura, do Instituto de Letras, da Universidade Federal da Bahia, como requisito para obtenção do título de mestre.

Orientador: Professor-Doutor Igor Rossoni

Salvador 2014

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AGRADECIMENTOS

Sou grata ao Deus que me foi delineado desde a infância: o Deus que sempre nos abre portas cuja generosidade não se pode dimensionar em palavras;

Sou grata a minha avó, Cremilda, que é o amor que tenho por ela;

Sou grata a meu avô, Edvaldo, que não se importou com os laços consanguíneos e me recebeu de braços abertos;

Sou grata aos meus pais, Raimundo e Cilda, que souberam trilhar com dignidade os labirínticos caminhos da paternidade e da maternidade;

Sou grata aos meus irmãos que mantenho junto a meu coração;

Sou grata a todas as tias, tios, primos e sobrinhos pelos eternos laços afetivos; Sou grata a Maia pela cumplicidade, ao longo de tantos anos;

Sou grata ao carinho e ao cuidado dos amigos de ontem, hoje e sempre; Sou grata ao Instituto de Letras, lugar de pertencimento;

Sou grata a Igor Rossoni, Professor- Orientador- Querido; Sou grata à escritora Clarice Lispector que me reinventa a vida; Sou grata aos orixás que zelam por mim.

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Escrever é tantas vezes lembrar-se do que nunca existiu. Como conseguirei saber do que nem ao menos sei? Assim: como se me lembrasse. Como um esforço de memória, como se eu nunca tivesse nascido. Nunca nasci, nunca vivi: mas eu me lembro, e a lembrança em carne viva.

Clarice Lispector

À medida que as camadas vão se aprofundando em nossa alma, vão se tornando cada vez mais inconscientes, e lá nas profundidades finais, no âmago da terra, onde se acham a larva fundida e o fogo, lá se desencadeiam paixões e instintos humanos invisíveis. Esse é o reino do subconsciente, o centro vitalizante, e o sacrossanto Eu do ator, o humano no artista, a fonte secreta da inspiração.

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RESUMO

O trabalho de pesquisa intitulado, As pessoas de Clarice: vidas que se encenam,

traz ao conhecimento do leitor a Clarice Lispector dramaturga que se

inscreve na cena teatral, com a peça: A pecadora queimada e os anjos

harmoniosos. Partindo do princípio de que a dramaturgia clariciana é mais

uma máscara da escritora em busca da “cena original”, encontrou-se, nas

teorias teatrais de Konstantin Stanislavski, a relação

persona-personagem-pessoa, no exercício da “máscara teatral”; procedimento que se aplica à

tragédia clariciana.

Palavras-chave: Clarice Lispector; Konstantin Stanislavski; Teatro;

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RESUMEN

El estudio titulado, As pessoas de Clarice: vidas que se encenam, trae a

los lectores la Clarice Lispector dramaturga que surge en la escena teatral,

con la obra de teatro: A pecadora queimada e os anjos harmoniosos.

Suponiendo que el drama clariciano es más una máscara de la escritora

en la búsqueda de la "escena original", se encontró en las teorías teatrales

de Konstantin Stanislavski, la relación personae-personaje-persona, en el

ejercicio de la "máscara teatral"; procedimiento aplicable a la tragedia

clariciana.

Palabras clave: Clarice Lispector, Konstantin Stanislavski, Teatro,

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SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO 08

2 CAPÍTULO I – VIVER E ESCREVER: A FICCIONALIZAÇÃO DA EXISTÊNCIA

11

2.1 CONTRADIÇÃO E MISTÉRIO: “NASCI DE UM CHOQUE ENTRE NÃO E SIM”

13

2.2 PERTO DO CORAÇÃO SELVAGEM: ROMANCE DE SENSAÇÕES – INDÍCIOS DE TEATRALIDADE

21

2.3 A DRAMATURGIA DE CLARICE LISPECTOR 28

3 CAPÍTULO II – STANISLAVSKI: A VIDA NA ARTE: PRIMEIRAS CENAS

41

3.1 UMA NOVA MANEIRA DE INTERPRETAR: O TEATRO DE ARTE DE MOSCOU

47

3.2 O SISTEMA STANISLAVSKI: A ARTE DE VIVER O PAPEL 51

3.2.1 Propagação e infortúnios 54

3.3 A PREPARAÇÃO DO ATOR E A CONSTRUÇÃO DA PERSONAGEM 59

3.4 A CRIAÇÃO DE UM PAPEL: CONSIDERAÇÕES 61

4 CAPÍTULO III – DO TEXTO À CENA: A MISE EN SCÉNE CLARICIANA 67

4.1 PECADO, CULPA E AUTOCONDENAÇÃO 74

4.1.1 O drama em um ato 77

4.2 ELEMENTOS DO TEXTO TEATRAL EM A PECADORA QUEIMADA E OS ANJOS HARMONIOSOS

82

4.2.1 “A pecadora queimada e os anjos harmoniosos”: a arte de pôr em

cena os vazios da existência 84

4.3 O SILÊNCIO DA PECADORA 88

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS 91

REFERÊNCIAS 94

ANEXO I – Transcrição da peça “A Pecadora Queimada e os Anjos Harmoniosos” de Clarice Lispector

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1 INTRODUÇÃO

A escritora Clarice Lispector parece compactuar com a literatura a cumplicidade de escrever sobre universo humano. A autora, embora tenha a escrita caracterizada pela forma enviesada, muitas vezes dissimulativa, jamais deixou de penetrar as angústias e inquietações que marcam a dramaticidade da vida cotidiana. Desfilam na obra pessoas, objetos, animais que protagonizam histórias e carregam em si a marca indelével da escritora por se lançar, incontinente, ao entendimento da essencialidade dos seres e das coisas. Para tanto, não é distante pensar que sugere jogo cênico de máscaras teatrais, no sentido de desdobrar o eu em vários eus. As personagens, como ela própria, não podem sustentar o desnudamento; metamorfosear-se, portanto, pode apresentar-se como procedimento de sobrevivência.

O trabalho investigativo As pessoas de Clarice: vidas que se encenam, registra facetas literárias de Clarice Lispector, anunciando a escritora como dramaturga de única peça teatral: A pecadora queimada e os anjos harmoniosos (2005) cuja produção vem confirmar o caráter dramático que já se faz presente na narrativa ficcional da autora. Neste sentido, Clarice Lispector dramaturga oferece ao leitor/pesquisador uma gama de possibilidades investigativas que culminam na ratificação da complexidade da obra. A representação teatral acaba por delinear, mais precisamente, a personagem na configuração de pessoa. A sobreposição de máscaras é artifício que, longe de promover a relatividade do estar no mundo, é elemento condutor para o autoconhecimento.

O exercício da máscara teatral promove nas personagens claricianas transformações necessárias a uma existência multifacetada e, portanto, mais significativa. O uso desse artifício possibilita o desdobramento do indivíduo, afastando-o do caráter alienante das imposições sociais. Ao pesquisar sobre o jogo de máscara na arte teatral, chega-se ao dramaturgista russo, Konstantin Stanislaviski que revolucionou a história do teatro, trazendo para o palco o espírito humano. A representação artística enquanto representação da vida no sentido mais amplo. Stanislavski entende que artificialidade da cena teatral está não só na ausência de estudo mais apurado do texto dramático, como, principalmente, pela concepção de personagem dissociada da feição humana. Stanislavski assevera que

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personagem é pessoa e o teatro não pode se abster disso. O sistema stanislavskiano surge da necessidade de abandonar as obsoletas cartilhas de desempenho teatral e de dar à arte dramática o feitio, buscando a verdade cênica; a representação da vida no palco.

Clarice Lispector e Konstantin Stanislavski estão unidos por verdade de que não se desfazem. Clarice busca a verdade que acredita estar no âmago das pessoas e a qual tenta representar pela linguagem, mas a linguagem revela-se insuficiente. Ao fracassar com a linguagem, reafirma a essencialidade dos seres e das coisas. A voz clariciana ocupa-se em revelar o irrevelável, em dizer o indizível; e somente quando fracassa – potencializando a eloquência do silêncio – é que visa às zonas mais recônditas do indivíduo. Stanislavski pauta a vida na arte e, para tanto, atém-se às peculiaridades humanas que compreendem a existência das personagens. De acordo com o dramaturgista, entre ator e personagem devem-se permutar sentimentos.

A pecadora queimada e os anjos harmoniosos trata de uma tragédia em único ato, em ambientação medieval, apresentando treze personagens dos quais quatro são os mais significativos: a Pecadora (protagonista), Sacerdote, Esposo e Amante. O fio dos acontecimentos dá-se a partir da constatação de adultério, a instauração do triângulo amoroso e a delação da pecadora pelo esposo traído. O Não Adulterarás, o sétimo dos mandamentos, é transgredido pela Pecadora que, movida pela hybris trágica, em atitude de desmesura, propõe-se a uma vida errante, aquém dos valores éticos morais e religiosos da época. A Pecadora é julgada e condenada em praça pública, e – como os hereges na Idade Média – deve morrer na fogueira. Entretanto, ela nada diz; apenas sorri, silenciosamente.

Assim sendo, como razão percussiva de investigação, no primeiro capítulo desta dissertação, intitulado Viver e escrever: a ficcionalização da existência, busca dispor em evidência uma Clarice que se monta e desmonta ao longo da própria existência. Vêm à cena vida e obra amalgamadas sem, contudo, implicar investigação biográfica. Clarice Lispector transita por todos os textos que produz, assim como transita pela vida, aos moldes de flâneur a percorrer o universo interior de si e, em simultâneo, dos indivíduos. Capta o mais profundo do ser humano que é flagrado na banalidade do cotidiano e, nos desvãos, anuncia e denuncia a complexidade humana. Neste capítulo, registra-se a ficcionalização a qual a escritora se propõe desde a infância, onde fabulava estórias que não acabavam

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nunca. Viver literariamente sugere ser a única forma de continuar existindo: “Viver no mundo dos livros”.

O segundo capítulo, Stanislavski: A vida na arte – primeiras cenas, destina-se ao dramaturgista russo que, assim como Clarice Lispector, revela inclinação para as artes ainda na primeira infância. Foi no âmbito de uma família bastarda e, sobretudo, apaixonada pelo universo artístico que Stanislavski dá os primeiros passos na representação teatral. Expericiando o desempenho teatral, Stanislavski começa a fomentar mecanismos de encenação no palco, introduzindo a vivência de que a atuação do ator está vinculada à atividade espiritual. Assim, Stanislavski coaduna com o modo de Clarice Lispector conceber a personagem, revestido de uma preocupação filosófica-existencial. Por sugestão, a ambos cabe o recorrente questionamento: "O que eu sou?”. Na Rússia do final do século XIX, destinou-se ao teatro função terapêutica; podia-se mudar o sujeito com os grandes espetáculos. Para Clarice, a literatura – narrativa ou dramática – lhe é "sopro de vida"; ao final de cada escrita, espera-se, desesperadamente, por novo texto e, no intervalo no qual se espera por renascer, morre-se: “Quando não escrevo, estou morta”.

No terceiro capítulo, a interpretação da Pecadora queimada e os anjos harmoniosos à luz das teorias teatrais de Stanislavski. Neste momento, ocorre a discussão em torno da máscara teatral, propriamente dita, e surge a materialização do autor, como espécie de mentor arguto e generoso, ensinando aos alunos apreenderem/entenderem que – antes de todo e qualquer direcionamento metodológico – carece-se amar a arte de representar, e que representar é viver, no palco, a existência de outrem. Aos discípulos registra que não se deve adotar a personagem pelo grau de empatia que se estabelece com ela; nem buscar na personagem características próprias – [dos atores] que criam imagem sempre positiva de si mesmos –; mas, sobretudo, encontrar nas diferenças a possibilidade de experienciar o que parece distante. Stanislavski não escolhe os atores pelo tipo físico; preocupa-se com o desenvolvimento do ator no palco (ação física), com a assunção da máscara teatral e o exercício do se mágico e, assim, promove, no palco, a verdade cênica, a mise-en-scéne teatral: a vida na arte.

Deste modo, a presente abordagem busca aproximar Lispector e Konstantin Stanislavski por se constituírem – na cena vivencial – dois investigadores da alma humana.

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2 CAPÍTULO I – VIVER E ESCREVER: A FICCIONALIZAÇÃO DA EXISTÊNCIA

Eu sou uma atriz para mim mesma. Eu finjo que sou uma determinada pessoa, mas na verdade não sou nada (LISPECTOR apud BORELLI, 1981, p. 40).

Versar sobre Clarice Lispector (1920-1977) é tarefa que exige responsabilidade. Isto porque a escritora possui uma das mais vastas fortunas críticas na Literatura Brasileira. O montante da obra foi largamente discutido dentro do universo literário, linguístico, psicanalítico, filosófico, religioso, biográfico etc. Nesse sentido, o que se tem é uma escrita caleidoscópica, por intermédio da qual se sobrepõem paixões, desejos, projeções e identificações que se manifestam sutilmente na vida cotidiana. Na retórica clariciana há uma quebra no fluxo narrativo referencial; a escritora não se atém a fatos e/ou acontecimentos; é uma narrativa que sugere se afastar do desenvolvimento de ação, procedimento a que um texto narrativo usualmente se propõe. No dizer de Bosi (1994), a autora dispõe a linguagem marcada pelo “uso intensivo da metáfora insólita, pelo fluxo de consciência e pela ruptura com o enredo factual” (BOSI, 1994, p. 424); Clarice Lispector capta e registra sensações, privilegiando a vivência interior da personagem que passa a ser o cerne da própria escritura. Daí o leitor se deparar com exercício retórico de linguagem não convencional, sugestivo e enviesado que – para além de mera recepção racionalizada – carece de apreensão pelo concurso dos sentidos. De modo geral, o mundo retratado é o “das entrelinhas, dos sussurros, da introspecção, das epifanias em meio ao cotidiano, das questões metafísicas, além e aquém da realidade prosaica” 1.

O fazer literário em estudo sugere-se ligar à própria concepção de mundo que rege a natureza do indivíduo, nele atuando em estado de experiência vital. Assim, vida e obra amalgamam-se sem necessariamente limitar-se à construção de discurso autobiográfico. Rossoni (2002) afirma que Clarice “revisita e se busca no próprio ato do fazer [...] a obra lhe é o meio; a vida original, a meta à qual se lança em busca de si mesma” (ROSSONI, 2002, p. 20). No dizer de Yudith Rosenbaum, tanto a pessoa Clarice, como a escritora Clarice são movidas pelo mesmo desejo:

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“ambas querem ‘a coisa’ irrevelada. O mistério, portanto, está no objeto da busca e não na autora e seu cotidiano” 2.

Segundo Nolasco (2001), Clarice Lispector fez da própria vida matéria para a ficção; e da escrita o processo de busca de identidade. Enquanto autor-escritor, vela-se, desvela-se e revela-se continuamente na própria escritura.

Numa obra como a de Clarice, em que cada escritura [texto] é a tentativa apaixonada de chegar ao seu esvaziamento, ao seu fracasso ao eu sem “máscara”, torna-se quase impossível situar esse autor que se multiplica para dentro, ressurgindo a cada nova escritura como “um eu enviesado” (NOLASCO, 2001, p.24).

A espécie de “jogo de cena” que a autora imprime ao texto literário dissimula o lugar do sujeito-escritor o que confere à obra a impossibilidade de totalizar-se; vez que a incompletude, marca de sua literatura, pontua-se na própria linguagem, na investida de nominar o inominável; de dizer o não–dito: o inacabado do ser que incessantemente se busca – “Eu estou sempre incompleta” (BORELLI, 1981, p. 25).

Clarice Lispector institui uma transição gradual ao ato da escrita que provém sair da condição de característica inerente à autoria: “Escrevo simplesmente como quem vive. Por isso todas as vezes que fui tentada a deixar de escrever, não consegui. Não tenho vocação para suicídio” (BORELLI, 1981, p.24).

Deste modo, avança pelo construto de negação da obrigatoriedade em detrimento do desejo de exercê-lo ou não: “eu não sou profissional, eu escrevo quando quero” para − categoricamente − declarar literatura como íntimo sopro de vida: “Quando não escrevo, estou morta”. Na adolescência, aquela que seria uma das maiores escritoras do Brasil encontra, no âmbito literário, o lugar no qual escolheu para viver: “O mundo onde eu gostaria de morar” (GOTLIB, 2009, p.171): o mundo dos livros. Clarice Lispector, portanto, sugere viver o/no discurso literário; reconhece que a vida é sempre representada, mas não dissocia a inquietação subjetiva da realidade objetiva. Jacob David Azulay, amigo e psicanalista da escritora, assinala que Clarice aventurava-se com a própria escrita: “Citava trechos e ia construindo seus livros durante as sessões” (BORELLI, 191, p.18). Ao escrever, inscreve-se no texto e visita o desconhecido da própria existência, pontuando em intermitente procura o que ainda não foi possível revelar e/ou o que é.

2

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2.1 CONTRADIÇÃO E MISTÉRIO: “NASCI DE UM CHOQUE ENTRE NÃO E SIM”

Mistério parece ser a palavra recorrente utilizada por críticos, leitores e até mesmo amigos para designar Clarice Lispector; como endossa Carlos Drummond de Andrade, no poema Visão de Clarice:

Clarice,veio de um mistério, partiu para outro. Ficamos sem saber a essência do mistério. Ou o mistério não era essencial,

era Clarice viajando nele.

Era Clarice bulindo no fundo mais fundo, onde a palavra parece encontrar

sua razão de ser, e retratar o homem (DRUMMOND, 1997, p. 4-5).

Assim, em torno do slogan Clarice Lispector, edificou-se uma teia de acepções que culmina por situá-la em patamar praticamente isolado dentro do cenário das letras nacionais. Desde os dados referentes ao respectivo nascimento – “Nasci na Ucrânia. Quando?... não, não quero dizer” (GOTLIB, 2009, p. 39) − até a natureza, reservada e silenciosa, avessa a entrevistas: “[...] não gosto de dar entrevistas. Em geral me fazem muitas perguntas. E eu não sei me explicar [...]” (LISPECTOR, 2005 p.135), tudo parece ser envolvido por uma áurea de nublamento que sugere recobrir e ampliar o tom de mistério que ocorre tanto na obra quanto na existência de tal personalidade.

Em Clarice uma vida que se conta (2009), Nádia Gotlib observa ao conhecimento do leitor as incertezas que circundam a data de nascimento de Clarice Lispector e a idade com a qual teria chegado ao Brasil. A certidão de nascimento, documento original escrito em russo, disponibilizado pela família em 2007, atesta: 10 de dezembro de 1920, (nascimento); 14 de novembro de 1921 (data de emissão); Tchethélnik, na região de Vínnitsia, na Ucrânia-Rússia, o lugar de origem. Gotlib chama a atenção para um reforço a tinta no número zero da data; insinuando uma possível adulteração do documento. O fato é que Clarice apresentou, ao longo da trajetória, o desejo de esconder a veracidade dos dados pessoais e de reescrever a própria história, apropriando-se de datas distintas para o ano de nascimento.

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Nas duas últimas décadas de vida, Clarice adota diferentes datas de nascimento. Embora alguns documentos seus continuem fiéis ao ano de 1920 e embora a crítica adote, durante longo tempo, o de 1925, Clarice registra as de 1921, 1926, 1927... (GOTLIB, 2009, p. 36-7). Em uma das raríssimas entrevistas da autora, concedida ao Museu da Imagem e do Som (1976), no Rio de Janeiro, Afonso Romano de Sant’Anna, amigo da escritora e um dos interlocutores, refere-se a Clarice como uma adolescente em 1944, quando a escritora se lança no mundo literário: “Em Perto do coração selvagem você já era Clarice Lispector e ainda era uma menininha de dezessete dezoito anos” (SANT’ANNA apud MONTERO; MANZO, 2005, p.144). Clarice, por sua vez, não se opõe à colocação de Sant’Anna o que denuncia a intenção de não ratificar a verdadeira idade.

Benjamin Moser (2009) relata que Clarice teria aproximadamente um ano e meio de vida, ao desembarcar no Brasil, em 1922. De acordo com o biógrafo, a insistência da autora em rebaixar a idade transpõe a vaidade. É antes uma negação da vida que antecede a do Brasil, onde se registra a migração da família Lispector, da Europa para a América do Sul, fugindo da perseguição antissemita da Revolução Russa (1917) e da Primeira Grande Guerra Mundial (1914-1918). Clarice nasce durante o translado e das poucas vezes que se refere ao lugar de origem, fala superficialmente: “A minha terra não me marcou em nada, a não ser pela herança sanguínea. Eu nunca pisei na Rússia” (MOSER, 2009, p. 24).

Despistar sobre o ano de nascimento insinua tentativa de desviar-se da designação de russa, ucraniana e, portanto, de estrangeira. É o meio de esquecer um passado sombrio do qual efetivamente não lembra, mas que passa a conhecer através do sofrimento da mãe doente, do depoimento das irmãs mais velhas, da luta do pai para sobreviver e, principalmente, da condição sob a qual foi concebida. A mãe de Clarice, vitimada pela sífilis, viu, na gestação de um filho, a possibilidade de cura; Clarice viria ao mundo para salvar a vida da mãe, fato que não ocorreu. Em crônica de 15 de junho de 1968, a escritora relata:

[...] fui preparada para ser dada à luz de um modo tão bonito. Minha mãe já estava doente, e, por uma superstição bastante espalhada, acreditava-se que ter um filho curava uma mulher de uma doença. Então fui deliberadamente criada: com amor e esperança. Só que não curei minha mãe. E sinto até hoje essa carga de culpa: fizeram-me para uma missão determinada e eu falhei [...] sei que fizeram-meus pais me perdoaram eu ter nascido em vão e tê-los traído na grande

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esperança. Mas eu não me perdôo. Quereria que simplesmente se tivesse feito um milagre; eu nascer e curar a minha mãe. Eu nem podia confiar a alguém essa espécie de solidão de não pertencer porque, como desertor, eu tinha o segredo da fuga que por vergonha não podia ser conhecido [...] (LISPECTOR, 1999a, p.111).

A circunstância da orfandade ressurge na obra, denunciando o sentimento de ausência que jamais conseguiu reverter. A sensação de “não pertencer” é marca presente na literatura clariciana. Personagens como Joana (Perto do coração selvagem) e Macabéa (A hora da estrela), órfãs de pai e mãe, fechadas em si mesmas, vivenciam o esvaziamento das relações familiares, em silenciosa existência. Joana - criança, apesar de ter todos os sentidos aflorados, carrega para dentro de si a vida, experimentando, ao mesmo tempo, sentimentos opostos: “alegria quase horrível, alegria quase de chorar, aperto e afrouxamento do corpo [...]” (LISPECTOR, 1998, p. 38-9). Macabéa traz consigo culpa e erro, herança da educação impositiva de uma tia que lhe impunha o silêncio através de agressões físicas: “A menina não perguntava por que era sempre castigada, mas nem tudo se precisa saber e não saber fazia parte importante de sua vida [...]” (LISPECTOR, 1998, p. 28-9). O silêncio de Joana sugere-se fundador, dele sai forte para enfrentar as hostilidades da existência; Macabéa, parca de palavras, transita anônima pela vida.

Outro acontecimento que interfere de maneira decisiva para a sustentação da aura de mistério e uma possível crise de identidade reveladora, vivenciada pela autora, é a destituição do nome de origem: de Haia/Chaya3 Lispektor passa a se chamar Clarice Lispector. Apesar da tentativa do pai de Clarice de se familiarizar com a realidade brasileira, associando os nomes russos a denominações comuns no Brasil, a atmosfera estrangeira insiste em rondar a vida da escritora. Clarice foi recebida pela crítica especializada como escritora de “nome estranho e até desagradável” (MOSER, 2009, p. 22), evidenciando o estrangeirismo do nome. Moser revela ainda que “Clarice Lispector já fora considerado pseudônimo, sendo o nome original apenas mencionado depois da sua morte” (MOSER, 2009, p.14). Após o casamento com Maury Gurgel Valente, em janeiro de 1943, a escritora

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Na biografia Clarice uma vida que se conta (2009), Nádia Gotlib refere-se ao nome original - russo de Clarice Lispector como “Haia”; e na biografia Clarice, (2009) Benjamim Moser como “chaya”. De acordo com o dicionário hebraico, Haya é variação de Chaya e ambos significam “viver”, “vida”.

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se em várias assinaturas: “Clarice Lispector Gurgel Valente, Clarice Gurgel Valente, Clarice G. Valente, Clarice Lispector” (GOTLIB, 2009, p.38) assumindo, enfim, Clarice Lispector, marca literária, que estampou nos livros. Clarice, ao tornar-se escritora, traz consigo uma série de especulações: a origem do nome Lispector, um “sotaque estrangeiro” (na verdade um defeito de dicção) que a filia a diversas línguas e nacionalidades; e, principalmente, o modo de ser e escrever: enigmático, angustiado, dramático. A escritora, em movimento de invenção/renovação, tece e busca a própria existência no mundo, envolvendo-se em uma “capa de encobrimento” que, ao mesmo tempo em que a resguarda do desnudamento, a dispõe em evidência pela faceta instigante do mistério.

A amiga e biógrafa Olga Borelli conviveu com Clarice os sete últimos anos de vida. Presenciou de perto os enfrentamentos; os entusiasmos e os silêncios; testemunhou-lhe as crises de criação, bem como a escrita compulsiva. E ainda assim as impressões sobre a escritora desemborcam em contradições. No livro, Clarice Lispector: um esboço para um possível retrato (Borelli, 1981) deixa entrever a dificuldade de delinear-lhe a personalidade. Quem era Clarice Lispector? Borelli, ao mesmo tempo em que revela ser Clarice “uma dona de casa que escrevia romances e contos”4 confessa que os afazeres domésticos a entediavam: “[...] fatigava-se e impacientava-se por ter que exercê-los. Mas nunca se negou a enfrentá-los5 [...]” Segundo Borelli, Clarice tinha consciência do afastamento social, da necessidade de isolamento que poderia acontecer a qualquer hora, em qualquer lugar e em qualquer circunstância. Desse modo, precisava ser confluente com os outros; cumprir os rituais preestabelecidos. “[...] Dizia não ter estilo de vida, um modo de ser social como os outros6 [...]”. A própria Clarice ora confirmava a própria obscuridade: “Sou tão misteriosa que não me entendo; ora se contrapunha: Meu mistério é não ter mistério” (LISPECTOR, 1999a, p.116).

Em correspondências dirigidas às irmãs, Tânia e Elisa, entre os anos 1940 e 1950, reunidas em coletânea de 120 cartas intitulada Minhas queridas (MONTERO, 2007), Clarice Lispector oscila entre o tédio e a melancolia; a tristeza e a saudade. Nelas, particularmente, as que foram escritas no exterior, quando morou na Europa e nos Estados Unidos, a autora assume o tom confessional e revela que o exercício

4

Última entrevista de Clarice Lispector, entrevistada por Julio Lerner para a TV Cultura, em janeiro de 1977 e publicada na revista Shalom, nº 296, v.2, 1992.

5

CLARICE apud BORELLI, 1981, p. 14-19.

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de esposa de diplomata lhe confere não só uma série de obrigações sociais, como também os deslocamentos para fixar residência em lugares nos quais não conseguia criar raízes.

[...] Mas estou chateada. Imaginem que aqui [Lisboa] às 10 horas da noite faz sol ainda. É detestável. Não estou tendo prazer em viajar. Gostaria de estar com vocês aí, ou com Maury. O mundo todo é ligeiramente chato, parece. O que importa na vida é estar junto de quem se gosta. Isso é a maior verdade do mundo. E se existe um lugar especialmente simpático é o Brasil [...] (LISPECTOR, 2007, p. 40)

(...)

[...] Ando em nova onda de apatia, o que é coisa velha... [...] Em agosto teremos cinco anos de exterior. Não são cinco dias. Cinco de não saber o que fazer, cinco anos durante os quais, dia a dia, me perguntei, como eu perguntava a vocês o que é que eu faço? [...] a vida começa a parar por dentro, e não se tem mais força de trabalhar ou ler. [...] Berna é um túmulo, mesmo pra os suíços. E um brasileiro não é nada na Europa [...] (LISPECTOR, 2007 p. 210).

O processo de desenraizamento está registrado em quase todas as missivas. Em carta enviada ao amigo Lúcio Cardoso, deixa escapar uma profunda melancolia: “[...] É ruim estar fora da terra onde a gente se criou, é horrível ouvir ao redor da gente línguas estrangeiras, tudo parece sem raiz; [...]” (LISPECTOR, 2002, p. 146). Estar fora do Brasil, portanto, era estar fora de foco; longe do lugar de pertencimento. A escritora, que queria ser brasileira sob todos os aspectos, lutou para legitimar a nacionalidade: “Sempre se indignou diante do fato de que havia quem relativizasse a sua condição de brasileira” (MOSER, 2009, p. 19). Paradoxalmente, demorou-se por quase dezesseis anos em terras estrangeiras onde, em meio à situação de guerra e aos conflitos pessoais, escreveu romances e contos; nasceram-lhe os filhos.

Assim, a sensação de estar fora de lugar no mundo denuncia a estranheza que parece acompanhar a existência da autora, desde o nascimento:

Tenho certeza de que no berço a minha primeira vontade foi a de pertencer [...] por motivos que aqui não importam, eu de algum modo devia estar sentindo que não pertencia a nada e a ninguém (LISPECTOR, 1999a, p.110).

Ainda na infância, aos sete anos, quando se propunha a escrever contos para serem publicados na coluna infantil do Diário Pernambucano, os textos jamais foram aceitos. Isto se deu por causa da maneira atípica de escrever histórias que fugiam

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do padrão de “era uma vez”. “[...] Eu cansava de mandar meus contos, mas nunca publicavam, e eu sabia por quê. Porque os outros diziam assim: ‘Era uma vez, e isso e aquilo... ’. E os meus eram sensações” (LISPECTOR, 2005, p. 139). Não foi diferente com o livro de estreia que circulou por entre críticos e editores da época, a exemplo de Álvaro Lins que, por fim, considerou o escrito como não inteligível. Clarice, mistura de timidez e ousadia, propôs ao editor do jornal, A noite, no qual trabalhava, a publicação do romance, abstendo-se dos direitos autorais. Com o surgimento do primeiro romance, Perto do Coração selvagem (1943), Clarice constituiu-se em mistério, desmitificando o caráter sequencial das narrativas ficcionais em vigor, trazendo no interstício da linguagem as vivências interiores do ser humano. Depois de ler O Lobo da Estepe (Hermann Hesse), Clarice confessa: “a viagem interior me fascinava. Eu havia entrado em contato com a grande literatura” (GOTLIB, 2009a, p. 156).

Clarice Lispector configura uma acepção multifacetada de escritora, atribuindo à prática da escrita procedimentos particulares. A concentração prescrita para a elaboração do texto literário ocorria de forma peculiar, pois a autora não se esquivava, enquanto escrevia, da companhia dos filhos, de atender ao telefone, de direcionar a organização da casa ou de receber amigos. Poderia interromper a trajetória por longo tempo e retornar à escrita sem perder o fio de Ariadne. O trânsito por universos se não divergentes, distintos, com propriedade, aponta para uma capacidade inerente à autora que é o de exercer papéis dentro e fora da cena literária. Aliando a rotina familiar ao fazer literário, Lispector escreveu os seus textos, encontrando na realidade subjetiva do cotidiano, os tipos que iriam compreender a obra: os tipos humanos em estado de busca lancinante de si mesmos.

A alma exposta em sua obra é a alma de uma mulher só, mas dentro dela encontramos toda a gama de experiência humana. Eis porque Clarice já foi descrita como quase tudo: nativa e estrangeira, judia cristã, bruxa e santa, homem e lésbica, criança e adulta, animal e pessoa, mulher e dona de casa. Por ter descrito tanto de sua experiência íntima, ela podia ser convincentemente tudo para todo mundo, venerada por aqueles que encontravam em seu gênio expressivo um espelho da própria alma. Como ela disse, “eu sou vós mesmos”. (MOSER, 2009, p.17).

Deste modo, exercita fazer literário onde efetiva procedimento de construção da linguagem diferenciado em relação aos contemporâneos. Interessada pela

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repercussão da realidade exterior nos estados interiores de cada personagem observa-lhes dúvidas e/ou inquietações como repercussões inerentes à condição humana; assim, retoma o exercício de aprendizagem sobre si – em âmbito de essencialidade. Beirando à aleatoriedade intuitiva, frequentava bibliotecas e escolhia os livros pelos títulos: “misturava Dostoievski com livro de moça, que hoje não existe mais. Eu tinha lido uns romances [...] de Delly e Ardel [...]” (LISPECTOR, 2005, p.143). Logo, compunha um mosaico de percepções que iriam acentuar a particularidade nata de escrever, preocupando-se antes com as impressões do que com os fatos enredados na história. A narrativa clariciana, de um modo geral, não centra atenção especial aos elementos exteriores − no tempo cronológico e no espaço físico − que envolvem as personagens e as ações e, sim, ao espaço mental, explorando a consciência humana: “Os meus livros não se preocupam com os fatos em si, porque para mim o importante é a repercussão dos fatos no indivíduo” (LISPECTOR apud BORELLI, 1981, p.70).

Borelli (1981) relata que o fazer literário de Clarice concebe-se por intermédio de ideias aparentemente desconexas; fragmentos de imagens e sensações registrados em pedaços de papel para, em dado momento, serem re-significados na condição de romances e contos. “Aprendi a não rasgar nada do que escrevo” (LISPECTOR apud BORELLI, 1981, p.84). A própria autora revela que Perto do coração Selvagem, como as demais obras, foram resultado dessas anotações “despretensiosas” ao adquirirem corpo na construção do texto: “[...] eu estava com um montão de notas, assim, separadas, para um romance.[...] Estas folhas “soltas” deram Perto do coração selvagem” (LISPECTOR, 2005, p. 143). As palavras, portanto, enquanto signos sensíveis e inteligíveis, iam sendo moldadas e interligadas pela escritora, transformando fatos aparentemente banais em revelação capaz de despertar, no indivíduo, o desejo de saber sobre a própria existência: “que é que eu sou?”7; entendendo-a enquanto experiência paradoxal: “viver, afinal de contas, é entre dois nada: antes do nascimento e depois da morte”8; dentro de uma temporalidade múltipla, longe da lógica da razão e próxima dos sentidos: “Eu procuro alguma coisa que não sei o que é. Algumas pessoas acham que a procura dura o tempo de uma vida9”.

7 BORELLI, 1981, p. 14 8 Ibidem p. 19 9 Ibidem p.19

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Diante dessa anunciação, o leitor percebe que o processo tenso de busca da descoberta de si na condição humana revela-se na dinâmica interna das personagens, por fluxo de consciência que afasta as determinações e prioriza o sentido das coisas em si: “O leitor de Clarice vê uma alma virada pelo avesso” (MOSER, 2009, p.16). A linguagem – além de discurso ficcional − passa ser instrumento de investigação; no sentido de fazer-se a si como efeméride de sentidos que tendem à negação da palavra e daí ao silêncio que se constitui no estado de encontro primordial com a vitalidade da poesia. Rossoni (2004) alega que Clarice Lispector, embora privilegie o que se passa no âmago da personagem, o ponto de partida é sempre a realidade que para escritora não é fenômeno puramente exterior: “O que é a vida real? Os fatos? Não, a vida real só é atingida pelo que há de sonho na vida real” (LISPECTOR apud ROSSONI, 2004, p. 113). De acordo com o estudioso, Clarice introjeta o exterior no mundo interior da escrita e, dessa forma, busca no âmbito da sagração da linguagem, a essencialidade do ser e das coisas.

No dizer de Nunes (1966), a concepção de mundo de Clarice Lispector tem marcas da filosofia da existência. Exercita uma contingência visceral que está a todo tempo em busca do devir humano. O autor destaca a experiência da náusea, como característica constante na obra da escritora: “[...] é o momento excepcional por que passam os personagens de Clarice Lispector nas crises decisivas” (NUNES, 1966, p. 20). Clarice Lispector, entretanto, em entrevista concedida ao Museu de Arte e do Som do Rio de Janeiro (1976), revelou que a sua náusea se diferenciava da de Sartre: “[...] Minha náusea é sentida mesmo [...] no corpo todo, na alma toda. Não é sartreana” (LISPECTOR, 2005, p.151). Nunes observa certa perspectiva mística na obra clariciana como elemento diferenciador entre a escritora e o filósofo. Mais que mal-estar físico, as situações nauseantes são movidas por profunda e violenta angústia a qual a escritora dramatiza e perpetua, como espécie de elemento de salvação. É o momento que antecede a epifania, e resulta sempre da dolorosa sensação de fragilidade exteriora que mascara a condição humana.

O mal-estar da angústia, diferente do medo, provém da insegurança de nossa condição desnudada como puro estar-aí (Dasein), como possibilidade originária que nada sustenta. Abandonado, entregue a si mesmo, livre, o homem que se angustia vê diluir-se a firmeza do mundo. O que era familiar torna-se-lhe inóspito. Sua personalidade social recua. O círculo protetor da linguagem esvazia-se, deixando lugar para o silêncio (NUNES, 1976, p. 16-17).

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Clarice jamais se referiu ao termo “epifania”, mas a crítica identifica o fenômeno como elemento recorrente na referida escritura e que não implica uma compreensão contemplativa da realidade. É antes uma experiência vertiginosa e que compromete uma situação aparentemente confortável. Entender o caráter epifânico da literatura de Clarice Lispector constitui tarefa imprescindível para a compreensão da obra, vez que possibilita às personagens vivenciar, num lapso de tempo, a profundidade reflexiva de realidade até então não percebida. Rossoni (2007) diz que o processo epifânico no discurso clariciano compreende três momentos:

1. Situação de normalidade: visualizada como pleno gozo da consciência convencional [...]

2. Situação de estranhamento: a consciência convencional se põe a perder [...]

3. Situação de pseudo-retorno à normalidade: a consciência final não é mais a mesma que iniciou o processo [...] (ROSSONI, 2007, p.96).

Tanto nos contos como nos romances, as personagens são tomadas de assalto pelo instante de percepção de uma realidade na qual sempre estiveram inseridas, mas para a qual não atentavam. Do flash de consciência transposto para a experiência ritual da epifania, aproxima a identidade perdida da vivência plena e pulsante e, talvez por isso, a reação de angústia diante do velho/novo. Com essa forma tão particular de escrever, a autora distancia-se do mundo cientificista, regido por sistemas de leis, e estuda a realidade à luz das exceções a essas normas.

2.2 PERTO DO CORAÇÃO SELVAGEM: ROMANCE DE SENSAÇÕES – INDÍCIOS DE TEATRALIDADE

Em dezembro de 1943, Clarice Lispector estreia no cenário literário com a publicação do romance Perto do coração selvagem que, pelo aprofundamento introspectivo, lhe conferiu comparações com ficcionistas europeus de vanguarda tais como: Virginia Wolf (1882 – 1941) e James Joyce (1882 – 1941). Assim como os autores citados, Clarice apresenta uma literatura caracterizada, entre outros recursos retóricos, pelo registro de monólogos interiores e fluxos de consciência. Outro aspecto relevante encontrado na obra clariciana, principalmente, em Perto do Coração Selvagem, é o tratamento dado ao tempo: a protagonista, Joana, percorre o

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presente o passado e o futuro, sem seguir uma linearidade. Quanto a Virginia Wolf e a James Joyce, ambos escreveram, respectivamente, os romances Mrs. Dalloway10 e Ulisses11, cuja narrativa transcorre no tempo de vinte e quatro horas. Entretanto, em carta dirigida a Lúcio Cardoso, a escritora relata que só tomara conhecimento do conteúdo de tais obras, após ter o primeiro romance finalizado.

Lúcio, você diz em seu artigo que tem ouvido muitas objeções ao livro [...] Imagine que depois que li o artigo de Álvaro Lins, muito surpreendida porque esperava que ele dissesse coisas piores, escrevi uma carta para ele [...] dizendo que eu não tinha ‘adotado’ Joyce ou Virginia Wolf, que na verdade lera a ambos depois de estar com o livro pronto. Você se lembra que eu dei o livro datilografado (pela terceira vez) para você e disse que estava lendo The Portrait of the Artist e que encontrara uma frase bonita? (LISPECTOR, 2005, p.43).

O título, Perto do coração selvagem, sugestão do amigo, encontra-se na epígrafe do livro Portrait of the Artist, de James Joyce: “Ele estava só. Estava abandonado, feliz junto do coração selvagem da vida” O depoimento do ensaísta Francisco de Assis Barbosa, registrado por Gotlib (2009), desmitifica tal influência.

O que eu sei é que Clarice estava escrevendo o seu primeiro romance: Perto do coração selvagem. Li os originais capítulo a capítulo. Eu, de início, observei-lhe que o título lembrava James Joyce. Mas à proporção que ia devorando os capítulos que estavam sendo datilografados pela autora fui me compenetrando que estava diante de uma extraordinária revelação literária, onde havia muito de Clarice, onde a influência de Joyce era irrelevante, se é que efetivamente houvesse influência do grande escritor. O que havia, de fato, era o ímpeto Clarice, o furacão Clarice (BARBOSA apud GOTLIB, 2009a, p.191-192).

Clarice Lispector propõe-se a, além de escutar o outro, buscar ouvir e compreender o que clama em si, nos meandros interiorizados e retorcidos da própria individualidade – como registra Antonio Candido, em No raiar de Clarice Lispector:

O seu ritmo é um ritmo de procura, de penetração que permite uma tensão psicológica poucas vezes alcançada em nossa literatura contemporânea. Os vocábulos são obrigados a perder o seu sentido corrente, para se amoldarem às necessidades de uma expressão

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Romance publicado em 1925.

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sutil e tensa, de tal modo que a língua adquire o mesmo caráter dramático que o entrecho (CANDIDO, 1977, p.129).

A fim de dispor-se a caminho do indivíduo em estado de vital emergência. Nesse sentido, repercute a atitude por meio de prática de linguagem onde, o buscar é o dizer por retórica de silêncios e desnudamento de palavras; como mesmo diz: pelo fracasso da linguagem. Assim, a voz que se ouve no discurso clariciano, contrariando a posição de Álvaro Lins (1963), é, apenas em aparência, feminina; fato que se confirma não só na obra de abertura como nas que a seguiram, por recair preocupação investigativa sobre a condição essencial que anima o ser; portanto, para além da mera idiossincrasia de gênero. Pelo devido turno, ao que parece, Joyce esteve sempre cercado pela mulher e pela filha psicótica. Piglia (1998) chama a atenção para o monólogo de Molly Bloom, que apresenta marcas indeléveis das correspondências que o escritor manteve com Nora, a esposa.

Joyce tinha os ouvidos muito atentos às vozes das mulheres. Ele saia pouco, passava muito tempo escrevendo e escutava as mulheres que tinha por perto: escutava Nora, que era sua mulher, uma mulher extraordinária. Escutando a voz dela, Joyce escreveu muitas das melhores páginas de Ulisses, e os monólogos de Molly Bloom têm muito a ver com as cartas que ele escreveu a Nora em certos momentos de sua vida (PIGLIA, 1998, p.112).

Em uma época na qual os grandes escritores se voltavam para os problemas sociais da realidade nacional, principalmente, para a miserabilidade provocada pela seca nordestina e para a hegemonia do coronelismo, revelando um Brasil ainda desconhecido dos brasileiros, Clarice Lispector insurge com um romance impactante que se afasta do caráter coletivista e descortina os territórios mais profundos dos seres humanos. Álvaro Lins (1963), embora reconhecesse a originalidade da narrativa poética da escritora, não se furtou de assinalar o seu estranhamento. O que dizer de um romance que se ocupa com “uma tão lenta e obstinada sondagem do próprio eu?” (GOTLIB, 2009 p. 210); um romance que se atém à prosa poética, carregado de lirismo e, portanto, que se afasta do conceito de gênero romance pouco afinado à prática de linguagem fragmentária, sem linearidade e sem solução final. O crítico literário recusa a nova ordem que se inaugura com a escritora, considerando-a um aprendiz de romancista, buscando assemelhar-se aos escritores europeus Virginia Wolf e James Joyce.

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Um romance, em si mesmo, deve ser visto como obra independente, esquecidas no momento todas as circunstâncias. Ora, neste caso, acima do próprio romance, o que mais se destaca no livro é a personalidade da sua autora. Mas este caráter feminino não dispensa a obrigação que há, em todo autor, de transfigurar a sua individualidade na obra independente e íntegra em si mesma (LINS, 1963, p. 189).

Se para Candido, Perto do coração selvagem é romance que tenta esclarecer mais a essência do que a existência, mais o ser do que o estar (CANDIDO, 1977); para Álvaro Lins é uma obra inacabada, dentro de uma circularidade que lhe compromete o entendimento, justamente por não conseguir percebê-la fora da visão narcisista e reducente de uma literatura que conceituou de feminina. De acordo com o crítico literário, Clarice sofre influência do moderno romance lírico europeu, aliás, “o nosso primeiro romance dentro do espírito e da técnica de Joyce e Virginia Wolf” (LINS, 1963, p. 188); mas afasta-se da estrutura romanesca, propriamente dita, apresentando uma linguagem caracterizada unicamente pelos recursos poéticos: “O romance lírico, porém, não se faz com o lirismo da poesia, e, sim, com o lirismo da ficção” (LINS, 1963, p.190). Ainda que profetizasse que o reconhecimento literário da autora estaria atrelado ao abandono do aspecto fragmentário, predominante na referida escritura, “[...] pedaços de um grande romance [...] que a autora, sem dúvida poderá escrever mais tarde [...]” (LINS, 1963, p.191); Clarice Lispector recebe, em outubro de 1944, na posição de escritora estreante, o prêmio da Fundação Graça Aranha pelo melhor romance publicado em 1943: Perto do coração selvagem.

A insistência de Álvaro Lins de assegurar a influência dos escritores europeus sobre a obra clariciana, era fato que irritava a escritora e contra o qual relutava: “o diabo do homem [Álvaro Lins] só faltou me chamar de ‘representante comercial deles’” (LISPECTOR apud BORELLI, 1981, p.105). Entretanto, nunca se defendeu das críticas; a indignação era compartilhada com amigos e familiares, em especial, através das correspondências que escreveu, durante a longa estada fora do Brasil. Clarice sempre se preocupou em saber o que achavam de seus textos, pois nunca se sentiu realizada como escritora; em verdade, não se considerava uma profissional.

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Eu paro de escrever cada vez que leio uma crítica a um trabalho meu ou que vou a uma noite de autógrafos cheia de escritores. Nunca me senti realizada como escritora, tenho a impressão que será assim até morrer (LISPECTOR apud BORELLI, 1981, p. 69).

A primeira investida da escritora no universo romanesco (já publicara alguns contos em jornais12) foi denominada pelo crítico como “a experiência incompleta”. Segundo Grob-Lima (2009), Lins fundamentou a crítica na personalidade da autora, maneira de pensar que reflete a mentalidade da crítica praticada no Brasil até meados dos anos 1960, na qual o texto era visto “como reprodução da vida sem considerar a sua autonomia como obra de arte” (GROB-LIMA, 2009, p.19). A escritora Clarice Lispector, no entanto, cultivaria o gosto pelo inacabado e as indagações permaneceriam interminavelmente em evidência nas obras: “A postura mantida desde o primeiro livro: não escrever para responder, mas para levar a pergunta a seu ponto mais agudo, onde toda resposta não seria mais que acomodação” (BORELLI, 1981, p.77).

De acordo com Gotlib (2009a), Clarice Lispector não se propõe a atender a expectativas e nem se atém à questão gênero. Assim, o universo literário edifica-se por instantes aprendidos da realidade e que insurgem como reflexões da configuração humana. Clarice acusa ter consciência de que mesmo que quisesse salvar o mundo, como quisera salvar a vida da mãe, como desejou ser “mãe da humanidade” (GOTLIB, 2009a, p.368), o que escrevia não alteraria a ordem das coisas:

Eu escrevo sem esperança de que o que eu escrevo altere alguma coisa. Não altera nada. Porque no fundo a gente não está querendo alterar as coisas. A gente está querendo desabrochar de um modo ou de outro13.

“Desabrochar” é, antes, abrir-se a caminhos sinuosos, “procurar produzir o improduzível, é sentir até o último fim o sentimento que permaneceria apenas vago e sufocador” (LISPECTOR, 1994, p. 136); é esse sentido de escrever que sugere perpassar por toda a obra clariciana. A falta de intencionalidades, portanto, em se tratando de Clarice Lispector, é uma dissimulação; as “coisas” inevitavelmente

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O Triunfo (1940), Eu e Jimmy (1940), Mocinha (1941), Trecho (1941), Cartas a Hermengardo (1941).

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Última entrevista de Clarice Lispector, entrevistada por Julio Lerner para a TV Cultura, em janeiro de 1977 e publicada na revista Shalom, nº 296, v.2, 1992.

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mudam e são mudadas. A autora transcende uma realidade habitual, que passaria despercebida pelos homens comuns, e transforma-a em objeto de investigação literária, trazendo à tona um sujeito que se impõe pela própria impossibilidade: em Perto do coração selvagem, uma criança que precisa crescer – Joana; e que é colocada em cena pela desimportância e/ou inutilidade: o que fazer de uma criança órfã? Clarice e Joana; ambas se identificam e se projetam mutuamente. Clarice Lispector desde muito cedo aprendeu a fabular histórias, (nasceu mesmo para inventar14) cujos desfechos eram sempre felizes. Joana - criança, enquanto vive infância impossível, aprisionada pela falta de autonomia, lança mão da imaginação para recriar a realidade. Entra no jogo do faz-de-conta e articula histórias nas quais é sempre a protagonista.

Já vestira a boneca, já a despira, imaginara-a indo a uma festa onde brilhava entre todas as outras filhas. Um carro azul atravessava o corpo de Arlete, matava-a. Depois vinha a fada e a filha vivia de novo. A filha, a fada, o carro azul não eram senão Joana, do contrário seria pau a brincadeira (LISPECTOR, 1998, p.14-15).

Joana - criança, dentro do caráter imagético, transita pelo universo dramático, fazendo da brincadeira instrumento de representação do real. Ao brincar, constrói cenas nas quais incorpora os elementos da ação de cuja força se originam os acontecimentos. Para Aristóteles (384-322 a.C), imitar é próprio do ser humano, os indivíduos imitam ações da vida e se comprazem no imitado. Assim, dotada de capacidade mimética e inventiva, a protagonista manifesta indícios de teatralidade. No “jogo-cênico” das brincadeiras, movimenta-se no “palco” da escritura e faz de si mesma atriz, personagem, e espectadora, sem perder o vínculo lúcido com a realidade. Freud afirma que “a criança gosta de ligar seus objetos imaginados às coisas visíveis e tangíveis do mundo real. Essa conexão é tudo o que diferencia o brincar infantil do fantasiar” (1976, p.150). Clarice Lispector - criança, ao brincar-inventar-encenar, sugere afastar a ideia da morte que ameaça a mãe; Joana-criança cria companhias imaginárias, estabelecendo a necessidade do outro para aplacar a solidão.

Em Perto do coração selvagem, a ação romanesca está na inquietação íntima de Joana que atravessa a vida sem perder o fio da infância e, portanto, sem perder a

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capacidade inventiva. Joana não recorda a infância; ela a vivencia no instante-já “[...] Ter tido uma infância não é o máximo? Ninguém conseguiria tirá-la de dentro de mim... – e nesse instante já começara a ouvir-se, curiosa” (LISPECTOR, 1998, p.47). O tempo assume a concepção de corporeidade e inscreve-se na personagem; é o que ocorre logo no primeiro capítulo, “O pai”, quando se deixa perceber a fruição contínua do tempo. O passado invade o presente, sob forma de sensações:

A máquina do papai batia tac-tac... tac--tac...O relógio acordou em tin-dlen sem poeira. O silêncio arrastou-se zzzzzz. O guarda-roupa dizia o que? Roupa, roupa. Não, não. Entre o relógio, a máquina e o silêncio, havia uma orelha à escuta, grande, cor-de-rosa e morta (LISPECTOR, 1998, p.13).

Nos textos claricianos, as palavras assumem a conotação de “isca” e “fisga-se” a não palavra, almeja-se o que é nas entrelinhas – “Mas já que se há de escrever que, ao menos, não se esmaguem com palavras as entrelinhas” (LISPECTOR, 1999, p. 2001) − o que supera a máscara da rotina: pessoas em conflito consigo mesmas e com o mundo. A autora faz uma incursão narrativa perigosa, dolorida e necessária; “Mas qual é a busca que em si mesma não traga a sua pena?” (BORELLI, 1981, p.14). Ao dar pouca importância às circunstâncias exteriores e à trama da história, em detrimento da trajetória interior das personagens, a voz narrativa em Clarice trapaceia as palavras e com as palavras; e propõe ao leitor um jogo cuja regra é incorporar, na vivência receptiva, a vivência reveladora experienciada no interior das personagens em movimento. Segundo Antonio Candido, a escritora “soube transformar em valores as palavras nas quais muitos não vêem mais do que sons e sinais. A intensidade com que sabe escrever e a rara capacidade da vida interior” (CANDIDO, 1977, p. 99).

A autora constrói a obra instaurando vozes e modos narrativos diversificados, ora mantendo a tradicionalidade, ora subvertendo-a por meio de interjeições estratégicas da modernidade: monólogos interiores; fluxos de consciência, rompimento de limites de espaço e de tempo, entre outras. Pequenos fatos exteriores provocam profundos deslocamentos interiores, refletidos por alocação de linguagem “canhestra” e “reveladora”. Em outras palavras, diante de ocorrências banais, a personagem se descobre e vê revelada uma realidade mais complexa e vitalizada.

A literatura de Clarice Lispector registra, portanto, a vulnerabilidade humana, o que assinala visão multifacetada da vida. Clarice ao se debruçar sobre o outro, acaba por se debruçar sobre si mesma. A autora incorpora-se às vivências

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experienciadas pelas personagens, ao que sugere, por uma questão de sobrevivência. Para não “morrer”, renasce através dos sujeitos ficcionais que delineia e que, de um modo ou de outro, preenchem-lhe as carências. A cada falta preenchida, surgem tantas outras, um moto-contínuo. E nesse processo de montagem e desmontagem da existência humana, máscaras assumem indivíduos, personagens ascendem a vida, trazendo um novo enredo registrado pela linguagem, preenchido por sentimentos e encenado no cotidiano.

Segundo Grob-Lima (2009), as personagens de Clarice são “dramatis personae15, atuantes configurações de ideologias e valores [...]” (GROB-LIMA, 2009, p.21). O caráter agônico de Joana, assinalado pelo monólogo interior e pelo fluxo de consciência, aproxima-a da personagem teatral, vez que minimiza o apelo narrativo. Joana preenche as lacunas existentes nas demais personagens que gravitam em torno dela. Prado (1968) salienta que a personagem teatral, ao contrário do cinema e da literatura, não pode, mesmo que temporariamente, ser dispensada; o palco não pode permanecer “vazio”. “No teatro uma só personagem presente no palco não pode manter-se calada; tem de proferir um monólogo” (PRADO, 1988, p.84). Em Perto do coração selvagem, quando Joana se “cala”, é sobre ela que se passa a falar; não existe foco para além de Joana, ela é a própria ficção: “[...] Me disse que quando crescer vai ser herói16” (LISPECTOR, 1998, p.26); a persona-herói é signo de transmutação e não de representação; Joana-criança espontaneamente teatraliza-se, age como personagem e encena-se no mundo.

2.3 A DRAMATURGIA DE CLARICE LISPECTOR

[...] acho que todo escritor é um ator inato. Em primeiro lugar ele representa profundamente o papel de si mesmo. Escritor é uma pessoa que se cansa muito, e que termina com um pouco de náusea de si, já que o contato íntimo consigo próprio é por força prolongado demais (LISPECTOR, 2005, p.116).

Debruçar-se sobre a obra de Clarice Lispector sugere adentrar em universo performático que se aproxima de parcela das arenas gregas, onde um único ator

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Grob-lima pontua: “dramatis personae” são terminologias usadas pelos estruturalistas desde Propp, decididos a não definir as personagens em termos de essências psicológicas, mas como participantes de uma esfera de ações.

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Trata-se aqui do herói trágico, personagem principal de uma tragédia. No dizer de Aristóteles (384-322 a.C) o infortúnio do herói não ocorre “por vício e depravação, mas por algum erro de julgamento". Na verdade, na Poética de Aristóteles, é imperativo que o herói trágico é nobre.

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desdobrava-se em várias personagens, por meio de sobreposição de máscaras. A pluralidade reflete-se na cena literária, permitindo pensar o sujeito a partir do outro – que por vezes é ele mesmo – isto é, os outros em torno de si e os outros em si (MAFFESOLLI, 1996).

A dramaturgia clariciana tem como palco o próprio ato de escritura e as personagens são as máscaras utilizadas pela autora, por meio das quais se relaciona consigo e com o outro. As personagens encerram-se em busca própria entre o ser e o não-ser, demonstrando necessidade premente de comunicar-se. Assim, a questão posta pela escritora é a possibilidade de busca contínua no viver em estado de sinceridade perante o mundo. Este fato termina por gerar a construção do “eu” na investida de coadunar duas cenas: “eu e o mundo”. O eu fictício permite, assim, aproximar o eu social do eu autêntico. É sempre esta a busca essencial: a originalidade e a autenticidade do eu por intermédio de superação de máscaras. Vem à cena o eu multifacetado-persona como afirma Costa Lima:

[...] Ao tornar-me persona, assumo a máscara que me protegerá de minha fragilidade biológica. É pelos papéis que a persona se socializa e se vê a si mesma e aos outros como dotados de certo perfil, com o direito – pois − a um tratamento diferenciado (LIMA, 1991, p. 43).

Na crônica Persona, (LISPECTOR, 1999a, p.79-81) a autora afirma que o uso da máscara, símbolo do teatro e do disfarce, “é o primeiro gesto voluntário humano”. O indivíduo não se suporta desnudado e despojado; fragiliza-se diante de si e do outro. A máscara teatral sugere uma troca de identidade; um ser torna-se outro e um outro rosto manifesta-se. É uma forma de apresentar um rosto para o qual não existe uma imagem concreta, definida, delineada. O teatro se serve da máscara como linguagem cênica para comunicar ao público as diferentes faces da realidade. Para Clarice Lispector, a máscara esconde para revelar:

[...] Escolher a própria máscara é o primeiro gesto voluntário humano. E solitário. Mas quando enfim se afivela a máscara daquilo que se escolheu para representar-se e representar o mundo, o corpo ganha uma nova firmeza, a cabeça ergue-se altiva como a de quem superou um obstáculo. A pessoa é.

Se bem que pode acontecer uma coisa que me humilha contar. É que depois de anos de verdadeiro sucesso com a máscara, de repente – ah, menos que de repente, por causa de um olhar passageiro ou uma palavra ouvida – de repente a máscara de guerra

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de vida cresta-se toda no rosto como lama seca, e os pedaços irregulares caem como um ruído oco no chão. Eis o rosto agora nu, maduro, sensível quando já não era mais para ser. E ele chora em silêncio para não morrer. Pois nessa certeza sou implacável: este ser morrerá. A menos que renasça até que dele se possa dizer “esta é uma pessoa”. Como pessoa teve que passar pelo caminho de Cristo (LISPECTOR, 1999a, p.80-81).

Disfarçar-se, portanto, faz parte da natureza humana e se constitui em procedimento que atravessa a vida e se refaz − por busca de superação − no fazer literário da escritora, circundando, na maioria dos romances e contos, o desejo e a necessidade de ser outro em si. Em A hora da estrela (1977), último romance publicado em vida da escritora, tem-se justamente a encenação do autor (Clarice Lispector) que se problematiza, ao mascarar-se na personagem sujeito-escritor Rodrigo S. M., expondo os dilemas diante da narrativa e das personagens que cria.

Escrevo porque sou um desesperado e estou cansado, não suporto mais a rotina de me ser e não fosse a sempre novidade que é escrever, eu me morreria simbolicamente todos os dias. Mas preparado estou para sair discretamente pela saída da porta dos fundos. Experimentei quase tudo, inclusive a paixão e o seu desespero. E agora só quereria ter o que eu tivesse sido e não fui (LISPECTOR 1998a, p.21).

Desse modo, ocorre um discurso metalinguístico sobre o fazer literário: uma narrativa que fala sobre a própria narrativa, e traz à discussão a figura do escritor que sai dos “bastidores” da escrita e se pronuncia enquanto personagem. “Autor e autor se confundem, perdendo o seu antigo papel para ressurgirem multiplicados como atores no espetáculo da escritura” (NOLASCO, 2001, p. 19). No dizer de Vieira (1998), os questionamentos a respeito do fazer literário, em A hora da estrela, são incorporados ao texto, transformando a narrativa em rede metalinguística, onde o trabalho do escritor torna-se objeto da própria ficção. Desse modo, tudo parece se ficcionalizar: texto, autor, narrador, personagem e leitor.

Percebe-se, no excerto da crônica Persona, que o devir “pessoa” está sujeito à capacidade de “renascer”, de “ressurgir”, o que também remete ao caráter religioso e teatral da transformação: como pessoa teve que passar pelo caminho de Cristo. O percurso é caracterizado na bíblia pelos dez mistérios da Escritura Sagrada: cinco dolorosos e cinco gloriosos. Os mistérios dolorosos compreendem a Via Crucis de Jesus Cristo que culminou a morte; os mistérios gloriosos

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compreendem a ressurreição e ascensão de Jesus Cristo. Durante o período medieval era comum a dramatização de tais passagens bíblicas; representações denominadas de Mistério. Assim, envergar máscaras simboliza a possibilidade de morrer e renascer na representação literária/teatral. Metaforizações de vida e morte sugerem-se como relação simbiótica, no fazer literário da escritora:

Tenho períodos de produzir intensamente e tenho períodos – hiatos em que a vida fica intolerável [...] É muito duro esse período entre um trabalho e outro, e ao mesmo tempo é necessário para haver uma espécie de esvaziamento da cabeça para poder nascer alguma coisa, se nascer (LISPECTOR apud GOTLIB, 2009, p. 367).

Joana, protagonista de Perto do coração selvagem, sentencia: “[...] de qualquer luta ou descanso me levantarei forte e bela como um cavalo novo” (LISPECTOR, 1998, p. 202). A personagem é caracterizada por constante inquietação que a faz investir em procuras incessantes, evidenciando o aspecto inacabado e múltiplo do indivíduo; uma vida interior repleta de outras vidas: “Sua vida era formada de pequenas vidas completas, de círculos inteiros, fechados que se isolavam um dos outros” (NUNES, 1989, p. 22). Assim, o aprimoramento do ser prossegue a cada novo enfrentamento; Joana precisa transformar-se para o mundo que se revela ininteligível e impalpável, (re) significando a relação entre as palavras e as coisas; dramatizando a relação entre eu e o outro, encenando a própria vida.

De acordo com Rosenfeld, a base do teatro é a fusão do ator com a personagem, a identificação de um eu com outro eu. “Na literatura são as palavras que medeiam o mundo imaginário. No teatro são os atores/personagens que medeiam as palavras” (ROSENFELD; 1980, p. 21-2). Entretanto, as personagens de Clarice Lispector não se diluem no cenário textual; elas são o próprio texto, a própria trama. Benedito Nunes (1989) chama atenção para a linguagem literária da escritora que é marcada pelo uso de monólogos dialogais, recurso retórico que confere às personagens tensão dramática típica do teatro, vez que a personagem ora conversa consigo mesma, ora o narrador se funde à personagem, nomeando o discurso indireto livre.

[...] O aparato monologal está latente no comentário reflexivo que acompanha o desenvolvimento da ação no discurso direto e que chega no discurso indireto onde o eu narrador se transforma em ator, participando, juntamente com o personagem, dos acontecimentos

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narrados, a problematizar a narração propriamente dita (NUNES, 1989, p. 77-8).

Ao assumir tais personas, Clarice Lispector desmitifica noção parcial e passional da subjetividade literária, e traz à cena um eu incerto que “se conta progressivamente, sem que haja, para ser exato, unidade de suas diversas expressões” (MAFFESOLLI, 1996, p.303). Desse modo, passa a encenar o eu-ficcional, o eu-personagem ou o não-eu. Entre “ser e não ser” ou ser-se muitos pode-se ser ninguém. A escritora, privilegiando as personas nos textos, mesmo assim, não acaba por escamotear o sujeito empírico. Por trás da atitude cênica da personagem/persona, está a vibração interior de Clarice Lispector; como alguém que fingisse e apontasse o próprio fingimento. É o que sugere acontecer em A hora da estrela quando, ainda na dedicatória do livro, Clarice se autodenomina a autora, adotando depois a personagem Rodrigo S.M como pseudo-autor. Teixeira (2006), parafraseando o pensamento de Nunes, pontua:

[...] ao invés de reforçar a verossimilhança do relato, criando no leitor a segurança consoladora da correspondência arte/vida [...] Clarice expõe, em contrapartida, o caráter essencial de jogo e artifício que presidem a criação artística, posta, em HE, nos limites da sinceridade (TEIXEIRA, 2006, p. 104).

Escritor e personagem tornam-se sujeito e objeto simultaneamente, preenchendo-se enquanto “suplemento” um do outro, na cena da escritura. Clarice, em última entrevista, confessou: “Quando não escrevo, estou morta17”.

A concepção de linguagem, enquanto instrumento de “salvação” do indivíduo que escreve para não morrer, é revelado no discurso foucaultiano em a Linguagem ao Infinito (2006). O autor estabelece uma relação intrínseca entre linguagem e morte. A primeira sempre buscando esquivar-se da segunda, encontrando no vazio sugerido pela morte o poder de se perpetuar. Em Clarice Lispector, sugere-se situação oposta: a busca à condição de vitalidade está atrelada ao fracasso da linguagem, pois – como menciona a voz narradora em PSGH − só quando falha a construção é que obtém o que a linguagem não conseguiu, ou seja, dizer o indizível.

17

Última entrevista de Clarice Lispector, entrevistada por Julio Lerner para a TV Cultura, em janeiro de 1977 e publicada na revista Shalom, nº 296, v.2, 1992.

Referências

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