O empenho ativo do juiz conciliador e o problema da
(im)parcialidade
Lidia de Melo de Souza (
1)
Sumário: 1. Introdução. 2. Os meios alternativos de resolução de controvérsias.
2.1. A conciliação judicial. 2.1.2. A positivação na República Federativa Brasileira. 2.3.
A positivação da figura desde Alberto dos Reis. 3. O papel do juiz conciliador. 3.1. A
imparcialidade e os seus desdobramentos. 3.1.1. A consignação em ata. 4. O regime
dos impedimentos e da suspeição: garantia da imparcialidade? 5. Conclusão.
1 Mestre em Ciências Jurídico-Civilísticas, com menção em Direito Processual Civil, pela Universidade
1. Introdução
Nosso objetivo com o presente ensaio é apresentar as críticas, algumas
contradições e principalmente dúvidas – muitas sem respostas – no tocante ao papel
desempenhado pelo juiz no exercício da função de conciliador, como ainda as
possíveis consequências oriundas de um atuar ativo e empenhado na busca da
autocomposição do litígio entre as partes. Partilharemos, para isso, alguns fatores e
algumas preocupações iniciais que nos levaram ao momento atual.
É cediço que a cultura do litígio e a consequente demora na entrega da
prestação jurisdicional
2são problemas ocasionados, entre outras razões, pelo amplo
e quase irrestrito acesso à justiça
3. Com o desenvolvimento das relações, o direito de
socorro ao poder judiciário para que este exerça sua função pacificadora
4foi ampliado
pela constitucionalização de um conjunto de garantias
5que propiciaram, sem dúvida,
uma crescente e constante judicialização dos conflitos.
2 Nas palavras de Dinamarco: “Tutela jurisdicional é o amparo que o Estado ministra a quem tem razão
em uma demanda. Tutela significa ajuda, proteção. E é jurisdicional a proteção outorgada mediante o exercício da atividade do juiz, a fim de que o sujeito, por ela beneficiado, obtenha, no plano da realidade, uma situação mais favorável do que aquela em que antes se encontrava” (DINAMARCO, Cândido
Rangel. Fundamentos do Processo Civil moderno. São Paulo: Malheiros, 2000, pp. 807 e ss.).
3 Garantia prevista no artigo 5º, inciso XXXV da Constituição Federal brasileira que dispõe que: “a lei
não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito” e no artigo 20 da Constituição portuguesa: “A todos é assegurado o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e
interesses legalmente protegidos, não podendo a justiça ser denegada por insuficiência de meios económicos”. Sobre o assunto, Mauro Cappelletti, desde a década de 1970, já falava sobre o acesso à
justiça e em um de seus curiosos e aprofundados estudos propôs – por meio de três correntes teóricas, denominadas de “ondas” pelo referido autor – soluções ao problema do “acesso à justiça” (CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso à Justiça. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 1988, p. 31).
4 A solução dos conflitos de interesse desde os povos primitivos era a justiça privada, fazendo o uso da
força quando necessário. Basicamente, quem tinha o poder, tinha o direito. A partir do momento em que o Estado chamou a si, com exclusividade, a tarefa de assegurar a ordem jurídica, proibindo a justiça de mão própria, assumiu para com todos e cada um de nós “o grave compromisso de tornar realidade a
disciplina das relações intersubjetivas prevista nas normas por ele mesmo editadas” (MOREIRA, José
Carlos Barbosa. Tutela Sancionatória e Tutela Preventiva. Temas de Direito Processual. 2ª série. São Paulo: Saraiva, 1980, p. 21).
5 Destaca-se que estamos trabalhando aqui na perspectiva do Estado Constitucional, na jurisdição
caracterizada por uma nova dogmática baseada em direitos fundamentais e nos princípios que foram utilizados cada vez mais como formas de proteção e persecução das garantias constitucionais.
Decerto, essa “cultura do litígio”
6aflorou uma menor preocupação com a busca
da solução mais adequada para as demandas, pois o Poder Judiciário centrou os
esforços na procura por soluções para melhorar os números da justiça e não a sua
qualidade substancial, o que gerou, consabidamente, uma perda da qualidade da
tutela jurisdicional prestada. Neste contexto de massificação da sociedade
7, exigia-se,
então, mais dinamismo do Poder Judiciário para conferir repostas mais rápidas e
adequadas
8às atuais exigências sociais e que correspondessem às novas diretrizes do
processo democrático
9, conformando-o aos valores e princípios constitucionais
10.
Foi diante desse cenário que a ciência processual do final do século XX e início
do século atual, na busca pelo alcance de maior efetividade da função precípua do
Poder Judiciário de solucionador de conflitos de interesses, ultrapassaram-se os meios
tradicionais e técnicos para implementar, paralelamente, “métodos consensuais de
6 Mergulhado em uma profunda crise social, o século XXI também trouxe novos desafios para o sistema
processual civil, constituindo-se os tempos de hoje em um importante momento de reflexão sobre o que se pretende para o Direito Processual Civil “enquanto ramo de natureza adjectiva, de direito público,
instrumento de procura da verdade material e da realização da justiça, num Estado de Direito Democrático” (ESTEVES, José. Um novo Mundo, uma nova Racionalidade, um novo processo Civil. In: I Jornadas de processo civil: “Olhares transmontanos”, Valpaços, 2012, p. 11. Disponível em:
<http://www.cej.mj.pt/cej/recursos/ebooks/ProcessoCivil/Livro_JornadasDPC.pdf>. Acesso em: 10 dez. 2019).
7 Nesse sentido, Bauman afirma que: “[...] A globalização parecer ter mais sucesso em aumentar o vigor
da inimizade e da luta intercomunal do que promover a coexistência pacífica das comunidades [...]”
(BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Zahar, 2001, p. 219).
8 Theodoro Júnior afirma que: “O processo do Estado Democrático de Direito contemporâneo ‘não se
resume a regular o acesso à justiça, em sentido formal”, sendo “sua missão, na ordem dos direitos fundamentais, proporcionar a todos uma tutela procedimental e substancial justa, adequada e efetiva”
(THEODORO JÚNIOR, Humberto. Processo justo e contraditório dinâmico. In: Revista de Estudos
Constitucionais, Hermenêutica e Teoria do Direito (RECHTD), Unisinos, São Leopoldo, 2010, p. 65).
9 Nas palavras de Picó I Junoy, o “Estado de direito democrático, que tienes la justicia como valor superior
del ordanamiento jurídico, el Estado debe poner al servicio de quines lo dirigen los medios y poderes necessarios para alcanzarse lo justo proceso, la justicia dela decisión judicial”, sendo certo que não pode
alcançá-lo se não atribuir faculdades ao juiz de acertar a verdade em cada caso concreto (PICÓ I JUNOY, Joan. El juez y la prueba: Estudio de la errónea recepción del brocardo iudex iudicare debet secundum allegata et probata, non secundum conscientiam y su repercusión actual. Barcelona: Bosch Editor, 2007a, p. 119).
10 A Justiça não mais se destina apenas a dizer o direito, dirimindo os litígios. Interessa, sim, que esse
direito seja realizado concretamente (diante das garantias fundamentais) e que as partes satisfaçam os interesses que as fizeram submeter seu conflito ao Tribunal (justa decisão) (COMMAILLE, Jacques. A Efecttivité. In: ALLAND, Stéphane Rials et Denis. (dir.). Dictionnaire de la culture juridique. Paris: Presses Universitaires de France - P.U.F., 2003, p. 583).
composição de litígios”
11cuja motivação seria, para além de uma solução mais célere,
menos custosa e com menos formalismos, uma solução mais adequada ao caso
concreto.
A mudança de um “modelo litigioso” para um “modelo consensual” e a clara
tendêndia de estruturação de um “modelo multiportas” – mais conhecido como
Alternative Dispute Resolution (ADR)
12–, como forma de combater a
11 Apesar de ser irrelevante para a temática do presente estudo, vale destacar, “en passant”, que existe
uma divergência doutrinária em relação as expressões utilizadas para denominar esses “meios consensuais de resolução de conflitos”, variando entre “meios alternativos”, “meios adequados” ou até mesmo “equivalentes jurisdicionais”. Além dessas expressões, também encontramos: “justiça informal”, “justiça negociada”, “justiça amigável”, “justiça acordada”, entre outras. Neste sentido, nas palavras de Neves: “Registro que não concordo com a parcela doutrinária que prefere renomear a
autocomposição e a mediação como “meios adequados” de solução dos conflitos, porque adequado é resolver o conflito, não se devendo afirmar a priori ser um meio mais adequado do que outro. Se esses são os meios adequados, o que seria a jurisdição? O meio inadequado de solução de conflitos? Compreendo que atualmente não seja mais apropriado falar em meios alternativos, o que daria uma ideia de subsidiariedade a tais meios de solução de conflitos, mas, certamente, chamá-los de “meios adequados” não parece ser o mais conveniente. Por isso é preferível denominá-los simplesmente de “equivalentes jurisdicionais” (NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Novo Código de Processo Civil - Lei nº 13.105/2015.
São Paulo: Método, 2015. p. 45).
12 Não adentraremos aqui, pelo pouco espaço que dispomos e por não ser essencial para a problemática
que se pretende debater, na origem histórica dos meios alternativos de resolução de conflitos. Mas vale destacar que esse “movimento ADR” surgiu nos Estados Unidos, nas décadas de 1960/1970, como forma de promover o acesso ao direito e à justiça, caracterizando-se pela defesa da existência de um conjunto de outros mecanismos de resolução dos litígios, como a negociação, conciliação, mediação e arbitragem, constituindo estes um sistema alternativo de resolução de conflitos. Nas palavras de Pedroso, Trincão e Dias: “O movimento ADR propõe novos modelos de resolução de conflitos, mas
também novas aplicações para velhos mecanismos de resolução de litígios, uma vez que muitas das técnicas apontadas são bastante antigas. É o caso da arbitragem comercial, que remonta ao século XVIII, ou da mediação, usada há décadas nas relações laborais” (PEDROSO, João; TRINCÃO, Catarina; DIAS,
João Paulo. Percursos da informalização e da desjudicialização – por caminhos da reforma da
administração da justiça (análise comparada). Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra,
2001. Disponível em: <https://opj.ces.uc.pt/pdf/6.pdf>. Acesso em: 19 dez. 2019). Agradeço a Catarina Trincão pelo apoio que me deu na elaboração deste texto.
hiperjudicialização
13, pode ser claramente observável, entre outros ordenamentos
14,
nos Códigos de Processo Civil do Brasil e de Portugal.
A observar, inicialmente, o Código de Processo civil brasileiro
15,
encontraremos, logo no art. 3º, § 2º, no título “Das normas fundamentais do processo
civil”, que: “O Estado promoverá, sempre que possível, a solução consensual dos
conflitos” e no § 3º desse mesmo artigo que: “A conciliação, a mediação e outros
métodos de solução consensual de conflitos deverão ser estimulados por juízes,
advogados, defensores públicos e membros do Ministério Público, inclusive no curso do
processo judicial”.
Ao longo de todo o Código
16, constata-se, em diversos artigos, a referência aos
“meios adequados”, inclusive uma sessão destinada somente para tratar “Dos
conciliadores e mediadores judiciais”
17que passaram a integrar, com o diploma de 2015,
o quadro de auxiliares da Justiça
18. Destaca-se, ainda, na sessão que trata dos “Poderes
13 O problema da hiperjudicialização é uma realidade em diversos ordenamentos jurídicos. Para uma
discussão mais aprofundada sobre a crise da justiça civil, cf.: PEDROSO, João; CRUZ, Cristina. A
arbitragem institucional: um novo modelo de administração de justiça – o caso dos conflitos de
consumo. Relatório do Observatório Permanente da Justiça Portuguesa. Coimbra: Centro de Estudos Sociais, 2000. Na Itália, por exemplo, em que pese as diversas reformas processuais e a disposição contida no artigo 111 da Constituição Italiana, ainda se enfrenta o desafio de reduzir o tempo de tramitação do processo judicial. Em 2000, foram apresentados 12.000 recursos na Corte Europeia sob a alegação de violação do princípio da duração razoável do processo e foram diversas as condenações A longa duração dos processos cíveis chegou a ameaçar de suspensão o direito de voto da Itália no Conselho da Europa. Sobre o assunto, leciona Schenk: “O relatório de abertura dos trabalhos da Corte
Europeia, no ano 2000, dedicou um longo parágrafo ao problema da Justiça italiana, com referência às sistemáticas violações do art. 6º da Convenção. Chegou-se a um ponto que a Corte, em inúmeras decisões, praticamente não fundamentava as condenações impostas em razão da longa duração dos processos, por entender existente verdadeira presunção de responsabilidade do Estado” (SCHENK, Leonardo Faria.
Breve relato histórico das reformas processuais na Itália. Um problema constante: a lentidão dos processos cíveis. In: Revista Eletrônica de Direito Processual Civil, v. 02, n. 02, a. 2008. Disponível em: <https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/redp/article/view/23735/16756>. Acesso em: 20 dez. 2019).
14 Nos capítulos seguintes aprofundaremos a temática no ordenamento português.
15 BRASIL. Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015. Código de Processo Civil. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13105.htm>. Acesso em: 19 dez. 2019.
16 Pouco depois da publicação do CPC/2015, foi publicada a Lei nº 13.140/2016, que dispõe acerca da
mediação e conciliação entre particulares e no âmbito da administração pública.
17 A partir do artigo 165 do CPC/BR (BRASIL, 2015).
18 “Art. 149. São auxiliares da Justiça, além de outros cujas atribuições sejam determinadas pelas normas
de organização judiciária, o escrivão, o chefe de secretaria, o oficial de justiça, o perito, o depositário, o administrador, o intérprete, o tradutor, o mediador, o conciliador judicial, o partidor, o distribuidor, o contabilista e o regulador de avarias” (BRASIL, 2015).
dos deveres e da responsabilidade do juiz”, o inciso V do artigo 139, dispondo que a
autocomposição do litígio deve ser incentivada a todo tempo, em qualquer processo
ou procedimento, e pode ser alcançada espontaneamente pelas partes ou com o
auxílio de terceiros, “preferencialmente” por conciliadores ou mediadores judiciais
19.
De uma leitura precípite do referido dispositivo, podemos nos questionar se
ele sugestiona, ao utilizar a expressão “preferencialmente” com auxílio de
conciliadores, uma possível intenção do legislador de 2015 em retirar das mãos do juiz
essa função. Se avançarmos com a leitura do Código até o artigo 359, poderíamos
responder tal indagação de forma negativa, tendo em vista o claro papel de
conciliador atribuído ao juiz, ao dispor que o juiz tentará conciliar as partes, aberta a
audiência, independentemente de tentativas anteriores de outros métodos
consensuais
20. Contudo, se fizermos uma disquisição mais aprofundada do tema, logo
perceberemos que a indagação colocada tem razão de ser e, aqui, encontramos uma
das problemáticas que procuraremos trabalhar no presente ensaio, a saber: se o
ordenamento brasileiro, talvez com olhos voltados para um futuro próximo, estaria
seguindo uma possível “tendência” de retirar do juiz essa incompatível função de
julgar e conciliar.
Fazendo um paralelo com o Código de Processo Civil português
21, é observável
que o mesmo não destinou tantas seções e tantos artigos para tratar dos meios
consensuais de conflito, mas, em que pese essa “economia” do legislador, os poucos
artigos destinados à temática afloram diversas inquietações relacionadas ao
protagonismo do juiz como pacificador social. Deter-nos-emos aos incisos III e IV do
artigo 359 que dispõem, respectivamente, que “a tentativa de conciliação é presidida
19 “Art. 139. O juiz dirigirá o processo conforme as disposições deste Código, incumbindo-lhe: V -
promover, a qualquer tempo, a autocomposição, preferencialmente com auxílio de conciliadores e mediadores judiciais; [...]” (BRASIL, 2015).
20 “Art. 359. Instalada a audiência, o juiz tentará conciliar as partes, independentemente do emprego
anterior de outros métodos de solução consensual de conflitos, como a mediação e a arbitragem” (BRASIL, 2015).
21 PORTUGAL. Lei n.º 41/2013, de 26 de Junho. Código de Processo Civil (Novo). Disponível em:
<http://www.pgdlisboa.pt/leis/lei_mostra_articulado.php?nid=1959&tabela=leis>. Acesso em: 19 dez. 2019.
pelo juiz, devendo este empenhar-se ativamente na obtenção da solução de equidade
mais adequada aos termos do litígio” e “frustrando-se, total ou parcialmente, a
conciliação, ficam consignadas em ata as concretas soluções sugeridas pelo juiz, bem
como os fundamentos que, no entendimento das partes, justificam a persistência do
litígio”.
Tecidas algumas considerações acerca da conciliação judicial pelo juiz
22nas
legislações de regência da matéria no Brasil e em Portugal, mais precisamente nos
arts. 359 do CPC/BR e 594.º do CPC/PT, tentaremos, através de um diálogo entre esses
sistemas jurídico-processuais, encontrar respostas para a problematicidade do
presente estudo que se circunscreve no seguinte dilema: (i) o que se espera do juiz ou,
até mesmo, o que seria um atuar ativamente?; (ii) tal atuação é possível dentro dos
limites da garantia da imparcialidade ou estaríamos perante valores inconciliáveis?
Deter-nos-emos, então, no presente ensaio, em responder tais indagações que,
com urgência aflitiva, merecem ser esclarecidas. Isto porque encontra-se diversa
bibliografia sobre os meios alternativos ou meios adequados de solução de conflitos,
não sendo aparentemente a conciliação judicial o campo atrativo para grandes
debates. Contudo, com um olhar mais demorado sobre a temática, poderemos
perceber diversos pontos de tensão, nomeadamente em relação aos deveres de
imparcialidade do juiz e, inclusive, em relação à (in) viabilidade da figura.
2. Os meios alternativos de resolução de controvérsias
2.1. A conciliação judicial
Antes de adentrarmos na problemática que nos propomos e, partindo-se da
premissa que o processo contencioso, por vezes, não é capaz de dar solução adequada
a certos tipos de conflitos
23, interessa-nos, neste momento, apresentar algumas
22 Importante ressaltarmos que os demais meios autocompositivos ou heterocompositivos não serão
objeto de análise no presente trabalho, posto que nos ateremos apenas à problemática do juiz como conciliador.
23 Preferimos falar da mediação e da conciliação como sendo meios que caminham paralelamente ao
processo jurisdicional e, a depender do caso concreto, a solução hetecompositiva pode ser mais benéfica e mais adequada ou não do que a autocomposição. Não defendemos, assim, uma noção
considerações e apontar as principais diferenças entre a mediação e a conciliação
24para que possamos estabelecer premissas fundamentais à compreensão da
controvérsia. A distinção entre mediação
25e conciliação é uma tarefa um tanto
enfadonha. Alguns autores não vislumbram diferenças substanciais entre elas
26aconselhando, inclusive, a tratar os dois termos como sinônimos.
precípua de prioridade entre um método e outro, mas, sim, qual método seria mais adequado ao caso concreto. Nas palavras de Paula Costa e Silva: “a única relação que, num Estado de Direito, pode
legitimamente existir é uma relação de adequação. A mediação e a conciliação serão modos legítimos de resolução de conflitos se forem os modos adequados de resolução desses conflitos. Esta observação não é inconsequente, pois ela repercute efeitos sobre a compatibilidade constitucional de soluções que impliquem a criação de entraves processuais ou desvantagens patrimoniais no acesso aos tribunais”
(SILVA, Paula Costa e. A Nova Face da Justiça. Os Meios Extrajudiciais de Resolução de Controvérsias. Lisboa: Coimbra Editora, 2009, p. 35). Ainda sobre esse assunto, Taruffo faz um alerta dos riscos de recorrer-se apenas aos meios alternativos e estes se transformarem na única possibilidade de resolução de conflitos perante o fracasso da administração da justiça pública: “Ora, o problema da sua ineficiência
não se resolverá mantendo o sistema público de justiça nessa ineficiência, deslocando as partes para outros meios, mas antes em dotando tal sistema de instrumentos que o tornem eficiente”. Para o autor,
a alternativa entre processo jurisdicional e métodos conciliatórios de resolução de conflitos não é rígida, mas o processo civil estatal continua a ser a via mestra de resolução das controvérsias (sendo, aliás, a única via nos casos de direitos indisponíveis), residindo o problema verdadeiramente em assegurar que o mesmo se apresenta como um instrumento eficiente de tutela de direitos (TARUFFO, Michele. Una alternativa a las alternativas — modelos de resolucion de conflitos. In: Páginas sobre
Justiça Civil. Madrid: Marcial Pons, 2009, pp. 113-116). Já para Theodoro Júnior, para além de pensar na
jurisdição como última via para dimensionar um conflito, hoje é possível pensar que as chamadas técnicas integradas podem ser utilizadas como vias plúrimas e adequadas para a solução mais apropriada quando bem estruturadas e levadas a cabo de modo profissional, independentemente do nível de complexidade do conflito que se apresente (THEODORO JÚNIOR, Humberto; NUNES, Dierle; BAHIA, Alexandre. Litigância de interesse público e execução comparticipada de políticas públicas. In:
Revista de Processo, São Paulo: RT, v. 224, out. 2013).
24 Apesar da conciliação já ter ganhado importância no Brasil aquando da criação dos Juizados das
Pequenas Causas em 1984 e, depois, em 1995, com a criação dos Juizados Especiais Cíveis – que estabeleceu no art. 2.º da Lei Federal nº 9099/1995 que “o processo orientar-se-á pelos critérios da
oralidade, simplicidade, informalidade, economia processual e celeridade, buscando, sempre que possível, a conciliação ou a transação” (BRASIL. Lei nº 9.099, de 26 de setembro de 1995. Dispõe sobre os Juizados
Especiais Cíveis e Criminais e dá outras providências. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9099.htm>. Acesso em: 20 dez. 2019). Ressalta-se que, no presente trabalho, estaremos tratando apenas da conciliação judicial realizada pelo juiz da causa.
25 Para uma caracterização da mediação, cf.: GOUVEIA, Mariana França. Curso de Resolução
Alternativa de Litígios. Manuais Universitários. Coimbra: Almedina, 2014, pp. 47 e ss.
26 FERREIRA, Jaime Octávio Cardona. Nova justiça. Velho idealismo, mediação e conciliação. In:
MOREIRA, António José (Coord.). Estudos Jurídicos em Homenagem ao Prof. Doutor António Motta
Veiga. Coimbra: Editora Almedina, 2006, p. 742; e VICENTE, Dário Moura. Mediação comercial
Não se negando a existência de outros critérios para realizar essa distinção
27,
usualmente a doutrina agrupa as opiniões com base em dois flancos: (i) o nível de
intervenção do terceiro; e (ii) o fato de o terceiro ser o juiz.
São vários autores que distinguem os institutos com base no primeiro
critério
28. Neste sentido, o papel do mediador é tomado por uma maior passividade,
pois a resolução do conflito se concentra inteiramente nas mãos das partes, sendo o
mediador um mero facilitador do diálogo, devendo abster-se de tomar qualquer
iniciativa de proposição. Já na conciliação, ocorre o inverso. A atuação do conciliador
é ativa, realizando propostas, apresentando possíveis soluções e sugerindo, inclusive,
os seus termos, sempre em cooperação com as partes.
Não corroboramos com este critério para realizar tal diferenciação, uma vez
que medir o grau de intervenção de um mediador ou do conciliador é tarefa muito
árdua. Como mensurar, na prática, se a conduta de um mediador ultrapassou os
“limites” razoáveis na sua intervenção? E mais, o que seria o razoável? Podemos ter
mediações sutis e outras com maior nível de intervenções e, ainda assim, estar dentro
do permitido ou do razoável. Mas qual é esse critério? Quem fará essa análise? Confiar
nessa “teoria pura do mediador passivo” é se distanciar, no mínimo, da realidade. Nos
parece complicado.
Passando para a segunda diferenciação, a distinção se daria pelo fato de que
quem realiza a conciliação tem o poder de posterior decisão, ou seja, o terceiro que
auxilia as partes tem posterior poder de decisão sobre o caso, caso a conciliação
falhe
29. Concordamos com o segundo critério, contudo, faz-se necessário retificar a
27 Podemos citar, por exemplo, Humberto Theodoro Júnior, que distingue a mediação da conciliação
levando em consideração o momento em que a solução consensual é realizada, eis que, para o autor, a conciliação consiste na transação obtida perante o juízo, mediante intervenção do juiz junto às partes, enquanto a mediação é a transação realizada fora do processo, sem a intermediação do magistrado (THEODORO JÚNIOR, Humberto. As inovações no código de processo civil. Rio de Janeiro: Forense, 1998, p. 41).
28VEZZULA, Juan Carlos. Mediação - teoria e prática - guia para utilizadores e profissionais. 2. ed.
Lisboa: Agora Comunicação, 2006, p. 54. VARGAS, Lúcia Dias.Julgados de paz e mediação: uma nova
face da justiça. Coimbra: Editora Almedina, 2006, p. 53.
29 CAMPOS, Joana Paixão. A conciliação judicial. Dissertação (Mestrado) - Curso de Mestrado em
Ciências Jurídicas Forenses, Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa, Lisboa, 2009, 94 p, pp. 7-14. Disponível em:
expressão “o fato do terceiro ser juiz”
30por “o fato do terceiro possuir ou não poder
decisório”.
Explica-se: a conciliação deve ser entendida como o processo em que as partes
são auxiliadas por um terceiro a encontrar uma solução para o seu litígio, sempre que
esse terceiro tenha posterior poder de decisão
31. Caberiam, assim, no conceito de
conciliação, para além das tentativas de acordo realizadas pelo juiz no processo
judicial ou na arbitragem por um árbitro, as tentativas realizadas por um chefe de dois
empregados, se lhe couber a decisão, no caso de eles não chegarem a um acordo, por
exemplo
32.
Vale destacar que o CPC/BR adota como critério de distinção dois fatores
contraditórios entre si, os quais tentaremos demonstrar nas próximas linhas, sendo:
(i) o fato de o conciliador poder sugerir soluções para o litígio, enquanto que na
mediação as partes que precisam encontrar por si próprias as soluções consensuais; e
(ii) o fato de existir ou não vínculo anterior entre as partes, já que o conciliador atuará
preferencialmente nos casos em que não houver vínculo anterior e o mediador o
contrário
33.
Entendemos, dessa maneira, e já fixando a primeira premissa, que a conciliação
é realizada sempre por um terceiro que possui posterior poder de decisão. No
<http://laboratorioral.fd.unl.pt/wp-content/uploads/2019/08/A-Concilia%C3%A7%C3%A3o-Judicial.pdf>. Acesso em: 22 dez. 2019.
30 Em sentido contrário, João Chumbinho associa o conceito da conciliação com a atividade realizada
por um juiz (CHUMBINHO, João Rendeiro. Julgados de paz na prática processual civil. Lisboa: Quid Juris, 2007, pp. 74 e 77). No mesmo sentido, Couto defende que conciliação é a “transacção obtida por
influência do juiz da causa e na sua presença”. Considera que este é o sentido estrito do conceito
(COUTO, Margarida Gonçalves. A tentativa de conciliação na fase do saneamento e condensação. Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, 1998, p. 12).
31 Gouveia (2014, p. 106) conceitua a conciliação como “as diligências promovidas e conduzidas pelo
juiz ou árbitro para tentar resolver o litígio por acordo das partes”.
32 PAIXÃO, 2009.
33 “Art.165. [...] § 2º O conciliador, que atuará preferencialmente nos casos em que não houver vínculo
anterior entre as partes, poderá sugerir soluções para o litígio, sendo vedada a utilização de qualquer tipo de constrangimento ou intimidação para que as partes conciliem; § 3º O mediador, que atuará preferencialmente nos casos em que houver vínculo anterior entre as partes, auxiliará aos interessados a compreender as questões e os interesses em conflito, de modo que eles possam, pelo restabelecimento da comunicação, identificar, por si próprios, soluções consensuais que gerem benefícios mútuos” (BRASIL,
presente trabalho, a problemática se desenrola quando esse terceiro intermediário é
o juiz, que vai decidir a causa, na hipótese de o acordo não ser celebrado
34. Na
tentativa de obtenção de algumas respostas nesta matéria, para além de análisar
brevemente como a figura está positivada no Brasil, tomaremos como referência o art.
594.º do CPC português e o confrontaremos quer com as redações anteriores, quer
com a razão de ser de sua positivação desde Alberto dos Reis.
2.2. A positivação na República Federativa Brasileira
Fazendo um breve retrospecto necessário, podemos afirmar que a conciliação
ingressou no ordenamento jurídico brasileiro em 1932
35, mais especificamente no
Processo do Trabalho, através das Comissões Mistas de Conciliação e das Juntas de
Conciliação e Julgamento. Já no Processo Civil apareceu em 1949, através da Lei nº
968, restrita ao desquite e aos alimentos. Tal disposição permaneceu da mesma forma
com o Código de 1939
36que não inovou no tema. As modificações começaram a
ocorrer com o CPC/BR de 1973
37, passando pela criação dos Juizados de Pequenas
Causas
38, Constituição da República de 1988 – que a mencionava em seu art. 98 –,
34 Calamandrei dá À conciliação um outro sentido, considerando-a como um complemento útil da
legalidade. “A função do conciliador deve consistir em eliminar os atritos entre os litigantes, em fazer
desparecer os mal entendidos que sao muitas vezes a causa única do pleito, em estimular o sentimento da solidariedade humana, de modo que as partes sejam induzidas a encotnrar por si a solução justa do conflito. A função conciliadora deve ajudar os particulares, nao a postergar o direito, mas a achar por si o próprio direito” (CALAMANDREI, Piero. Istituzioni di diritto processuale civile. Parte I. 2. ed. Padova:
Cedam, 1943, p. 79).
35 Se quisermos ir mais longe, vale destacar que, desde a Constituição do Império de 1824, falava-se de
resolução consensual de conflitos, mais especificamente no artigo 161 que dispunha que o processo não começaria se antes não se buscasse a conciliação e, em seu artigo 162 , afirmando que competiria ao juiz de paz conciliar as partes. Para um estudo aprofundado sobre o histórico da conciliação no Brasil, cf.: BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Breve Noticia sobre la Conciliación em el Proceso Civil Brasileño. In: BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Temas de Direito Processual. Quinta Série. São Paulo: Saraiva, 1994, pp. 95-102.
36 BRASIL. Decreto-Lei nº 1.608, de 18 de setembro de 1939. Código de Processo Civil. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Decreto-Lei/1937-1946/Del1608.htm>. Acesso em: 22 dez. 2019.
37 BRASIL. Lei nº 5.869, de 11 de janeiro de 1973. Institui o Código de Processo Civil. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L5869.htm>. Acesso em: 22 dez. 2019. Em sua redação original, no artigo 447, previu a conciliação nas causas de família e de direitos patrimoniais privados antes do início da audiência de instrução e julgamento.
38 BRASIL. Lei nº 7.244, de 7 de novembro de 1984. Dispõe sobre a criação e o funcionamento do Juizado
Especial de Pequenas Causas. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/1980-1988/l7244.htm>. Acesso em: 22 dez. 2019.
criação do Juizados Especiais com a Lei 9.099, até chegarmos na positivação atual
39com o Código de Processo Civil brasileiro de 2015. Um dos pontos destacados pela
Exposição de Motivos
40do anteprojeto foi a ênfase à conciliação e à mediação como
forma de proporcionar uma solução satisfativa ao conflito.
No diploma processual atual e, para a problemática que nos inquieta, devemos
destacar dois artigos que tratam da conciliação em audiência: o art. 359, inserido no
capítulo XI que trata da Audiência de Instrução e Julgamento e que dispõe que o juiz
tentará conciliar as partes, aberta a audiência, independentemente de tentativas
anteriores de outros métodos consensuais; e o art. 334, que trata da audiência de
conciliação ou de mediação, realizada antes mesmo da citação do réu
41.
Podemos concluir da leitura desses dispositivos, de forma clara, que a
audiência inaugural do art. 334
42pode ser de conciliação e mediação, ao passo que, na
audiência de instrução e julgamento do art. 359, o juiz apenas tentará a conciliação.
Ora, há poucas linhas acima, observamos que os critérios que distinguem a mediação
39 Pelas poucas linhas destinadas ao presente estudo, não iremos abordar de forma fiel a evolução
cronológica da mediação e da conciliação no Brasil.
40 BRASIL. Anteprojeto do novo Código de processo civil. Disponível em:
<https://www2.senado.leg.br/bdsf/handle/id/496296>. Acesso em: 7 nov. 2019.
41 “Art. 334. Se a petição inicial preencher os requisitos essenciais e não for o caso de improcedência
liminar do pedido, o juiz designará audiência de conciliação ou de mediação com antecedência mínima de 30 (trinta) dias, devendo ser citado o réu com pelo menos 20 (vinte) dias de antecedência” (BRASIL, 2015). O § 4º do mesmo artigo prescreve que: “A audiência não será realizada: I - se ambas as partes manifestarem, expressamente, desinteresse na composição consensual; II - quando não se admitir a autocomposição”. Daí porque se diz que a audiência de conciliação ou mediação é “quase uma etapa” do processo, visto que, não ocorrendo nenhuma das exceções previstas na lei, a sessão será realizada.
42 A título de comparação, podemos citar a Ley de Enjuciamento Civil de 2000, que prevê uma audiência
previa em que decorrerá uma tentativa de conciliação entre as partes, onde o juiz indagará se as partes chegaram a um acordo ou se se mostram dispostas a conclui-lo de imediato, sob pena da audiência prosseguir (arts. 414 e 415). Não é feita qualquer referência à intervenção ativa do juiz nem a que a mesma seja norteada pela obtenção da solução de equidade (ESPANHA. Ley 1/2000, de 7 de enero, de
Enjuiciamiento Civil. Disponível em: <https://www.boe.es/eli/es/l/2000/01/07/1/con>. Acesso em: 22
dez. 2019). O atual Codice di procedura Civile prevê que o juiz, por sua iniciativa ou a requeriemnto das partes, pode convocar as partes para realização de uma tentativa de conciliação em qualquer fase do processo, podendo renovar-se a tentativa de conciliação durante a fase da instrução (ITÁLIA. Codice
di procedura civile: R.D. 28 ottobre 1940, n. 1443. Disponível em:
<https://www.brocardi.it/codice-di-procedura-civile/>. Acesso em: 22 dez. 2019). E, por sua vez, o Code de Procèdure Civile prevê a realização da conciliação, ao longo de todo o processo, por iniciativa das partes ou do juiz (art. 127 a 130) (FRANÇA. Code de procédure civile: version consolidée au 29 mai 2020. Disponível em: <https://www.legifrance.gouv.fr/affichCode.do?cidTexte=LEGITEXT000006070716>. Acesso em: 22 dez. 2019).
da conciliação são exatamente (i) o fato de o terceiro poder ou não sugerir soluções
para o litígio e (ii) o fato de existir ou não vínculo anterior entre as partes.
Neste sentido, chegado o momento da audiência de Instrução e Julgamento do
art. 359, na qual o juiz apenas poderá tentar a conciliação, pergunta-se: e se as partes
possuírem um vínculo anterior entre elas? O juiz, neste caso, não deveria optar pela
mediação? Se assim o fizesse, poderia sugerir soluções de forma ativa? Estas e outras
várias perguntas não foram respondidas pelo legislador de 2015 que parece, ao nosso
ver, ter tratado o tema de forma equivocada tanto nos dispositivos acima
mencionados, como ao tratar dos critérios de diferenciação entre a mediação e a
conciliação.
2.3. A positivação da figura desde Alberto dos Reis
Para entendermos a redação do atual art. 594.º do CPC/PT, especialmente os
seus parágrafos nº 3 e 4, é imperioso retomarmos brevemente, sob pena de ser muito
descritiva, aos estudos preparatórios dos Códigos de Processo Civil anteriores ao
diploma de 2013. Isto porque, sendo o Direito fenômeno cultural
43, ao longo da
história ele foi se desenvolvendo e se estruturando de acordo com a realidade social
e política de cada época
44. Não foi diferente com o Direito Processual Civil que
43 No tocante ao direito como fenômeno cultural, parafraseando Castanheira Neves que afirmou que
os pensamentos jurídicos se revelam entidades culturalmente históricas, fruto da concepção do direito e dos objetivos específicos que ele se orienta em cada época. Conforme o autor: “não poderá
estranhar-se que os pensamentos jurídicos romano, medieval, moderno-iluminista e actual estranhar-se não confundam – são diferentes na sua intencionalidade e na sua modalidade metódica, na índole da sua racionalidade e no seu tipo especifico de juízo” (NEVES, A. Castanheira. Metodologia jurídica: problemas fundamentais.
Coimbra: Coimbra Editora, 1993, p. 13).
44 Nesta temática, não podemos deixar de transcrever as sábias palavras de Daniel Mitidiero:
“Partindo-se dessa perspectiva cultural, compreendem-“Partindo-se facilmente as razões pelas quais o direito processual civil tenha experimentado diferentes perspectivas metodológicas, já que toda experiência nesse fecundo campo encerra um modo de ver e trabalhar com o processo, evidentemente condicionada à cultural social historicamente considerada – já que essa opera mesmo como uma lente através da qual o homem vê o mundo” (MITIDIERO, Daniel. Colaboração no processo civil: do modelo ao princípio. 4. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2019, p. 26).
vivenciou diversas fases e foi se adaptando e se moldando conforme o contexto
histórico em que estava inserido
45.
Nessa perspectiva, a atual conjuntura jurídica é resultado de um longo
desenvolvimento histórico
46e, por essa razão, não podemos deixar de analisar, ainda
que de forma breve, a positivação do instituto nas diferentes reformas que o Direito
Processual Civil português vivenciou, uma vez que só saberemos manejar de forma
adequada os diversos institutos processuais da atualidade e, principalmente,
concretizarmos alguma mudança de mentalidade dos operadores do Direito, se
fizermos uma análise das transformações, avanços e retrocessos de cada reforma
vivenciada até aqui. Para cumprir o que nos propomos, de antemão pedimos escusas
por uma leitura um tanto quanto “penosa” dos dispositivos legais que nos
depararemos nas próximas linhas, mas de relevância indispensável para compreensão
do tema.
Pois bem, a conciliação judicial foi inseria no ordenamento português desde os
primeiros momentos do movimento de reformas processuais dos novecentos
47e,
daquela altura até a fase atual, tivemos consideráveis alterações relacionadas com (i)
o momento que ocorrerá a tentativa de conciliação; (ii) a sua faculdade ou
obrigatoriedade; (iii) o acréscimo da busca de uma solução de equidade; (iv) a exigência
do empenho ativo do juiz; e, por fim, (v) a consignação em ata das propostas realizadas,
bem como os motivos que justificaram a permanência do litígio.
45 De acordo com Carlos Alberto de Oliveira, a maneira como a sociedade está organizada política,
social e economicamente tem grande influência na estruturação do Direito e, portanto, do processo. Isto porque o processo, assim como o Direito, é produto do homem – não existe in res natura –, é fruto da cultura humana e de suas experiências (OLIVEIRA, Carlos Alberto Álvaro de. O formalismo-valorativo no confronto com o formalismo excessivo. In: Revista da AJURIS, v. 33, n. 104, 2006, p. 58).
46 Sobre o assunto, Dinamarco afirma que a leitura a ser feita dos princípios processuais constitucionais
da atualidade está totalmente ligada à evolução das ideias políticas e das formas de convivência em sociedade em cada época e, por isso, é necessário fazer uma interpretação evolutiva dos princípios e garantias constitucionais no processo civil (DINAMARCO, Candido Rangel. Instituições de direito
processual civil. Vol. I. 5. ed. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 246).
47 Vale ressaltar que, tempos antes, já nas Ordenações Filipinas, L. 3.º, Título 20, § 1.º, era feita expressa
menção à conveniência das partes não gastarem “suas fazendas” pois “o vencimento da causa é sempre duvidoso”. Não iremos tão longe nesta ordem cronológica por falta de espaço nas poucas linhas que nos restam.
A ideia da tentativa de conciliação por iniciativa do juiz, embora sem a
precisão do momento processual em que deveria ser feita e sendo meramente
facultativa, provinha do Decreto nº 12.353 (art. 28.º, n.º 4) transmitido ao Decreto n.º
21.287 (art. 15.º, n.º 4), dispondo que “Compete especialmente ao juiz, determinar a
comparência pessoal das partes quando o julgue conveniente ou para tentar a
conciliação ou para as ouvir sobre os factos essenciais da causa, sob pena de vir a ser
considerada litigante de má-fé, se decair, a parte que faltar sem motivo justificado”
48.
Foi no Projeto do Código de 1939 de Alberto dos Reis, mais especificamente no
art. 450.º
49, que ocorreu a transição da tentativa de conciliação da fase explanatória
dos articulados para o momento do saneamento e condensação do processo ou do
julgamento antecipado da lide, estando assim redigido: “Quando o despacho saneador
não puser termo ao processo, o juiz, se julgar conveniente, tenta a conciliação ou ouvir
as partes sobre os factos essenciais da causa, convocá-las-á para comparecerem
perante ele dentro de oito dias”
50.
Curiosamente, em que pese a redação do art. 450.º supracitado ter se
pronunciado no sentido de se manter o caráter facultativo da conciliação, veio a
ser-lhe atribuída, quase inexplicavelmente, no Código de 1939, natureza obrigatória,
como resulta do teor do art. 513.º
51que dizia “Aberta a audiência, o juiz procurará
conciliar as partes, tendo em vista obter uma solução de equidade”
52, caráter que se
manteve no art. 509.º do Código de 1961
53.
O fato do Código de 1961
54ter mantido a obrigatoriedade é um caso curioso.
Aliás, a cada reforma, o legislador português exigia mais empenho do juiz na função
48 Disponível no Diário da República Eletrônico: <https://dre.pt/>. Acesso em 10 dez. de 2019.
49 Em relação ao Projeto de Alberto dos Reis, podemos extrair diversas divergências e posicionamentos
contrários a determinadas redações, assunto que abordaremos nos próximos tópicos.
50 VARELA, João de Matos Antunes; BEZERRA, J. Miguel; SAMPAIO e Nora. Manual de Processo Civil.
Coimbra: Coimbra Editora, 1984.
51 Decreto-Lei 29.637.
52 Da leitura do referido artigo, podemos perceber também a novidade inserida, qual seja, a busca da
solução de equidade.
53 Nesse sentido, cf.: REIS, José Alberto dos. Código de Processo Civil anotado. Vol. III. Coimbra:
Coimbra Editora, 1950, p. 175.
54 Instituído pelo Decreto-Lei 44.129, de 28 de dezembro de 1961 (PORTUGAL. Decreto-Lei n.º 44129 de
<https://dre.pt/web/guest/pesquisa/-de conciliador, indo <https://dre.pt/web/guest/pesquisa/-de encontro ao que acontecia nos Tribunais. Isto porque, <https://dre.pt/web/guest/pesquisa/-des<https://dre.pt/web/guest/pesquisa/-de
o CPC/PT de 1939, já se vivenciava um cenário gritante no Judiciário português de
inexistência e, muitas vezes, de pressão sobre as partes para induzi-las a terminar os
processos por acordo. Tal afirmação pode ser corroborada inclusive com a leitura do
Relatório do Preâmbulo
55do Decreto-Lei 44.129, subscrito por
ANTUNES VARELA,no
qual manteve-se a função conciliatória do juiz da causa, mas se estabeleceu para o
efeito determinadas limitações com o propósito de coibir abusos em que alguns
recaíram, quais sejam: (i) o não adiamento da audiência preparatória por falta de
qualquer das partes (sendo interpretada como falta de interesse da parte na
conciliação); e, além disso, (ii) o fato de as partes não poderem ser convocadas para o
único fim de se tentar conciliar mais de uma vez.
De todas as alterações até aqui comentadas, podemos dizer que foi a Reforma
de 1995/1996 que significou realmente uma ruptura ideológica com o CPC/PT de 1939,
atribuindo ao juiz um papel dirigente e ativo. Consequentemente, essa atribuição
refletiu-se na tentativa de conciliação que, a partir da reforma, acrescentou ao art.
509.º o n.º 4, que dispõe: “frustrando-se a conciliação, deverá ficar consignada em ata
os fundamentos que, no entendimento das partes, justificam a persistencia o litígio”
./search/437383/details/normal?q=Decreto-Lei+n.%C2%BA%C2%A044129+de+28-12-1961>. Acesso
em: 23 dez. 2019).
55 Lia-se: “[...] De resto, logo a primeira reforma de 1926 transferiu para o juiz da causa a função de
conciliar as partes na pendência da acção, o que supriria, em qualquer caso, a falta da tentativa preliminar de conciliação. Entendeu-se, assim, que a matéria poderia ser eliminada do Código, sem nenhum inconveniente sério. Mantém-se entretanto a função conciliatória do juiz da causa, mas estabelecem-se para o efeito determinadas limitações, com vista a coibir abusos em que alguns recaíram. A audiência preparatória, embora continue a principiar, em regra, por uma tentativa de conciliação, não é adiada por falta de qualquer das partes ou do seu mandatário especial. A falta é, no fundo, tomada como sintoma de que a parte não está interessada na conciliação. Além disso, a convocação das partes para o fim único de se tentar conciliá-las não pode ter lugar mais de uma vez” (PORTUGAL, 1961). Neste
mesmo sentido, Cardoso também afirmava não haver dúvida, em relação ao CPC de 1939, de que as disposições relativas à tentativa de conciliação tinham dado lugar a abusos (CARDOSO, Eurico Lopes.
Projectos de Revisão do Código de Processo Civil. Vol III, n.º 32. Lisboa: Imprensa Nacional de Lisboa,
Acompanhando a tendência de uma visão mais publicista do processo, o
CPC/PT de 2013 regulou a matéria
56nos artigos 594.º, 591.º, n.º 1, alínea a)
57, e 604.º,
n.º 2
58, reforçando o âmbito de intervenção do juiz e exigindo do mesmo um esforço
sério e efetivo na autocomposição das partes. Acrescentou-se, na redação, a expressão
“empenhando-se ativamente”, não podendo mais o juiz adotar uma postura passiva de
mera indagação das partes sobre eventual possibilidade de conciliação. O papel ativo
do juiz passou a constituir um dever, sendo que anteriormente não estava cominado
como tal
59.
Deste novo protagonismo do juiz, elevado como nunca a uma posição de
pacificador social, emergem várias questões sensíveis as quais finalmente
abordaremos no próximo capítulo.
3. O papel do juiz conciliador
Partindo do critério de distinção adotado nas linhas acima, qual seja, de que o
terceiro intermediário na conciliação é quem possui poder decisório e,
circunscrevendo a temática sob a ótica do juiz, é imperioso indagarmos se essa função
de conciliador não afetaria, de alguma forma, a sua imparcialidade. Para
encontrarmos respostas, recorremos mais uma vez às lições de
ALBERTO DOS REIS. O
56 Quanto aos julgados de paz, a conciliação é regulada pelo artigo 26.º da Lei dos Julgados de Paz que
dispõe que “compete ao juiz de paz proferir, de acordo com a lei ou equidade, as decisões relativas a questões que sejam submetidas aos julgados de paz, devendo, previamente, procurar conciliar as partes” (PORTUGAL. Lei n.º 78/2001, de 13 de Julho. Julgados de Paz. Disponível em:
<http://www.pgdlisboa.pt/leis/lei_mostra_articulado.php?nid=724&tabela=leis>. Acesso em: 23 dez. 2019).
57 “Artigo 591.º Audiência prévia: 1 - Concluídas as diligências resultantes do preceituado no n.º 2 do
artigo anterior, se a elas houver lugar, é convocada audiência prévia, a realizar num dos 30 dias subsequentes, destinada a algum ou alguns dos fins seguintes: a) Realizar tentativa de conciliação, nos termos do artigo 594.º” (PORTUGAL, 2013).
58 “Artigo 604.º - Tentativa de conciliação e demais atos a praticar na audiência final: 2 - O juiz
procurará conciliar as partes, se a causa estiver no âmbito do seu poder de disposição” (PORTUGAL, 2013).
59 Vaz fala em natureza verdadeiramente anômala (e até um tanto contraditória) das conciliações
obtidas por imposição mais ou menos aberta dos juízes e dos conciliadores em geral. Fala em “autêntica degenerescência do conceito histórico genuíno e das finalidades transcendentes da conciliação moderna” (VAZ, Alexandre Mario Pessoa. Poderes e Deveres do Juiz na conciliação judicial. Vol. I. Coimbra: Université de Coimbra, 1976).
insigne processualista português, já em tempos mais recuados, apontava-nos as
críticas e preocupações apresentadas pela Comissão Revisora do Código de 1939, mais
especificamente por
BARBOSA DE MAGALHÃESque, por sua vez, criticava a redação do
art. 450.º e sua previsão da conciliação feita pelo juiz com base em duas premissas
A primeira, sob a ótica do juiz: (i) “O juiz seria a entidade menos própria para
tentar a conciliação, pois raros são os que tenham o tacto, a prudência, a habilidade
necessárias para nao dar a conhecer a sua predisposição, que pode resultar ou do estudo
do processo, mas feito numa altura em que ele juiz não pode conhecer perfeitamente
quais os elementos de fato e de direito de que as partes podem dispor, ou de sentimento
de ordem pessoal, cuja força nao possa vencer”.
E a segunda, sob a ótica das partes: (ii) “dada a sua autoridade e o seu poder, as
partes, e até por vezes os advogados, sentem-se numa situação embaraçosa e dificil para
resistir quer aos conselhos, quer às solicitações, quer às instâncias, quer às ameaças
que ele empregue quando esteja com a ideia fixa de conseguir a conciliação. São de
recear abusos demarcados por parte do magistrado. Cria-se às partes uma situação
dificil: ou resistem e o juiz fica indisposto, ou cedem e a conciliaçao reveste o caráter
duma imposição”
60.
Em sentido contrário, acreditando na conciliação realizada pelo juíz da causa
e criticando a conciliação realizada pelo juiz de paz,
ALBERTO DOS REISafirmava ser “o
juiz, por via de regra, a pessoa mais idónea para conduzir as partes a uma conciliação
razoável” pela sua posição na causa e ”porque a lei e a realidade dos factos o colocam
acima das paixões e interesses que estão em jogo e em conflito”
61.
Além disso e de uma forma mais alargada, justificava o papel de conciliador do
juiz por várias ordens de razões, designadamente: “(i) pela percepção que oferece de
imparcialidade e independência, o que lhe confere autoridade moral; (ii) pela sua
relação institucional com o sistema de justiça que reforça a garantia do cumprimento
dos princípios processuais; (iii) pelas qualidades e aptidões que, naturalmente, detém
60 Nas palavras de Barbosa de Magalhães, Estudos sobre o Código de Processo Civil, 1º, pp. 56-57 apud
REIS, 1950, pp. 173-174.
pela experiência de lidar com conflitos similares; e (iv) pelo conhecimento que tem da
lei”
62.
Para o processualista, se os advogados, que possuem completo interesse e
sincero empenho em obter o resultado desejado, conseguem conciliar as partes,
porque não “há-de ser capaz de o fazer o juiz, que não está envolvido directamente na
luta, nem tem, em regra, motivos pessoais para fazer triunfar determinada solução?”
63Apesar de toda a discussão e críticas feitas ao art. 450, este foi aceito pela
Comissão Revisora, que considerou que eventuais abusos do poder de conciliação
cometidos por juízes poderiam ser eficazmente combatidos pelos advogados e, além
disso, as vantagens da composição amigável sobre o julgamento contencioso da ação
deveriam prevalecer.
Corroboramos com todas as inquietações apresentadas por
BARBOSA DEMAGALHÃES
e, diante delas, podemos perceber que toda a problemática gira em torno
do perigo de um atuar parcial ou até mesmo de abusos por parte do juiz. Neste
cenário, como pontuam
VARANOe
SIMONI, vários fatores indicam problemas na
conciliação levada a cabo pelo juiz, pois, por um lado, a fim de realizar com sucesso
uma atividade de conciliador, são necessários tempo, paciência e uma atitude
positiva. A tarefa é, obviamente, muito difícil para os tribunais que estão
sobrecarregados e superlotados. Por outro lado, a ideia da conciliação conduzida pelo
juiz coloca este último em uma posição, de algum modo, ambígua, que pode induzir
a uma desconfiança e causar a resistência das partes
64.
Diante desses argumentos, podemos perceber que a problemática principal se
circunscreve em saber se seria possível um juiz empenhar-se ativamente na busca de
uma solução de equidade sem que tal conduta ultrapasse a barreira da imparcialidade.
62 REIS, 1950, pp.178 e ss. 63 REIS, 1950, p. 180.
64 Essa é a razão pela qual certos experimentos parecem ser preferíveis, como os utilizados na França
ou na Alemanha, onde o juiz pode remeter as partes para fora do processo de resolução judicial (VARANO, Vincenzo; SIMONI, Alessandro. Italian National Report. Dispute Resolution in Different Societies: Formal and Informal Procedures. Civil Procedure in Cross-cultural Dialogue: Eurasia Context: IAPL World Conference on Civil Procedure, 18-21 set. 2012. Moscou: Conference Book/Ed. by Dmitry Maleshin; International Association of Procedural Law. Moscou: Statut, 2012, p. 43).
3.1. A imparcialdiade e o empenho ativo do juiz
Para desenvolvermos uma possível resposta para a pergunta acima, caso seja
possível encontrá-la, precisaremos destrinchar a problemática em duas partes: (i) a
imparcialidade e (ii) qual a razão de ser da consignação em ata. Sumarizadas, cumpre
detalhá-las e enfrentá-las.
Primeiro, trataremos da imparcialidade.
O debate sobre o desempenho de funções processuais e potencial parcialidade
é uma discussão muito antiga. Muitos já foram os que tentaram disciplinar,
doutrinariamente, o exercício da função judicante com a preservação da sua
imparcialidade. Ocorre que toda as obras tratam, por sua vez, do papel do magistrado,
sobretudo na instrução probatória, principalmente na produção de prova ex officio,
mas, sob a pespectiva do juiz como conciliador, pouco se encontra.
É preciso ressaltar que não somos partidários da doutrina que relaciona
diretamente o aumento de poderes do juiz com a quebra da sua imparcialidade
65.
Nesse assunto, inteira razão assiste
MIGUEL MESQUITAquando afirma que a
imparcialidade não restará afetada se o juiz exercer seus poderes de forma objetiva,
não demonstrando preferência por uma das partes
66. O problema que se coloca é
justamente o fato da conduta do juiz conciliador quando decide influenciado por um
pré-julgamento criado na audiência de conciliação –, ser algo subjetivo, intrínseco a
ele e, por isso, de difícil aferição
67.
65 Doutrina defendida por alguns estudiosos, como Juan Montero Aroca (Espanha), Luis Correia de
Mendonça (Portugal) e Franco Cipriani (Itália), denominada de “garantismo processual”, que sustenta a ideia de correlação entre maiores poderes para o juiz e o autoritarismo e, sendo assim, pretendem defender o cidadão dos abusos do Estado. Em sentido contrário e conforme nosso entendimento, Picó I Junoy destaca que o aumento de poderes instrutórios ao juiz, por exemplo, não significa afetar a sua imparcialidade, tendo em vista que as provas produzidas não pertencem nem ao autor, nem ao réu, mas, sim, ao processo, auxiliando o juiz no alcance da decisão justa (PICÓ I JUNOY, Joan. La iniciativa probatória del juez civil: un debate mal planteado. In: Revista Uruguaya de derecho procesal, n. 03, Montevideo, 2007b, pp. 576-578).
66 MESQUITA, Luis Miguel Andrade de. Princípio da gestão processual: O «Santo Graal» do Novo
Processo Civil?. In: Revista de Legislação e de Jurisprudência, ano 145, n.º 3995, Coimbra, nov/dez 2015, p. 100.
67 Nas palavras de Friede: “a capacidade subjetiva do julgador se constitui, inegavelmente, em um
Para melhor explicarmos o caráter subjetivo de atuação que estamos nos
referindo, usaremos como premissa a definição utilizada pelo Tribunal Europeu de
Direitos Humanos
68que, na questão da imparcialidade, a divide numa perspetiva
objetiva e subjetiva. A primeira diz respeito às garantias que um juiz deve gozar em
sua atuação, aquelas que o Tribunal oferece, através da sua composição, para excluir
qualquer dúvida quanto a sua imparcialidade. A segunda diz respeito às convicções
pessoais e o comportamento do juiz em determinado caso, a fim de saber se o mesmo
evidencia um preconceito pessoal no processo. É dizer que: supõe que sejam excluídas
qualquer opinião interna do juiz de “cualquier prejuicio indebidamente adquirido”,
como, por exemplo, o conhecimento prévio do “thema decidendi”
69. A imparcialidade
subjetiva do magistrado presume-se até prova em contrário e aqui está o nosso
problema. Comprovar a imparcialidade subjetiva do juiz é tarefa árdua, justamente
pelo fato de dizer respeito ao seu foro íntimo, interno.
O que fere, ao nosso entender, a imparcialidade do juiz – e aqui não se está
discutindo a impartialidade (com T – ou terzietá)
70–, é justamente o pré-julgamento
realizado (algo subjetivo). Como garantir o real distanciamento do magistrado em
subjetiva do Julgador: Do impedimento e da Suspeição do Magistrado. Rio de Janeiro: Forense, 1996, p.
45).
68 A Declaração Universal dos Direitos do Homem, contida na proclamação feita pela Assembléia-Geral
das Nações Unidas (ONU) reunida em Paris, em 10 de dezembro 1948, também proclama, em termos internacionais, a garantia da ampla imparcialidade dos julgamentos dos órgãos jurisdicionais competentes, estabelecendo, expressamente, que: “Art. 10. Toda pessoa tem direito, em condições de
plena igualdade de ser ouvida publicamente e com justiça por um tribunal independente e imparcial para a determinação de seus direitos e obrigações” (NAÇÕES UNIDAS. Declaração Universal Dos Direitos Humanos. Assembleia Geral das Nações Unidas em Paris. 10 dez. 1948. Disponível em:
<https://nacoesunidas.org/direitoshumanos/declaracao/>. Acesso: 5 dez. 2019).
69 Também neste sentido, a STC 157/1993 do Tribunal Constitucional Espanhol, que expõe a
necessidade de evitar prevenções e pré-juízos que possam derivar de uma “relación o contacto previo
con el objeto del proceso” (VALENZUELA, José Antonio Nolasco. El juez penal. Lima: Ara Editores,
Lima, 2012, p. 136).
70 É comum na doutrina associar a imparcialidade com a exigência de o juiz não ser parte no processo,
ou seja, que seja um terceiro na disputa, que não participe do conflito. Nesse sentido, cf.: AROCA, Juan Montero. Sobre la imparcialidad del juez y la incompatibilidad de funciones procesales. Valencia: Tirantlo Blanch, 1999, pp. 186-187. “Es decir, que sea ajeno a los intereses de las partes: lo que la doctrina
italiana ha denominado terzietà o estraneità del giudice nei confronti degli interessi in causa, traducido como desinterés objetivo” (CALAMANDREI, Piero. Processo e democrazia. Padova: Cedam, 1954, p. 69).
A impartialidade é um atuar como postura de “não parte” que vedaria ao magistrado qualquer função típica das partes. Acerca do tema, cf.: CABRAL, Antônio do Passo. Imparcialidade e impartialidade. In: DIDIER, Fredie. Teoria do processo: panorama doutrinário mundial. Salvador: JusPodivm, 2008.
relação às paixões trazidas pelas partes (e de suas próprias) após ter se empenhado
ativamente na busca da autocomposição
71?
É cediço que a boa regra diz que o juiz, ao tentar conciliar as partes, não deve
externalizar suas pré-compreensões sobre a demanda, nem se inclinar para o lado de
qualquer das partes sob pena de imparcialidade. Ora, se o papel ativo na tentativa de
conciliação é do juiz, se o preceito legal colocou o julgador como impulsionador da
tentativa, como responsável por promovê-la – “O juiz procurará conciliar as partes” –
,
como cumprir esse papel sem vilipendiar o princípio da imparcialidade? Como não
se envolver, como não ser tendencioso para autor ou réu após ter assistido, ou melhor,
ter dirigido toda uma audiência?
E mais: como as partes, no caso de uma possível parcialidade oriunda do
poder-dever de conciliar, poderão afirmar, com certeza e segurança, que um juiz está
atuando de forma parcial? Nós não temos critérios nem uma atuação objetiva para
identificar, por exemplo, um despacho saneador proferido de forma contaminada pelo
juiz, após ter dirigido a tentativa frustrada de conciliação. É que dificilmente a quebra
da imparcialidade será detectada, pois é algo intrínseco ao julgador, algo que está
dentro da sua mente
72-
73.
Para além do empenho ativo do conciliador e a sua imparcialidade, não
podemos deixar de citar o problema do pré-julgamento
74. Ainda que não o faça de
forma consciente, o magistrado pode acabar decidindo com base em juízo de valor
criado na audiência, momento o qual ainda é cedo para fazê-lo. Por não ser uma
máquina, já se torna complicado para o juiz isolar-se da gama de valores e angústias,
71 FRIEDE, 1996, p. 6.
72 SOUZA, Luis Felipe de. O empenho ativo do juiz na obtenção de uma solução de equidade em sede
de tentativa de conciliação. In: Revista Julgar, n. 23, Coimbra: Coimbra Editora, 2014.
73 Em sentido contrário, Nery Júnior e Nery, entendem que a atividade de tentar conciliar decorre do
próprio ofício do magistrado e, sendo assim, “não pode ser vista como caracterizadora de suspeição de
parcialidade do juiz, nem de prejulgamento da causa” (NERY JÚNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de
Andrade. Comentários ao código de processo civil: novo CPC. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015, p. 584).
74 “Pre-juicio significa juzgar de algo antes de tener todos los datos necessários para ello, es decir, haberse
formado una opinión de modo precipitado o sin haber conocido todos los elementos que há de servir para formar la conviccion” (AROCA, 1999, p. 34).