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A fenomenologia de Husserl como filosofia prática

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Série Filosofia, n.° 8

Revista da Universidade dos Açores

Ponta Delgada — 2007

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COMO FILOSOFIA PRÁTICA

Carlos Morujão*

O presente ensaio insere-se num projecto, que o autor tem procura- do levar a cabo nos últimos anos, de verificação dos efeitos práticos da feno- menologia de Edmund Husserl nos planos da cultura e da história. De forma mais directa, poderíamos formular a nossa questão nos seguintes termos: que se modifica (se é que algo se modifica) na nossa relação com a socieda- de e a história se decidirmos encará-las como fenomenólogos? A questão, obviamente, vale para outros domínios da actividade humana, para a mate- mática e para a física em primeiro lugar, embora, nestes dois casos, o feno- menólogo se encontre, por assim dizer, em casa. Nada nos garante, por outro lado, que a aplicação de conceitos fenomenológicos a domínios para os quais a fenomenologia não parece ter sido criada — pelo menos, nas inten- ções iniciais do seu fundador, de acordo com uma opinião muito difundida, mas que talvez convenha rever — se possa revestir de um idêntico sucesso.

Neste ensaio, defenderemos duas coisas, sem termos, contudo, a pretensão de estar a afirmar algo de verdadeiramente novo. Primeiro, que o interesse pelas questões do que poderíamos chamar a «filosofia prática» não é algo que sobrevenha tardiamente ao pensamento husserliano. (Relativamente a este assunto, haveria que explorar, por exemplo, a eficácia das lições de Brentano sobre ética e doutrina dos valores 1 , as únicas a que Husserl assistiu, em Viena, nos anos 1884-86, pois elas constituíram a tota-

* Universidade Católica Portuguesa.

1 Referimo-nos às lições genericamente intituladas «Praktische Philosophie», que Brentano lec-cionou na Universidade de Viena entre 1876 e 1894.0 texto mais completo destas lições, base-ado no manuscrito do curso de 1876, está disponível em Franz Brentano, Grundlegung und Aufbau der Ethik, Hamburg, Felix Meiner Verlag (Philosophische Bibliothek n.° 309), 1978.

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lidade do ensino público de Brentano naqueles anos; obviamente que não o faremos aqui.) Segundo, que alguns conceitos fenomenológicos provenien-tes da esfera lógico-gnosiológica se poderão revelar igualmente aptos para ser aplicados a outras esferas.

A fenomenologia e o problema da cultura

Edmund Husserl morreu a 27 de Abril de 1938. Foi, para alguns, o maior filósofo do Ocidente, desde Platão e Aristóteles. Nos seus últimos anos de vida, impedido de aceder ao espaço público pelas leis raciais do regime nacional-socialista, pressentindo as tempestades que se aproxima-vam, meditou quase solitariamente o destino da Europa e o da figura espiri-tual que ela historicamente constituiu. Helmut Plessner, num sugestivo ensaio2 (mas de que teremos, mais adiante, ocasião de nos demarcar), nota que Husserl, à data da sua morte, pouco poderia já dizer a uma geração que não se formara na leitura de Goethe, nem conhecera a segurança burguesa que precedera a Primeira Grande Guerra. Reconheçamos que, para quem se tivesse formado, por aqueles tempos, na leitura de Kierkegaard ou de Nietzsche e conhecesse a intranquilidade e a insegurança dos anos que medi-aram entre 1918 e 1939, um autor como Martin Heidegger, por exemplo, poderia parecer estar muito mais à altura dos problemas do momento.

Um título como «fenomenologia e filosofia prática» causará sempre alguma incomodidade, antes de mais porque não se trata de apurar, apenas, a contribuição da fenomenologia para uma filosofia dos valores, da história ou da cultura, por exemplo, mas sim, em primeiro lugar, de estabelecer a possibilidade de o fazer a partir daquilo que, pelo menos desde as Investigações Lógicas, poderemos designar como o tema próprio da feno-menologia. Husserl, como é sabido, partilhou de uma crença — termo cuja pertinência, no contexto do que iremos expor, não poderemos aqui interro-gar — na ciência e na razão ocidentais que, hoje, nos parece quase insusten-tável. A sua reserva perante qualquer forma de filosofia romântica e de mis-ticismo, a sua defesa de um ideal de fundamentação rigorosa do saber, dão por vezes a impressão de empreendimento do passado. Até mesmo a analo-gia que Husserl estabelece entre a lógica formal e uma doutrina formal dos 2 Helmuth Plessner, «Phãnomenologie. Das Werk Edmund Husserls», in Gesammelte Werke,

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valores, como seria a axiologia, provoca nos nossos dias a sensação de coisa bizarra: que as mesmas leis da razão possam reger tipos de actos intencio-nais tão diferentes como são os judicativos e os valorativos, tal como Husserl pensava, não será, reconheçamo-lo, de molde a suscitar o consenso entre os contemporâneos. Husserl acreditava que o combate contra o relati-vismo e o cepticismo morais constituía o equivalente, no plano axiológico, do combate contra o psicologismo, no âmbito da fundamentação da lógica e da matemática3 . É provável que hoje a ideia daquela primeiro combate pare-ça tão antiquada quanto o é a ideia deste último.

É certo que uma das mais frequentes objecções à fenomenologia de Husserl é a de, consistindo numa doutrina das essências, ser incapaz de dar conta dos problemas da cultura e da história. Tal, a verificar-se, poderia até não ser excessivamente grave, desde que se reconhecesse, simplesmente, que a fenomenologia não foi feita para isso e que quem desejar ocupar-se de tais questões deverá buscar noutras paragens os conceitos adequados para o poder fazer. Neste ensaio, como se depreende facilmente do que dissemos atrás, defenderemos que não é exactamente assim. Não porque Husserl, no final da sua vida, tenha imprimido à fenomenologia uma orientação diferente da inici-al, mas sim porque, já na exposição, chamemos-lhe canónica, do seu pensa-mento, em Ideias I, na qual se consuma a «viragem transcendental» anuncia-da nas lições de 1906-07 sobre A Ideia de Fenomenologia, o mestre de Freiburg nos oferece um instrumento para pensar os problemas da cultura e da história. Pensamos, em particular, numa afirmação do § 74, segundo a qual há «conceitos que são essencialmente e não acidentalmente inexactos e, por con-seguinte, não matemáticos .» 4 Embora o contexto desta afirmação esclareça que se trata, apenas, de contrapor os conceitos das ciências da natureza aos conceitos da geometria — nunca a trajectória real de um corpo real correspon-derá à linha curva cuja fórmula analítica pocorrespon-derá ser determinada pelo geóme-

3 Cf. as Vorlesungen über Ethik und Wertlehre, in Husserliana, Band XXVIII, p. 36. (De agora em diante, todas as nossas referências a obras de Husserl remetem para esta edição das suas obras, publicada, sob os auspícios dos Arquivos Husserl da Universidade de Lovaina, pela editora Martinus Nijhoff e pela Kluwer Academic Press. Indicaremos, somente, a seguir à sigla Hua, o volume, em algarismos romanos, e a paginação, em alga-rismos árabes.) Cf., igualmente, o interessante texto colocado pelo editor da Husserliana como «Beilage VIII» às referidas Vorlesungen, ed. cit., pp. 345-348, com análises pertinen-tes, embora breves, das dificuldades em estabelecer a referida analogia.

4 Edmund Husserl, Ideen zu einer reinen Phtinomenologie und pheinomenologischen Philosophie, in Hua, Band p. 170.

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tra —, pensamos ser este conceito de «essência inexacta» que permite à feno-menologia uma reflexão sobre os referidos problemas 5 .

É certo, também, que a filosofia de Husserl, precisamente pela sua defesa da forma científica de filosofar, pela recusa da transformação do pen-sar rigoroso em mera Weltanschauung, prisioneira das necessidades e das tarefas do momento, nos aparece como uma filosofia situada. Ela é, sem sombra de dúvida, fruto de uma época em que uma certa ideia de filosofia, tal como fora estabelecida, em primeiro lugar, pelo idealismo alemão, entra-ra há muito em crise; mas ela não é menos o fruto de uma época (justamen-te porque se apresenta como reacção a ela) em que o modelo das ciências físico-matemáticas, alargando-se ao domínio dos actos psíquicos, pretende transformá-los numa esfera objectivo-causal determinante da legitimidade e da fundamentação das esferas cognitiva e valorativa.

Num famoso e polémico artigo programático, intitulado A Filosofia como Ciência de Rigor (escrito, em 1911, para o 3.° fascículo do n.° 1 da revista Logos), Husserl julga com severidade os efeitos da filosofia român-tica em geral (e da filosofia de Hegel em particular), caracterizando-a nos seguintes termos: «enfraquecimento ou falsificação do impulso para a cons-tituição de uma ciência filosófica rigorosa.» 6 Que, neste e noutros contex-tos, se utilize a palavra «impulso», eis o que não nos deverá surpreender. Como se, ao fazer aquela afirmação, Husserl quisesse ainda dizer-nos que a ciência não é apenas uma actividade desinteressada, que tem em vista o conhecimento puro, mas sim que ela corresponde a uma necessidade huma-na profunda. A «filosofia romântica», subvertendo a noção de ciência, não satisfaz essa necessidade.

O facto de o podermos considerar como um filósofo das origens, e como o defensor de uma certa ideia de cultura como fidelidade às origens, não impede também que consideremos que Edmund Husserl tenha sido um filósofo da «actualidade», ou seja, um filósofo que procurou pensar a partir do que no seu tempo era crítico e actual. Não para simplesmente o repudiar 5 Gilles Deleuze foi sensível a este aspecto do pensamento de Husserl, embora por razões

diferentes das nossas. Cf. Alain Beaulieu, Guies Deleuze cria Phénoménologie, Mons , Edi-tions Sils Maria, 2004, pp. 45-55.

6 Edmund Husserl, Philosophie ais strenge Wissenschaft, in Hua, Band XXV, pp. 6-7. Referir-nos-emos a este ensaio, frequentemente, como é aliás habitual nos estudos husser-lianos, pela abreviatura Logos-Aufsatz. A expressão que mencionámos nada tem de ocasi-onal, pois, mais adiante, Husserl referir-se-á, a propósito do romantismo, a um «amoleci-mento e enfraqueci«amoleci-mento do impulso científico.» (Ibidem, p. 58)

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ou enaltecer, mas sim para o compreender e situar. É assim que, num dos muitos Apêndices que o editor do volume VI da Husserliana acrescentou ao texto do chamado livro da Crise, Husserl podia escrever: «Sou um filósofo do meu tempo, do meu presente, no sentido em que trabalho e, nessa medi-da, ensino para nós todos em comunidade [...], sobre o solo da ciência uni-versalmente válida deste tempo — no qual cresci interiormente pela educação e pela aprendizagem [...].» 7 É em função desse seu presente que, no artigo de 1911, Husserl analisa as consequências daquela filosofia romântica, que mencionámos: elas foram, por um lado, o empirismo céptico, que restringia as suas conclusões ao domínio do observável e do experimentável por méto-dos científicos exactos, e que analisava os fenómenos do espírito (vida psí-quica, criações culturais, etc.) como se eles tivessem nos fenómenos naturais (de natureza biológica, fisiológica, etc.) a sua base causal 8 ; por outro lado, o historicismo, que pretendia analisar a vida do espírito como se este fosse um domínio autónomo, situado para lá da esfera da exactidão e do rigor, e sub-vertendo também, assim, o ideal de ciência.

Fundar uma filosofia científica, mas, também, eliminar da ciência os «restos» de positivismo que entravam o seu desenvolvimento 9 significa, para Husserl, libertar a ciência de concepções que, desde o início da moder-nidade, impediram a realização da sua teleologia imanente e provocaram a sua crise. Esta mais não é do que uma «crise dos fundamentos», na medida em que as ciências — tanto as da natureza quanto as do espírito — perderam a sua ligação à única ciência filosófica universal. (Situação a que correspon-de, por um efeito que diríamos de compensação, a das filosofias que se con-sideram desligadas do ideal de ciência e se perdem no irracionalismo e no misticismo.) Torna-se necessário, por isso, reactivar o ideal de ciência tal como ele foi pensado na Grécia antiga, ou seja, ligar a ciência à ideia de um 7 Idem, A Crise das Ciências Europeias e a Fenomenologia Transcendental, Beilage XXV, in

Hua, Band VI, pp. 491 e segs., p. 492. Seria inútil, todavia (pelo menos assim o pensamos), querer determinar a que ciência ao certo Husserl se refere. Estamos em querer que visa, em primeiro lugar, o ideal de ciência, que as ciências efectivamente existentes - as que se regem pelo ideal de cientificidade que foi estabelecido pelos tempos modernos — reduziram a uma «generalidade fluida e indeterminada» (cf. Cartesianische Meditationen, § 3; in Hua, Band I, p. 49), mas que a fenomenologia transcendental tem por missão reactivar.

8 Sobre este assunto, são ainda de grande importância as reflexões contidas em Ideias II, in

Hua, Band IV, pp. 281 e segs. Voltaremos mais adiante a este assunto, procurando mostrar a sua estreita vinculação com a problemática transcendental.

9 Cf. o testemunho de Karl Lõwith, «Eine Erinnerung an E. Husserl», in Silmtliche Werke,

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saber autêntico e de uma vida capaz de assumir as suas responsabilidades últimas. Torna-se necessário, acima de tudo, dar a cada ciência particular o conhecimento do carácter necessariamente parcial das suas realizações. E «parcial» não no sentido de um qualquer limite intrínseco ou extrínseco, que condicionasse a validade objectiva dos seus resultados, mas sim no sentido em que cada uma delas realiza, de uma forma peculiar, a sua tarefa parcial no seio da única ciência filosófica universa1 10 .

As tarefas da filosofia e o lugar da filosofia na história

Antes de prosseguirmos, uma comparação entre Husserl e Hegel relativamente ao papel que cada um reservava à filosofia poderá revestir-se de algum interesse para o nosso propósito. Hegel, como sabemos, julgou ser o pensador do «fim da filosofia» 11 ; não tanto enquanto pensador que anun-cia o fim próximo da filosofia, enquanto actividade humana específica, como o que vive na época em que o projecto da filosofia chegou ao seu termo e, por isso, procura compreender o que tal significa. Para ele, a filo-sofia já não tem mais tarefas a levar a cabo, porque está em vias de se recon-ciliar definitivamente com o seu tempo, reconhecendo que nele se realiza, ou está, pelo menos, em condições de se vir a realizar, o telos da história do espírito. À filosofia restará, apenas, recapitular os momentos anteriores dessa história, ou seja, ser essa mesma história, mas, agora, no plano do pen-samento; ser história sabida, por comparação com a história feita 12 .

10 Edmund Husserl, A Crise das Ciências Europeias e a Fenomenologia Transcendental, Beilage XXV, in flua, Band VI, p. 494.

11 A justificação desta tese ultrapassa em muito o nosso propósito neste ensaio. Bastar-nos-á, por agora, observar a sua estreita relação com a periodização a que Hegel sujeitou a própria histó-ria da filosofia, na qual cada uma das épocas termina com uma reconciliação, que desaparece no início da época seguinte, para ser, no termo desta, restabelecida num plano superior. Assim, a primeira época, a da filosofia antiga, termina com Proclo, reconciliando o finito e o infinito; a segunda época termina com Lutero, reconciliando o mundo terrestre e o mundo divino; a ter-ceira, a que começa com Descartes e termina com o próprio Hegel, elevou aquela reconcilia-ção ao nível do pensamento conceptual. «O fim da filosofia» não significa, portanto, que não haja mais ninguém a filosofar, mas sim que nenhuma outra reconciliação é necessária. 12 Cf., por exemplo, nas Vorlesungen über die Geschichte der Philosophie, toda a secção

intitulada «A filosofia como pensamento do seu tempo»; in Werke, B and 18, Frankfurt am Main, Suhrkamp, 1970, pp. 73-75. A filosofia, diz Hegel é «o espírito do tempo, disponí-vel como espírito que se pensa.» (Ibidem, p. 73)

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O contraste com Husserl, a uma primeira aproximação, é evidente: Hegel define o presente como realização da história, ao passo que Husserl define o presente como crise. Para Hegel, no presente (o «seu», obviamen-te, mas isto pouco nos importa), estavam criadas as condições que permi-tiriam a efectivação daquilo para que a história da humanidade sempre ten-dera: a realização da liberdade e a reconciliação do homem consigo mesmo. Para tal, bastaria que a humanidade actual compreendesse o senti-do dessa sua história e se predispusesse a realizá-lo. (As condições objec-tivas que possibilitam essa realização encontrando-se, pelo seu lado, já dadas 13 .) Para tal exige-se, porém, urna prévia tarefa educativa da consci-ência, que é levada a cabo, por Hegel, na obra de 1807 intitulada Fenomenologia do Espírito. Ela mais não constitui, nas palavras do seu autor, do que a «ciência da experiência da consciência», no termo da qual a consciência deverá ter compreendido a sua história como sendo, justa-mente, a sua história e que, por conseguinte, o que aconteceu não foi inde-pendente da sua intervenção. Quando tal foi efectivamente compreendido, o tempo, lugar da diferença entre o em-si e o para-si (ou seja, entre uma realidade substancial que não se compreende como sujeito e um sujeito sem substância), chegou ao fim; ou, o que vem a dar no mesmo, na pers-pectiva de Hegel, subsiste apenas como tempo da natureza e do homem enquanto é parte da natureza. A consciência educou-se olhando para aqui-lo que realizou e aprendendo a reconhecer aí o seu trabalho, dissolvendo, no «éter do saber» 14 , a aparente rigidez e fixidez do mundo objectivo.

O cepticismo pode, nestas condições, ser superado: a consciência já não desespera de conhecer o objecto, pois compreende que este mais não é do que um produto seu: o mundo físico, compreendido no seu ser, é um resulta-do resulta-do trabalho da ciência, tal como o munresulta-do histórico resulta da actividade

13 «Objectivas», aqui, não no sentido de objectivo-materiais, mas sim, bem entendido, no sentido de objectivo-espirituais. Referimo-nos, como é óbvio, ao reconhecimento univer-sal do princípio da liberdade do espírito, que, segundo Hegel, está representado por três acontecimentos: a Reforma de Lutero, a Revolução Francesa e a filosofia especulativa.

14 Cf. Hegel, Phtinomenologie des Geistes, in Werke, Band 3, Frankfurt am Main, Suhrkamp, 1986, p. 29. Hegel chama «éter» ao elemento em que a consciência se deve encontrar antes de começar a filosofar, por comparação com a substância fluida e subtil que, segundo a físi-ca de Newton, banhava todos os corpos celestes e permitia que entre eles de propagasse a força de atracção universal. A ciência, segundo Hegel, exige que a consciência se eleve a este éter, como pura espiritualidade (reine Geistigkeit) em que se dissolve o antagonismo entre o opinar, sempre particular e contingente, e aquilo que é objecto de opinião.

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social e política concreta dos homens 15 . Por este motivo, a uma segunda apro-ximação, o contraste entre Husserl e Hegel já não é tão marcado quanto o demos a entender mais acima. É que ambos compreendem a experiência his-tórica do respectivo presente a partir de tarefas a que só as filosofias da histó-ria que são próphistó-rias de cada um permitem dar um sentido 16 . A Vollendung hegeliana e a Krisis husserliana são conceitos teleológicos. Por outras pala-vras, quer o presente seja uma «realização» (como o é para Hegel), quer este-ja caracterizado por uma «crise» (como o está para Husserl), tal só se conce-be porque ambas, realização e crise, são integralmente históricas e apenas compreensíveis a partir de uma história que as gerou 17 .

A superação do cepticismo foi, também, um dos mais fortes motivos da problemática transcendental, tal como Kant a formulara programatica-mente na Crítica da Razão Pura e tal como ela regressará com Husserl. Se bem que a noção de transcendental pareça receber o seu impulso inicial de um conjunto de questões de natureza cognitiva, que ela deveria resolver (consistindo, neste âmbito, na totalidade das estruturas capazes de decidir sobre o modo de determinar a realidade efectiva), a verdade é que, enquan-to expressão de um distanciamenenquan-to do sujeienquan-to relativamente ao que lhe é dado na experiência, significa também um pôr em causa a pretensa evidên-cia desta. Nesta segunda acepção, a problemática transcendental aparece como consumação do cepticismo e sua ultrapassagem, e o seu alcance, mais do que exclusivamente gnosiológico, é, acima de tudo, de ordem histórico--cultura1 18 . Tal como Hegel, Husserl não hesitará em ligar o cepticismo à plena realização das exigências da racionalidade.

15 Na Fenomenologia do Espírito, Hegel chama «dialéctica» a este movimento da consciên• cia, no termo do qual ela reconhece, no objecto que, até então, considerava como estra-nho, algo de produzido por si. (Cf. Pheinomenologie des Geistes, ed. cit., p. 78.) 16 Paul Janssen, Geschichte und Lebenswelt, Den Haag, Martinus Nijhoff, 1970, p. 119. 17 Dir-se-á que esta história é história europeia e que não é legítimo, nem a Hegel, nem a

Husserl, transformar os conceitos que utilizam para a pensar em conceitos de alcance uni-versal. Mas isto seria esquecer que, para ambos, a Europa representa o telos da história uni-versal na medida, justamente, em que só ela permite pensar a totalidade dos acontecimen-tos mundiais como uma história. Há aqui um evidente procedimento circular, a que não vemos como os nossos dois autores poderiam escapar sem atribuírem, nos respectivos sis-temas de filosofia da história, um lugar totalmente diferente à contingência. Aliás, mutatis mutandis, o mesmo se poderia dizer para Marx, de que falaremos na secção seguinte. 18 Sobre os dois sentidos de transcendental, que mencionámos, cf. Ernst Wolfgang Ort,

Edmund Husserls <Krisis der europelischen Wissenschaften und die transzendentale Phãnomenologie> , Darmstadt, Wissenschaftliche Buchgesellschaft, 1999, p. 146. Esta

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Já do ponto de vista estritamente axiológico não parece haver, em Husserl, uma idêntica valorização do cepticismo, que aparece, antes, ligado a tendências consideradas como de lassidão moral, ou a comportamentos que manifestam, em relação ao plano dos valores, uma atitude que Husserl não hesita em classificar de zynische Feindseligkeit 19 . Do ponto de vista científi-co, em todo o caso — o único que verdadeiramente importa nas análises hus-serlianas —, tal significa uma falta de interesse na abordagem teórica do pro-blema e uma estagnação na literatura relativa ao assunto. Registe-se, mesmo assim, que é ainda de um esforço da razão que Husserl espera a resolução do problema da fundamentação radical da esfera valorativa e axiológica, e não de prescrições que tivessem a sua origem nas autoridades eclesiástica ou estadu-a120 . Mas tal contribui, apenas, para aumentar a responsabilidade do eu filo-sofante, daquele eu que encarna na pessoa do filósofo disposto a assumir a sua condição de «funcionário da humanidade»; este eu não é, por isso, uma espé-cie de abstracção operada no interior da consciência-de-si, num momento determinado da sua história, como a consciência «fenomenológica» da Fenomenologia do Espírito, de Hegel. Mas também, por esta mesma razão, a responsabilidade moral que o filósofo decide assumir não se dissolve num qualquer «futurismo moral», no sentido que Karl Popper atribuía a este termo21 ; pois a história não tende para nenhuma síntese final de preenchimen-to, para cuja realização aquela responsabilidade agiria como um simples meio.

O problema da teleologia

A propósito dos problemas colocados por uma concepção teleológi-ca da história, há uma pergunta que o historiador não necessita obrigatoria-

obra de Orth procura estabelecer linhas de continuidade entre o programa de «ciência de rigor» do Logos-Aufsatz e a problemática do livro da Crise. Orth refere que é possível encontrar, na obra de Husserl, três paradigmas de análise intencional: o lógico-matemáti-co, o gnosiológico e o cultural-histórico; embora os dois primeiros prevalecessem no Logos-Aufsatz, o terceiro não era menos importante para uma compreensão, pela fenome-nologia, da natureza teleológica do Eu. (Ibidem, pp. 45-46.)

19 Cf. o Ergãnzende Text n.° 1 às Vorlesungen über Ethik und Wertlehre, in Hua, Band XXVIII, pp. 381-382. Como sintoma daquelas tendências que referimos, Husserl menci-ona a obra de Nietzsche Para Além do Bem e do Mal.

20 Idem, Ibidem, p. 382.

21 Karl Popper, The Open Society and its Enemies, London, Routldge and Kegan Paul, 1957, 3.a ed.„ p. 274.

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mente de fazer, mas que o filósofo, interrogando-se sobre o sentido dos acontecimentos históricos, pode colocar: será que o acontecido autoriza a que se fale de uma história, ou seja, de um encadeamento dos factos segun-do um qualquer propósito? Esta última dificuldade, como se sabe, fora já evidenciada por Kant, que, no ensaio intitulado Ideias para uma História Universal numa Perspectiva Cosmopolita, a formula nos seguintes termos: «Uma vez que os homens, nos seus esforços, não se comportam de modo instintivo, como os animais, nem, todavia, como cidadãos racionais do mundo, de acordo com um plano acordado, parece não ser possível (...) uma história deles de acordo com um plano .» 22 Uma tal perspectiva sobre a his-tória, como é óbvio, vai muito para lá da formulação daquele conjunto trivi-al de princípios e leis que Karl Popper, com razão, afirmava que de nada ser-vem ao historiador: do género da assumpção tácita de que agentes racionais agem, em circunstâncias normais, de forma mais ou menos racional 23 .

Numa primeira abordagem, lendo o texto de Kant no horizonte do que poderíamos chamar uma concepção «estrutural» da fenomenologia 24 , ou seja, da fenomenologia como investigação transcendental sobre a corre-lação entre os domínios de objectividade e a consciência de evidência, dirí-amos que ele aponta, simplesmente, para toda a problemática de constitui-ção do «objecto» história; ou seja, para a possibilidade de constituiconstitui-ção de uma ontologia regional (por certo distinta, nos seus princípios, de uma onto-logia da região «natureza»), que teria também o seu lugar no seio dessa proto-região que é a consciência, após a efectuação do movimento da redu-ção. Mas Kant coloca ainda aqui, mesmo se não o resolve, um problema de outra ordem, a saber, o da existência de elementos que, sendo explicáveis, até certo ponto, a partir de circunstâncias dadas anteriormente, não são, porém, totalmente passíveis de uma dedução a partir delas 25 . Na linguagem

22 Kant, Ideen zu einer allgemeinen Geschichte in Weltbürgerlicher Absicht, in Werke (hrsg. Von Wilhelm Weischedel), Darmstadt, Wissenschaftliche Buchgesellschaft, 1983, Band VI, p. 34 (A 388).

23 Cf, Karl Popper, op. cit., p. 265.

24 Cf. Jacques Derrida, «"Genèse et structure" et la phénoménologie», in L'Écriture et la

Différence, Paris, Éditions do Seuil, 1967, pp. 229-251, esp. pp. 248-249.

25 Husserl abordou esta problemática (a saber, a da validade das explicações causais no plano da história) com muita profundidade, não no quadro da sua filosofia da história, mas sim no da investigação das relações entre a natureza e o espírito. Em Ideias II há duas afir-mações fundamentais sobre esta questão: primeiro, o espírito age sobre a natureza, mas não exerce sobre ela nenhuma causalidade no sentido que tem este termo quando aplica-

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da fenomenologia, o problema formular-se-á do seguinte modo: a história, se possui um eidos (e deverá possuí-lo, se é ainda uma região), não poderá ter um eidos à maneira do das outras regiões do mundo, uma vez que os agentes históricos agem segundo normas e valores, ora no quadro de uma tradição, ora recusando-a e instituindo normas e valores de outro género. Ou seja, aqueles conceitos «essencialmente inexactos» do § 74 de Ideias I, a que fizemos referência no início deste ensaio, são ainda conceitos; só eles evi-tam aquela restrição crítica que oporia a ciência, inevitavelmente, à vida his-tórica, expondo esta última a todas as decisões irracionais 26 . Vejamos, a este propósito, o que nos diz o seguinte texto, retirado do livro da Crise27 :

Encontramo-nos, por conseguinte, numa espécie de círculo. A

compreensão do começo só se pode obter completamente a partir da ciên-cia dada na sua configuração actual, num olhar retrospectivo sobre o seu

desenvolvimento. Mas sem uma compreensão dos começos, este

desenvol-vimento, como desenvolvimento do sentido, permanece mudo. Não nos

resta senão o seguinte: devemos proceder em «zig-zag», para trás e para

diante: num jogo recíproco, um [movimento] deve ajudar o outro. Uma relativa clarificação num dos lados traz esclarecimento para o outro, o qual, pelo seu lado, ilumina retrospectivamente o primeiro. Assim, ao jeito de consideração e de crítica históricas, que, partindo de Galileu (e, logo de seguida, de Descartes), tem de acompanhar o decurso do tempo, somos

obrigados a fazer frequentemente saltos históricos, que não são, por

conse-guinte, divagações, mas sim necessidades. Necessidades quando nós, como foi dito, tomamos sobre nós próprios aquela tarefa de auto-reflexão, que surgiu da situação de «desmoronamento» do nosso tempo, com o seu «des-moronamento» da própria «ciência» 28

do aos fenómenos naturais; segundo, o espírito age sobre circunstâncias reais que existem no mundo circundante, bem como sobre os outros espíritos, mas isso não é já um aconte-cimento da ordem da natureza. (Cf. Hua, Band IV, p. 283)

26 Paul Janssen, op. cit., p. 120.

27 É irrelevante, para o nosso propósito, que este texto se refira a um problema particular do livro da Crise, a saber, o da relação entre a crise contemporânea das ciências europeias (o texto, recordemo-lo, foi escrito em 1936) e o momento fundador da concepção moderna do mundo, levada a cabo por Galileu, no plano das ciências físico-matemáticas, e por Descartes, no plano da filosofia. O que aqui nos interessa são os aspectos metodológicos postos em relevo. 28 Edmund Husserl, A Crise das Ciências Europeias e a Fenomenologia Transcendental, §

9,1, in Hua, Band VI, p. 59. Ao círculo que Husserl menciona no início do excerto que acabámos de citar, Marc Richir chamou, em tempos, a tautologia simbólica da fenomeno-

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Será então o procedimento em zig-zag, com o qual Husserl, provavel-mente, julgava satisfazer as exigências de cientificidade que a história, enquanto ciência, reclamava para si, desde, pelo menos, os meados do século XIX, que se substituirá a filosofia especulativa da história, que vê nesta um processo de manifestação do espírito, no seu caminho em direcção ao saber de si. Desta forma, embora de maneira um pouco diferente da das filosofias «compreensivas» da história — com raízes na filosofia de Wilhelm Dilthey e que estão na origem das modernas hermenêuticas Husserl pensava devol-ver à história, para lá do misticismo e do romantismo, mas conservando, do segundo, a noção de uma telelologia, a sua dignidade epistemológica.

Vejamos agora, sucintamente, o caso de Marx. Para este, tal como para Hegel, a filosofia parece ter também chegado ao seu fim, porque as tarefas a realizar pela humanidade não são mais de ordem filosófica, ou seja, da ordem do saber; a filosofia — mesmo como antropologia, ou filosofia do homem con-creto e sensível, como é o caso de Feuerbach, e já não do homem abstracto, como foi o caso de Hegel — é apenas interpretação. Para Marx, como se sabe, trata-se, em primeiro lugar, de transformar o mundo; o instrumento crítico dessa transformação é a economia política, que desvenda a «desumanidade» das relações de produção vigentes, e a força social que a realiza é o proletaria-do. Por um lado, aquela desumanidade torna-se patente quando examinamos o que, para Marx, constitui a fórmula geral do capital, a saber, a fórmula «Dinheiro — Mercadoria — Dinheiro»; é porque o capitalista encontra disponí-vel uma mercadoria cujo valor-de-uso consiste em ser fonte de valor-de-troca, ou seja, a força de trabalho humana, que pode levar a cabo o processo de acu-mulação de capita129 . Assim, quando Marx, na sua conhecida XI.a Tese sobre Feuerbach, afirma que os filósofos mais não fizeram do que interpretar o mundo de diversas maneiras (e pouco importa que consideremos, ou não, esta afirmação como histórico-filosoficamente falsa), mais não exprime do que um programa de abandono da filosofia, num mundo — em vésperas das diversas revoluções que, em 1848, abalaram vários países da Europa — que já não reco-

logia, (Cf. La Crise du Seus et la Phénoménologie, Grenoble, Jerôme Millon, 1990, pas-sim.) Tal círculo estaria já em acção, por exemplo, na teoria husserliana da percepção, em que o reconhecimento de uma Abschattung como pertencente a uma mesma determinada coisa que as Abschattungen anteriores e posteriores supõe o prévio reconhecimento dessa coisa corno a mesma. Idênticas constatações se poderiam fazer, segundo Richir, para a fenomenologia husserliana da linguagem.

29 Marx, O Capital, Livro I, 1.a Secção, capítulo III, 2, in Karl Marx / Friedrich Engels, Werke, Band 23, Berlin, Dietz Verlag, 1969, pp. 118 e segs.

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nhecia na reconciliação hegeliana do pensamento com a realidade efectiva a solução para os problemas com que se defrontava. Mas, por outro lado, Marx parece continuar devedor de uma noção de racionalidade não muito diferente da de Hegel, vendo a razão a realizar-se na história e transformando, desta forma, aquela «desumanidade» em algo ainda assim de racional. Além disso, não é tanto desta desumanidade que Marx espera uma superação do capitalis-mo, mas sim de um conjunto de «contradições internas» que ele não consegue resolver, como a chamada «baixa tendencial da taxa de lucro» (que as tentati-vas do capitalismo para contrariar esta baixa possam aumentar aquela desuma-nidade, é uma outra questão), e que aqui seria deslocado analisar em pormenor. Hegel, Marx e Husserl debatem-se com um problema idêntico, que, em linguagem kantiana poderíamos formular do modo seguinte: de que forma se pode ligar uma concepção determinante da história enquanto fenómeno de natu-reza teleológica, a uma determinação positiva do significado de um conjunto de acontecimentos particulares, que parece limitar qualquer pensamento sobre a história a uma reflexão sobre o seu sentido possível? No caso de Husserl, que é o que nos interessa aqui, o problema recebe uma formulação mais precisa: de que forma o fenómeno histórico-contingente que identificamos pelo nome de «humanidade europeia» pode estar na origem de um conjunto de normas valo-rativas e de princípios axiológicos a que atribuímos um sentido absoluto?

A humanidade europeia e a Grécia. A filosofia grega como pri-meiro acto instaurador da racionalidade europeia

A questão é, de facto, muito complexa. A humanidade europeia é uma criação, e uma criação original, situada num tempo e num espaço geográfico bem definidos: por comodidade, situaremos tal criação na Grécia (primeiro na Jónia e só posteriormente na Grécia continental), entre o século VII e o sécu-lo V a.C. O problema não é, obviamente, o da dificuldade — ou, mesmo, impossibilidade — em derivar causalmente esta criação, das condições sociais, económicas, políticas ou outras, então existentes, mesmo reconhecendo que sem elas tal criação não teria provavelmente tido lugar. O problema, do ponto de vista de Husserl, é o do valor a atribuir a esta criação.

A Europa, para Husserl, é uma ideia, ou uma enteléquia, quer dizer, compreende-se do ponto de vista teleológico, ou seja, em função de uma tarefa a realizar. Aliás, a expressão «ideia em sentido kantiano» é, como se sabe, muito frequente em Husserl, em contextos diversos, mas sempre com o sentido, não de

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uma representação de qualquer coisa efectivamente existente, mas sim de um fim a alcançar. Aqui, é necessário evitar compreender o termo enteléquia num qual-quer sentido analógico ou metafórico, pois é no âmbito da cultura e dos valores e não, por exemplo, no âmbito das ciências da vida, que ele tem, para Husserl, o seu significado próprio. Um organismo que se encontra em crescimentó normal desenvolve-se no sentido de adquirir a figura madura que caracteriza os outros organismos da mesma espécie. Mas só no âmbito da cultura é que o desenvolvi-mento é conduzido de um ponto de vista conscientemente axiológico, quer dizer, dirigido por uma vontade finalizada que visa a realização de uma ideia de fim 30 . Ora, a consciência daquela tarefa nasceu com a filosofia, de forma que, segundo Husserl, foi a filosofia que configurou a Europa enquanto entidade espiritual.

Como definir essa tarefa? Husserl dirá: o conjunto da experiência deve ser submetido às normas ideais da verdade incondicionada; a vida cul-tural e toda a actividade humana não devem ser reguladas pela experiência ingénua e pela tradição, mas sim pela verdade objectiva. A filosofia e a ciên-cia têm, por isso, uma relação estreita com a totalidade da vida humana; a perda do sentido dessa relação significa uma crise das ciências e da própria ideia de uma filosofia científica.

Mas por que é que a Europa se definirá espiritualmente, em primei-ro lugar, pela filosofia? Porque não pelas belas-artes, ou pelas ciências exactas 31 ? Elas são também manifestações espirituais do homem europeu e as segundas tiveram mesmo a sua origem na Europa! Para Husserl, a filo-sofia representa um «ideal de livre crítica e livre normatividade». Só ela coloca a humanidade diante da realização de tarefas infinitas, de acordo com uma acepção desta expressão segundo a qual tais tarefas não recebem o seu sentido e o seu valor de circunstâncias particulares, mas sim da fina-lidade que pretendem ver realizada 32 . A infinitude aparece-nos, assim, como correlativa da ideia de universalidade. Com a filosofia grega surge,

30 Husserl, Aufsdtze und Vortrtige (1922-1938), Hua, Band XXVII, p. 84.

31 Ou, poder-se-ia ainda perguntar, porque não se caracterizará a Europa pela invenção da democracia, quase tão difícil de explicar a partir dos regimes políticos existentes até ao sécu-lo V a.C., como a matemática grega a partir dos conhecimentos nesse domínio de assírios, caldeus e egípcios? A estreita relação entre filosofia e democracia, na antiga Grécia, não pare-ce ter sido objecto de especial atenção por parte de Husserl. Mas é o mesmo ideal, de que falamos algumas linhas mais abaixo, de «livre crítica e livre normatividade», que se mani-festa nos dois casos. (Nem mesmo Platão se pode considerar urna excepção a este facto.) 32 Poderíamos encontrar aqui um forte elemento de continuidade com a doutrina husserliana

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pela primeira vez na história da humanidade, um tipo de legitimação raci-onal que não pretende reflectir características particulares, sejam de ordem cultural, sejam de ordem étnica ou racial; por outras palavras, surge uma forma de legitimação que pretende valer para todos os seres racionais, capazes de autonomia, tanto individual como social, justamente porque se comprometem livremente a reconhecer na razão a norma suprema da con-duta, quer do ponto de vista gnosiológico, quer do ponto de vista axiológi-co. Para Husserl, «humanidade europeia» não é senão outra designação para uma humanidade disposta a viver filosoficamente 33 .

É certo que fora da esfera filosófico-científica podemos encontrar ainda uma grande quantidade de ideias que possuem o carácter da infinitu-de. Nesse sentido, fala-se, por exemplo, de tarefas infinitas, de valores ver-dadeiros, de normas absolutas, etc. Mas é graças à configuração da totali-dade da vida humana pela filosofia que, nessas outras esferas, despontou a ideia de infinito 34 . Assim, a filosofia, enquanto acontecimento histórico-espiritual, caracteriza a Europa e dá-lhe a sua identidade própria. O nasci-mento da filosofia representou a entrada da humanidade na segunda fase da sua história, aquela em que se dá a saída da vida natural e se criticam as pseudo-evidências que ela encerra. Os efeitos da filosofia sobre a totalida-de da vida, o seu carácter formativo e o impulso que totalida-dela recebeu o totalida- des-pertar para a realização de valores incondicionados, podem ser traduzidos

de aparecimentos contínuos, pelos quais um mesmo e idêntico X é determinado. A infinitu-de não é dada enquanto tal no objecto actualmente percepcionado, mas é dada a iinfinitu-deia infinitu-desta infinitude, enquanto horizonte no interior do qual se inscreve uma percepção actual. 33 Se, por um lado, «humanidade europeia» não tem nenhum conteúdo étnico-racial (não

falando sequer em geográfico), por outro, dever-se-á admitir que pertencem à humanidade europeia, ou que realizam aquilo que a Europa é «em ideia», todos os grupos étnico-raciais que se comprometem com o ideal de livre crítica e de livre normatividade. (Ou ainda, como mais acima dissemos, de justificação racional da conduta.) Tal posição, em todo o caso, não ilude a necessidade de uma interrogação de outra ordem: não haverá, ou não terá havido, em outras formas de humanidade que não se regem (ou regeram) por aquele tipo de justifi-cação racional, atitudes vitais, normas e padrões de conduta, por exemplo, que a humanida-de europeia pohumanida-deria e humanida-deveria assimilar? Pensamos, por exemplo, na estrutura familiar dos Trobriand da Polinésia, magnificamente descrita nos trabalhos de Bronislaw Malinowski, que soube criar dispositivos que impediram, nomeadamente, certas patologias do foro psi-quiátrico resultantes de uma deficiente resolução do «complexo de Édipo». (Cf. Bronislaw Malinowski, Sex and Repression in Savage Society, London, Kegan Paul, Trench, Trübner & Co. Lda, 1927) Esta é uma questão que teremos de deixar aqui em aberto.

34 Edmund Husserl, Die Krisis der europáischen Menschentums und die Philosophie, in Hua, Band VI, p. 325.

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com o auxílio daquela comparação kantiana segundo a qual o sujeito não se relaciona com o real tal como o discípulo com o seu mestre, mas sim à maneira de um juiz com a testemunha 35 .

A Europa, quanto ao seu telos, assume, assim, a forma de uma «per-sonalidade de grau superior», cujas realizações colectivas não são apenas a soma das realizações individuais, mas sim uma realização pessoal da própria comunidade de cultura que ela historicamente constitui. Isto confere-lhe, a um nível desconhecido por outras comunidades de cultura, o carácter de uma existência espiritual permanente, cujo telos , manifestando-se na unidade de uma tradição, pode ser reactivado em qualquer momento ou retomado por outras comunidades de cultura 36 . Isto significa que o que caracteriza o modo de ser das comunidades de cultura é uma estrutura temporal imanente, segundo a qual tal modo-de-ser não se esgota no que, em cada caso, uma determinada comunidade é. Ele exprime-se na síntese entre o que ela é, o que ela foi e o que virá a ser. Não se trata, porém, de tempo e de história em sentido habitual. Husserl di-lo claramente, no § 15 do livro da Crise, de que transcrevemos o seguinte excerto:

Trata-se, para nós, de tornar compreensível a teleologia no devir his-tórico da filosofia, em particular na moderna, e, juntamente com isso, tornar para nós claro o que nós próprios somos, como seus suportes, como aqueles que contribuem para a sua realização, na nossa deliberação pessoal. Procuramos captar a unidade que domina em todas as fixações de objectivos, 35 Helmuth Plessner, op. cit., p. 127. Este ensaio de Plessner data de 1938 e a comparação com Kant serve ao autor para defender a tese de que as posições de Kant e Husserl, relativamen-te a esrelativamen-te assunto, são opostas. Recusando a revolução copemiciana, Husserl recusaria tam-bém o carácter prescritivo que Kant atribui ao entendimento humano. A ideia de um tribu-nal da razão seria completamente alheia ao mestre de Freiburg que, ao invés, teria procura-do restabelecer a atitude da razão natural diante procura-dos resultaprocura-dos da ciência. Senprocura-do certo que a revolução coperniciana — e, sobretudo, o seu prolongamento nas filosofias especulativas da subjectividade, como foi o caso do idealismo alemão — sempre permaneceu estranha a Husserl (bem como à tradição filosófica em que se formou: a escola de Brentano), não é menos certo que Kant, para Husserl, foi, juntamente com Descartes, o fundador de uma ciência da subjectividade de que Husserl se reclamará a partir de 1906-07.

36 Husserl, Aufsdtze und Vortrage (1922-1938), pp. 21-22. Husserl, em todo o caso, coloca-se sempre, ao longo desta análise, no plano de uma analogia entre a vida activa de uma comu-nidade e a vida ética individual. Cf., ainda assim, o que é dito quase no final da p. 22: «Uma humanidade pode e deve ser efectivamente considerada um "homem em ponto grande" e, assim, pode e deve ser pensada de um ponto de vista ético-comunitário como eventualmen-te se autodeterminando e, por isso, também como devendo determinar-se eticamente.»

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na oposição e na colaboração que acompanham as suas transformações, e, por fim — numa crítica permanente, que tem sempre diante dos olhos, apenas, a conexão histórica total como algo de pessoal —, observar a tarefa histórica que podemos reconhecer como a única que nos é pessoalmente própria. Uma observação feita, não a partir de fora, do facto, como se o devir histórico, no qual nós próprios deviemos, fosse uma mera sucessão causal externa, mas sim a partir de dentro. Nós, que não temos apenas uma herança espiritual, mas que não somos outra coisa, de princípio ao fim, senão algo que deveio histórico-espiritualmente, temos apenas uma tarefa verdadeira e própria. Não a ganha-mos pela crítica de qualquer sistema presente ou transmitido do passado, de uma «visão do mundo» científica ou pré-científica (por fim, até de uma chine-sa), mas apenas a partir de uma compreensão crítica da totalidade da história: da nossa história.» 37

Aqui, teríamos que afirmar: as coisas não se distinguem por ser boas ou más conforme a finalidade que permitem realizar; é a própria noção de finalidade (o não estar preso às circunstâncias particulares, o poder ser rei-terado ou reactivado, de acordo com o critério da repetibilidade, de que tam-bém já falámos) que se torna em nota distintiva e valorativa. Um segundo exemplo poderá contribuir para um mais cabal esclarecimento desta proble-mática. As técnicas de agrimensura são válidas em circunstâncias sociais e históricas particulares, mas os princípios da geometria euclidiana têm uma validade de tipo completamente diferente. Repare-se que, nos dois casos, podemos falar de práticas sedimentadas (há uma prática da agrimensura, tal como há uma prática de resolução de problemas de geometria), mas o senti-do das práticas é diferente num caso e no outro. No antigo Egipto ou na Caldeia havia, eventualmente, técnicas de agrimensura mais sofisticadas do que na Grécia, mas não havia geometria.

A ciência galilaica e a filosofia de Descartes como o segundo acto instaurador da racionalidade europeia. As ciências e o «mundo da vida»

Chamámos, na secção anterior, ao nascimento da filosofia na Grécia o primeiro acto instaurador da racionalidade europeia. Com ele, pela primei- 37 Edmund Husserl, A Crise das Ciências Europeias e a Fenomenologia Transcendental, §

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ra vez na história, tornar-se-á problemática a existência do mundo que é dado à consciência, quer quanto à sua possibilidade em ser conhecido, quer quanto ao sentido do seu ser-em-si, do ponto de vista dos princípios. Com a filosofia, o mundo é, pela primeira vez, considerado, não já na sua facticidade, mas sim como objecto de uma consciência possível. Tal foi, para Husserl, o contribu-to da sofística, em particular, o de Protágoras e de Górgias 38 , que não soube impedir, contudo, o triunfo do objectivismo, ou seja, do esquecimento do papel transcendental da consciência. A forma «vaga e primitiva» como a cons-ciência foi tematizada pela sofística — o seu psicologismo, poderíamos dizê-lo — conduziu ao cepticismo e impediu que se estabelecesse uma verdadeira ciência da consciência. Com efeito, só nesta e por esta, segundo Husserl, todos os objectos concebíveis recebem um conteúdo e um sentido.

Ora, o segundo momento instaurador da modernidade, que encon-trou nas Meditações de Filosofia Primeira, de Descartes, contemporâneas da revolução científica operada por Galileu, a sua expressão mais radical — quer dizer, capaz de abrir uma nova época na história do pensamento e de dar ao curso futuro dessa história urna orientação radicalmente nova 39 — aparecerá como retomada do trabalho da sofística grega, mas, igualmente, como supe-ração daquele cepticismo que fora a sua mais imediata consequência 40 . Com Descartes, diz Husserl, emergiu um outro tipo de subjectividade, não psico-lógica, capaz de pôr de novo a ciência no caminho certo. Urna subjectivida-de que não é apenas o centro subjectivida-de uma ingénua visada intencional subjectivida-de um mundo de objectos já dados, mas também uma capacidade de «regresso» a si mesmo, e de ser testemunha do seu acto de visar e daquilo que, por seu intermédio, é visado. Subjectividade responsável e, por isso mesmo, fonte de orientações de carácter normativo 41 .

Mas aqui surge uma questão: em que se fundamenta Husserl para admitir este privilégio da «ideia de ciência», uma vez que não basta evocar os seus sucessos de ordem técnica? Ou, dito de outra forma, urna vez que foram esses mesmos sucessos, desde os alvores da modernidade até aos dias de hoje, que produziram a obnubilação daquela ideia, arrastando a própria

38 Cf. Erste Philosophie, in Hua, Band VII, pp. 59-60.

39 Idem, Ibidem, p. 60.

413 Como já referimos no início deste trabalho, no termo da história da filosofia dita «moder-na», Hegel dirá também do seu sistema filosófico que ele constitui o cepticismo superado e compreendido no seu autêntico sentido.

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ciência — e, com ela, a humanidade europeia, onde teve a sua origem — para a crise? É da necessidade de resposta a esta interrogação que resulta toda a problemática husserliana do chamado «mundo da vida», enquanto solo de evidências originárias, no qual a ciência deve buscar uma legitimação últi-ma. Poucos conceitos husserlianos terão tido, como este, a divulgação que se conhece, mesmo fora dos meios filosóficos ou fenomenológicos. Poderíamos mesmo acrescentar que o seu emprego sem crítica no próprio mundo da vida (embora só tal conceito, uma vez tematizado pela fenomeno-logia, devesse estar em condições de garantir o seu justo valor referencial) o distingue de qualquer outro conceito fenomenológico 42 . Com efeito, é ten-tador pensar que o entendemos sem a fenomenologia (por outras palavras, sem praticar a redução), ou apenas mediante uma vaga compreensão dela, ao passo que o mesmo ninguém ousará afirmar de outros conceitos.

E, no entanto, para poucos conceitos husserlianos poderíamos reser-var, com mais propriedade, a classificação, popularizada por Eugen Fink, de conceito «operatório», ou seja, jamais tematicamente definido no seu sentido rigoroso. No livro da Crise, onde supostamente deveria ser explicado, as suas ocorrências são escassas e, muitas vezes, apenas, na forma adverbial lebensweltlich. Acresce a tudo isto — que seria, por si só, suficiente para gerar alguma perplexidade relativamente à pertinência do conceito — o facto de ser facilmente verificável, no próprio texto husserliano (do livro da Crise, mas não exclusivamente), uma como que dupla determinação da natureza daquele solo de evidências originárias a que fizemos referência. Por um lado, ele parece indicar o mundo da pura percepção, o mundo da experiência humana natural, sendo, por isso mesmo, dotado da mais ampla universalidade; enquanto mundo humano, contrapor-se-ia, simplesmente, ao mundo circundante animal. Mas, por outro lado, Husserl, por diversas vezes, parece disposto a recusar-lhe a estrutura geral de mundo simplesmente humano, identificando-o, antes, com o mundo histórico-cultural, sempre relativo e epocalmente variáve1 43 .

Seja como for, não seria exagerado, ao que pensamos, afirmar que, no título completo desta obra, tudo para ele parece apontar. Recordemo-lo: A Crise das Ciências Europeias e a Fenomenologia Transcendental. Se, aqui, 42 Sobre estas dificultades, cf. Idem, Ibidem, pp. 132 e segs.

43 Cf. Jesus M. Días Álvarez, Husserl y la Historia. Hacia la función prática de la fenome-nologia, Madrid, UNED, 2003. O livro apresenta uma excelente resenha das teses em con-fronto, na Forschung, acerca deste problema, e refere a bibliografia mais pertinente. O autor inclina-se para a tese de que é a segunda das duas acepções da Lebenswelt que pre-domina no livro da Crise. (Cf. pp. 248 e segs.)

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«fenomenologia transcendental» é a referência à subjectividade constituinte do sentido do que é dado, se, além disso, as «ciências europeias», na sua plu-ralidade, constituem o facto de ordem histórico-cultural portador de um sen-tido absoluto, mas onde, também, o esquecimento da subjectividade se consu-mou, instaurando, por isso mesmo, a «crise» a que se refere, logo de início, o título da obra, então, o tema do «mundo da vida» desponta como a indicação do lugar a partir do qual, somente, aquela crise poderá ser superada.

Mesmo que o quiséssemos restringir ao mundo da percepção imedia-ta, ele seria, ainda assim, mundo da cultura, pois no homem não há percepção sem que os quadros mentais moldados pela cultura condicionem o modo de percepcionar. Por isso, as ciências pertencem ainda ao mundo da vida e não se caracterizam, somente, pelos seus procedimentos exactos de pesquisa, pela linguagem formalizada e pelas realizações de ordem técnica. Mas esta análi-se da relação das ciências com a totalidade da cultura tem um carácter teleo-lógico: é em função do que são as ciências hoje, ou seja, em função do seu facto, por comparação com o que deveriam ser, que se pergunta como

come-çaram, porque começaram e em que se fundam. Sem este trabalho de funda-mentação, estaríamos diante de uma decisão «irracional» pela ciência.

Duas coisas, contudo, devem ser aqui observadas. Em primeiro lugar, que a nossa experiência quotidiana do mundo «esquece» o «mundo da vida». Ela interpreta, a maioria das vezes, o mundo com o auxílio de idealizações 44 , que resultam já de um trabalho de constituição do sentido. O objectivo da fenomenologia é olhar para tais idealizações a partir da actividade subjectiva que as constituiu. O «mundo da vida» não é, por conseguinte, o mundo da experiência natural, tal como é ingenuamente vivido pelo senso comum, mas sim o mundo ao qual o pensamento vai buscar as intuições que dão sentido às suas construções. (É aqui, diga-se en passant, que radica a polémica de Husserl com a filosofia neo-kantiana: não devemos começar a filosofar a par-tir de algo já construído, como, por exemplo, a ciência, mas sim pela activi-dade de construção nos seus níveis mais baixos.) Apelar para o «mundo da vida» significa mostrar ao pensamento que não trabalha no vazio, como uma técnica que desconhecesse as suas finalidades. Em segundo lugar, em contras-te com a que será, por exemplo, a opinião de Martin Heidegger, convém fri-

44 Idealizações são, na linguagem husserliana, todas as realizações efectivas de âmbito cul-tural e espiritual. A sua idealidade resulta, em primeiro lugar, do carácter intersubjectivo que possuem, quer quanto ao processo da sua génese, quer quanto ao seu valor. Em segun-do lugar, segun-do facto de valerem, não apenas para o momento histórico concreto em que tive-ram a sua origem, mas, por assim dizer, intemporalmente.

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sar que a ciência, para Husserl, não tem apenas um carácter «existencial», ou seja, não é somente um «projecto» humano, que se funda no ser-no-mundo. Para Heidegger, como se sabe, é o esquecimento do seu carácter existencial que está na origem do «objectivismo» moderno, tal como o encontramos na ideia de natureza, que é própria das ciências físico-matemáticas 45 .

Em Husserl, a Europa foi definida, como vimos, como o lugar da

crise, mas tal significa que a sua ultrapassagem implica a recuperação de um

sentido próprio, embora de carácter teleológico. Se fosse possível insuflar novamente na ciência o seu sentido teleológico (que teve na Grécia) - o que implicaria que a filosofia fosse novamente capaz de assumir a responsabili-dade absoluta por esse sentido, como entre os gregos -, então, seria possível superar a crise das ciências e da humanidade europeia. Husserl propõe uma espécie de «supra-racionalismo», que fosse capaz de suprimir as limitações do racionalismo da ciência.

«A geração de cientistas de uma época está, relativamente à sua

ciência (a communis opinio nesta geração: aquilo que é a verdade

univer-salmente reconhecida, obtida em métodos e fundamentações reconheci-dos), de forma semelhante à do homem do período pré-científico

relativa-mente ao seu povo e à sua communis opinio. Esta validade universal

alar-ga-se e, em certa medida, alargou-se na humanidade cultivada da época. Porém, no progresso de uma geração de cientistas para outra não temos um

analogon da mudança histórica permanente da opinio geral. Pois a geração filosófica e científica vive numa conexão histórico-filosófica, quer dizer, particularmente consciente, com as gerações anteriores, exercendo uma crí-tica documentada, correcções, descoberta de unilateralidades, abertura de horizontes de problemas com que se contava, mas até então despercebidos, descobrindo novos e mais precisos conceitos em todas as indeterminações, faltas de clareza, ambiguidades (e não meras palavras), projectando novos problemas de trabalho »46

45 A tese de que o mundo, antes da sua abordagem pelas ciências, tem um carácter existen-cial — sendo neste que reside o que poderíamos chamar a sua «mundanidade» — é desen-volvida em Ser e Tempo, em particular no Capítulo 3.° da Primeira Secção, §§ 14 e segs. (Cf. Sein und Zeit, Tübingen, Max Niemeyer, 1986 16 , pp. 63 e segs.) São igualmente rele-vantes para a compreensão desta questão os §§ 19-21 (ed. cit., pp. 89 e segs.), dedicados a uma análise da concepção cartesiana de mundo como res extensa.

46 Husserl, A Crise das Ciências Europeias e a Fenomenologia Transcendental, Apêndice XXV ao § 73, in Hua, Band VI, p. 491.

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O reconhecimento da diversidade das nações e das tradições cultu-rais torna, se possível, ainda mais premente a realização do projecto de fun-damentação rigorosa do saber 47 . A filosofia é a procura de uma verdade que não esteja obscurecida pela tradição. Husserl não ignora, obviamente, todo o problema da existência de hábitos ou de sedimentações, que relevam das práticas sociais concretas e de condicionalismos de diversa ordem, mas inte-ressa-se, acima de tudo, por descobrir a relação entre tais hábitos, no senti-do de técnicas funcionansenti-do, por assim dizer, «às cegas», e as evidências ori-ginárias das quais eles recebem o seu sentido e o seu valor. Os hábitos são, certamente, importantes. De uma forma a que poderíamos chamar não-temá-tica, o «mundo da vida» constitui o seu correlato, ou seja, o contexto total de sentido em que eles se exercem". Mas mesmo a consciência da sua «habi-tualidade», a compreensão da relação que os une ao horizonte cultural em que se exercem, necessita da vigilância da razão, que só a filosofia está em condições de levar a cabo. A filosofia, actividade consciente de uma huma-nidade responsável e esclarecida, significa, assim, o surgimento de uma vida cultural de um tipo novo: o surgimento da modernidade, se entendermos por tal o querer viver responsavelmente e esclarecidamente. Ela aparece, primei-ro, no interior da comunidade dos filósofos. Em seguida, desenvolve-se num novo tipo de relação intersubjectiva, que está na origem da comunidade dos não-filósofos. Com a filosofia forma-se, não apenas uma comunidade dedi-cada à investigação, mas também um movimento de educação cultural, resultante do interesse que a filosofia desperta nos que não se dedicam à filo-sofia. Isto traduz-se numa modificação da totalidade da vida social e políti-ca da comunidade, uma vez que ela já não deseja mais viver segundo a tra-

47 Não seria legítimo aplicar a tais pretensões da fenomenologia as conclusões do teorema de Góclel? Um projecto fundacional, para ser levado ao seu termo, implica que todas as proposições de um sistema sejam decidíveis no seu interior, isto se ele quiser fugir à objecção de não poder evitar uma regressão indefinida, procurando o fundamento do fun-damento, e assim ad infinitum. Ora, &Mel mostrou que, para demonstrar que todos os teo-remas (proposições demonstradas e, por conseguinte, verdadeiras) de um sistema decor-rem dos axiomas do sistema e não entram em contradição com eles, é necessário recorrer a uma proposição que não é nem axioma nem teorema desse sistema. Trata-se da incom-pletude dos sistemas formais.

48 Klaus Held salientou, com pertinência, esta dimensão. Cf. «Asombro, Tiempo, Idealización — Sobre el Comienzo Griego de la Filosofia», in José Manuel dos Santos / Pedro M. S. Alves / André Barata (org.), A Fenomenologia Hoje, Actas do Primeiro Congresso Internacional da Associação Portuguesa de Filosofia Fenomenológica. Lisboa, Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa, 2003, pp. 15-27.

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dição. Subverte-se a cultura nacional, com os seus particularismos, graças à cultura filosófica transformada em bem comum das nações. Estamos na pre-sença de uma unidade de realizações, que são independentes da distância temporal ou espacial e que configuram uma teleologia própria.

Aquela modificação do sentido da totalidade da vida manifesta-se, também, nas religiões monoteístas: nestas, em que Deus, ao contrário do mito, é logicizado, manifesta-se, tal como na filosofia, a exigência de funda-mentação última num ser verdadeiro 49 . Diremos que, para Husserl, em todos os domínios da existência humana, a filosofia fez nascer um novo tipo de vida e que, dela, surgiu uma nova forma de comunidade que ultrapassa os limites das nações e à qual chamamos, ainda hoje, Europa. Nesta figura espi-ritual, nas suas diversas configurações históricas e na sua cultura, a razão aparece como que institucionalizada. Uma distinção rigorosa relativamente ao projecto hegeliano torna-se, contudo, necessária; pois não se trata, para Husserl, na análise do significado histórico-espiritual da Europa, de desco-brir nela o preenchimento realizante de todas as intenções historicamente não realizadas de outras figuras espirituais anteriores ou suas contemporâne-as, mas sim da realização de uma modalidade da vida do espírito caracteri-zada pela tendência infinita para o preenchimento de normas racionais uni-versalmente constrangedoras.

49 Quanto a este assunto, cf. o artigo inédito, escrito em 1922-23 para a revista japonesa Kaizo, e publicado postumamente in Hua, Band XXVII, pp. 59-93, intitulado «Tipos for-mais da cultura no desenvolvimento da humanidade»: «A Religião [...] não pode evitar a configuração pensante dos conteúdos intuitivos, necessita de uma teologia, tal como qual-quer religião altamente desenvolvida, tal como já a religião babilónica quis e teve, como uma ciência que tivesse de fixar objectivamente e à medida do pensamento os conteúdos da fé, de desdobrar as consequências neles encerradas e investigar a acção do divino no mundo e as relações do homem com ele, que daí se seguem.» (Hua, XXVII, p. 68.)

Referências

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