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Revista – Guerreiras: a força da mulher indígena (CCLF – 2012)

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(1)

Dezembro 2012

Mulheres Indígenas em Pernambuco

Afirmando Tradições, Identidades e Protagonismos

A FORÇA DA MULHER INDÍGENA

A FORÇA DA MULHER INDÍGENA

(2)

A P O I O

R E A L I Z A Ç Ã O

Dona Pacífica Pipipã, 2011

(3)

www.cclf.org.br

Endereço: Rua 27 de Janeiro, 181, Carmo, Olinda, PE, Brasil, 53.020–020 Tel.: 55 (81) 3301-5241

55 (81) 3301-5242 Fax: 55 (81) 3429-4881 E-mail: cclf@cclf.org.br Conselho Diretor

Presidente: Aldenice Rodrigues Teixeira Vice-Presidente: Sonia Jay Wright Secretário: Jayme Benvenuto Lima Júnior Conselho Fiscal

Edvaldo Martiniano de Luna Roberto Franca

Marcelo Santa Cruz Coordenação Executiva Cida Fernandez Tesouraria:

Janete Santiago de Souza Coordenação Programática COMunICAÇÃO: Ivan Moraes EduCAÇÃO: Patricia Freire

POLíTICA dE LEITuRA: Rogério Barata ORÇAMEnTO PúBLICO –

dEMOCRATIZAÇÃO dA GESTÃO PúBLICA: Ana nery dos Santos

Organização Caroline Leal Heloisa Eneida Lara Erendira Andrade Edição

Renato Santana da Silva Editoração eletrônica Licurgo S. Botelho Fotos

Arquivo Cimi, Caroline Leal, Éden Magalhães, Elizabeth Leal, Lara Erendira, Manuela Schillaci, Priscila d. Carvalho e Renato Santana da Silva.

Mapas e gráficos

Lula Marcondes (O norte – Oficina de Criação), Conselho Indigenista Missionário (Cimi), Fundação nacional do índio (Funai) e Ministério do Meio Ambiente. Tiragem: 2 mil exemplares.

ISBn 978-85-87433-05-3

Sumário

Guerreiras – a força da mulher indíGena

Algumas considerações

sobre o vivido

...

6

Gênero e

Mulheres

Indígenas no

Nordeste

Jurema Machado ...

30

Um pouco da história do

nosso movimento

Francisca Kambiwá ...

32

O que há em comum: a

participação das mulheres

nos movimentos sociais

Elisa Entre Serras Pankararu ...

33

Água: Fonte de Vida

Silvinha Xukuru ...

35

A importância da mulher na

luta do povo Kapinawá

Socorro Kapinawá ...

36

EntrEvista

cacique hilda entre serras Pankararu

“A gente tem aquela fé que sai da terra

e dos espíritos da mata”

Manuela Schillaci ...

38

Educar para transformar:

a mulher como tema na sala de aula

– o relato de uma experiência

Entrevista de Heloisa Eneida com a professora Edilene Pankará ...

41

Poemas

Xukuru, Atikun e Truká

...

42

EntrEvista

dona Zenilda Xukuru do ororubá

“Quem nasceu lutando não vai morrer

de braços cruzados”

Renato Santana ...

44

Poema

Pipipã

...

48

editorial

O caminho se faz

ao caminhar

...

5

(4)

d

esde 1995 o Centro de Cultura Luiz Freire (CCLF)

acompanha a luta dos povos indígenas no estado

de Pernambuco. nessa caminhada de denúncia e

anúncio, a equipe indigenista do CCLF percebeu que todo

trabalho de assessoria junto às comunidades tinha um

importante eixo de mobilização: a Mãe Terra.

Ente feminino, a terra acaba por ser a mãe que fornece a vida e que garantiu,

garante e garantirá a articulação histórica de resistência de uma causa invencível, a causa indígena. A mulher, portanto, é parte integrante e mítica da condição de povos

resistentes ao processo colonizador e colonial/capitalista, que historicamente as oprime.

Porém, o próprio movimento indígena fez a equipe indigenista do CCLF perceber que dentro dele existia outro movimento importante, que o alimentava e se mostra fundamental à luta dos povos indígenas pernambucanos. Esse movimento é o de mulheres indígenas. na atuação ao lado da APOInME e COPIPE, ficou claro que era preciso fortalecer a organização das mulheres.

nesse contexto, entre 2011 e 2012, o CCLF desenvolveu o projeto Mulheres

Indígenas em Pernambuco: Afirmando Tradições, Identidades e Protagonismos. A

presente publicação é resultado desse trabalho, com ações de formação durante três encontros envolvendo 12 povos. na mesma medida, realizou-se também um diagnóstico participativo sobre a realidade das mulheres indígenas.

na publicação levamos ao público o resultado dos encontros de formação, por intermédio de produções das próprias indígenas, bem como um apanhado geral do diagnóstico realizado. Pretendemos assim subsidiar outros encontros, reuniões, reflexões e lutas das mulheres indígenas, além de fortalecer o próprio movimento. Como as próprias mulheres defendem a intenção não é estar atrás ou à frente dos homens, mas ao lado.

Como os grandes empreendimentos afetam as mulheres indígenas? Quais as contradições que elas enfrentam dentro do movimento indígena? de que forma as mulheres transformam o dia a dia das comunidades? Quais os medos e angústias presentes no cotidiano? As respostas, apresentadas nessa publicação, seguirão moti-vando novas perguntas e ações.

Por fim, a revista traz a história de importantes lideranças femininas e entrevistas com dona Zenilda Xukuru e dona Hilda Entre Serras Pankararu. Eis a

Guerreiras – A Força da Mulher Indígena.

Editorial

O caminho se faz

ao caminhar

Equipe Indigenista do Centro de Cultura Luiz Freire

(5)

A

autoatribuição Guerreiras,

utilizada pelas mulheres

indígenas em Pernambuco,

é tanto uma valorização da força

feminina no presente, como um

enunciado mítico da condição

de povos resistentes ao processo

colonizador e colonial/capitalista,

que historicamente as oprime.

Pernambuco é uma das regiões mais antigas do contato com o colonizador, entretanto, registra a quarta maior população indígena do país! Existem atualmente 12 povos, localizados nas regiões do agreste e sertão, totalizando 53.284 indivíduos (IBGE, 2010).

A história desses povos pode ser observada e compre-endida a partir do processo de resistência indígena no período colonial, contra a invasão dos portugueses - e também dos holandeses - na faixa litorânea para a explo-ração do solo e da mão de obra dos povos originários para o cultivo da cana de açúcar, e, posteriormente, contra a exploração do sertão, onde os colonizadores se colocaram atrás do ouro, do salitre, e de grandes porções de terras para a criação do gado.

O desenvolvimento do capitalismo colonial se deu a partir da exploração do trabalho dos/as indígenas, dos negros e negras, da usurpação da terra e das riquezas naturais. Males que perduram até os dias atuais, com

contornos diferenciados, atualizados, mas tendo o mesmo conteúdo: machista, racista e eurocêntrico.

A partir do século XX, os povos indígenas em Pernam-buco surgem no cenário nacional reivindicando seus direitos territoriais ao Estado brasileiro. Entre os vários movimentos políticos e rituais para a reconquista de seus territórios tradicionais destacam-se a participação na Assembleia nacional Constituinte de 1987/88 e a luta pela retomada de suas terras, que tem como importante líder o cacique Xicão Xukuru, assassinado em 1998 a mando de fazendeiros interessados nas terras indígenas.

As mulheres indígenas tiveram um papel fundamental como líderes religiosas e políticas nesse movimento de retomada. detentoras de saberes ancestrais, elas têm tido grande influência na condução tanto do movimento indígena, como das lutas específicas de seus povos. Participam ativamente nas duas principais organizações indígenas no estado: a Articulação dos Povos Indígenas no nordeste, Minas Gerais e Espírito Santo (APOInME) e a Comissão de Professores Indí-genas em Pernambuco (Copipe). Importante destacar que a criação da Apoinme contou com a participação feminina, a da guerreira Maninha Xukuru-Kariri.

A luta dos povos indígenas em Pernambuco está centrada no Ente feminino, que é a luta pela Mãe Terra. A Terra Mãe é que garante a vida a esses povos e os articula historicamente. Também sustenta um interes-sante fluxo cultural e epistemológico baseado na ideia da construção do Bem Viver como projeto societário de descolonização, que se pauta por outra ética que

Guerreiras – a força da mulher indígena

Algumas considerações

sobre o vivido

A luta dos povos indígenas em Pernambuco está

centrada no Ente feminino, que é a luta pela Mãe Terra.

A Terra Mãe é que garante a vida a esses povos e os

articula historicamente.

Da esquerda para a direita: Dona Ana Atikum, Dona Emília e Dona Senhora Pankará, 2012

* Heloisa Eneida e Lara Erendira Andrade coordenaram o projeto Mulheres Indígenas em Pernambuco.

Caroline Leal é antropóloga e assessorou o projeto como colaboradora.

Caroline Leal Heloisa Eneida Lara Erendira Andrade*

(6)

valoriza os saberes dos anciãos e das anciãs, o cuidado com a natureza Sagrada, os princípios da reciprocidade e da organização do trabalho coletivo e a construção de saberes e conhecimentos coletivos, sendo estes um conjunto de ideias e de práticas que aproximam esses 12 povos e os distinguem da sociedade nacional.

Vejamos quem são:

Povo População Localização

Kapinawá 3.283 Buíque, Tupanatinga e Ibimirim Xukuru 12.000 Pesqueira

Fulni-ô 4.260 Águas Belas Tuxá 261 Inajá

Kambiwá 2.911 Ibimirim e Inajá Pipipã 1.195 Floresta

Pankararu 5.500 Petrolândia, Tacaratu e Jatobá Pankararu

Entre Serras 1.500 Petrolândia Pancaiuká 150 Jatobá

Atikum 4.631 Carnaubeira da Penha e Salgueiro Pankará 5.000 e 300 Carnaubeira da Penha e Itacuruba

Truká 5.986 e 250 Cabrobó e Orocó

Mulheres de cada um desses doze povos iniciaram seu processo de mobilização coletiva mais recente, no formato de “movimento de mulheres”, acionadas pelo próprio movimento indígena por intermédio da Apoinme. Mesmo que majoritariamente formado por lideranças masculinas, a Apoinme compreendeu que a história do movimento indígena não poderia caminhar à margem da realidade política da aldeia e do mundo. As mulheres indígenas passam a ter cada vez mais presença pública e com demandas e reivindicações próprias.

diante de tal conjuntura foi criado o departa-mento de mulheres na organização, o que ampliou a mobilização das mulheres nos diversos povos, o apoio político-institucional às formas de organização e ao protagonismo dessas líderes e, consequentemente, sua articulação com o movimento de mulheres.

Como afirma a antropóloga Rita Segato, as mulheres de todo mundo, de todas as culturas, “se associam por compartilharem de uma história de sofrimento, como a violência, reconhecendo-se e construindo uma identidade comum, apesar das imensas diferenças”

(SEGATO11, 2003). Com esse desejo de

comparti-lhar suas lutas, histórias, projetos e desejos, que a organização do movimento de mulheres indígenas de Pernambuco desencadeia um processo de articulação entre os povos e passam a realizar, nas comunidades, encontros estaduais e locais.

nesses encontros buscam debater acerca de demandas relacionadas ao seu cotidiano, como também discussão de temas gerais, sejam assuntos pautados pelo movimento indígena ou aqueles do movimento de

mulheres em geral. A mobilização e organização das mulheres indígenas em Pernambucano, embora tenha criado um departamento próprio, continua caminhando conjuntamente com as lideranças indígenas masculinas na defesa dos direitos fundamentais dos povos indígenas.

Para pensar no direito das mulheres indígenas é necessário considerar que, por um lado, elas são parte de povos originários e, por outro, fazem parte também do contingente de mulheres da nação. Importante destacar que os direitos humanos servem a essas mulheres nos dois campos em que elas atuam: para sustentar suas

reivin-dicações enquanto grupo étnico e para ampará-las enquanto sujeitos de direito na sociedade nacional.

Ao analisar a atuação do movimento de mulheres indígenas de Pernambuco, estamos adotando a pers-pectiva de relações de gênero de Segato (2003), como “práticas e ideias referentes às relações dos homens e mulheres nos diferentes grupos, as experiências que dessas interações resultam, e as noções e valores que orientam os papéis femininos e masculinos em cada sociedade”, considerando as dimensões políticas da aldeia em que a mulher tem um papel definido.

nesse sentido, o Centro de Cultura Luiz Freire (CCLF) tem buscado compreender e sistematizar o processo de mobilização das mulheres indígenas em Pernambuco, a partir do trabalho de acompanhamento das lutas e do cotidiano político, religioso e socioeconômico desses povos desde 1995. Trata-se, portanto, de uma análise

1 SEGATO, Rita Laura. uma agenda de ações afirmativas para as mulheres indígenas do Brasil. Brasília, 2003. disponível em: <http://www. agende.org.br/docs/File/dados_pesquisas/outros/Acoes%20para%20 mulheres%20indigenas.pdf > Acesso: 06/10/2012.

externa do processo de mobilização e organização do movimento de mulheres indígenas que trazemos aqui. Trata-se também da nossa contribuição e do nosso comprometimento com as variadas demandas desses povos. É nesse contexto que o leitor/leitora deve situar essa publicação no intento de evidenciar, junto com as indígenas, os avanços da participação feminina na vida política dos povos indígenas, bem como os desafios a serem enfrentados por essas coletividades.

Ao longo desses anos de parceria com os povos indígenas, temos obser-vado as várias dimensões da vida que são desempenhadas em cada povo por homens e mulheres. Grande parte das mulheres ocupa em suas aldeias espaços domésticos, do plantio, do artesanato, do ritual, entre outros. Algumas dessas mulheres indígenas chegam a ocupar espaços de maior “visibilidade” política, quase sempre reservadas aos homens, como o cacicado e etc. Entretanto, o espaço doméstico e comunitário são espaços políticos importantes, decisórios nas aldeias, que convivem com os demais espaços de poder na comunidade e fora dela.

um exemplo que deve ser destacado é o caso Pankará, povo indígena localizado no sertão pernambucano, na região do polígono da maconha, onde a principal liderança política desse povo, a cacique dorinha, acaba de ser eleita a primeira vereadora mulher na cidade de Carnaubeira da Penha. O inicio da transformação de um espaço político que sempre foi dominado pelo gênero masculino. A firmeza e a sabedoria - adquiridas através da religião de seu povo - nas posições políticas de dorinha Pankará, em defesa dos direitos do seu povo, passam agora a desafiar o machismo nas relações políticas/partidárias.

Outro caso de destaque é o da mobilização das mulheres indígenas Kapinawá, povo indígena locali-zado entre os municípios de Buíque, Tupanatinga e Ibimirim. Em meados de 2011 os Kapinawá retomam a mobilização pela ampliação do seu território tradi-cional a partir da ameaça de construção de um hotel fazenda nesta mesma área, o que poderia acarretar na expulsão de famílias indígenas que utilizam as terras da fazenda para agricultura e pecuária.

O Centro de Cultura

Luiz Freire (CCLF) tem

buscado compreender e

sistematizar o processo de

mobilização das mulheres

indígenas em Pernambuco,

a partir do trabalho de

acompanhamento das lutas

e do cotidiano político,

religioso e socioeconômico

desses povos desde 1995.

1. Xukuru – 2. Kapinawá – 3. Kambiwá – 4. Pipipã – 5. Atikum – 6. Pankará

(7)

nesse contexto, as mulheres Kapinawá despontam como lideranças do movimento numa das mais bem sucedidas retomadas de terra. destacamos a organi-zação, o revezamento das equipes, o provimento do povo, a “ordem” do povo, de forma que sustentaram diariamente na retomada aproximadamente 300 pessoas durante quase quatro meses, até que a ameaça fosse eliminada. Pela primeira vez na história desse povo as mulheres participam do processo de negociação com os órgãos estatais para garantir o direito à terra tradi-cionalmente ocupada pelo grupo. Isso sem descuidar da manutenção da alimentação dos acampados na retomada, da casa, dos filhos.

Segato (2003) destaca a importância de se considerar na divisão do trabalho social papéis menos aparentes, e, em geral, descuidados por pesquisadores: divisão do trabalho afetivo, sexual, moral, espiritual. um exemplo paradigmático disto na realidade das populações indí-genas que lutam pela terra é a administração da cozinha num movimento de retomada. Função fundamental e decisiva no provimento da alimentação que garante a permanência das famílias no movimento, e que geral-mente é atribuído à mulher.

Apesar dos avanços no protagonismo da mulher na luta política do movimento indígena de Pernambuco, a dominação e a subordinação ainda predominam, embora possa variar conforme a cultura de cada povo. Esse é um desafio a ser enfrentado não apenas pelo movimento de mulheres indígenas, mas por cada povo em particular, especialmente se consideramos a dinamicidade das

culturas. Ou seja, se a cultura é modificada nas relações que se estabelecem historicamente, não é possível afirmar que o espaço da mulher sempre foi de subalternidade em relação aos homens e que isso deverá permanecer. O diálogo entre culturas diversas poderá suscitar transformações na vida da comunidade que conduzam ao reconhecimento da importância da mulher na vida política dos povos indígenas. Segato (2003) afirma que as mulheres indígenas enfrentam o desafio entre manter a lealdade a seu povo e reclamar direitos individuais,

“Se reclamam seus direitos baseados na ordem individualista, elas parecem ameaçar a permanência dos direitos coletivos nos quais se assentam o direito comunitário à terra e à divisão do trabalho tradicional na unidade doméstica como base da sobrevivência.”

desse modo, acreditamos que são as próprias indí-genas que terão que avaliar o que vale a pena resguardar da estrutura de gênero tradicional e que aspectos podem mudar, sem tornar vulneráveis os laços afetivos com a sua comunidade, a coesão do povo, sua contribuição econômica, sua riqueza cultural e sua força política de

negociação. Com esse tipo de reflexão elas têm empreendido uma série de debates que levou a realização do diag-nóstico que apresentamos a seguir.

durante um ano estivemos junto às mulheres indígenas de Pernambuco desenvolvendo o projeto, financiado pela Onu Mulheres, que resultou nesta publicação. Foi um processo intenso de encontros com as mulheres indígenas de cada um dos 12 povos do estado de Pernambuco. A principal questão que apareceu durante os diversos encontros, específicos nas comunidades e gerais, são as consecutivas formas de violência às quais mulheres indígenas e os povos são submetidos. Tanto é que durante os encontros elas sempre repetiam que um dos grandes desafios atuais para o Movimento de Mulheres Indígenas em Pernambuco é o enfrentamento da violência, tanto a praticada pelos agentes do Estado e fazendeiros invasores das terras indígenas, como a violência doméstica.

A violência doméstica é uma questão que emergiu e a cada encontro ganhou maior visibilidade. no geral, as violências relatadas foram as mais diversas, elas

Apesar dos avanços no protagonismo

da mulher na luta política do movimento

indígena de Pernambuco, a dominação

e a subordinação ainda predominam,

embora possa variar conforme a cultura

de cada povo. Esse é um desafio a ser

enfrentado não apenas pelo movimento de

mulheres indígenas, mas por cada povo em

particular, especialmente se consideramos

a dinamicidade das culturas.

Um dos grandes

desafios atuais para

o Movimento de

Mulheres Indígenas

em Pernambuco é

o enfrentamento

da violência, tanto

a praticada pelos

agentes do Estado e

fazendeiros invasores

das terras indígenas,

como a violência

doméstica.

Cozinha da Retomada dos Pankará no Serrote dos Campos, Itacuruba, 2011. Na foto, a cacique Lucélia e sua mãe

(8)

falam de situações de violência e opressão em espaços públicos e privados, violências físicas, psicológicas e moral. Vamos apresentar agora uma síntese das questões mais importantes que elas trouxeram, um pouco do que vimos e ouvimos das suas denúncias e visões de mundo.

Os principais temas abordados foram: a) a violência praticada por agentes do Estado e fazendeiros; b) a

violência doméstica, o alcoolismo e a Lei Maria da Penha; c) as obras do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) do governo federal e os impactos

nos territórios indígenas e em suas vidas; d) a questão da

sobreposição de unidades de conservação da natureza

e terras indígenas. Vamos a cada um deles.

a A violência praticada

por agentes do

Estado e fazendeiros

A

s mulheres denunciam o preconceito que sofrem nos espaços públicos, por agentes do Estado, que negligenciam o atendimento, negam a prestação de serviços de assistência, segurança e proteção. Os casos são inúmeros, e vão desde a negligência e desrespeito nos atendimentos das equipes de saúde nas aldeias, que aparecem pouquíssimas vezes durante o mês para prestar atendimento e não fazem uma interlocução com os saberes tradicionais de saúde.

As indígenas relatam também, em alguns casos, o constrangimento a que são submetidas quando vão fazer exames específicos de prevenção e que são atendidas nas salas de aula pela falta de estrutura. Até ofensas pessoais e preconceitos vividos nos hospitais da cidade. Elas sempre lembram Maninha Xukuru-Ka-riri, uma das primeiras mulheres indígenas a se tornar liderança no nordeste, e que morreu na frente de um hospital no município onde morava, vítima da falta de atendimento médico.

Por vezes, esta violência cometida pelo Poder Público se soma aos interesses dos fazendeiros locais. Questiona ainda a legitimidade da identidade indígena. É o caso, por exemplo, do poder municipal da cidade de Carnau-beira da Penha com a cacique dorinha Pankará. São inúmeros os relatos que tratam do prefeito da cidade questionando o cacicado desta indígena e as tentativas de interferir na autonomia do povo.

b A violência

doméstica, o

alcoolismo e a Lei

Maria da Penha

O

que nos pareceu mais difícil e doloroso é tratar da violência sofrida em âmbito doméstico. São marcantes na vida comunitária indígena, e da própria identidade étnica, os laços de solidariedade e harmonia. Como pode justamente neste espaço coexistir cumpli-cidade conjugal e de identidade com a violência?As mulheres relatam vários casos da violência doméstica, de perseguições dos maridos às mulheres que começam a participar do movimento, e o não reconhecimento do trabalho doméstico e do trabalho feito na roça por elas.

“Muitas lideranças falam da importância da parti-cipação das mulheres no movimento, mas não deixam as mulheres de sua casa participar”

“nós mulheres indígenas também queremos auto-nomia política. Precisamos reconhecer que existe sim uma hierarquia entre homens e mulheres. nosso trabalho é sempre desvalorizado. O exemplo são as mulheres que ajudam nas despesas de casa, porque ajudam na roça. Ajuda não. A mulher trabalha na roça.” (Relato das indígenas durante os encontros)

nos encontros a forma de violência mais abordada é aquela que acontece nas aldeias associadas ao consumo de bebidas alcoólicas. desde o início do processo de mobilização das mulheres no estado que esta é uma questão recorrente. Mesmo com a campanha feita pelo movimento indígena em 2006 e 2007, para fechar os bares/bodegas nas aldeias, o número desses estabelecimentos ainda é grande e são frequentados principalmente pelos homens.

não é raro ouvir depoimentos sobre brigas que terminam em mortes nestas mesas de bar, de adoles-centes bêbados e jovens alcoolizados frequentando a escola. dentro destas narrativas, as mulheres tratam

também da violência doméstica de que são vítimas, praticadas por familiares alcoolizados, principalmente os maridos.

A bebida alcoólica foi utilizada desde o início da colonização como uma moeda de troca com os indí-genas, tornando-se uma das principais ferramentas no processo de dominação das populações nativas.

O alcoolismo não é o que ocasiona a

violência (mas a agrava), as indígenas

apontam que esta é uma questão que tem

que ser reconhecida como um problema

de saúde pública em todos os povos

indígenas, não apenas um caso de polícia.

Afirmam que o combate à violência contra

as mulheres passa pelo combate ao

alcoolismo, e o estabelecimento de medidas

de saúde que consigam tratar o problema

como uma questão central.

Maninha Xukuru-Kariri, uma das

primeiras mulheres indígenas a se tornar

liderança no Nordeste, morreu na frente

de um hospital no município onde morava,

vítima da falta de atendimento médico.

Cozinha de retomada Truká

(9)

São inúmeros os relatos de como o invasor embriagava os indígenas para poder roubar a terra. O resultado é que os/as indígenas viram-se expropriados de seus territórios e no decorrer da história trabalhando para fazendeiros em terras que ancestralmente eram de seus povos, com condições de vida precárias faltando-lhes saúde, terra, incentivo para o trabalho agrícola, os limites urbanos cada vez mais próximos. Ocorreu, assim, a desestruturação na vida comunitária, dos laços de solidariedade, dos valores do grupo, o que levam os sujeitos a uma série de vícios, inclusive a dependência ao álcool.

Mesmo reconhecendo que o alcoolismo não é o que ocasiona a violência (mas a agrava), as indígenas apontam que esta é uma questão que tem que ser reconhecida como um problema de saúde pública em todos os povos indígenas, não apenas um caso de polícia. Afirmam que o combate à violência contra as mulheres passa pelo combate ao alcoolismo, e o estabelecimento de medidas de saúde que consigam tratar o problema como uma questão central.

A antiga Funasa (Fundação nacional de Saúde), órgão responsável pelo aten-dimento à saúde dos povos indígenas no país até 2011, tampouco a Sesai (Secre-taria Especial de Saúde Indígena), que hoje é o órgão do Ministério da Saúde responsável pela saúde indígena, apontou e aponta para a execução de políticas públicas que tratem de forma profunda e concreta a questão do alcoolismo como um dos principais problemas de saúde pública nas comunidades.

nos encontros era quase comple-mentar falar do álcool, da violência gerada por ele, e da Lei Maria da Penha, principal referência para essas mulheres que tratam diretamente com o problema. A Lei Maria da Penha foi uma grande conquista do movimento de mulheres como um todo. Antes dela, a violência doméstica cometida contra as mulheres era de tal forma considerada inferior, um crime de menor teor

ofensivo, que um homem que agredisse a outro num

bar, por exemplo, poderia ser preso, mas a pena de um marido que agredisse a mulher poderia ser no máximo uma pena educativa como o pagamento

de cestas básicas, ou o desenvolvimento de serviços comunitários.

As mulheres indígenas reconhecem o avanço da criação da Lei Maria da Penha, o que colocam em questão é como fazer dialogar os direitos indígenas e o direito das mulheres, como adequar a lei às respec-tivas realidades?

“Eu não sabia que em 2012 ainda tem mulher que é proibida de fazer o preventivo. É um absurdo. São mulheres ainda arrastadas pelos cabelos. Têm coisas que são negadas às mulheres, por isso que tem tanto movimento de mulheres, e mulheres organizadas... O que a gente faz para ir atrás da Lei Maria da Penha? O que a gente faz para ir atrás do nosso direito? Que em 2012, o Movimento de Mulheres Indígenas avance, para marcarmos a nossa história, as nossas nações, e que ajudemos a contribuir no projeto de futuro dos nossos povos.” (Relato das indígenas durante os encontros)

A aplicação dessa lei às populações indígenas requer um direcionamento diferente para combater esse tipo de violência nas aldeias. O Artigo 231 da Constituição Federal garante o respeito à “organização social, aos usos, costumes e tradições” dos povos indígenas. A Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho - OIT, da qual o Brasil é signatário, também determina que “ao aplicar a legislação nacional aos povos interessados deverão ser levados em consideração seus costumes ou seu direito consuetudinário”.

durante o diagnóstico, uma das questões que traba-lhamos foi como os povos tratavam da violência, crimes e também da violência doméstica. A questão era se existiam normas internas para o trato dessas questões. Percebemos que é comum que determinadas atividades consideradas criminosas pela Justiça comum sejam

As mulheres indígenas

reconhecem o avanço

da criação da Lei

Maria da Penha, o que

colocam em questão é

como fazer dialogar os

direitos indígenas e o

direito das mulheres,

como adequar a

lei às respectivas

realidades?

A violência doméstica contra as

mulheres, antes considerada um

problema do âmbito privado, vem

sendo colocada como questão de

interesse e reflexão comunitária, em

grande parte provocada pela criação

da Lei Maria da Penha, em 2006, e

pelo processo de organização das

mulheres indígenas nas aldeias.

resolvidas dentro da organização social do próprio povo. O exemplo é de alguns casos de brigas ou roubos, onde as pessoas envolvidas geralmente são chamadas pelas lideranças - que encaminham o processo de resolução do conflito sem chamar a “polícia branca”. Isto quer dizer que os povos, por serem diferentes, constroem na convivência suas formas próprias de administrar, encaminhar, punir.

nesse sentido, no caso da violência doméstica, as mulheres relatam que o mais comum é que o caso seja, inicialmente, comunicado às lideranças do povo para tratar da questão. Porém, comumente estes casos ficam sem resolução (e tendem a se repetir) ou são encami-nhados para as delegacias da cidade, que também têm sido pouco eficazes nos encaminhamentos dos processos de agressão. Há um grande vazio na efetivação das polí-ticas públicas de enfrentamento à violência contra as mulheres e de delegacias especializadas da mulher para as áreas rurais. E nas delegacias comuns nem as mulheres indígenas, tampouco as não indígenas, conseguem dar prosseguimento aos casos de violência doméstica.

Retomamos aqui a fala de Mocinha, liderança Kapi-nawá, sobre a presença policial na aldeia: “Acalmou, pois

tinha muita violência. Por um lado é bom, e por outro invade nossa privacidade”. Mas não é só a privacidade

que é invadida, como tratar com a polícia se muitas vezes os policiais são os principais agentes no processo de criminalização das lideranças indígenas e os agentes na violência contra os povos, sendo responsáveis pelos processos de repressão às retomadas de terras? Esta é uma questão central na discussão da necessidade da presença policial e da aplicação da Lei Maria da Penha para a realidade indígena.

E agora, o que farão as mulheres agredidas? Ao que parece, a violência doméstica contra as mulheres, antes considerada um problema do âmbito privado, vem sendo colocada como questão de interesse e reflexão comunitária, em grande parte provocada pela criação da Lei Maria da Penha, em 2006, e pelo processo de organização das mulheres indígenas nas aldeias. não há consenso, nem acúmulos suficientes do Movimento de Mulheres Indígenas apontando sobre o que fazer nestes casos de agressão. Resolve-se internamente ou se leva para a Justiça comum? Como resolver isso internamente? Se levar para a justiça, como adaptar a lei à realidade indígena? Ainda há um caminho a ser percorrido neste assunto, mas os primeiros passos já foram dados e o tema está na pauta.

(10)

c

As obras do PAC e

os impactos nos

territórios indígenas

e em suas vidas

I

niciamos nesse trecho outro bloco de questões que mobilizou as mulheres indígenas nesse processo: as “grandes obras” e seus impactos. Para esta explanação optamos por colocar em diálogo os relatos apresen-tados pelas indígenas e alguns dados que ilustrarão o contexto no qual estas obras estão inseridas para se ter a concreta dimensão da questão.

de acordo com o Conselho Indigenista Missionário (Cimi), o PAC é a ação do governo brasileiro responsável pelo maior número desses “grandes projetos”. Ele conta hoje com cerca de 450 projetos. dos quais, cerca de 100 impactam de forma direta e indireta os territórios indígenas em todo o país. Os impactos denunciados pelo movimento são diversos, desde a intrusão e degradação de seus territórios tradicionais, até a não regularização fundiária de algumas terras indígenas.

na região nordeste, Pernambuco é um dos principais estados no processo de construção dessas “grandes obras”. Citamos as de maior porte: a Transposição do Rio São Francisco, a Ferrovia Transnordestina – já bem adiantadas em sua construção -, e as barragens de Pedra Branca, Riacho Seco e a usina nuclear. Todas as obras citadas impactam de forma direta as terras indígenas e o convívio comunitário dos povos. Vejamos as obras que estão afetando diretamente a vida das mulheres indígenas em Pernambuco:

A obra de Transposição das Águas

do Rio São Francisco

Para entender a Transposição comecemos com alguns dados sobre o empreendimento. A obra de Transposição das Águas do Rio São Francisco é um projeto desenvolvido pelo governo brasileiro, denomi-nado de “Projeto de Integração do Rio São Francisco com Bacias Hidrográficas do nordeste Setentrional”. O projeto prevê a construção de cerca de 600 quilômetros de canais em concreto, divididos em dois eixos – norte e leste – para o desvio das águas do São Francisco, que percorrerão os estados do Ceará, Pernambuco, Paraíba e Rio Grande do norte.

O projeto, aprovado em 2005, é contestado por diversos setores da sociedade civil, desde especialistas na questão hídrica no semiárido brasileiro, até às popu-lações que serão diretamente afetadas pelo projeto, entre elas os povos indígenas.

O governo tenta vender a imagem de que a finalidade da transposição do rio é “levar água para quem tem

Mas, ainda assim, estes números podem ser contes-tados. devido o tipo de manejo que será necessário para manter os canais da transposição funcionando – como, por exemplo, estações para a elevação da água onde há desnível de relevo – a água terá altos custos, e a população mais pobre dificilmente poderá pagar por ela. As indígenas que moram nos povos afetados já estão bem conscientes deste contexto, como ilustrado abaixo na fala de uma professora Truká

“A gente sabe quem vai ser beneficiado pela trans-posição não vai ser os pequenos agricultores, e sim os latifundiários. Quando a água chegar, os humildes não vão ter condições de pagar pela água. Lá em Petro-lina, naqueles projetos nilo Coelho, Bebedouro (que são vilas produtivas irrigadas), muitos agricultores venderam os lotes, porque não tinham condições de pagar pela água. Eu duvido que essa água passe no pé da porta dos humildes”. (Professora Sônia Truká / CIMI, 2011, p. 44)

desta forma, o projeto é também contestado por sua eficácia técnica, pois além dos altos custos da água, especialistas apontam os astronômicos gastos com as obras. Com montantes de dinheiro muito menores investidos em projetos de convivência com o semiárido o problema da água, no sertão, poderia ser combatido de forma mais eficaz. O problema não é necessariamente a falta de água no sertão, mas a

O governo tenta vender a imagem de que a

finalidade da transposição do rio é “levar

água para quem tem sede” e apontam cerca

de 12 milhões de beneficiados. Porém,

os especialistas que estudam a obra

demonstram que estes números não são

reais, e que apenas cerca de 5,7 milhões

de pessoas é que poderão vir a ter acesso

a esta água para consumo humano, uso

animal (gado) e agricultura familiar, sendo

que a água em maioria será destinada ao

agronegócio, complexos industriais em

portos e turismo (Suassuna, 2007a).

sede” e apontam cerca de 12 milhões de beneficiados. Porém, os especialistas que estudam a obra demonstram que estes números não são reais, e que apenas cerca de 5,7 milhões de pessoas é que poderão vir a ter acesso a esta água para consumo humano, uso animal (gado) e agricultura familiar, sendo que a água em maioria será destinada ao agronegócio, complexos industriais em portos e turismo (Suassuna, 2007a).

“Esse número vem sendo questionado, inclusive, pelo Tribunal de Contas da união. não podia ser diferente: conforme estatísticas da  SudEnE (2003), os estados do nordeste Setentrional (Ceará, Rio Grande do norte, Paraíba e Pernambuco) possuem uma população esti-mada em cerca de 21,5 milhões de pessoas, sendo 10,3 milhões residentes em região semi-árida, com sérios problemas de abastecimento. Segundo o Comitê da Bacia Hidrográfica do São Francisco, o Projeto de Transposição atende a menos de 20% da área do Semi-árido e 44% de sua população continuarão sem acesso ao precioso líquido. Isto significa dizer que apenas 5,7 milhões de pessoas dos quatro estados é que serão beneficiadas, portanto, muito diferente daquele anunciado pelo projeto, de 12 milhões de pessoas.” (Suassuna, 2007a2)

2 SuASSunA, João. Caravana do São Francisco: revelando uma mentira

histórica. 2007a. disponível em: http://www.remaatlantico.org/

Members/suassuna/artigos/caravana-do-sao-francisco-revelando--uma-mentira-historica/. Acesso agosto de 2012.

Canal do Eixo Leste sendo construído para a Transposição do Rio São Francisco Impactos da obra de Transposição do Rio São Francisco no sertão nordestino

(11)

concentração dela e da terra. A água, principalmente distribuída em carros-pipa, é usada como “moeda de troca” para manter o povo no “cabresto”.

As mulheres indígenas nos apontam que as maiores prejudicadas com essa concentração da água são elas, afinal, assim como as demais mulheres do contexto rural, elas são as responsáveis pela água da casa, andando muitas vezes longos percursos para pegar água para beber, lavar, cozinhar.

Fica claro que a finalidade da Transposição das Águas do Rio São Francisco, não é a satisfação hídrica da população – que dificilmente terá acesso a ela – mas o abastecimento do agronegócio (irrigação e carcini-cultura e da indústria. Isso demonstra as prioridades que o governo vem definindo, consolidando assim um modelo de desenvolvimento do país que prioriza o investimento no grande capital, aqui representado pela agroindústria.

“Por outro lado, o referido projeto que visa, priori-tariamente, a satisfação das necessidades hídricas da população do Semiárido, terminou por não alcançar os seus objetivos, pelo simples fato de o mesmo concentrar terra e água; diminuir a oferta hídrica das populações – pois apenas transfere água de uma bacia para outra, deixando essa água ao ar livre, sujeita à evaporação - e levar água para as grandes represas já abastecidas com muita água -  suscitando enormes dúvidas com relação à salinização dos solos e ao aumento de desperdícios. Estes aspectos, somados à ausência de uma política que garanta o abastecimento das populações difusas da região, têm resultado em benefícios diretos ao grande capital, principalmente em atividades econômicas do agro-negócio (irrigação e carcinicultura) e da indústria.” (SuASSunA, 2007b3)

Este modelo de desenvolvimento, que prioriza a construção de obras de grande porte, também é denun-ciado pelos impactos que causa ao meio ambiente. Para a construção das obras haverá uma grande parte da Caatinga devastada, e o rio São Francisco, que já fora impactado pela construção de uma série de barra-gens ao longo do seu leito, ameaçado pela poluição e assoreamento, terá parte do seu fluxo transposto para os canais.

3 SuASSunA, João. Transposição do São Francisco: Reféns do equívoco. 2007b. disponível em: http://www.remaatlantico.org/Members/suas-suna/artigos/transposicao-do-sao-francisco-refens-do-equivoco/, acesso agosto de 2012.

É dentro desse complexo contexto que surgem as diversas denúncias das mulheres indígenas e de seus povos acerca dos impactos dessas obras em seus territórios e em suas vidas. As mulheres Truká, por exemplo, denunciaram durante os encontros que a obra de construção do ponto de captação das águas do Rio São Francisco para o eixo norte da Transposição está situada dentro do território tradicional do povo, nas proximidades do Serrote do Tucurutu, município de Cabrobó. As obras já foram iniciadas, e os impactos sentidos pelo povo.

“A medida em que ele (o governo) vai enrolando os Truká, e o povo sofrendo, ele vai tocando a obra. Colocou um pano quente no processo territorial. A demarcação da terra não é prioridade para o governo [...], o projeto da transposição é grandioso e reco-nhecer que ele passa pelo território Truká vai ser um impedimento para a obra.” (Professora Pretinha Truká / Cimi, 2011, p.42)

As Truká relatam ainda outra área de seu povo que será afetada diretamente pela construção de uma obra anexa a Transposição – a barragem de Pedra Branca. A Ilha da Tapera, território tradicional desse povo indígena, que ainda está em processo de regularização fundiária, será completamente inundada para o funcionamento da barragem.

Além das Truká, as Pipipã também relataram o que está acontecendo ao seu povo, pois o canal do eixo leste corta seu território ao meio, também está em processo de regularização fundiária. As obras já foram iniciadas e há aldeias que estão totalmente destruídas com seu avanço.

Uma Usina Nuclear no sertão

pernambucano

Outra obra constantemente denunciada pelos indí-genas e que vem causando muitas dúvidas sobre seu processo é a usina nuclear que está para ser construída no município de Itacuruba.

O plano de investimento em energia atômica do governo brasileiro foi fartamente divulgado nos meios de comunicação em meados de 2011, justamente no período em que estava sendo desenvolvido o projeto com as mulheres indígenas. naquela ocasião sobravam dúvidas entre elas. destaque também, nesta época, foi dado aos locais cogitados para a construção das usinas nucleares que fariam parte deste projeto. Entre as cidades estava Itacuruba, no sertão pernambucano, mesmo município em que habitam parte dos indígenas Pankará.

Ao saber destas informações diversas organizações, entre elas indígenas, setores das universidades federais de Pernambuco, Bahia e Alagoas, sindicatos rurais, ambientalistas e pastorais, começaram a se organizar para contestar os planos do governo em investir em energia nuclear. Em outubro de 2011 acontece nos municípios de Belém do São Francisco, Itacuruba, Floresta e Jatobá a Caravana Antinuclear que buscou alertar as populações locais para os riscos da instalação dessa usina.

As indígenas nos relatam que as principais questões levantadas pelo movimento foram os riscos de acidentes nucleares e o problema do lixo tóxico, além da deses-tabilização de comunidades indígenas e quilombolas, que possivelmente terão problemas na regularização de seus territórios.

As mobilizações ainda apontaram as alternativas de energia limpa, como a energia solar e dos ventos, que não destroem a natureza. O movimento contestou também o fato de não ter ocorrido diálogo com a população local para tratar dos riscos, principalmente à saúde e ao meio ambiente.

neste mesmo ano ocorreu um acidente nuclear em Fukushima, no Japão, após um Tsunami. Este fato gerou uma série de debates internacionais que questionaram a energia nuclear e seus perigos. Os acontecimentos fizeram o governo brasileiro recuar no processo de divulgação das decisões acerca do tema. Integrantes do governo passaram a desdizer o que teria sido dito quanto aos locais para a construção da usina. Porém, é bom salientar, que o governo federal recuou na divulgação, mas não na execução do projeto.

“A medida em que ele (o governo) vai

enrolando os Truká, e o povo sofrendo, ele vai

tocando a obra. Colocou um pano quente no

processo territorial. A demarcação da terra

não é prioridade para o governo [...], o projeto

da transposição é grandioso e reconhecer

que ele passa pelo território Truká vai ser

um impedimento para a obra.” (Professora

Pretinha Truká / Cimi, 2011, p.42)

Fonte: Cimi, 201

1, p.53

Região afetada em caso de acidente nuclear Pretinha Truká, 2011

(12)

Mesmo depois de finalizado o trabalho com as mulheres indígenas em Pernambuco, continuamos acompanhando seus povos. Em julho de 2012 os Pankará denunciaram em matéria para o jornal O Estado de S. Paulo4 a construção de uma estrada no território

reivindicado por eles que daria acesso ao local de construção da usina. Em agosto do mesmo ano, a presidente dilma Rousseff sanciona lei que autoriza a criação de uma estatal para desenvolver atividades do Programa nuclear da Marinha.

Segundo dados do Cimi (2011), caso a usina nuclear seja construída e ocorra um acidente nuclear, a região terá 11 municípios afetados. Em Pernambuco, as cidades afetadas serão: Belém do São Francisco, Carnaubeira da Penha, Itacuruba, Floresta e Petrolândia, nos quais estão situados territórios indígenas, conforme demons-tramos no quadro.

Município Povo

Belém do São Francisco Atikum

Carnaubeira da Penha, Atikum e Pankará Itacuruba Pankará

Floresta Pipipã e Kambiwá Petrolândia Pankararu e Entre Serras Pankararu

4 nOSSA, Leonencio. usina nuclear no sertão ameaça índios pankarás.

Jornal Estadão, 15 de julho de 2012. disponível em http://www. estadao.com.br/noticias/impresso,usina-nuclear-no-sertao-ameaca-in-dios-pankaras-,900360,0.htm. Acessado em agosto de 2012.

Denunciar e anunciar –

os impactos das grandes

obras nas áreas indígenas

*

Elisa Entre Serras Pankararu

A

história dos indígenas em Pernambuco e no nordeste é marcada, num passado não tão distante, pela cons-trução de barragens e atualmente não só barragens, mas também as obras da Transposição do Rio São Francisco, e elas têm um impacto triste. Os impactos que as construções de barragens deixam para os povos indígenas são um o rastro de destruição. não é apenas a destruição do meio ambiente, ela vai além do espaço onde vivem as pessoas, onde vivem as árvores, onde vivem os animais.

Então, eu destaquei alguns aspectos de impacto. O primeiro é um impacto ambiental, que é a destruição da vegetação, a destruição dos animais. A construção de barragens, e aí eu não estou falando apenas do meu povo – que o impacto foi a alguns quilômetros do nosso território, cerca de 8 km, 6 km –, mas eu estou falando também daquelas populações em que o impacto foi direto e que o território indígena foi mudado, e que o espaço sagrado, que é a velha aldeia, foi simplesmente engolido pelas águas. Quando eu cito isso, foi o que aprendi com as assembleias, com o contato, com a troca de experiência que a gente tem com outros parentes.

É uma destruição da vegetação, é uma destruição de animais, mas é uma destruição cultural. É você tirar uma população do seu lugar de origem, do lugar dos seus antepassados, do seu lugar sagrado, do seu território, das suas crenças, da sua religiosidade, dos seus rituais sagrados. Então não é apenas o impacto da destruição cultural, de mudar de um lugar para outro. É a relação de contato. E a história dos povos indígenas desse país tem uma destruição enorme, sem tamanho, a partir do contato. E esse contato tem todo um contexto de prejuízo, tem a exploração do trabalho doméstico, aí eu falo diretamente relacionado às mulheres.

Então, eu fui criança, adolescente, eu cresci vendo as mulheres caminhando todos os dias 10 km para ir trabalhar de doméstica nas casas da cidade, ganhando menos que meio salário mínimo. Então hoje, 20 anos depois, 25 anos depois, 30 anos depois, esse contexto continua; o êxodo rural. Quantas

e quantos indígenas mudaram para as periferias, em especial as favelas de São Paulo. Tudo isso a partir das barragens.

Tem outro prejuízo maior do que todos os que eu citei agora, que é a destruição dos espaços sagrados, a destruição do meio ambiente como o meio em que vivemos. não é o meio ambiente que traduz as árvores, os rios, as águas. não é um meio ambiente romântico que falam quando se trata de ecologia. Eu estou falando da vida, do meio, das casas, das pessoas, um meio ambiente em um contexto bem maior. Quando a gente cita tudo isso não pode deixar de fora a questão da territorialidade, e o território indígena não é apenas terra para plantar e para colher, mas é terra para viver, para viver a cultura, para viver as crenças, para viver os costumes, para viver a tradição, a educação que os mais velhos nos deixam. É um território para dar continuidade à

cultura, e aí o movimento de mulheres indígenas que discutem essa questão de barragens, que discute a Transposição do Rio São Francisco, e que é solidário aos demais movimentos sociais, às mulheres agricultoras, mulheres e homens, porque uma das palavras da coordenação de mulheres indígenas da Apoinme é que as mulheres indígenas não vieram para ficar atrás dos homens, tampouco à frente, mas lado a lado. É para trazer consigo a discussão da saúde, da educação, da sustentabilidade, da vivência das mulheres. Então, eu estou tratando de um contexto histórico, do passado, do presente, e que não deixa da gente visua-lizar o que é que tem o futuro. Mas a gente, eu, como as companheiras, vemos que existem realidades que a gente imagina - e num evento como esse a gente conhece. Talvez a gente aprenda mais, saia mais informada do que a gente possa informar. Pensando nas propostas do amanhã, existe o grande mestre educador, Paulo Freire: ele fala de denunciar e anunciar. Então tudo que eu ouvi aqui foram denúncias, mas também anúncios. Então na medida em que a gente denuncia, a gente também propõe, a gente anuncia. E penso que não é apenas anunciar, denunciar a esse grupo que conhece as problemáticas, mas a gente de fato denunciar à sociedade civil, às autoridades, a todos aqueles que podem nos ajudar; ajudar nessa diversidade de lutas, porque as conquistas dos movimentos sociais desse país nunca foram de graça; não é de graça: é através da luta. nunca nenhuma conquista veio em um pacote de presente com laço cor de rosa, nem desse tamanho ou daquele tamanho. Veio através da luta, e muitas das lutas com o sangue dos excluídos e excluídas desse país.

Uma história antiga

Mas esta história de impactos com a construção de “grandes obras” não é novidade para os povos indígenas. Os Tuxá que hoje vivem na Fazenda Funil, município de Inajá (PE), tiveram que sair de seu território tradicional, a Ilha da Viúva, que foi inundada com a construção da

barragem de Itaparica, construída pela Chesf, em 1988. Até hoje o povo sofre com os impactos. As famílias foram separadas e realocadas em terras distintas, seus lugares sagrados foram submersos: as terras às quais seus ante-passados resistiram durante séculos lhes foram tomadas.

Detalhe de camisa da campanha contra Usina Nuclear

Cícera Pankará de Itacuruba, 2010

* depoimento de Elisa Entre Serras Pankararu durante o Seminário: Mulheres, Trabalho e Justiça Socioambiental, realizado pelo SOS Corpo – Instituto Femi-nista para a democracia e a AMB – Articulação de Mulheres Brasileiras. Reali-zado em Recife, entre os dias 21 e 23 de outubro de 2009.

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Terras Indígenas

1. Atikum umã 2. Fulni-o 3. Kambiwá 4. Kapinawá

5. Pankará da Serra do Arapuá 6. Pankará de Itacuruba 7. Pankararu

8. Entre Serras Pankararu 9. Pankaiuká

10. Pipipã

11. Truká - Ilha nossa Senhora de Assunção

12. Truká - Ilhas da Tapera e São Félix e Porto Apolônio Sales 13. Tuxá - Fazenda Funil

14. Xukuru

Grandes empreendimentos

em terras indígenas (PE)

(14)

Grandes obras, grandes problemas

Os impactos provocados por essas obras são inúmeros, como já citamos anteriormente. A situação territorial não é regularizada, o meio ambiente é afetado, as pessoas são deslocadas de seus territórios ancestrais, os modos de vida são novamente invadidos como há 500 anos. Esse processo também nos levou a lançar olhar para as cidades em que se desenvolvem as “grandes obras” de infraestrutura. As indígenas que estão localmente sofrendo com isso nos relataram os sérios impactos sociais, gerados principalmente pelo deslocamento da massa de trabalhadores vindos atrás das promessas de emprego e desenvolvimento. Em sua maioria homens, sem suas famílias, vindos de outras regiões – pois não há mão de obra local suficiente, nem qualificada para tal – e que ficam pouco tempo. desta forma, além dos problemas da obra em si, “chegam” também o crack, o aumento da violência de forma geral, dos números de estupros, da exploração sexual de mulheres, crianças e adolescentes, além do aumento do número de mães solteiras.

As indígenas denunciam que são extremamente afetadas por estes problemas. A região, que já

apre-sentava altos índices de violência gerados pelo plantio e o tráfico da maconha, vê-se ainda mais afetada pela inserção do crack nesse sistema, e a utilização da droga principalmente pelos jovens. Se as bebidas alcoólicas foram apontadas como um dos agravantes da violência nas aldeias, e da violência doméstica contra as mulheres, o crack tornou a questão ainda mais séria pelo alto teor destrutivo, seja humano quanto social, no indivíduo que faz uso da droga.

nesse contexto as mulheres indígenas por muitas vezes também acabam dependentes da droga, e o grau de vulnerabilidade social das famílias, desta forma, vai se agravando.

“Antes era a maconha, depois foi a cocaína, agora é o crack, que pegou muita gente. Aqui nesta escola (na área indígena), têm umas crianças cujas mães usam crack. um aluno, que estava com problemas na escola, me falou: ‘Professora, você nem sabe o que está acontecendo na minha casa’. depois descobrimos que a mãe dele é usuária de crack, era uma mãe de família, que cuidava dos seus filhos direitinho. Hoje você olha para ela, é triste você ver a situação daquela mãe, não toma banho, vendeu tudo o que tinha para comprar crack, não cuida dos filhos para usar a droga. O pessoal

GRANDES OBRAS E IMPACTOS EM TERRAS INDÍGENAS – PE

Terra

Indígena Localização(município) SituaçãoFundiária Obra Impactos

Atikum

Carnaubeira da Penha e

Salgueiro Homologada usina nuclear Região afetada em caso de acidente nuclear

Kambiwá Inajá, Ibimirim e Floresta Homologada

usina nuclear Região afetada em caso de acidente nuclear Construção da

BR 110

(década de 70) Assaltos constantes Pankará da

Serra do Arapuá

Carnaubeira da

Penha Em Identificação usina nuclear Região afetada em caso de acidente nuclear

Pankará de

Itacuruba Itacuruba - usina nuclear

Região afetada em caso de acidente nuclear Construção de estrada que corta o território para dar acesso ao local de onde será a usina nuclear

Pankararu Petrolândia, Jatobá e Tacaratu

Homologada usina nuclear Construção da Barragem de Itaparica (1988)

Região afetada em caso de acidente nuclear Inundou parte do território tradicional e dificultou a demarcação de suas terras Entre Serras

Pankararu Petrolândia e Tacaratu Homologada

Pipipã Floresta Em Identificação Transposição usina nuclear

Canal do eixo leste cortando o território demora no processo de regularização fundiária do território

Região afetada em caso de acidente nuclear Truká - Ilha nossa Senhora de Assunção Cabrobó declarada/ Em Identificação Transposição do São Francisco

Obras do eixo norte da captação das águas do Rio São Francisco

Truká - Ilhas da Tapera e São Félix e Porto Apolônio Sales

Orocó Em Identificação Barragem de Pedra Branca Terão que ser realocados – a Ilha da Tapera será inundada

Tuxá - Fazenda Funil Inajá Adquirida /CHESF Construção da Barragem de Itaparica (1988)

Tiveram que ser realocados na Fazenda Funil/Inajá/PE, pois a Ilha da Viúva/Rodelas/ BA foi inundada

Xukuru Pesqueira Homologada Transnordestina

A Transnordestina passa a cerca de 100 metros da área indígena, próximo a aldeia Guarda em um núcleo de moradia

(15)

começa a emagrecer, começa a andar sujo, começa a se prostituir.” (Professora Sônia Truká / Cimi, 2011, p. 44)

Mas não é apenas o crack que gera violência. O número de casos violência sexual contra as mulheres aumentou nas cidades, e consequentemente afeta as indígenas. Outro aumento é o do número de mulheres que se prostituem, e dos casos de abusos e exploração sexual de menores, que viraram uma realidade nos municípios e nas aldeias.

Também é importante mencionar a elevação dos casos de mulheres que se tornam mães solteiras, devido a rotatividade de homens que chegam para as obras e vão embora com os términos dos contratos.

As mulheres indígenas, geralmente responsáveis pela educação diária dos filhos, enfrentam o aumento do estresse gerado pela constante ameaça dos filhos serem vítimas da violência ou virarem usuários da droga; ou então das filhas serem exploradas sexualmente e vítimas de violência sexual: a responsabilidade materna pesa como nunca.

“Essas obras trazem muitos homens de fora, que ficam ali alojados na cidade. nós temos muitos adoles-centes, meninos e meninas, que vão estudar na cidade. Acaba que o que tem muito é a história da prostituição, e a droga. O crack, por exemplo, não existia, acontece morte, estupro, a gente teme muito, tenho filhos jovens que estudam fora. Tenho muito medo.” (Mulheres Truká durante o encontro de mulheres indígenas, território Kapinawá, setembro de 2011)

Estes impactos gerados pelo deslocamento de grandes massas de trabalhadores não são novidade para os governos, mas são impactos que comumente acometem as localidades que recebem tais empreendimentos. Porém, mesmo sabedor de tais fatos o governo não desenvolve medidas educativas, de assistência social, e coercitivas eficazes para o controle da situação dos locais afetados. Como vimos, há um processo de

deses-truturação social nos municípios e aldeias, sem grandes perspectivas de soluções, e que afetam principalmente o lado mais vulnerável da corda que, neste caso, são as mulheres. Os governos transformam-se desta forma em corresponsáveis por tais acontecimentos.

E como ficam os direitos dos

Povos Indígenas?

desde o estabelecimento do decreto nº 5.051, de 19 de abril de 2004, que promulga a Convenção n°169 da OIT sobre Povos Indígenas e Tribais, o Estado brasileiro compromete-se com a efetivação de alguns direitos indígenas acordados internacionalmente. Porém, esses direitos vêm sendo seguidamente desrespeitados com a construção destas grandes obras, que, como no caso da transposição, buscam beneficiar uma parcela da população que sempre lucrou com a violação dos direitos indígenas: os ruralistas.

Segundo a Convenção da OIT, os povos indígenas teriam direitos que vão desde “escolher suas próprias prioridades no que diz respeito ao processo de desen-volvimento, na medida em que ele afete as suas vidas, crenças, instituições e bem-estar espiritual”, como garante o Art. n°7, até o direito a consulta prévia, livre e informada às suas organizações representativas “cada vez que sejam previstas medidas legislativas ou administrativas suscetíveis de afetá-los diretamente”, conforme consta no Art. n°6.

Inúmeras denúncias nacionais e internacionais foram feitas tratando desta questão, mas ao que parece o governo brasileiro não tem interesse no diálogo. Ao contrário, tem como prioridade o atual modelo de desenvolvimento, tendo os custos que tiverem para diversas comunidades, entre elas as que abrigam os povos indígenas.

d

A sobreposição

de Unidades de

Conservação da

Natureza e Terras

Indígenas em

Pernambuco

P

ara finalizar o texto trazemos uma última inquie-tação que rondou os encontros. Trata-se da sobre-posição de alguns territórios indígenas no estado de Pernambuco com duas unidades de Conservação da natureza. Como já tratamos anteriormente, nos últimos tempos o governo brasileiro tem implantado uma série de obras de grande porte que geram diversas reações contrárias do movimento indígena e de outros setores da sociedade civil. Porém, em contrapartida, só que em passos lentos, o governo investe também na criação de unidades de Conservação (uC’s) da natureza que buscam minimizar a degradação ambiental. Em alguns casos, o governo vem criando estas uC’s sobrepostas a territórios tradicionais indígenas, causando diversos conflitos, principalmente aqueles ligados às terras indí-genas que ainda não estão regularizadas juridicamente.

Ora, não é de se estranhar que uC’s e Terras Indígenas se sobreponham, afinal de contas os povos indígenas são os próprios agentes nesse processo de preservação da natureza. Mas quando é que isso vira um problema? Vejamos o que as mulheres indígenas nos trouxeram durante o projeto.

no estado, os territórios dos povos Kapinawá, Pipipã e Kambiwá conflitam com as unidades, além das uC’s da Reserva Biológica (Rebio) da Serra negra e o Parque nacional (Parna) do Catimbau.

O que acontece?

A Serra Negra foi o local de resistência de muitos

grupos no sertão nordestino. A altitude (que chega a 1000m) torna o acesso difícil às regiões da Serra. dessa forma constituiu-se como o refúgio de um grande número de grupos fugidos das “guerras justas” e dos aldeamentos indígenas. O local é símbolo da resistência indígena no nordeste, principalmente no século XIX, e é por isso que vários grupos indígenas do sertão pernambucano fazem referência a Serra negra como um local de origem comum, de encontro dos antepassados.

Com esta resistência, a Serra protegeu-se do processo de avanço das fronteiras agrícolas na região e é um local

Art n°7 – “Os povos interessados deverão ter o direito de escolher

suas, próprias prioridades no que diz respeito ao processo de desenvolvimento, na medida em que ele afete as suas vidas, crenças, instituições e bem-estar espiritual, bem como as terras que ocupam ou utilizam de alguma forma, e de controlar, na medida do possível, o seu próprio desenvolvimento econômico, social e cultural. Além disso, esses povos deverão participar da formulação,aplicação e avaliação dos planos e programas de desenvolvimento nacional e regional suscetíveis de afetá-los diretamente.”

Art n°6 – “1. Ao aplicar as disposições da

presente Convenção, os governos deverão: a) consultar os povos interessados, mediante procedimentos apropriados e, particularmente, através de suas instituições representativas, cada vez que sejam previstas medidas legislativas ou administrativas suscetíveis de afetá-los diretamente (...)”

(16)

que tem o ambiente em bom estado de conservação. As mulheres indígenas, que durante séculos ocupavam a região da Serra negra, denunciam que hoje o acesso a Serra é restrito justamente por ser uma Reserva Biológica – criada em 1982, pelo decreto nº 87.591. Essa restrição impede que as mulheres indígenas benze-deiras, parteiras, as donas da “ciência”, conhecedoras da medicina tradicional, dos remédios da mata, tenham acesso a estes locais para a colheita de plantas do mato e para a realização dos seus rituais.

durante muitos anos os índios tiveram pequenos conflitos com os funcionários dos órgãos governamentais responsáveis pela unidade. Para a resolução do caso, as organizações indígenas Kambiwá e Pipipã, junto ao Ministério Público Federal (MPF), fizeram uma série de acordos com o ICMBio/MMA (Instituto Chico Mendes/ Ministério do Meio Ambiente) para realizarem seus rituais na Serra negra.

A situação é tão grave que chegou a tal ponto do ritual do Ouricuri, praticado pelo povo Pipipã, tradi-cionalmente realizado na Serra negra e com restrição a participação de não índios, acontecer com os fiscais do ICMBio monitorando o uso que os indígenas estavam fazendo dos recursos da Serra negra. no caso, é flagrante o desrespeito a Constituição.

Outra questão que se coloca é a sobreposição de interesses jurídicos federais. dentro dos limites reivindi-cados pelas lideranças Pipipã para a demarcação da terra indígena, em processo administrativo de demarcação, está a Serra negra. Este fato, somado a construção do canal da transposição do rio São Francisco, que corta o território, configuram-se como entraves ao processo de regularização fundiária do território tradicional Pipipã.

Caso semelhante vive o povo Kapinawá. Regularizado na década de 1990, parte do território foi demarcado

com base em estudos da década de 1980. Porém, a terra indígena regularizada não englobou uma série de núcleos habitacionais indígenas. Os indígenas residentes nestes agrupamentos, situados principal-mente mais ao norte da terra indígena, começam a se mobilizar na década de 1990 pela regularização desta parte do território. no início de 2001 são pegos de surpresa com a criação de uma unidade de Conser-vação, o Parque nacional do Catimbau, incorporando o território que ocupam.

diferente do caso Pipipã/Serra negra, a área reivindi-cada pelos Kapinawá está em quase toda sua totalidade situada dentro dos limites do Parque do Catimbau, que fica situado ao norte do território indígena, sendo contíguo a ele. nesse espaço tem mais de dez núcleos habitacionais. A população dessas comunidades vive

sob a constante ameaça de terem que sair das terras que ocupam, pois como consta no decreto de criação do parque este tipo de uC não permite a permanência de residências em seu perímetro.

Esses casos de uC’s, criadas em áreas de ocupação tradi-cional dos povos indígenas, configuram um exemplo de sobreposição não apenas jurídica, mas de valores, de tradições e concepções de mundo. Por um lado, a pers-pectiva que entende a natu-reza como algo intocável, e que não deve sofrer a ação dos seres humanos. Ou ainda da concepção presentes nessas uC’s, que servem ao ecotu-rismo e a pesquisa científica.

do outro, os povos que ocupam tradicionalmente aqueles territórios; territórios que não estão regu-larizados por negligência do Estado brasileiro, e que por muitas vezes são os responsáveis por seu estado de preservação. Para esses povos, os territórios são imprescindíveis não apenas para o bem estar econô-mico, mas também para a manutenção de suas culturas e tradição.

Considerações finais

no decorrer deste relato de experiência e síntese do diagnóstico, demonstramos que são diversos os fatores que motivam a organização dos povos indígenas. Vai desde a vida doméstica e os direitos individuais, até a vida na comunidade, solidariedade com os demais povos do estado e os direitos coletivos.

Este processo de encontros e formação pode contri-buir na sistematização das reivindicações acerca destes direitos. Esperamos que esta publicação, que fez um exercício de síntese dos debates, possa contribuir nos encontros das mulheres indígenas em suas comunidades e no acúmulo teórico e organizativo do Movimento de Mulheres Indígenas em Pernambuco.

Reserva Biológica da Serra Negra

(em verde)

Municípios: Floresta, Inajá e Tacaratu Extensão: 1.100 ha

Situação Jurídica: decreto nº 87.591, de 20 de Setembro de 1982.

Terra Indígena Kambiwá

(em amarelo)

Município(s): Inajá, Ibimirim e Floresta

Extensão: 31.495 ha

Situação Jurídica: Homologada/ Registrada – decreto de 11/12/1998

Terra Indígena Pipipã

Município(s): Floresta

Situação Jurídica: Em Identificação (Ports. nº 802 PRES/FunAI de 20.07.05 e nº 1177 PRES/FunAI de 07.10.2008).

As mulheres indígenas, que durante

séculos ocupavam a região da Serra Negra,

denunciam que hoje o acesso a Serra é

restrito justamente por ser uma Reserva

Biológica. Essa restrição impede que as

mulheres indígenas, conhecedoras da

medicina tradicional e dos remédios da

mata, tenham acesso a estes locais para

a colheita de plantas do mato e para a

realização dos seus rituais.

A população

dessas

comunidades vive

sob a constante

ameaça de

terem que sair

das terras que

ocupam, pois

como consta

no decreto de

criação do parque

este tipo de UC

não permite a

permanência de

residências em

seu perímetro.

Parque Nacional do Catimbau

(em verde)

Município: Buíque, Tupanatinga e Ibimirim Extensão: 62.300, 0000 hectares

Situação Jurídica: decreto de 13 de dezembro de 2002

Terra Indígena Kapinawá

(em amarelo)

Município: Buíque, Tupanatinga e Ibimirim Extensão: 12.403 hectares

Referências

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