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Autoria em Se um viajante numa noite de inverno, de Ítalo Calvino

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Academic year: 2020

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DOI: http://dx.doi.org/10.18226/19844921.v12.n27.06

Autoria em Se um viajante numa noite de inverno, de Ítalo Calvino

Autorship in Se um viajante numa noite de inverno, by Ítalo Calvino

Camila Savegnago* Resumo

Se um viajante numa noite de inverno, do autor italiano Ítalo Calvino,

convida-nos para uma viagem por um complexo universo literário, em que escritores, textos, leitores se tornam parte da narrativa, e para um prazeroso jogo ficcional de encobrimentos e desnudamentos. O romance conta a história de um casal de leitores que empreende uma jornada de busca por dez livros completos, já que eles começam a ler tais narrativas, mas são interrompidos pelas mais variadas vicissitudes. Nesse caminho, mostra-se de grande relevância a problemática em torno da função autor nos textos literários. Por isso, a fim de compreender melhor a questão da autoria, neste trabalho nos dedicamos ao estudo de mecanismos ficcionais que permitam deslindar a imagem de autor projetada pelo texto. Para tanto, embasam o estudo as concepções de leitura e escritura de Wayne Booth, Umberto Eco e Roland Barthes.

Palavras-chave

Ítalo Calvino. Romance. Leitor. Autor.

Abstract

The italian writer Ítalo Calvino’s Se um viajante numa noite de inverno, invites us to a complex literary universe where writers and texts and readers become part of the narrative, in a pleasant fiction game of concealment and denudation. The novel is about a readers couple that starts a journey of searching for books whose stories would be already complete since they begin to read ten stories but are cut in by the most various vicissitudes. In this journey, the problematic around the author function in literary texts is of great relevance. To understand the idea of authorship in a better way we dedicate this work to study the fictional apparatus by which we could unravel the author’s image projected by the text. For this purpose, Booth, Eco and Barthes’ reading and writing conceptions substantiate this study.

Keywords

Ítalo Calvino. Novel. Reader. Author.

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Adentrando o bosque ficcional

“Você vai começar a ler o novo romance de Ítalo Calvino, Se um viajante numa noite de inverno. Relaxe. Concentre-se. Afaste todos os outros pensamentos. Deixe que o mundo a sua volta se dissolva no indefinido”. Assim é a abertura do romance Se um viajante numa noite de inverno (1979), de Calvino. O tom imperativo, o emprego do mesmo título do livro publicado, bem como o uso de pronome você, mostram-se interessantes artifícios narrativos que, juntos, acabam por criar certo efeito de estranhamento e aproximação entre o Leitor, personagem principal do romance, o leitor implícito e nós, os leitores empíricos. Ademais, a ficcionalização de um complexo universo literário que abarca desde diferentes perfis de leitores e concepções de escritura e leitura; espaços de produção e circulação dos textos literários (editora, livraria, universidade, biblioteca); diversas questões relacionadas a plágio, traduções, falsificações, e, até mesmo, a relação entre a literatura e a censura, tornam o livro de Calvino uma espécie de metanarrativa problematizadora das relações entre criador/criatura. Ao ler esse romance repleto de ambiguidades, adentra-se em um bosque ficcional composto de caminhos tortuosos, em que o processo de leitura e de apropriação do objeto-livro se dá por incessantes avanços e recuos, e, principalmente, pela aceitação do jogo proposto.

A maioria dos estudos críticos de Se um viajante numa noite de inverno tem se debruçado sobre a análise da categoria leitor e das práticas de leitura, dois assuntos centrais no livro; cabe ressaltar, no entanto, que as nuances que envolvem a categoria autor também se mostram relevantes para um melhor entendimento dessa metanarrativa. Por isso, a proposta deste estudo é lançar um olhar mais atento e problematizador sobre a questão autoral a partir, e na materialidade, do texto literário, objetivando responder qual é a imagem de autor que se projeta no texto e sua relação com o objeto-livro, deslindando, ainda, as suas estratégias de construção ficcional.

Cinco anos após a publicação dessa emblemática obra, em uma conferência no Instituto Italiano de Cultura de Buenos Aires, Calvino tenta descrevê-la e defini-la nas seguintes palavras:

tentar escrever romances ‘apócrifos’, isto é, aqueles que imagino tenham sido escritos por um autor que não sou eu e que não existe, foi tarefa levada ao extremo em Se um viajante numa noite de inverno. Trata-se de um romance sobre o prazer de ler romances; o protagonista é o Leitor, que por dez vezes recomeça a ler um livro que, em razão de vicissitudes alheias a sua vontade, ele não consegue terminar. Tive, portanto, de escrever o início de uma dezena de romances de

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autores imaginários, todos de algum modo diferentes de mim e diferentes entre si [...] Mais que identificar-me com o autor de cada um dos dez romances, procurei identificar-me com o leitor - representar o prazer da leitura deste ou daquele gênero, mais que o texto propriamente dito. Em alguns momentos, cheguei a sentir que a energia criativa desses dez autores inexistentes me penetrava. Mas, sobretudo, tentei evidenciar o fato de que todo livro nasce na presença de outros livros, em relação e em confronto com outros livros. (CALVINO, 2017, p. 266)

Nesse trecho, o autor deixa claro qual foi o seu intuito ao produzir Se um viajante numa noite de inverno e enfatiza que o livro é sobre o “prazer de ler romances”. Contudo, destaca-se também, na fala de Calvino, a questão da autoria no texto literário. Segundo ele, houve de sua parte um esforço deliberado para escrever o início de dez romances cujos autores não existem empiricamente, mas são “autores imaginários, todos de algum modo diferentes de mim e diferentes entre si”. E finaliza dizendo: “Em alguns momentos, cheguei a sentir que a energia criativa desses dez autores inexistentes me penetrava”. É compreensível tal sentimento, porque é dele e de seu repertório de leituras que parte a criação desses “autores imaginários”, ainda que adquiram vida própria na escritura, pela linguagem, pelo estilo, pela visão de mundo, particulares. Portanto, um livro não existe de modo independente e autônomo, mas, sim, na relação com outros já escritos e com histórias já contadas de várias formas ao longo do tempo. Fica a impressão de que esse texto reflete a capacidade da literatura de dobrar-se sobre si, reinventar-se e subverter suas próprias convenções.

Em Se um viajante numa noite de inverno, Calvino inclusive brinca com a ideia de origem, com a possibilidade de existência de uma fonte primordial e inesgotável de narrativas. Para isso, recorre a uma figura que seria o “Pai das Histórias”, um velho índio, morador de um vilarejo na América do Sul, “longevo de idade imemorial, cego e analfabeto, que narra ininterruptamente histórias que ocorrem em terras e épocas de todo desconhecidas dele”. A fama desse incontrolável contador de histórias se espalha e atrai a atenção de inúmeros estudiosos, os quais constatam que muitos dos relatos contados pelo índio coincidiam com obras de famosos escritores. As razões apontadas para tal fenômeno englobam desde a concepção do velho índio como a “fonte universal da matéria narrativa”, ou seja, a origem de todas as “manifestações individuais de cada escritor” (CALVINO, 2017, p. 121), até a atribuição desse fato a uma possível vidência, consequência do uso de cogumelos alucinógenos, passando pela crença dele ser a reencarnação de Homero. Desse modo, Calvino desconstrói a figura do autor como centro originário e original de toda criação literária,

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dessacralizando inclusive o fazer literário. No romance, há uma comparação entre o autor que faz livros e o animal que cava sua toca ou o que constrói seu formigueiro e colmeia, o que evidencia o caráter múltiplo e heterogêneo do texto literário, bem como a sua não centralidade.

A narrativa de Calvino tem como personagens principais: o Leitor (sem nome) e Ludmilla. O Leitor descobre, pelo jornal, a publicação de um novo romance de Calvino, intitulado Se um viajante numa noite de inverno, e decide ir a uma livraria comprá-lo. O livro recém adquirido pelo Leitor começa com a história de um personagem homem, preso em uma estação ferroviária de uma pequena cidade. A leitura prossegue, mas, na página 32, a história é interrompida e volta a ser contada da página 17. E assim ocorre sucessivamente, o que indica um erro na impressão e na encadernação do livro. No dia seguinte, irritado, o Leitor retorna à livraria para efetuar a troca do exemplar defeituoso e é informado, pelo livreiro, de que o erro não fora apenas de encadernação, mas de impressão, já que, na verdade, o texto seria de um autor polonês e não de Calvino. Atraído pelo início lido, o Leitor opta por levar o livro “Fora do povoado de Malbork”, do suposto autor polonês. Nessa livraria, entre estantes, o Leitor encontra pela primeira vez Ludmilla, uma leitora que havia tido o mesmo problema com seu exemplar. Uma breve conversa, cuja temática abarcou os textos, culmina na troca de telefones e na promessa de manutenção do contato. O Leitor deixa a livraria encantado pelo encontro com Ludmilla e satisfeito por finalmente poder concluir a sua leitura sobre o viajante na estação. Entretanto, outro problema ocorre. Ao abrir o livro, ele percebe se tratar de uma história diferente da lida anteriormente, além disso, a partir de certo ponto, essa também é interrompida por outra falha de impressão: há uma alternância entre trechos de histórias diversas e folhas em branco. O Leitor intrigado liga para Ludmilla, a fim de compartilhar o novo problema com o livro comprado, mas acaba conversando com sua irmã Lotária, uma estudiosa de literatura. A partir desse ponto, o romance narra a história do relacionamento entre o Leitor e Ludmilla, bem como a incansável e misteriosa busca pelos livros originais que conteriam essas e outras histórias completas. A narrativa é composta por doze capítulos que contam os percalços do casal de protagonistas e por dez histórias inacabadas e imiscuídas à narrativa principal, as quais tanto o Leitor personagem quanto o empírico começam a ler, mas, por inúmeras vicissitudes, não as concluem.

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O término da nossa leitura do romance de Calvino coincide com o casamento do casal de protagonistas leitores e com a conclusão da leitura de Se um viajante numa noite de inverno por parte do Leitor personagem. Contudo, a sensação que permanece em nós, leitores empíricos, é a de inconclusibilidade. Isso porque, além de se saber pouco sobre esses personagens principais, há outros secundários, que são relevantes para o rumo dos acontecimentos, mas que aparecem e desaparecem com frequência, e dos quais também se conhece pouco, embora estejam diretamente ligados à história principal: a irmã de Ludmilla, o tradutor/falsificador Ernesto Marana, o escritor Silas Flannery. Também contribui para a imprecisão da narrativa a presença das dez histórias inacabadas (paralelas), as quais devido à multiplicidade e à heterogeneidade de temas, estilos, visões de mundo, obscurecem as ligações com a narrativa principal (moldura) e dificultam o estabelecimento de um sentido claro e unívoco, bem como uma interpretação estável dos eventos. Verifica-se a existência de pontos de aproximação e pontos de afastamento entre as narrativas; alguns sentidos se estabilizam, principalmente pela repetição, mas outros se constituem como linhas de fuga do texto, difíceis de serem rastreados e ligados para um possível desnudamento de suas relações. Desse modo, por mais que a história principal pareça se estruturar de forma circular (início, meio e fim), abarcando desde o momento em que os protagonistas se conhecem até o seu casamento no final do livro, as características peculiares, as outras histórias, as relações ou a ausência delas, a organização do texto, o conjunto de temas e pensamentos, apontam para uma construção rizomática1 do romance de Calvino, ou seja, predomina nele a

multiplicidade, a heterogeneidade, a incompletude de sentidos.

1 No volume 1 de Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia, Gilles Deleuze e Félix Guattari se apropriam

de termos da área da botânica para explicar a nível filosófico o que compreendem por rizoma. O rizoma é uma raiz, mas com características peculiares. Ela não tem uma estrutura arbórea, mas se desenvolve horizontalmente, de forma polimorfa, sem uma direção definida, seus brotos podem se ramificar em qualquer ponto e se transformar em um bulbo ou um tubérculo. O rizoma tem a capacidade de conectar um ponto a qualquer outro ponto, sem um centro, sem origem, ou seja, sem uma unidade que sirva de pivô, da qual crescem ramificações. Um rizoma, nesse sentido, não começa nem termina, ele se encontra sempre no meio, formando uma espécie de cadeia, ou teia. “Num rizoma [...] cada traço não remete necessariamente a um traço lingüístico: cadeias semióticas de toda natureza são aí conectadas a modos de codificação muito diversos, cadeias biológicas, políticas, econômicas, etc., colocando em jogo não somente regimes de signos diferentes, mas também estatutos de estados de coisas” (DELEUZE; GUATTARI, 2014, p. 20). Para os autores, num processo rizomático, não há nada de ponto de origem ou de princípio primordial comandando todo o pensamento; portanto, nada de avanço significativo que não se faça por bifurcação, encontro imprevisível, reavaliação do conjunto a partir de um ângulo inédito. Em um rizoma, não há proposições mais importantes do que outras, ele chega a se aproximar de um anti-método, já que prima pela experimentação, pela ampliação da construção de um pensamento em forma de linhas, afastando-se de qualquer forma de enquadramento e da lógica de desenvolvimento com início, meio e fim.

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Percurso teórico e caminhos ficcionais

Em A retórica da ficção, Booth propõe o estudo da ficção como retórica e do texto literário como construção linguística, mental, moral. Um dos argumentos de Booth é de que a presença do autor, por mais impessoal que seja a narrativa, sempre pode ser percebida, no sentido de que não é possível seu apagamento total do texto, ainda que se tente dissimular seus traços e rastros por meio de artifícios específicos de construção ficcional. Ainda de acordo com o teórico, as narrações nunca são imparciais, a simples escolha de um lado ou de um ponto de vista já indica uma determinada visão, desse modo, mesmo no drama, em que não há a presença explícita do autor, o controle é exercido por ele. Além disso, a voz do autor pode assumir várias formas nos textos literários, como por meio de apelos diretos ao leitor ou comentários feitos pelo narrador; por meio de intrusões pessoais e juízos explícitos; pela mudança no ponto de vista (entrar e sair da mente da personagem) ou, ainda, por meio de metáforas, símbolos, mitos, que conferem juízos de valor (os quais também sempre estão presentes, mesmo sob disfarces linguísticos). Nesse ponto, Booth ressalta que ter em mente as diferenças entre autor empírico, narrador e autor implícito (às vezes, alter ego do autor), permite perceber o grau de presença ou interferência da voz autoral no texto, marcada nele pelo estilo, tom e técnica narrativa. O interesse de Booth parece estar menos no autor empírico e mais no autor implícito, no que se refere a sua imagem, construída por meio dos mais variados mecanismos de construção ficcional, e aos seus possíveis efeitos de sentido.

Nessa mesma esteira, Umberto Eco, em “Entrando no bosque”, acrescenta que não devemos dispensar nossa atenção com o autor empírico, mas, sim, com o autor modelo, que é palpável linguisticamente. Assim, o autor-modelo (virtual, implícito) “é uma voz que nos fala afetuosamente (ou imperiosamente, ou dissimuladamente), que nos quer a seu lado. Essa voz se manifesta como uma estratégia narrativa, um conjunto de instruções que nos são dadas passo a passo e que devemos seguir quando decidimos agir como leitor modelo” (ECO, 2003, p. 21). Nesse sentido, uma boa interpretação pode ser feita somente com base no autor modelo, sem recorrer à biografia, historicidade, do autor empírico; ainda que, em alguns casos, dados empíricos contribuam para uma compreensão mais ampla e totalizante da obra.

No que se refere à narrativa de Se um viajante numa noite de inverno, o estranhamento com a narração se dá já nas primeiras frases, pois a forma de narrar remete à estrutura de uma conversa:

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Você vai começar a ler o novo romance de Ítalo Calvino, Se um viajante numa noite

de inverno [...] Escolha a posição mais cômoda: sentado, estendido, encolhido,

deitado [...] Não que você espere algo de especial deste livro em particular. Você é daquelas pessoas que, por princípio, já não esperam nada de nada. (CALVINO, 2017, p.12-13)

O “você” se refere ao personagem principal do romance: o Leitor e se coloca como a segunda pessoa da enunciação, de modo que, quem lhe dirige a palavra, só pode ser um “eu”. Nesse sentido, seria possível afirmar que o narrador desse romance é uma voz em primeira pessoa, com alto grau de onisciência. Interessante notar que essa onisciência não parece ser de um narrador convencional em primeira pessoa, mas a de um autor que sabe tudo e não tenta dissimular seu conhecimento. Verifica-se que esVerifica-se narrador orienta, julga, comenta, questiona os pensamentos e ações do Leitor, e, em certos momentos, opta por omitir propositalmente certas informações: “Seria indiscrição perguntar a você, Leitor, quem você é, qual sua idade, estado civil, profissão, renda. É sua vida, é problema seu. O que conta é seu estado de ânimo neste momento em que, na intimidade de sua casa, tenta restabelecer a calma perfeita para mergulhar no livro” (CALVINO, 2017, p. 39), ou seja, o importante é a disposição para a leitura, daí a proximidade com o leitor-modelo. Além disso, o uso reiterado de modalizadores como “talvez”, “seja possível”, “é possível”, reforça a sensação de insegurança e desconfiança em relação ao grau de confiabilidade dedicado a esse “eu” narrador que controla a narração da história. Outro aspecto relevante, em relação ao narrador, é a sua aproximação, também recorrente, com o autor implícito do texto, como se vê no seguinte trecho:

No quarto, tranqüilo, você abre o livro na primeira página — não, na última, antes você quer saber a extensão dele. Não, por sorte não é muito longo. Hoje em dia,

escrever romances longos é um contra-senso: a dimensão do tempo foi estilhaçada, não conseguimos viver nem pensar senão em fragmentos de tempo que se afastam, seguindo cada qual sua própria trajetória, e logo desaparecem. (CALVINO, 2017,

p.16, grifo meu)

Nota-se que o narrador discorre acerca do tamanho dos romances e da concepção atual de tempo, aproximando-se do autor implícito, e, possivelmente, alter ego do autor, pela escolha da temática e pelo uso do verbo “conseguimos”. Tal reflexão é pertinente, inclusive, para demarcar uma determinada visão do autor implícito sobre o processo de leitura, um dos aspectos que compõem o universo

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ficcional do romance de Calvino. Na sequência, a voz narrativa, num grau estreito de proximidade com o autor implícito, discorre sobre a relação do leitor com o livro físico:

Revire o livro entre as mãos, percorra o texto da contracapa, das orelhas, são frases genéricas que não dizem muito [...] É certo que esse passeio ao redor do livro — ler o que está fora antes de ler o que está dentro — também faz parte do prazer da novidade, mas, como todo prazer preliminar, este também deve durar um tempo conveniente e pretender apenas conduzir ao prazer mais consistente, à consumação do ato, isto é, à leitura do livro propriamente dito. (CALVINO, 2017, p.16)

O ato de manusear o livro é comparado ao jogo erótico de desnudamento do texto literário, representado pela sua leitura efetiva, inicialmente, como um prazer preliminar e, num segundo momento, com um prazer mais consistente pela consumação do ato. Verifica-se, não só nesse excerto, mas na narrativa como um todo, alusões voluntárias às concepções de Barthes sobre o prazer do texto. O texto literário, assim, convida para o exercício do prazer. A narrativa de Calvino, nesse contexto barthesiano, aproxima-se do que se denomina texto de fruição, ou seja, “aquele que põe em estado de perda, aquele que desconforta (talvez até um certo enfado), faz vacilar as bases históricas, culturais, psicológicas do leitor, a consistência de seus gostos, de seus valores e de suas lembranças, faz entrar em crise sua relação com a linguagem” (BARTHES, 2015, p. 20-21). Assim como Eco, Barthes também recorre à ideia de jogo para explicar o funcionamento do universo ficcional: “Não é a ‘pessoa’ do outro que me é necessária, é o espaço: a possibilidade de uma dialética do desejo, de uma imprevisão do desfrute: que os dados não estejam lançados, que haja um jogo” (BARTHES, 2015, p. 9). Esse jogo mencionado pelo autor se concretiza no texto literário, pois é ele que tem de provar que deseja o seu leitor e o faz por meio da sua escritura. É possível vislumbrar ainda a existência de uma analogia entre o prazer suscitado no processo de escritura e de leitura de um livro com o prazer oriundo do relacionamento amoroso entre o Leitor e a Leitora, no sentido da leitura que fazem de seus corpos:

Leitora, eis que agora você está sendo lida [...] Também você, ó Leitor, é entrementes um objeto de leitura: a Leitora ora lhe passa o corpo em revista como se percorresse o sumário, ora o consulta como se tomada por uma curiosidade rápida e precisa, ora se demora interrogando-o e deixando que uma resposta muda chegue a ela [...] Ao contrário da leitura das páginas escritas, a leitura que os amantes fazem de seus corpos (essa concentração de corpo e mente de que os amantes se valem para ir juntos para a cama) não é linear. Começa de um ponto qualquer, salta, repete-se, retrocede, insiste, ramifica-se em mensagens

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simultâneas e divergentes, torna a convergir, enfrenta momentos de tédio, vira a página, retoma o fio da meada, perde-se. (CALVINO, 2017, p. 159)

Apesar da ressalva do narrador de que a leitura que os amantes fazem de seus corpos não é a mesma que se faz das páginas escritas, essa diferença não se sustenta, uma vez que a leitura de um livro, dependendo da narrativa, também pode não ser linear, pode “saltar”, “repetir-se”, “insistir”, “ramificar-se”, “perder-se”, assim como ocorre com a narrativa de Se um viajante numa noite de inverno.

No que diz respeito à narração das dez histórias paralelas, nota-se uma oscilação entre narrações em primeira e terceira pessoa, sem interferência direta desse eu narrativo da moldura, que se marca no texto principalmente pelo seu tom, estilo narrativo, incluindo a maneira peculiar de se relacionar com o Leitor. Há, porém, uma exceção na primeira história contada entre o capítulo 1 e o capítulo 2, denominada Se um viajante numa noite de inverno, justamente a história cujo título coincide com o do romance de Calvino. A repetição do título, somado ao conteúdo e ao estilo narrativos, faz dessa primeira história uma espécie de miniatura ou reflexo da história moldura. Percebe-se, inicialmente, um aproveitamento temático do universo literário ligado aos acontecimentos da história do viajante que fica preso numa estação ferroviária, fazendo dela uma metanarrativa:

O romance começa numa estação ferroviária; uma locomotiva apita, um silvo de pistão envolve a abertura do capítulo, uma nuvem de fumaça esconde parte do primeiro parágrafo [...]. Alguém olha pelas janelas toldadas do bar, abre a porta de vidro, e no interior o ar é nevoento, como se visto através de olhos míopes ou irritados por algum cisco. São as páginas do livro que estão embaçadas como os vidros das janelas de um velho trem; sobre as frases paira uma nuvem de fumaça. A noite é chuvosa. O homem entra no bar, desabotoa o capote úmido, uma nuvem de vapor o envolve. (CALVINO, 2017, p. 18)

A transcrição acima evidencia o predomínio de um narrador onisciente que não conta diretamente os acontecimentos, mas os descreve, comparando-os com insistência a certos aspectos do processo de leitura como, por exemplo, a entrada no romance, que envolve, nas suas primeiras páginas, a necessidade de uma aproximação, uma familiarização, com as informações oferecidas e com o estilo do autor. O começo da leitura, nesse sentido, seria semelhante à chegada de alguém a um lugar desconhecido, em uma noite chuvosa. Além disso, seria possível estabelecer uma analogia entre as figuras do leitor e do viajante, de modo que, nem um nem o outro, conseguem definir com segurança onde estão, nem com o que estarão

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envolvidos. Por isso, o emprego de imagens como a névoa, a chuva e a noite nesse começo da narração.

Assim como ocorre na narrativa moldura, o narrador onisciente se dirige ao personagem principal, também não nomeado, em tom de diálogo, chamando-o de você:

As estações são todas parecidas; pouco importa se as lâmpadas não clareiam além de seu halo impreciso; afinal, você conhece de cor esse ambiente [...] As luzes da estação e as frases que você lê parecem mais incumbidas de dissolver as coisas do que de mostrá-las, tudo emerge de um véu de obscuridade e névoa. Esta noite desembarquei pela primeira vez nesta estação e já me parece que passei aqui a vida toda. (CALVINO, 2017, p. 19)

Tal fato acaba reforçando o espelhamento entre o personagem viajante e o personagem Leitor da narrativa principal. No entanto, verifica-se, nesse trecho, uma mudança no modo de narrar, o que acaba complexificando as relações entre as histórias e a compreensão das categorias autor/leitor. O narrador onisciente dá a sua voz para um “eu”: “esta noite desembarquei”, que é o personagem masculino, o qual ele estava acompanhando na chegada do trem à estação. Esse personagem então se torna o narrador/personagem de Se um viajante numa noite de inverno, assumindo uma narração em primeira pessoa. No entanto, ele repete a mesma técnica narrativa da voz onisciente, ou seja, opta por contar a história e analisar a sua própria construção, o que o contribui para formar certa imagem do autor implícito.

Outro aspecto relevante é o fato desse “eu” não se definir detalhadamente, escolhendo manter o mistério sobre si, “Sou o homem que vai e vem entre o bar e a cabine telefônica. Ou melhor: o homem que se chama ‘eu’, a respeito do qual você nada sabe” (p. 19). Isso, de algum modo, também lembra a imagem do autor, esse outro com quem o leitor trava contato na viagem da leitura. A indeterminação desse narrador personagem permite que ele brinque com o estatuto de vários procedimentos narrativos, o que resulta em ambiguidades textuais e semânticas. Em alguns momentos, por exemplo, ele se afasta e, em outros, aproxima-se da instância narratorial ou autoral: “Sair para onde? A cidade lá fora ainda não tem nome, não sabemos se ficará fora do romance ou se o conterá inteiro no negrume de sua tinta. Sei apenas que este primeiro capítulo demora a afastar-se da estação e do bar; não é prudente que eu me afaste daqui” (CALVINO, 2017, p. 21).

Nesse trecho, observa-se que, ao refletir sobre o quê e como contar, a voz narrativa em primeira pessoa está consciente do seu papel de produtor/escritor de sua

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história. O que evidentemente aproxima o narrador personagem do autor implícito do livro. Reforça essa aproximação, ou até fusão, o uso do verbo “sabemos” no plural. E, para finalizar, o excerto abaixo retoma algumas concepções relacionadas ao jogo ficcional entre autor – texto – leitor:

Sou, efetivamente, uma pessoa que não se destaca, uma presença anônima num cenário ainda mais anônimo; se você, leitor, não conseguiu deixar de distinguir-me em meio àquelas pessoas que desciam do trem e se continua a seguir-me em meu vaivém entre o bar e o telefone, é só porque me chamo “eu”. Isso é tudo que você sabe sobre mim, mas é suficiente para que possa sentir-se levado a investir parte de si próprio neste eu desconhecido, assim como fez o autor, que, sem ter tido a intenção de falar de si mesmo, decidiu denominar “eu” sua personagem quase para subtraí-la aos olhares, para não precisar nomeá-la nem descrevê-la, porque qualquer outra denominação ou atributo a teria definido melhor que esse despojado pronome; até mesmo pelo simples fato de escrever a palavra “eu”, o autor se vê tentado a pôr neste “eu” um pouco de si próprio, um pouco daquilo que sente ou imagina sentir. Nada mais fácil que identificar-se comigo: por ora meu comportamento exterior é o de um viajante que perdeu uma baldeação, experiência que todos conhecem; entretanto, se essa situação aparece no princípio de um romance, ela remete para alguma coisa que aconteceu ou que está por vir, e é nessa outra coisa que, tanto para o autor como para o leitor, consiste o risco de identificar-se comigo; quanto mais cinzento, comum e indeterminado for o início deste romance, tanto mais você e o autor sentirão uma sombra de perigo crescer sobre esse fragmento do “eu” que os dois irrefletidamente investiram no “eu” de uma personagem cuja história ignoram, assim como ignoram tudo daquela mala da qual ela tanto gostaria de livrar-se. (CALVINO, 2017, p. 22)

O narrador personagem parte da condição de alguém que, no texto, está denominado como “eu”, de quem não se sabe características físicas, comportamentais, psicológicas, para discutir noções de autoria e leitura. Primeiramente, o autor, sem ter de falar de si ou sobre suas intenções de modo direto (pode fazer de modo dissimulado), investe parte de si na construção de um sujeito ficcional. Assim, entende-se que ele, com suas vivências e visões do mundo, está presente em maior ou menor grau em todas as narrativas. O fato de o autor optar por não nomear uma personagem e a inserir num ambiente de passagem também é significativo; o não dito, por vezes, diz mais do que o dito. A relação do leitor com a personagem (identificação) depende de como ela é construída e apresentada. Concepção que nos remete ao entendimento de que o autor não precisa proferir diretamente certa ideia ou ponto de vista, pois, a maneira como ele se apropria da língua e dispõe de seus mecanismos ficcionais, já aponta para a sua intencionalidade. A reflexão que a personagem faz sobre identificação, tanto do autor quanto do leitor com ela, aponta para a noção de que o jogo do prazer ficcional se dá essencialmente no espaço do livro; de modo que, quanto mais indeterminada essa personalidade, mais fácil a identificação, o que explicaria o motivo do personagem principal do

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romance não ter sequer nome. Isso acentuaria a nossa identificação de leitores empíricos com ele, personagem leitor. Por fim, conclui-se que o autor se constrói no ato da escritura e o leitor se constrói no ato da leitura, ambos dependentes do material linguístico. Com isso, ao considerar essa primeira história um reflexo do romance Se um viajante numa noite de inverno, é possível identificar tanto autor quanto leitor como viajantes prestes a iniciarem uma travessia literária, da qual desconhecem os percalços e o final. Assumem o risco quando se apossam de um livro.

Outra parte do romance bastante elucidativa, no que se refere à questão da autoria, é o capítulo 8, composto pelo diário de um escritor chamado Silas Flannery, o qual está no centro de uma polêmica acerca de uma grande rede de falsificações envolvendo seu nome e seus textos. Nele estão expostas e problematizadas inúmeras dificuldades, dúvidas, questionamentos, que rodeiam o autor e seu fazer literário. O ponto de partida da história é o fato de Silas Flannery estar em uma crise criativa e não conseguir mais escrever. A fim de resolver esse problema, ele observa, com uma luneta, uma mulher que lê deitada em sua espreguiçadeira. Essa mulher, enquanto leitora, serve como gatilho para as reflexões do escritor, porque ele confessa projetar nela a imagem de leitora ideal, aquela que lê por prazer. Prazer que para ele, enquanto escritor, perdeu-se: “Desde que me tornei escravo da escrita, o prazer da leitura se acabou para mim”. Muitos são os fatores que contribuem para a sua impossibilidade de escrever, entre eles, é possível destacar a busca pela escrita do verdadeiro livro, do livro total, e a busca pela perfeição que traz consigo a sensação constante de insatisfação. Ademais, a projeção de um leitor ideal para o texto literário também pode bloquear e inibir o desenvolvimento da escrita, principalmente, porque, a partir do momento em que um livro é publicado e lido, ele não pertence mais ao autor, mas ao leitor que se apropria dele: “Sinto uma multidão de leitores que olham por cima de meus ombros e se apropriam das palavras à medida que elas vão se depositando sobre a folha. Não sou capaz de escrever quando alguém me observa; sinto que aquilo que escrevo não me pertence mais”. O personagem escritor Silas Flannery, nesse contexto, reflete sobre sua posição e papel na escritura de ficção, destacando a possibilidade de anular-se nesse processo:

Como eu escreveria bem se não existisse! Se entre a folha branca e a efervescência das palavras e das histórias que tomam forma e se desvanecem sem que ninguém as escreva não se interpusesse o incômodo tabique que é minha pessoa! O estilo, o gosto, a filosofia, a subjetividade, a formação cultural, a experiência de vida, a psicologia, o talento, os truques do ofício: todos os elementos que tornam

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reconhecível como meu aquilo que escrevo me parecem uma jaula que limita minhas possibilidades. Se eu fosse apenas uma mão decepada que empunha a pena e escreve… Mas o que moveria essa mão? A multidão anônima? O espírito dos tempos? O inconsciente coletivo? Não sei. Não quereria anular a mim mesmo para tornar-me o porta-voz de alguma coisa definida. Só o faria para transmitir o escrevível que espera para ser escrito, o narrável que ninguém narra. (CALVINO, 2017, p. 175)

Tais reflexões nos remetem às palavras de Ítalo Calvino, proferidas acerca de seu romance e já destacadas no início desse texto. Parece que, em essência, a concepção de escritura de Silas Flannery e Calvino é a mesma, o que nos impele a ligar a figura do personagem escritor ao autor de Se um viajante numa noite de inverno, como se ele fosse seu alter ego. Ambos enaltecem a possibilidade de se anular no texto, de escrever com estilos, pensamentos, visões do mundo diferentes entre si, como se pudessem ser vários autores em um só, como se o ato da escritura estivesse desvinculado de seu produtor, como se a criatura existisse independente de seu criador. Contudo, tanto Flannery quanto Calvino reconhecem que tal fenômeno não é possível, afinal, alguém ou algo há de mover a mão que escreve. No caso de Calvino, na escritura das dez micronarrativas do romance, ele sugere que a instância autor aglutina em si a força criadora, mas não é independente nem original, uma vez que se liga com o que vem antes da escritura, o repertório de leituras do mundo e de livros do autor, e com o que virá depois, o texto finalizado e à mercê da interpretação dos leitores. É possível notar a presença do autor implícito, no romance Se um viajante numa noite de inverno, nos doze capítulos dedicados à história do Leitor com Ludmilla, como demonstrado por meio das imagens do viajante na estação ferroviária e do prazer da leitura e da escritura, bem como seu quase apagamento nas dez micronarrativas. A seguinte fala de Flannery: “Veio-me a idéia de escrever um romance feito só de começos de romances. O protagonista poderia ser um Leitor que é continuamente interrompido. O Leitor adquire o novo romance A do autor Z. Mas é um exemplar defeituoso, e ele não consegue ir além do início” (CALVINO, 2017, p. 202), corrobora a impressão de que ele pode ser considerado o alter ego do autor, já que pensa no mesmo mote desenvolvido na narrativa de Calvino.

Sobre a escolha da temática de um livro, Silas discorre:

Às vezes penso no assunto do livro a ser escrito como algo que já existe: pensamentos já pensados, diálogos já proferidos, histórias já ocorridas, lugares e ambientes já vistos; o livro não deveria ser outra coisa senão o equivalente do mundo não escrito traduzido em escrita. Outras vezes, ao contrário, creio compreender que entre o livro a ser escrito e as coisas que já existem não pode haver mais que uma espécie de complementaridade: o livro deveria ser a contraparte escrita do mundo não escrito; sua matéria deveria ser aquilo que não

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existe nem poderia existir, exceto quando for escrito, e do qual se experimenta obscuramente a falta em sua própria incompletude. (CALVINO, 2017, p. 175-176) Essas colocações de Silas Flannery se associam com algumas concepções de Iser sobre a ficcionalidade da literatura. Para Iser, o autor é aquele que faz escolhas e tematiza o mundo, no sentido de torná-lo perceptível, de forma que a intencionalidade do autor estaria manifesta na decomposição de vários campos de referência como o contexto, a realidade social e emocional. Dessa compreensão resultam três mundos: o mundo real, o fictício e o imaginário. Com isso, os estudos de Iser sobre os atos de fingir auxiliam na compreensão da problemática que envolve pensar no livro como um mundo novo ou pensar nele como resultante de algo que já existe, mas traduzido para a escrita literária. O teórico marca como ponto de partida da escritura o mundo real (autor), que se transforma em um mundo ficcional (texto), para então se tornar um mundo imaginário (leitor). Para Iser, a ficcionalidade do texto literário deve ser assumida. Historicamente, o texto literário é reconhecido como tal por meio de certas convenções que autor e leitor compartilham e que advém do repertório de signos do texto ficcional em forma de discurso encenado. É importante entender o texto ficcional como algo fingido, para que ele não seja confundido com a realidade. Assim, o texto ficcional não é igual ao que ele representa, pois a realidade deve ser posta nele sob o signo do fingimento e deve ser compreendida como encenação. O mundo representado não é propriamente o mundo, a realidade, mas é como se fosse, e isso ajuda a criar uma relação afetiva entre texto e leitor. Portanto, o texto literário não é designado como um mundo existente, mas como um mundo imaginado.

A problemática da autoria passa ainda pela discussão sobre o estatuto, papel, de tradutores e falsificadores, e sobre a possibilidade de, por meios de tais práticas, criarem-se novos textos cuja autoria real se perderia pela possibilidade da multiplicação infinita. Há também, nesse capítulo, a narração de um ‘embate’ entre a leitora ideal, Ludmilla, com quem ela considera um escritor ideal, Silas Flannery. Para Ludmilla, os romances de Silas Flannery são bem caracterizados, e, ao lê-los, tem-se a impressão de que já existiam antes mesmo de terem sido escritos, e, assim, “Parece que passam através do senhor, que eles vêm servir-se do senhor, que sabe escrever, porque para que sejam escritos é preciso existir alguém que saiba fazer isso” (CALVINO, 2017, p. 194). A exposição da ideia de impessoalidade e despersonalização não agrada a Flannery. No entanto, Ludmilla tenta amenizar a

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insatisfação do escritor, explicando-lhe que, para ela, há duas entidades diferentes: o Silas Flannery, autor empírico (real), e o outro Silas, o autor fictício. Essa dualidade foi um dos motivos que levou Ludmilla a não ter interesse em conhecer pessoalmente os autores dos livros que lia. Para ela, leitora ideal, a imagem do autor produzida pelo texto literário já era suficiente para a sua compreensão da história. Ela aceita o jogo proposto no e pelo texto literário, pela sua escritura apenas.

O romance (im)possível

Após uma longa travessia pelo bosque de Se um viajante numa noite de inverno, concluímos a leitura com inúmeras expectativas e vontades satisfeitas e outras tantas frustradas. A construção rizomática, ambígua, heterogênea do romance, propicia a permanência de lacunas e incertezas interpretativas, os sentidos não estão estabilizados e as possibilidades de leitura permanecem abertas. As inúmeras ramificações, linhas de fuga, presentes menos na narrativa principal e mais nas narrativas paralelas, fornecem vários caminhos interpretativos possíveis de serem seguidos, sem que se perca, sem dúvida, a noção do todo. Afinal, essas histórias estão contidas no objeto-livro, pronto para ser manuseado. Sobre a leitura ainda, Compagnon discorre:

A leitura, como expectativa e modificação da expectativa, pelos encontros imprevistos ao longo do caminho, parece-se com uma viagem através do texto. O leitor, diz Iser, tem um ponto de vista móvel, errante, sobre o texto. O texto nunca está todo, simultaneamente presente diante de nossa atenção: como um viajante num carro, o leitor, a cada instante, só percebe um de seus aspectos, mas relaciona tudo o que viu, graças a sua memória, e estabelece um esquema de coerência cuja natureza e confiabilidade dependem de seu grau de atenção. Mas nunca tem uma visão total do itinerário. Assim, como em Ingarden, a leitura caminha ao mesmo tempo para a frente, recolhendo novos indícios, e para trás, reinterpretando todos os índices arquivados até então. (COMPAGNON, 2010, p. 150)

Os textos literários modernos são cada vez mais indeterminados e conferem mais liberdade ao leitor na compreensão dos sentidos e na interpretação. Porém, é preciso lembrar, que essa liberdade está restrita a alguns pontos de indeterminações dos textos (ambiguidades, lacunas) determinados pelo próprio autor. Ainda que o autor não esteja marcado textualmente, sua presença pode ser percebida, nos romances, pela forma como organiza, distribui o material narrativo, ou seja, ele está exercendo seu controle sobre a escritura. Nesse sentido, como destacam Booth e Eco, chegar ao autor empírico e sua intenção não deve ser o objetivo final da leitura, de modo que o resgate de dados biográficos, históricos, não deveria ser privilegiado em detrimento

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da materialidade linguística do texto. Com isso, a análise da escritura de Se um viajante numa noite de inverno demonstrou que foram empregados interessantes mecanismos ficcionais que projetam determinada imagem do autor implícito; de forma que, somente pela leitura do romance, é possível discorrer sobre as concepções de escritura e leitura que são caras a Calvino. Ambas desafiadoras à postura passiva de um leitor acostumado a narrativas de prazer que mais acomodam do que desestabilizam. Calvino se debruça e explora a potencialidade da literatura, principalmente a possibilidade de se dobrar e se desdobrar sobre si e, portanto, ainda capaz de nos surpreender.

Referências

BARTHES, Roland. O prazer do texto. São Paulo: Perspectiva, 1973.

BOOTH, Wayne C. A retórica da ficção. Lisboa-Portugal: Arcádia, 1980.

CALVINO, Ítalo. Se um viajante numa noite de inverno. São Paulo: Companhia das Letras, 2017.

COMPAGNON, Antoine. O demônio da teoria. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2014.

DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. São Paulo: Editora 34, 2014, v. 1.

ECO, Umberto. Entrando no Bosque. In: ECO, Umberto. Seis passeios pelo bosque da ficção. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. p. 7-31.

ISER, Wolfgang. Os atos de fingir ou o que é fictício no texto ficcional. In: LIMA, L. C. Teoria da Literatura em suas fontes. v. 2. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002. p. 955-987.

Recebido em: 14/06/2020 Aprovado em: 26/08/2020

Referências

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