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Um novo barato: surfe e contracultura no Rio de Janeiro dos anos 1970

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www.rbceonline.org.br

Revista

Brasileira

de

CIÊNCIAS

DO

ESPORTE

ARTIGO

ORIGINAL

Um

novo

barato:

surfe

e

contracultura

no

Rio

de

Janeiro

dos

anos

1970

Vladimir

Zamorano

Alves

a

e

Victor

Andrade

Melo

b,

aPrefeituradoRiodeJaneiro,SecretariaMunicipaldeEducac¸ão,RedeMunicipaldeEnsino,RiodeJaneiro,RJ,Brasil bUniversidadeFederaldoRiodeJaneiro(UFRJ),FaculdadedeEducac¸ão,DepartamentodeDidática,RiodeJaneiro,RJ,Brasil

Recebidoem31dejaneirode2013;aceitoem5desetembrode2013 DisponívelnaInternetem1defevereirode2016

PALAVRAS-CHAVE

Surfe;

Contracultura; Históriadoesporte; Juventude

Resumo Esteestudo,umapesquisahistórica,temporobjetivodiscutirosencontrosquehouve noRiodeJaneirodosanos1970depraticantesdosurfeeideiasligadasàcontracultura.Para alcancedesseobjetivo,usamoscomofontesdepoimentosdesurfistascariocaspublicadosem livroseperiódicos.Pensamosqueessainvestigac¸ãonospermitedarumpassonosentidode melhorentenderarelac¸ãoentreapráticaesportivaeocontextosociocultural.Permiteaté per-cebercomoossentidosesignificadosdeumesportevãomudandonodecorrerdotempo.Além disso,esperamoslanc¸aralgunsolharessobreapróprianoc¸ãodecontracultura,seconsiderarmos quesuainterpretac¸ãoemanifestac¸ãoforammúltiplasediversas.

©2016Col´egioBrasileirodeCiˆenciasdoEsporte.PublicadoporElsevierEditoraLtda.Este ´e umartigoOpenAccesssobumalicenc¸aCCBY-NC-ND(http://creativecommons.org/licenses/

by-nc-nd/4.0/). KEYWORDS Surfing; Counter-culture; Sporthistory; Youth

Surfingandcounter-cultureinthe1970sRiodeJaneiro

Abstract Thisstudyaimstodiscuss,inthe1970sRiodeJaneiro,themeetingsthattookplace betweenpractitionersofsurfeingandideasrelatedtothecounterculture.Toreachthisaim,we usedassourcesstatementsoflocalssurferspublishedinbooksandperiodicals.Wethinkthat thisresearchallowsustotakeasteptowardsbetterunderstandingtherelationshipbetween sportsandsocioculturalcontext,includingthegivingopportunitytoseehowthemeaningsof a sport are changing over time. Furthermore, we hope to shed some light on the notion ofcounterculture,consideringthatitsinterpretationwasmultipleanddiverse.

©2016Col´egioBrasileirodeCiˆenciasdoEsporte.PublishedbyElsevierEditoraLtda.Thisisan openaccessarticleundertheCCBY-NC-NDlicense(

http://creativecommons.org/licenses/by-nc-nd/4.0/).

Autorparacorrespondência.

E-mail:victor.a.melo@uol.com.br(V.A.Melo). http://dx.doi.org/10.1016/j.rbce.2016.01.005

0101-3289/©2016Col´egioBrasileirodeCiˆenciasdoEsporte.PublicadoporElsevierEditoraLtda.Este ´eumartigoOpenAccesssobuma licenc¸aCCBY-NC-ND(http://creativecommons.org/licenses/by-nc-nd/4.0/).

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Umnovobarato:surfeecontraculturanoRiodeJaneirodosanos1970 3

PALABRASCLAVE

Surf;

Contracultura; Historiadeldeporte; Juventud

SurfycontraculturaenRíodeJaneiroduranteladécadade1970

Resumen Esteestudiotieneelobjetivodeanalizarlosencuentrosentrepracticantesdesurf ylasideasrelacionadasconlacontraculturaenlaciudaddeRíodeJaneiroduranteladécadade 1970.Paraalcanzaresteobjetivo,hemosutilizadocomofuenteslasdeclaracionesdesurfistas localesquesepublicaronenlibrosyperiódicos.Creemosqueestainvestigaciónnospermite darunpasohaciaunamejorcomprensióndelarelaciónentreeldeporteyelcontexto sociocul-tural,incluyendolaposibilidaddecomprobarcómoelconceptoquehaydetrásdeundeporte cambiaconeltiempo.Asimismo,esperamoslanzaralgunasmiradassobrelapropianociónde contraculturaalconsiderarquesuinterpretaciónymanifestaciónsonmúltiplesydiversas. ©2016Col´egioBrasileirodeCiˆenciasdoEsporte.PublicadoporElsevierEditoraLtda.Estees unart´ıculoOpenAccessbajolalicenciaCCBY-NC-ND(http://creativecommons.org/licenses/

by-nc-nd/4.0/).

Introduc

¸ão

No fim da década de 1950 uma novidade surgiu no Rio

deJaneiro:jovens,membrosdefamílias economicamente privilegiadas, adotaram comportamentos menos formais, maisespontâneosedescontraídos,poralgunsconsiderados festivos em excesso(quando nãoindecorosos), desfilavam pelasruase praiasdaZonaSul,lanc¸avammodase tumul-tuavam a ordem dos desejos. Motivo de apreensão para alguns,notadamenteosmaisvelhos,e deadmirac¸ãopara outros, os ‘‘playboys’’ interferiam na dinâmica cultural, celebraramnovosprincípiosdevida:juventude,hedonismo, transgressão.1

Entre esses jovens, que praticavam distintos esportes, nasareias(peteca,frescobolevôlei)enomar(mergulhoe cac¸a submarina),paulatinamentedesenvolveu-seumnovo hábito:osurfe.Oqueaprincípioeraalgoexóticose trans-formouempráticademuitos,assuntocostumeironosjornais e revistas, uma nova moda,uma das marcasde umnovo estilodevida.

É possível inferir que a difusão do surfe tenha algum grauderelac¸ãocomoaumentodainfluênciaamericanano Brasil,notadamente noquetangeà valorizac¸ãodecertos bensdeconsumo.Amodalidadetantoeraumaexpressãoda vinculac¸ãoaesseconjuntodereferênciasculturaisquanto ajudavaareferendá-las.

De fato, em muitos países, a popularizac¸ão do surfe relacionou-se à hegemonia cultural americana (Booth, 2001). Nos Estados Unidos, todavia, logo se estabeleceu umatensãoentreospraticantesdamodalidade,dealguma formarelacionadaàsapreensõesdosmeiosdecomunicac¸ão. Enquanto essesprocuravamapresentá-lacomouma diver-são ingênua, os surfistas mais antigos já se aproximavam de ideias ligadas à contracultura, especialmente no caso californiano(Thorpe,2006).

1Playboys,naacepc¸ãodaépoca,eramindivíduosligadosàselites

quelevavamavidasemgrandepreocupac¸ãoeengajamentosocial e/oupolítico.Suaposturatinhaalgodetransgressãopordemonstrar menorpreocupac¸ãocomotrabalho/carreiraprofissional,buscava extrairaomáximoprazerdetodasassituac¸õesdavida.

Entende-se essa relac¸ão: assim como com o surfe, os EstadosUnidosforamocentroirradiadordeideias contra-culturais,queseespraiaramporvários países,dialogaram com as peculiaridades históricas locais. No Brasil, tais noc¸ões tornaram-se mesmo mais notáveis na virada das décadasde1960 e1970, quandonocenário internacional jáperdiam forc¸a porconta daapropriac¸ão dapostura de rebeldiapelaculturademassas(Maciel,1987).Alémdisso, asiniciativastinhamdelidarcomumaambiência extrema-mente repressora,com umregimeditatorial que também tentavaimporocontrolededeterminadasposturas compor-tamentais.Namesmamedida,significaramresistênciasde naturezadistintadaquelasmaisclássicasdopontodevista dapolítica.2

Deve-seperceber,portanto,quearelac¸ãoentreosurfee asideiascontraculturaisnãofoiimediataedamesmaforma estabelecida nos diferentes países onde a modalidade se estruturou.NoRiodeJaneiro dosanos 1960,nãoé possí-velidentificarentreospraticantes umaclaramobilizac¸ão dessesprincípios.3Issosomentesetornoumaisperceptível

nosdepoimentosconcedidosapartirdosanos1990;os sur-fistasreferiam-seaocorrênciasdamodalidadenadécadade 1970.

Defato,naquelemomento,percebem-secoincidências entre a trajetória dos envolvidos com as noc¸ões contra-culturais (notadamente artistas ligados a movimentos de vanguarda)e a dos praticantes do surfe. Sea princípio a modalidade se estabelecerana Praia do Arpoador,4 entre

1971e1972sedeslocariaparaaPraiadeIpanema,aoredor deumpíerconstruídoparainstalaratubulac¸ãodeum emis-sáriosubmarinodeesgotos.

As mudanc¸as ocasionadas poressa instalac¸ão, na areia e no mar, atraíram grupos distintos, que compartilhavam

2Paraumbalanc¸odosmovimentosculturaisdosanos1960e1970,

verHollanda(1980).

3Sobreosurfenosanos1950e1960,trabalhamoscomosestudos

deDias(2008),Fortes(2011)eDiasetal.(2012).

4OArpoadorlocaliza-senatransic¸ãoentreaspraiasdeIpanema

eCopacabana.Desdeosanos1950,tornou-seumlugarmarcadopor manifestac¸õesdajuventude.

(3)

4 AlvesVZ,MeloVA. a sensac¸ão de liberdade que se gestou naquele espac¸o.

Aconvivêncialogoseestabeleceu:

O Píer era a praia. Em frente à Rua Farme de Amo-edo,entrea Montenegro,hojeVinícius deMoraes,e o Arpoador,construíramumemissáriosubmarino.Aareia retiradadofundoparapassaratubulac¸ãofoidepositada àbeiradapraiaeformoudunas.Dunasqueescondiama rapaziadadosolhosrepressivosquevinhamdocalc¸adão. Comamexidadofundodeareia,omarsubiuelevantou ondasperfeitas.OssurfistasvieramdoArpoador.Aerva veiojuntaesejuntouàdosartistasquepassaramairver asondas,osurfeeopôrdosol.Eraumafesta(Chacal, 2010,p.34).

GilbertoVelho,aofalar dosdiferentessentidos e signi-ficadosque cercamousodedrogas, percebeque:‘‘Entre surfistasbrasileiros,emcontatocomseuscolegasdosEUA, tambémsedifundiuoconsumo.Ouseja,dentrodeum qua-drogeraldedifusãodeestilosdevida‘contraculturais’dos anos60,veiotambémohábitodefumarmaconha’’(Velho, 2003,p. 86).Naquelesprimeirosmomentos dadécadade 1970, eles viveriam novos ‘‘baratos’’,ligados à busca de umaopc¸ãodevida.

Devemos ter em conta que os atores principais do

‘‘movimento’’ contracultural foram jovens, sobretudo oriundosdas camadas altase médias dos grandes centros urbanos,quecriticavamosparâmetrosdevidadasociedade ocidentaltecnocrática,marcadapelaexacerbac¸ãoda raci-onalidadeedopensamentocientífico,pelaburocratizac¸ão excessiva, pelasupervalorizac¸ão dos aspectoseconômicos (Roszak, 1972). Essessão alguns pontos em comum entre muitasiniciativasbastanteheterogêneas.5ParaMaciel:

Acontraculturasurgiudoconfrontoentreacultura reco-nhecida como doenc¸a e a visão juvenil, cujo instinto naturaléparaasaúde.Aaudáciadessavisãonãopodeser considerada meraprecipitac¸ão ingênua,pois funda-se, antes,numdesencantoradical---atingindoporsaturac¸ão, maturidade--- comomundotal comooconhecemos.As vertentesqueconfluíramparaaformac¸ãode contracul-tura sãovárias, de naturezasaparentemente diversas, massublinhadaspelodenominadorcomumdaintenc¸ão libertária. E a fonte instintiva dessa intenc¸ão é, sem dúvidaavisãojuvenil.6

Quais teriamsido aspeculiaridades dorelacionamento que se estabeleceu, naquele cenário, entre o surfe e as contestac¸õesdeordemcultural?Esteestudo,umapesquisa histórica,temporobjetivodiscutirosencontrosquehouve noRiodeJaneiro dos anos 1970de praticantesda moda-lidadeeideiasligadasàcontracultura.Paraalcancedesse objetivo,usamoscomofontesdepoimentosdesurfistas cari-ocaspublicadosemlivrosouperiódicos.

Todososdepoimentosusadosforamconcedidosnosanos 1990e2000,momentoemqueosurfeestavaconsolidado, imersonasestratégiasdeumaindústriadoentretenimento que elegia a juventude como um público-alvo prioritário

5Paramaisinformac¸ões,verReich(1970),BuenoeGóes(1984)e

Pereira(1985).

6Careta,RiodeJaneiro,anoLIII,n.2736,20dejulhode1981,

p.19.

(Melo eFortes, 2009;Fortes,2011). Maisainda,em geral foram publicados em periódicos especializados, agentes importantesdoprocessodeconformac¸ãodeumcampoao redordoesporte(Fortes,2011).

Éimportanteteremcontaessaspeculiaridades.Os surfis-tas,eleitoscomoinformantesprivilegiados,interpretamseu passadoimersosnopresente,porvezesbalizadosporuma visãomíticadesuaatuac¸ão.Issoé,setratadeumaproduc¸ão de memória,tanto individualquanto coletiva,que relaci-onadeterminadospercursos quesãoexaltados,na mesma medida em que esconde outros(Pollak,1989; Halbwachs, 2004).Isso,obviamente,nãoinvalidataisdepoimentos, ape-nasseconstituiumacondic¸ãoquesedeveteremcontana análise/interpretac¸ão.

Pensamosqueessainvestigac¸ãonospermitedarumpasso no sentido de melhor entender a relac¸ão entre a prática esportivaeocontextosociocultural.Permiteatéperceber como ossentidos e significados deumesporte mudam no decorrer do tempo. Além disso, esperamos lanc¸ar alguns olhares sobre a próprianoc¸ão de contracultura, conside-randoquesuainterpretac¸ãoemanifestac¸ãoforammúltiplas ediversas(Roszak,1972).

O

surfe

e

as

ideias

de

contracultura:

novas

posturas,

novos

comportamentos

‘‘Éramoscomobichosexóticos,cabeludoseestigmatizados comovagabundos,masacabamosservindodeexemplopara osoutros’’.7Essaafirmac¸ãodeRicodeSouza,umdos

surfis-tasmaisconhecidosdesuagerac¸ão,dácontadeoquantoum possívelestereótipo,construídonosanos1970,podetersido depoisressignificadoquandoamodalidadejáseencontrava consolidada,atécomoumcampodenegócios.

Defato,nosanos1990e2000,setornouumaocorrência comum, nodepoimentodeantigospraticantes, aproximar oesportedealgumasideiascontraculturais.Gestou-seuma valorizac¸ãodavinculac¸ãoataisnoc¸ões.Vejamos,por exem-plo, o posicionamento de Roberto Teixeira, na época da entrevistapró-reitor deExtensãoe AssuntosComunitários daUnicamp,médico,professordepediatria,surfistadesde os12anos:

Voltar-separa a reflexãonãoé funcional na sociedade capitalista. E o surfe faz parar para pensar. Quando comecei, ele era parte de uma grande contracultura, quequestionoumuitos valores,e nãohaviacomofazer partedelasemestarenvolvidoespiritualmente.Eusoube enxergarumoutroespac¸oparaavida,desenvolverum novopontodevista.8

Deacordo com muitos depoentes, os comportamentos daqueles jovenssurfistascausaram alvoroc¸ona décadade 1970, ainda maisdo que ocorrera nos anos 1960, quando aindanãotinhamrompidocompletamentecom determina-dosvalores.Umadasprincipaisrecusasseriaadeumaideia caraà sociedadedeentão:adeconstituirumacarreirae

7OGlobo,RiodeJaneiro,4dejaneirode2004,p.12.

8Trip, São Paulo, n. 84, nov. 2000. Disponível em:

http://revistatrip.uol.com.br/print.php?contid=29334. Acesso em:13jan.2013.

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Umnovobarato:surfeecontraculturanoRiodeJaneirodosanos1970 5 umafamílianosmoldestradicionais.Issoteriaocasionado

conflitoscomospais,aindamaisporquesesomavaumestilo detrajar-sequesechocavacomoscostumes:

(...)Surfistaerasinônimodemauelemento,vagabundo, fracassado na vida. Nossos pais tinham vergonha dos filhossurfistas, e muitasvezes fiqueisem mesadapara verseeuparava decurtirapraia.Nenhumpai oumãe ficavafelizem verseufilhoentrandopelocaminhodas ondas.Ospaisdasmeninasficavam apavoradosquando uma delas comec¸ava a namorar um dos ‘‘marginais’’ dapraia.Levouanos paraqueo surfefosse respeitado comoesporteeestilodevida.Nóséramosconsiderados excêntricosporquerecusávamosasroupasbonitinhase oestilobregaquetomavacontadanossaépoca,e pre-feríamosandardecalc¸ão,camisetaesandáliahavaiana, vestimentamaisadequadaparaoperáriosdeobra,mas que em nadanos incomodavapois eramideaispara se passaro diavagabundando na praia,vendoasmeninas passarem,asondasquebrarem,osolsepôr...’’.

9

Ossurfistasfrisamquenãoseimportavamcomosplanos trac¸adospelosseuspais.Queriamserlivrespara experimen-tarsuaescolha:osurfenãoeraencaradocomoumaforma deevasão,nemummerodivertimento,tampoucoalgoque marcasse umafase dajuventude: eraum estilo de vida. Talvezmais:eraumafilosofiadevida.

Terumempregocomhoráriofixo,quepoderiagarantira sobrevivência,masnãodeixariatempoparaasondas,não estaria nos seus planos. Eles trabalhavam à sua maneira. Aproduc¸ãodepranchas,porexemplo,eraumaestratégia: ganhavamalgum dinheiro,semmacular apossibilidadede surfarquandodesejassem.RicardoBocãorecorda:

LigueiparaoBetão,meugrandeamigonaépocaefalei: ‘‘VamosmoraremSaquarema,fazerumaoficinade pran-chase pegaraltasondas’’. Financeiramente,nãohavia muitapressão.Cobrávamos1.800cruzeirosnuma pran-cha. O aluguel da pequena casa onde morávamos, no cantoesquerdo deItaúna,custava 500 cruzeiros.O da nossa oficina, no canto direito (Lagoinha), outros 500 cruzeiros.Etrabalhando,éramos apenastrês --- osdois donos e uma terceira pessoa. Comida? Muito barata. Gasolina? Nos deslocávamos só de bicicleta para ir do cantoesquerdoparaocantodireitodapraiaeàsvezes paraacidade.Eamargemdelucro?Podeparecer exa-gero,maserade100%.Ouseja,sóprecisávamosdeduas encomendas por mês para a nossa sobrevivência. Uma prancha pagava o material das duas e a outra pagava os nossos custos pessoais e os da oficina. Vivíamos de maneirasimples,comboa alimentac¸ão, muitafogueira eviolãoequasenenhumgasto.10

9DepoimentodeTitoRosembergconcedidoàrevistaLongboard

Brasil,ano 1, n◦. 1, nov.1999. Disponível em: http://360graus.

terra.com.br/titorosemberg/entrevistatito.asp?did=6523. Acesso em:13jan.2013.

10 Fluir, Rio de Janeiro, ano 21, n. 232, out. 2004.

Dispo-nível em: http://fluir.ig.com.br/colunistas/228falabocao.shtml. Acessoem:6jan.2008.

Se em relac¸ão ao trabalho eram vistoscomo vagabun-dos,emtermosdepolíticaseriamencaradoscomoalheios, aindaque porvezes considerados ‘‘subversivos’’por seus comportamentos. Na verdade, nãose tratava necessaria-mente depostura de fuga,mas sim, em muitas ocasiões, umaopc¸ãofrenteaoquadropolítico,assimcomoofoi,aliás, demuitos que aderiram aosideais contraculturais naque-lesturbulentosanos1970.Oquehaviaaoredordaimagem dopraticanteerapreconceito,em um cenárioem que as posic¸õeseramclaramentediametrais(ouseeraalienadoou seeraengajado).

Além disso, alguns sugerem que,por mais que se ten-tasseestaràmargemdosacontecimentos,dealgumaforma asituac¸ão políticasefazia presente.Cauli Rodrigues lem-braque,em1972,quandofezsuaprimeiraviagemaoPeru, encontrou o amigo surfista Paulo Aragão, que lá morava porqueseupai,FerreiraGullar,estavaexilado.11Tito

Rosem-bergassimrecordaastensõesdoperíodo:

MemandeiproPerueMéxicoem1967.Navolta,opaís fedia,asruasestavamcaladas,osquartéisfalandoalto. Pareciaque nãohavialuznofimdotúnel.Liosjornais com receitasdebolona primeirapágina. Sentia vergo-nhadeserbrasileiro.EdsonLuizmorreunoCalabouc¸o. Meu jipe,que de manhã levavauma prancha de surfe na capota,detarde transportou ocaixãodoestudante assassinadopeladitadura,daCâmaradosVereadoresaté ocemitério.12

Nocotidianodapraia,oautoritarismotambémsefazia presente.Foiproibidaapráticadosurfeentre7e14horas, supostamente porque oferecia perigo para os banhistas. Houveconstantesabusosdeautoridade,algoquese esten-diatambémemfunc¸ãodousodedrogas,outroestigmaque cercavaos surfistas. Nesses casos, secriavam estratégias paraburlar o controle:‘‘Quando a polícia pegava alguém fumandomaconhanaareia,aspessoasvaiavamejogavam copinhodepapelnospoliciais.Entãoeraconstrangedorpara apolíciacensuraroqueacontecianoPíer’’.13Falemosmais

sobreesseespac¸omíticodahistóriadoRiodeJaneiro.

O

píer

de

Ipanema

Nosprimeirosanosdadécadade1970,opíerdeIpanema tornou-sequaseumuniversoparaleloaoqueacontecia na cidade.Era a praiahippie, frequentada por ‘‘loucos’’de todos os tipos, símbolo do ‘‘desbunde’’ carioca. O local ficouconhecidocomo‘‘as dunasdaGal’’ou‘‘asdunasdo barato’’,referênciaaumadasfrequentadorascélebres,Gal Costa,quefizeraenormesucesso comumshownoTeatro TerezaRaquel.EsseespetáculodeuorigemaoálbumFa-Tal, noqual gravoua canc¸ãoVapor barato, deJardsMacalée WalySalomão.Otermo‘‘barato’’tinhaváriasconotac¸ões, entreasquaisprazer, curtic¸ão,alegria; poraproximac¸ão, tambémousodedrogas.

11InsideNow,RiodeJaneiro,n.117,jun.1999. 12AlmaSurfe,SãoPaulo,ano1,n.1,nov.2000,p.20.

13DepoimentodeOtávioPachecoconcedidoàrevistaInsideNow,

(5)

6 AlvesVZ,MeloVA. Foi por lá que Leila Dinizapareceu grávida de biquíni

equesedifundiuousomasculinodatanga. Músicos com-puseramcanc¸ões,modasforamlanc¸adase aliberdadefoi experimentadade diversas formas. O píer é sempre lem-bradocomoummarcodomovimentocontraculturalcarioca. Comovimos,ossurfistas,aprincípioemfunc¸ãoda qua-lidade das ondas, se integraram àquela paisagem. Antes mesmodainstalac¸ãodopíerjáhaviaexpectativas:

No fim dos anos 60, nós já sabíamos que ia ser cons-truídoumpíeremIpanema.Obviamente,algunssurfistas jácogitavamaideiadequeopíerfariacomqueasondas quebrassem nos seuspilares. A gente imaginavaque a obrafossecriarumfundoperfeito.Então,ficamos espe-rando.Me lembro de veros caras fixandoosprimeiros pilares.Naquelaépoca,aindaantesdopíerficarpronto, sóuns10ou15surfistasfrequentavamaquelaparte da praiadeIpanema.14

Apartirdeentão,aquelepassouaseropointpreferido dossurfistas. Em 1972, alise fezumcampeonato carioca com150participantes, parao qualhouvenegociac¸õesem func¸ãodasnormasemvigor:‘‘OCorpoMarítimode Salva-mentoquefazrestric¸õesaosurfe,estabelecehoráriolimite elocaisparaasuaprática,deutotalautorizac¸ãoaos organi-zadores(...)parafazeracompetic¸ãonomelhorlugar:perto dopíerdeIpanema’’.15

Como decorrerdotempo, algunssurfistas tanto absor-veramalgodosprincípioscontraculturaisquantoajudaram atornaramodalidade,simbolicamente,umareferênciade liberdade.Apesardasdiferenc¸asentreo‘‘baratodaágua’’ eo‘‘baratodaareia’’,gestou-seumaforteidentidadeque criouo‘‘baratodopíer’’.Nessesentido,pode-sedizerqueo surfetambémprotagonizouamovimentac¸ãocontracultural dopíerdeIpanema.

Algunsdepoenteschegamareivindicarqueforamos res-ponsáveis pela agitac¸ão daquele espac¸o. Nas palavras de Otávio Pacheco: ‘‘Os surfistas foram atrás das ondas, as gatasatrásdossurfistaseagaleraatrásdasgatas’’. Inde-pendentementedeaquempertenceopioneirismo,devemos mesmoconsideraraspossibilidadesdeencontros:

Naquelaépoca,quemusavacabelocompridoerabicha,

quem pegava onda era vagabundo e quem ouvia rock

eradelinquente.Foiumtempodifícil,emqueomundo

e a sociedade em geral tiveram que se adaptar a

muitasmudanc¸as.Opíerfoiolugarondemuitasdessas mudanc¸asaconteceram porque haviaumagrande efer-vescência cultural, que foi impulsionada pelo convívio quase que diário entre surfistas e artistas em geral: músicos,poetas,artistas,intelectuaisetc.Nomescomo GalCosta,CaetanoVeloso,JardsMacalé,NelsonMotta, BabyConsuelo,ScarletMoon,EvandroMesquita,Chacal, entreoutros,dividiamasareiasdas‘‘dunasdaGal’’com ossurfistas,queestavamaliparasurfarondasperfeitas. Existia um grande movimento cultural ligado ao surfe

14 DepoimentodeOtávioPachecoconcedidoàrevistaInsideNow,

RiodeJaneiro,n.126,2001,p.27.

15 OJornal,RiodeJaneiro,13dedezembrode1972,p.27.

eaossurfistas.Opíerfoiopalco perfeitoparaqueele acontecesse.16

Compartilha dessa opinião Evandro Mesquita, que

comec¸ouasurfarnaépoca:

Não pegava onda assim tãobem, masconvivia com as feras das feras. (...) tudo que falavam sobre surfistas nessaépocavinhameiogripado.Agenteeravistocomo burro,alienado.Sempreacheiissoumagrandebesteira. Tinhaumaopc¸ãopolíticadenãofazerdiscurso,master umaatitudedevida.Pegarumapranchaeirparaaágua eraumaatitude política. Criou-se umacultura.Outras coisassaíramdisso,músicasepec¸as.Agentetinhauma visãopráticadavida.17

Evandronãochegou aser umsurfistaaventureiro, dis-postoacorreratrásdasondasemqualquercantodomundo,

mas, com Otávio Pacheco, alugou uma casa em

Saqua-rema,ondetiveramumaexperiênciadevidacomunitária. Pacheco,comPauloProenc¸aeZecaProenc¸a,crioutambém, porlá,umafábricadeparafina.

SituadonaRegiãodosLagosdoEstadodoRiodeJaneiro, o balneáriorecebeuasprimeirasvisitasdepraticantesda modalidade por volta de meados dos anos 1960, quando

ainda era um pequeno povoado. Na década de 1970, se

firmaria comoumlocal-referência dosurfe, inclusivepara frequentadoresdopíerdeIpanema,queparalámigravam, por algumas temporadas, para aproveitar o que era con-siderada uma das melhores ondas do país. Além disso, a cidade permitia vivenciar umaexperiência paradisíaca de liberdade,longedocontroleedaagitac¸ãodametrópole.

Saquaremasetornariaaindamaisprocuradaapartirde 1973,quandoopíerfoidesmontadoemfunc¸ãoda conclu-são das obras do emissário. Na verdade, com o decorrer do tempo foi se tornando comum entre os surfistas um hábito quetambémosaproximava dasideias contracultu-rais:‘‘pegaraestrada’’.

Nômades

Se ohábito de viajarem busca deboas ondasteveinício nos anos 1960,na década seguinteele seexponenciou: o universo da Zona Sul carioca se tornou pequeno para os anseios de alguns. Mais ainda, não seria mais suficiente somentefazerviagensesporádicas:osatisfatórioeraviver naestrada.

CarlosEduardoSoares,conhecidocomoPenho, frequen-tadordoArpoadordesdeosanosiniciaisdadécadade1960, écomumenteconsideradoumdosprimeirossurfistasdoRio deJaneiroaestabelecerumarelac¸ãodededicac¸ãototalà modalidade.Umdos íconesdasuaépoca,tornou-se reno-mado,sobretudo,pelasuatrajetóriadeaventureiro.

Entreoscariocas,foiumdospioneirosasurfarnoHavaí,

chegou lá em 1968, após umano e meiode viagem, um

percursofeitodebarco,tremeônibus.Parouemvários luga-res,conheceupessoaseprincipalmentesurfou:noPeru,em algunspaísesdaAméricaCentralenaCalifórnia,atéchegar

16 DepoimentodeOtávioPachecoconcedidoàrevistaInsideNow,

RiodeJaneiro,n◦.126,2001,p.27. 17 RevistaGol,n.13,abrilde2003,p.31.

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Umnovobarato:surfeecontraculturanoRiodeJaneirodosanos1970 7 àMecadamodalidade,sonhodemuitos praticantes,local

míticodoesportenocenáriomundial.

Para se sustentar,uma vidamuito simples,dedicada a surfar o maior tempo possível, Penho trabalhava no que surgia,quando possívelprivilegiavaa atuac¸ãoem oficinas depranchas:‘‘Foiumaépocademuitasexperiências.(...). A comunidade do surfe internacional vivia sob um clima de cooperativismo incrível. Todos trocavam ideias, uns ajudavam os outros. Por isso consegui ficar mais de dois anosforadoBrasil’’(apudGutemberg,1989,p.42).

Esse tiposocialjáfora categorizadoe tiveraaimagem difundidaporEndless summer,quesetornouumdosmais conhecidos e celebrados filmes dedicados à modalidade. Lanc¸adoem1966,dirigidoporBruceBrown,narraahistória dedois amigos que partempara umaviagempelo mundo embuscadeondasperfeitas,relataoprazerdesededicar integralmenteaosurfe.

Tito Rosemberg foi um dos surfistas que se deixaram incentivarporessasideias.Depoisdeter,desdeainfância, estabelecidoumaforterelac¸ãocomapraia,logose envol-veucomamodalidade.Em1967,comec¸ousuajornadaatrás deondas,viajouparaoPerueoMéxico.Jamaisabandonou apaixãopelosurfe,pelaviagem,pelaaventura.Paraele:

Osurfemecolocounacontraculturacarioca,evitouque eumetornasse umvazio, comoaconteceua muitosda minha gerac¸ão, que ficaram só nas boates e na Bolsa de Valores. Foi por causado surfe que comecei a via-jareacabeihojeconhecendo80países,sendojornalista e umnômadeplanetário.O surfe me ensinouos bene-fíciosdasimplicidadevoluntária,quandoabdicamos de bensmateriais parapodertermaistempoparacurtira vidamodestamasmuitomaisprazerosa.18

OmesmoocorreucomOtávioPacheco:‘‘Naquelaépoca, a gentetinha pouca informac¸ão. Nós já líamosa Surfer19

e tínhamos assistido ao filme Endless summer, que havia sidoexibidonoBrasilnofimdosanos60,naembaixadados EstadosUnidos.Ofilmemudouaminhavida.Eledespertou emmimotesãodeviajar’’.20Quantomaisaventura,melhor:

Euviajeicommeusamigosdurantequasedoisanospra Califórnia de Kombi. Atravessamos os Andes, pegamos ondasnoChileeficamosumtempolá.Nomeiodenossa estadahouveogolpedeSalvadorAllende.NoPeru tam-bémdesbravamosaltospicos,surfeamosondasgrandes. FomosparaCuzco,MachuPichueacabamosvoltandopela florestaamazônica,colocandoaKombiemtrensebalsas, nemexistiaaTransamazônica.Viajarepegarondaeraa nossareligião.21

Oquemoviamuitosdessessurfistaseraaideiadequea ligac¸ãoíntimacomomareraumapossibilidadedeabertura paraumanovaconsciência.Aprópriadinâmicada modali-dadefavoreceriaatitudescontemplativas:umserhumano, sozinho,em profundo contatocom anatureza,tendoque interpretaros seussinaispara pegara melhor onda.Para

18 AlmaSurfe,SãoPaulo,ano1,n.1,nov.2000,p.20.

19 Revistaamericana,consideradaumadasbíbliasdamodalidade. 20 InsideNow,RiodeJaneiro,n.126,2001,p.27.

21 DepoimentodeOtávioPachecoconcedido àrevistaHardcore,

SãoPaulo,n◦.29,jan.1992,p.42.

algunseraquaseumapráticademeditac¸ão,ummomento deprofundasintoniaentreoindivíduoeomeioambiente.

Som,

sol

e

surfe:

a

caminho

do

mercado

Nadécadade1970,foramfeitasasprimeirascompetic¸ões decaráternacional,osFestivaisBrasileirosdeSurfe.Quatro desseseventosforampromovidosemSaquarema,entre1975 e1978.Nessas ocasiões,acidadeerainvadidaporjovens, quearmavam suasbarracasnapraiadeItaúna,opointdo esporte.Em1976,oprodutormusicalNelsonMottaresolveu organizar,em conjuntocomocampeonato,umfestivalde música.OeventofoibatizadocomoSom,SoleSurfe.

Oprodutorcomumenteafirmaqueoresultadonão cor-respondeu às suas expectativas, tanto do ponto de vista artísticoquantofinanceiro.Acidaderecebeuumamultidão depessoas,22masmuitossequertinhamdinheiroparapagar

aentrada(quenofimacabousendoliberada).Alémdisso, umafortechuvalevou aocancelamentodaprimeiranoite (Motta,2000).

Na verdade, ainda era bem recente a experiência de organizac¸ãodefestivaismusicaisnoBrasil.Opróprio Nél-sonMotta,noanoanterior,promoveraoprimeiroHollywood Rock,no estádiodo Botafogo, no Rio deJaneiro.23 Antes

disso,umdos pioneiroseventosdessanaturezafora feito, em1972,nacidadedeDuquedeCaxias.FoichamadodeO DiadaCriac¸ão.24Emfunc¸ãodoregimedeexcec¸ãoemvigor,

nãoerafácil organizaressetipo deatividade,ainda mais que, em maiorou menor grau, dialogavam com asideias contraculturais,oqueostornava‘‘suspeitos’’.25

SeparaoprodutorSom,SoleSurfefoiumfracasso,para muitosfoiummomentoinesquecível.FredD’Oreyrecorda comsaudadesoqueconsideratersidoumgrandeevento: ‘‘Eramuitogaroto,masparaagentefuncionava comoum Woodstock.TinhaRaulSeixasensandecidoe FlavioSpiritu Santotocandodeceroulaparaquase20milpessoas extasi-adas’’.26

Chacal,quefora convidadoparafazeruma‘‘cobertura poética’’doevento,relembra:

Bemlembro dochoque quetivecomaquelecenáriode praiasselvagens,altasondas,pessoaslindaseascaixas desomvomitandorockpelasareiasdeItaúna,apraiado surfeemSaquarema.Ànoitenoestádiolocal,showscom Rita Lee, Raul Seixas,Serguei e outroscraques. Fiquei foradesi(sic).Queriainvadiropalco,falaralgumpoema. Mascomo?Estavainvariavelmentechapadomesmopara

22Segundoalgunsperiódicosdaépoca,comoarevistaMúsica(de

julhode1976),Saquaremateriarecebidocercade40.000pessoas.

23Sobreessefestival,umregistro,o filmeRitmoalucinante.

Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=I2zNlH-XM34. Acessoem:14jan.2013.

24Paramaisinformac¸õessobreesseevento,verCardosoeTorres

(2010).

25Merecereferência,pelaligac¸ãoentremúsicaeamodalidade,

o festivalRock, Surfee Brotos, promovido em 1976, em Floria-nópolis.Paraumaabordagemsobreacontraculturanessacidade eo surfe nesse cenário,ver o documentário Ilha 70,disponível em:http://www.youtube.com/watch?v=nrKEddbKUpE.Acessoem: 14jan.2013.

(7)

8 AlvesVZ,MeloVA. fazermeus‘‘instantpoems’’.(...).Nãoseicomo

sobre-viviàquelatsunami(Chacal,2010,p.56).

OpróprioNélsonMottadácontadecomo,adespeitodo fracassofinanceiro,oeventofoiumafesta:

Apesar de tudo, comemoramos como uma vitória, o

público tinhase divertido, osartistas estavam felizes, todomundofoipago.Sozinhonabeiradalagoade Saqua-rema, ouvindo ao longe a gritaria das comemorac¸ões, tomeiumácido e deixeipara o dia seguinteascontas (Motta,2000,p.260).27

Esses festivais, curiosamente, geraram uma situac¸ão ambígua.Deumlado,ajudaramaatrairmaisinteressadosno descoladoestilodevidadossurfistas.Deoutro,chamaram aatenc¸ãoparaopotencialcomercialdarebeldia:

Foi naquela época que aconteceu a grande explosão dosurfe. Comec¸ava-se adescobrir o Havaí. Ao mesmo tempo,agenteandavacomatores,músicosepertencia aumacomunidadequepassavaasermuitointeressante. Os jornalistas queriam saber de tudo e o que menos importavaeraoesporte.28

O Jornal do Brasil e O Globo, alémde fazer a cober-turadascompetic¸ões,passaramapatrocinaralgunssufistas. Aestruturadoscampeonatosseaperfeic¸oouporcausados apoios.Esseprocessodeinstitucionalizac¸ãonãopareceter sidoexclusivodosurfe.VejamosoposicionamentodeMaciel (1987,p.46):

Osanos 70foramosanosdosmestres, istoédos insti-tucionalizadores.Asconquistas dos 60sãooficializadas e viram moda, abenc¸oadas pelo sistema. Todo mundo se droga; todo mundo é místico; o mundo aparente-mentemudouearevoluc¸ãovenceu,istoéacabou.Essa aceitac¸ãoenganosa permitiuadiluic¸ão,foi o golpede mestrenosistemalibertário.Osucessodamanobrafoi asseguradopelaseduc¸ãodoegodasmassas.

Aofalardadecadênciadaideiadecontracultura,Maciel usao rock como exemplo mais emblemáticode absorc¸ão mercadológica.Aquestãoquecolocaéadanormatizac¸ão doprocessodecriac¸ãodoartista.Comamodalidadeparece ter se dado algo semelhante. O esporte, que passara a serconcebidocomoumaformadeinterac¸ãoentrehomem e natureza, encarado como uma estratégia de busca de espiritualidadeedevidaalternativa,foitornando-semais competitivo,maisestruturadoemaiscomercial.Acultura dosurfe, sem abandonar esse discurso,virou um bemde consumo.29

27 Sobreofestival,foiplanejadoumfilme,quenãochegouaser

finalizado(háemcursoumprojetoderecuperá-lo).Algumascenas foraminseridasnorecém-lanc¸adoRaul---Oinício,ofimeomeio,

deWalterCarvalho.HáalgumasimagensdocampeonatoemOndas dosurfe(LívioBruniJúnior,1978).

28 Depoimentode RicardoBocão parao JornaldoBrasil,27de

outubrode2002,p.14.

29 Nãovamosnosdebruc¸armaisprofundamentesobreessetema

nesseartigo.Paraumaabordageminternacionaldarelac¸ãoentre surfeemercado,verBooth(2001).Paraocasonacional,verFortes (2011).

Considerac

¸ões

finais

‘‘The dream isover’’: umafrasedamúsicaGod,deJohn Lennon, que ganhou repercussão com a entrevista que o compositor concedeu, em 1970, a Jann Wenner, repórter da revista Rolling Stone, em muitas interpretac¸ões assu-miu o caráter de decreto final e por vezes até mesmo de constatac¸ão do fracasso do movimento da contracul-tura (Feijó, 2009).30 Se tivermos em conta o processo de

mercadorizac¸ão,denormatizac¸ãodarebeldia,pode-se per-guntar sobre o grau de relac¸ão do surfe com as ideias contraculturais.

Tendoemcontaaquestãodamobilizac¸ãodememória, devemosobservaraspeculiaridadesdospercursosdenossos informantes.Podeparecercontraditórioqueodiscursode negac¸ãodosvaloresmaterialistasdasociedadedeconsumo tenha vindodejovensabastadosdaZonaSulcarioca,que sedeixaraminfluenciarpelaculturaamericana.Alémdisso, devemoslembrarquealgunsdelesetornaramempresários desucessodaindústriagestadaaoredordosurfe:donosde lojas/marcasderoupaseprodutos,jornalistaseprodutores deprogramas.

Oenvolvimentocomomercadodosurfeéum desdobra-mentodeumaestratégiaquealgunspraticantesadotaram nosanos1970.Aprópriaconformac¸ãodocampoosconduziu amodificarsuaformadeatuac¸ão.Seantesaideiaera‘‘cair foradosistema’’,apartirdedeterminadomomentopassou aser‘‘negociarcomosistema’’,comointuitodemantero maispossívelalgodosantigosprincípios.Seoidealdevida libertárioque experimentaramnãotinhacomo serlevado adiante,eraprecisobuscarumaformadepreservaralguma coisadoqueidealizaram.

Naverdade,ébempossívelque,nosanos1970,os sur-fistassequerassumissemdeformatãocontundente,como o fariam apartir dosanos 1990,a relac¸ão damodalidade com as ideias contraculturais. Além disso, nem todos se envolviam damesma formacom a prática.Isso,contudo, não invalida a percepc¸ão de que houve algum grau de aproximac¸ão.

Até mesmo em func¸ão da heterogeneidade dos

‘‘movimentos’’ contraculturais, cremos que o mais rele-vante não é perspectivar os surfistas como ‘‘militantes’’ dessasideias,massimperceberoquantoalgunspraticantes

delas se aproximaram, durante um certo período, e o

quantoelasforammobilizadas,emalgumamedida. Háquesedestacarduasdimensões:a)houveumcaminho demão dupla entreosurfe ecertas noc¸õesda contracul-tura;b)essasideiasforjaramparaamodalidadeumdiscurso quemarcariadefinitivamenteasuatrajetória, mesmoque apreendidaemestratégiascomerciais.

Enfim, na transic¸ão das décadas de 1950 para 1960, o surfeeraencaradocomoumadiversão,umaformadelazer praticadaporpoucosrapazesquegostavamdomarecomele estabeleciamumaíntimarelac¸ão.Jánatransic¸ãodas déca-dasde1960e1970,maisnotadamentenosprimeirosanos dessaúltima,configurou-seumnovorelacionamentocoma modalidade, que, frutoda proximidadecom certas ideias

30 Sobrepermanênciaserupturasnasideiascontraculturais,vero

(8)

Umnovobarato:surfeecontraculturanoRiodeJaneirodosanos1970 9 contraculturais,passouaserconcebidacomoumafilosofia

devida.Osanos1980trariamnovasconformac¸ões.Masisso éoutrahistória.

Conflitos

de

interesse

Osautoresdeclaramnãohaverconflitosdeinteresse.

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