Graduação em Artes Visuais
Winnie Liliane Defino Gomes
Personas:
Dimensões ficcionais do retrato
Winnie Liliane Defino Gomes
Personas:
Dimensões ficcionais do retrato
Monografia apresentada ao curso de Licenciatura e Bacharelado em Artes Visuais da Universidade Federal de Uberlândia, conforme exigência para a conclusão do curso.
Orientação: Prof. Drª Nikoleta Tzvetanova Kerinska
Winnie Liliane Defino Gomes
Personas:
Dimensões ficcionais do retrato
Monografia apresentada ao curso de Licenciatura e Bacharelado em Artes Visuais da Universidade Federal de Uberlândia, conforme exigência para a conclusão do curso.
Uberlândia, 03 de Julho de 2018.
Banca examinadora:
_________________________________________________________
Prof. Drª Nikoleta Tzvetanova Kerinska
_________________________________________________________
Prof.Dr. Douglas de Paula
_________________________________________________________
Agradecimentos
A Nikoleta Kerinska, orientadora, pelo excelente trabalho, orientações e paciência ao longo do desenvolvimento desta monografia.
A minha mãe e madrinha pelas vibrações positivas vindas de longe e por terem fornecido todas as bases educacionais que me permitiram chegar até aqui.
Ao Joel, meu querido irmão, pelas sugestões e diálogos nos momentos de angústia.
Aos modelos, Laís, Bruno e Rodrigo, pela contribuição para a execução da parte prática do projeto.
RESUMO
O presente trabalho relata os estudos correlatos à minha produção artística, que teve como resultado uma série de retratos, denominada Personas: dimensões ficcionais do retrato. Trata-se de seis retratos de herois da literatura de ficção científica, criados por meio da fotografia e das ferramentas computacionais. A monografia apresenta os questionamentos teóricos referentes a esse projeto artístico e aborda busca o retrato mais profundamente o retrato a partir de sua ambivalência entre verossimilhança e possíveis desdobramentos ficcionais. Ao longo da pesquisa são discutidos conceitos como identidade e ficção, ao mesmo tempo em que se tenta compreender suas relações com o retrato.
ABSTRACT
The present work brings the studies related to my artistic project, which resulted in a series of portraits, entitled Personas:fictional dimensions of portrait. This project is a serie about six portraits, each one depicting a character from the science fiction literature, conceived by photography and computing tools. The monograph presents the theorical questions about this artistic work and tries to comprehend deeply the portrait by its ambivalence between verisimilitude and possible fictional extensions. Throughout the research the topics of identity and fictions are discussed, trying to understand their relations with the portrait.
LISTA DE FIGURAS
Figura 1: O alter ego de Duchamp, Rrose Selavy ... 18
Figura 2: Claude Cahum como seu alter ego masculino ... 19
Figura 3: Claude Cahum como Elle, em Barba Azul ... 19
Figura 4: Cindy Sherman, Filme sem título#13 ... 20
Figura 5: Cindy Sherman, Sem título#466 ... 20
Figura 6: Busto de Nefertiti ... 23
Figura 7: Retrato de Fayoum pintado sobre madeira ... 23
Figura 8: Díscobolo, de Mírion ... 24
Figura 9: Busto de Sócrates ... 24
Figura 10: Estátua do imperador romano Augusto ... 25
Figura 11: Anônimo, O Rei João, o Bom ... 26
Figura 12: Giotto. Detalhe da obra O Último Julgamento ... 27
Figura 13: Leonardo da Vinci, Mona Lisa ... 29
Figura 14: Hans Holbein, Georg Gisze ... 29
Figura 15: Thomas Gainsborough, O menino azul ... 30
Figura 16: Diego Velásquez, Las Meninas ... 31
Figura 17: Alberto Giacometti, Lady Annette ... 33
Figura 18: Nancy Burson, o amadurecimento de Etan Patz ... 39
Figura 19: Nancy Burson, Beauty Composites ... 40
Figura 20: Nancy Burson, Big Brother ... 41
Figura 21: Daniel Lee, Manimals ... 42
Figura 22: Daniel Lee, Ano do Galo ... 43
Figura 23: Keith Cottingham, Twins ... 46
Figura 24: Keith Cottingham, Triplets ... 47
Figura 26: Parte da série desenvolvida na iniciação científica ... 50
Figura 27: Ensaio fotográfico, parte 1 ... 52
Figura 28: Ensaio fotográfico, parte 2 ... 52
Figura 29: Ensaio fotográfico, parte 3 ... 53
Figura 30: Ensaio fotográfico, parte 4 ... 53
Figura 31: Experimentações artísticas 1 ... 54
Figura 32: Experimentações artísticas 2 ... 55
Figura 33: Exposição do trabalho prático ... 56
Figura 34: Persona Case/Bruno ... 59
Figura 35: Persona Molly Millions/Laís ... 61
Figura 36: Persona Rei Toei/Laís ... 63
Figura 37: Persona Hiro Protagonist/Rodrigo ... 65
Figura 38: Persona Y.T/Winnie ... 67
Figura 39: Persona Sam Falacci/Winnie ... 69
Figura 40: Comparação do Frankesntein de Davis e do cinema ... 72
Figura 41: Comparação Katniss Everdeen ... 73
Figura 42: Projeto Personae, O Palhaço ... 75
SUMÁRIO
Introdução ... 10
1. A construção da identidade na pós-modernidade ... 12
1.1 Definindo o conceito de identidade ... 12
1.2 A identidade na contemporaneidade ... 13
1.3 A questão identitária no campo artístico ... 16
2. Retrato e ficção ... 21
2.1 Características do retrato ... 21
2.2 A ambivalência do gênero ... 22
2.3 Breve histórico do retrato ... 23
2.4 Dimensões ficcionais do retrato ... 34
2.5 O retrato ficcional na contemporaneidade ... 37
3. Persona, desenvolvimento e resultados do projeto prático ... 45
3.1 Motivações e Escolhas ... 45
3.2 Processo de Criação ... 49
3.3 Retrato de cada personagem ... 54
3.4 Retratos Literários ... 64
3.5 Entre alter egos ... 67
Considerações Finais ... 70
INTRODUÇÃO
A presente monografia traz os questionamentos teóricos referentes ao projeto
artístico desenvolvido como conclusão de curso de Artes Visuais. O projeto intitulado
Personas: dimensões ficcionais do retrato apresenta seis retratos de personagens da literatura de ficção científica. Estes retratos são inspirados nas
características dos heróis literários, e foram desenvolvidos a partir de fotografias
tratadas no programa Adobe Photoshop. Os modelos fotografados foram escolhidos
em função do perfil psicológico de cada personagem. Considero, portanto, estas
imagens como retratos de personagens de ficção, ou seja, como retratos ficcionais.
Apesar de ser uma imagem comum no nosso cotidiano, o retrato possui uma
aura peculiar, percorrendo distâncias no tempo e brincando com o imaginário do
espectador, induzindo-o a levantar questionamentos acerca de sua produção e
também sobre o indivíduo ali representado.
O gênero do retrato sempre esteve muito presente em minha vida, tendo
início na infância e servindo como um dos motores iniciais para o meu interesse
pelas artes. Mesmo dentro do curso e nas produções pessoais, sempre enfatizei o
retrato e a ficção. Muitos personagens desenvolvidos para trabalhos sempre tinham
como referência pessoas próximas ao meu convívio, senão quando me articulava
neles eu mesma. Este foi um fato norteador para a escolha da temática desta
monografia. Outro ponto importante a se acrescentar é o gênero de ficção científica
em que os personagens dos retratos realizados se baseiam, que é o cyberpunk,
sendo este amplamente estudado por mim ao longo de minha trajetória, tendo seu
inicio em minha inciação científica, no ano de 2014.
Utilizar o termo retrato e ficção na mesma sentença pode parecer
contraditório, visto que usualmente se concebe o retrato como a representação de
um determinado indivíduo. No entanto, a história mostra que o gênero possui esta
ambivalência, podendo configurar uma dimensão ficcional, seja por parte do intento
do próprio artista criador, ou por convenções da própria pessoa que encomenda o
Para melhor compreensão acerca dos pressupostos teóricos que são mais do
que necessários para o desenvolvimento do eixo prático, a monografia foi dividida
em três momentos:
No primeiro momento será discutido sobre o conceito de identidade, visto que
o retrato é fortemente ancorado à noção que se tem deste conceito, à identidade
individual e também no plano coletivo. Aqui é utilizado em especial Zigmunt Bauman
e Stuart Hall que pontuam a identidade dentro da contemporaneidade. Por fim, este
primeiro momento é finalizado analisando a relação da identidade com o campo
artístico, e porquê ela interessa tanto aos artistas, onde se chega a comentar do
retrato.
No segundo momento, as características do retrato são comentadas com
maior profundidade para, então, ser apresentado o seu breve percurso na história da
arte. Aqui são mostradas algumas obras e comentadas suas funcionalidades
principais dentro de cada período e sociedade. Neste segundo momento é
apresentada a relação do gênero com a ficção, trazendo os principais conceitos de
ficção. Como conclusão desta reflexão, trago três artistas contemporâneos que
tratam da temática do retrato ficcional: Nancy Burson, Daniel Lee e Keith
Cottingham.
O terceiro e último momento desta monografia é voltado para a apresentação
das imagens desenvolvidas, pontuando as principais questões acerca das
motivações artísticas, do processo de criação e suas etapas. Para finalizá-lo,
apresento mais dois artistas que foram fundamentais como referências para a minha
1. A construção da identidade na pós-modernidade 1.1 Definindo o conceito de identidade
Existem várias respostas que buscam explicar o conceito de identidade.
Retomando sua etimologia1, a filosofia a descreve como algo que é diferente dos
demais, porém idêntico a si mesmo. Em uma asserção mais digna ontologicamente,
ela representa a essência do ser, aquilo que permanece.
De acordo com Habermas: “a autoidentificação predicativa que efetua uma
pessoa é, em certa medida, condição para que essa pessoa possa ser identificada
genericamente e numericamente pelas demais.”2
Deste modo, são considerados os conjuntos de características e /ou
traços peculiares que determinam um sujeito ou uma comunidade específica. A
noção de identidade pode também estar veiculada a uma ideia que o sujeito tem de
si perante os demais, engendrando aqui uma problemática ligada à esfera
psicossocial. O processo de construção da identidade não ocorre de maneira
isolada, mas sim por meio da dialética estabelecida entre sujeito e sociedade, sendo
em boa parte mutável inconscientemente, originando esta identificação própria e
também para o mundo externo.
Analisando a condição contemporânea, o sociólogo Zigmunt Bauman afirmou: “A fragilidade e a condição eternamente provisória da identidade não podem mais ser ocultadas. O segredo foi revelado. Mas esse é um fato novo, muito recente.” (2005, p.22)
Bauman se destaca pela sua pesquisa e análise sobre a fragilidade das
coisas, sobretudo das relações humanas no auge da pós-modernidade, onde nada é
durável e sólido, mas sim efêmero e frágil. E tal fragilidade se encontra no modo de
compreender as questões ligadas às identidades individuais e coletivas.
1
ABBAGNANO, N. Dicionário de Filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 1998. Disponível em: < https://pt.scribd.com/doc/4776000/Dicionario-de-Filosofia-Nicola-Abbagnano>. Acesso em 17 de Junho de 2018.
2
No passado se acreditava que um indivíduo, já no momento do seu
nascimento, possuía sua identidade inteiramente formada e que esta permaneceria
a mesma por toda a sua vida. Entretanto, é inconcebível seguir esta linha de
pensamento atualmente, dada todas as transformações sofridas pela sociedade e
que se estendem desde o último século.
Desde a segunda metade do século XX, o mundo vem sofrendo com o
processo de globalização da era conhecida como modernidade. A
pós-modernidade, por sua vez, se caracteriza pelas inúmeras transformações de ordem
política, social, intelectual e também industrial, abrangendo as novas formas de
tecnologia e informação.
O período rompeu com normas e convenções consideradas no passado como
absolutas. Desta forma, o pensamento na pós-modernidade não é linear, mas sim
instável e não unificável, questionando regras, padrões e afetando também a
percepção que se tem em relação às identidades e o modo de se lidar com elas.
Nas pesquisas atuais dentro do circuito das ciências humanas (sociológicas,
antropológicas, filosóficas, etc.), a identidade se mostra como um conceito
complexo, uma vez que existem várias abordagens para caracterizá-la e defini-la.
1.2 A identidade na contemporaneidade
A leitura do livro de Stuart Hall, A Identidade Cultural na Pós-Modernidade,
introduz aspectos primordiais que tangem em torno da noção de identidade, suas
implicações e transformações, sobretudo dentro da chamada pós-modernidade.
“Para aqueles/as teóricos/as que acreditam que as identidades modernas estão entrando em colapso, o argumento se desenvolve da seguinte forma. Um tipo diferente de mudança estrutural está transformando as sociedades modernas no final do século XX. Isso está fragmentando as paisagens culturais de classe, gênero, sexualidade, etnia, raça e nacionalidade, que, no passado, nos tinham fornecido sólidas localizações como indivíduos sociais. Estas transformações estão também mudando nossas identidades pessoais, abalando a ideia que temos de nós próprios como sujeitos integrados.” (Hall, 2002, p.9)
A premissa básica de Hall (2002) é de que as questões ligadas à
pós-modernidade tem provocado um processo de deslocamento, descentralização ou
fragmentação das identidades (2002, p.8), sobretudo pelo advento do fenômeno de
p. 67), argumenta que o fenômeno da globalização nada mais é do que uma série de
processos que se expandem em uma escala global, atravessando fronteiras
nacionais, integrando e conectando comunidades e organizações em uma
combinação de espaço-tempo interconectado.
Para compreender melhor essas mudanças, Hall define três concepções
básicas de identidade, segundo a evolução histórica: o sujeito do Iluminismo, o
sujeito sociológico e o sujeito pós-moderno. (Ibidem, p.10-13)
O sujeito do Iluminismo3 estava baseado a uma noção de identidade fixa e
imutável. Parte-se aqui da ideia de um indivíduo unificado, dotado de capacidades
inteligíveis.
“O centro essencial do eu era a identidade de uma pessoa. Direi mais sobre isto em seguida, mas pode-se ver que essa era uma concepção muito “individualista” do sujeito e de sua identidade (na verdade, a identidade dele: já que o sujeito do Iluminismo era usualmente descrito como masculino).” (Hall, ibid., p.11)
Esta compreensão considera principalmente o sujeito masculino, cujo “centro”
é um núcleo interior, o qual emergia pela primeira vez no momento de seu
nascimento, permanecendo intacto ao longo de todo o seu desenvolvimento.
Por sua vez, o sujeito sociológico enfatiza aquele indivíduo inserido em um
universo de maior complexidade, onde este não pode ser mais compreendido como
ser exclusivamente autônomo. Ocorre aqui uma interrelação entre o indivíduo e
outros agentes externos, que atuam como mediadores dos elementos simbólicos
presentes no mundo, ou seja, produtos da cultura. Aqui ocorre o sentimento de
pertencimento a uma determinada comunidade ou local, uma vez que se dá a projeção do „eu‟ nestas identidades culturais.
Por fim, temos a problemática do sujeito pós-moderno. Este se apresenta
como fragmentado, não mais um ser completo e imutável. Há uma espécie de
colapso nas estruturas antes consideradas rígidas, o que modifica o panorama e os
próprios sujeitos. Portanto, não se pode mais falar em um sujeito centrado, unificado
3
e fixo como seria outrora. O próprio mecanismo de identificação por meio do qual
projetamos nossas identidades culturais tornou-se provisório, variável e
problemático.
“Dentro de nós há identidades contraditórias, empurrando em diferentes direções, de tal modo que nossas identificações estão sendo continuamente deslocadas. Se sentimos que temos uma identidade unificada desde o nascimento até a morte é apenas porque construímos uma cômoda estória sobre nós mesmos ou uma confortadora “narrativa do eu”. A identidade plenamente unificada, completa, segura e coerente é uma fantasia.” (Hall, 2002, p.13)
Desta forma, conclui-se que este sujeito não apresenta mais uma, mas várias
identidades alternativas, nas mais diversas circunstâncias do cotidiano. A relação
entre estas identidades pode ser a mais contraditória e, menos duradoura ainda, é
seu tempo de permanência, sendo, portanto, extremamente fluido e efêmero.
A fluidez da pós-modernidade vai inaugurar o que Bauman define como
modernidade líquida, uma vez que nada é concreto nesta nova era e está suscetível
a possuir uma natureza provisória.
“São esses padrões, códigos e regras a que podíamos nos conformar, que podíamos selecionar como pontos estáveis de orientação e pelos quais podíamos nos deixar depois guiar, que estão cada vez mais em falta. Isso não quer dizer que nossos contemporâneos sejam livres para construir seu modo de vida a partir do zero e segundo sua vontade, ou que não sejam mais dependentes da sociedade para obter as plantas e os materiais de construção. Mas quer dizer que estamos passando de uma era de 'grupos de referência' predeterminados a uma outra de 'comparação universal', em que o destino dos trabalhos de autoconstrução individual (…) não está dado de antemão, e tende a sofrer numerosa e profundas mudanças antes que esses trabalhos alcancem seu único fim genuíno: o fim da vida do indivíduo.” (BAUMAN, 2001, p.14)
Apesar das dúvidas, incertezas e apreensão que este panorama provoca, há
um leque aberto para a exploração dessas identidades multifacetadas. Neste
âmbito, ele é inspirador para a arte e a cultura buscarem por formas alternativas de
explorar e trabalhar as relações entre a individualidade, papéis sociais e culturais
construídos e estereótipos de gênero.
1.3 A questão identitária no campo artístico
A identidade enquanto conceito aponta um olhar do individuo sobre ele
mesmo, mas também de um grupo social ou mesmo da espécie. Isto implica uma
desse conceito e suas diversas definições entre os teóricos. Em suma, a identidade
evoca um olhar profundo sobre sujeito e, deste modo, torna-se um problema de
interesse para a exploração dentro do terreno artístico.
A arte é um campo amplo de conhecimento do ser humano, que pode buscar
inspiração em outras áreas. Cabe ressaltar que as artes visuais proporcionam o
diálogo com os dilemas específicos de cada época. A relação entre arte e identidade
percorre a história da humanidade, uma vez que ela também aborda e traz à tona
questões referentes à percepção, não apenas do entorno como também do próprio
indivíduo.
Neste eixo relacional entre arte e identidade, o gênero que melhor o
investigou e ainda a investiga é o retrato. Sendo um dos gêneros mais antigos
dentro de toda a história da arte, o retrato serviu tanto a funções de ordem
pragmática, visando o sustento do artista, como campo para estudos, pesquisa e
experimentações poéticas. A prática dessa linguagem é uma resposta natural da
tendência de refletir sobre alguém e as relações desta pessoa enquanto ser
pertencente a um corpo social. Assim, é interessante a tentativa de captar a
essência que alguém emana e como essa é percebida pelos outros, conforme
discorre Richard Brilliant (1991, p.14).
Bauman e Hall pontuaram as peculiaridades e delicadezas inerentes ao
conceito de identidade, bem como as dificuldades na contemporaneidade para a
construção de uma, visto as intempéries inatas ao contexto pós-moderno e
capitalista.
Não foi apenas a sociedade que sentiu esses abalos estruturais, mas a
própria produção artística se alimentou do conjunto de todas essas transformações.
Com base nesta nova perspectiva histórico-social e as consequentes influências
dentro da produção nas artes visuais, da Rolst se pronuncia:
Shearer West (2005, p.205) aponta que uma preocupação latente a partir da
segunda metade do século XX no que concerne à expressão artística, foi o
despertar do interesse pelo mecanismo do role-playing4 social e mascaramento. O
role-playing originalmente parte de uma atividade lúdica. Ele é um jogo de mesa,
onde seus participantes criam e encarnam cada um, determinados personagens,
assumindo temporariamente suas personalidades, construindo em conjunto uma
narrativa imaginária. A experiência com este tipo de jogo pode variar de indivíduo
para indivíduo, a depender do envolvimento com o personagem criado em questão e
também do grau de timidez do jogador.
É possível notar a referência do mecanismo de role-playing mencionado por
West no trabalho de artistas como Marcel Duchamp, Cindy Sheman e Claude
Cahun. Os respectivos trabalhos também ajudam a compreender esta dinâmica das
identidades flutuantes da qual tanto se abordou.
A partir de 1920, Marcel Duchamp, em parceria com o fotógrafo, Man Ray,
cria um alter ego feminino, conhecido pelo nome de Rrose Selavy. Nesta parceria,
os dois artistas realizaram uma séries de retratos desta mulher inventada. O próprio nome atribuído a ela foi um trocadilho da frase, originalmente francesa, “Eros, c´est la vie” (podendo ser traduzida como “Amor, esta é a vida), com a qual Duchamp
assinou alguns de seus trabalho.
Neste conjunto de retratos, visualizamos Marcel Duchamp trajando roupas
femininas consideradas na época como dentro do padrão de moda vigente, além
ainda do uso de maquiagem para performar esta identidade feminina. A criação de
Rrose é parte da marcante característica de Duchamp de chocar e se utilizar da
ironia na execução de seus trabalhos, questionando a natureza da própria obra de
arte e mesmo sobre o papel do artista em si mesmo.
4
O role-playing (RPG) pode ser traduzido como “jogo de interpretação de papéis”. Ele se baseia em um brincadeira que consiste na construção de uma história, como uma espécie de teatro de improviso. Um dos
membros assume o papel de “mestre”, devendo conduzir a narrativa, enquanto os outros jogadores assumem
De maneira similar, há Lucy Schwoob, ou Claude Cahun, o pseudônimo que
resolveu adotar para nomear seu alter ego masculino. Sendo uma das primeiras
artistas declaradamente gender-fluid5, ela cria e transita entre vários personagens
que rompem com a padronização convencional entre o que é considerado masculino
e feminino.
Seus personagens provocam o estranhamento, uma vez que evidenciam o
caráter duplo e o viés subversivo da quebra dos elementos impostos de gênero
rigorosos da época. Cahum ora protagoniza figuras femininas, aclarando os traços
que caracterizam a feminilidade. Em outras, o perfil escolhido beira a androginia,
ressaltando as atitudes, peças e comportamentos associados com o masculino. Isso
fica claro, por exemplo, na figura 2, na qual Cahum traja roupas tipicamente
masculinas, assim como adota uma postura muito associada ao homem (no caso, a
mão no bolso). Em contrapartida, há uma quebra, sendo perceptível a presença
daquilo que costuma se atribuir ao sexo feminino, como o desenho do próprio rosto
5 Indivíduos que se definem como genderfluid fogem do padrão binário, não possuindo um gênero fixo. Estas
pessoas costumam oscilar entre os gêneros de tempos em tempos, ora se identificando com o masculino, ora com o feminino ou mesmo se declarando como neutro.
Fonte: Imagem da Internet.
da artista, que ainda lhe confere a delicadeza e suavidade, além de sua outra mão
posicionada na cintura (por sua vez, um gesto considerado comum à mulher). A
própria escolha pelo nome Cahun tem como prerrogativa o fato de ser um nome
passível de ser designado a ambos os sexos.
Cindy Sherman, por sua vez, realiza uma série de imagens a partir da década
de 70, na qual ela fotografa a si mesma encarnando personagens do cinema ou
ainda realizando a releitura de pinturas pertencentes a mestres do passado,
representando madonas. Protagonizando estas personagens cinematográficas e
históricas, Sherman evoca a percepção usualmente projetada acerca da identidade
feminina dentro de uma sociedade patriarcal.
Fonte:
http://www.anothermag.com/art- photography/gallery/7259/claude-cahun/0
Figura 2: Claude Cahum como seu alter ego masculino.
Figura 3: Claude Cahum como Elle, em Barba Azul, 1929.
Neste sentido, cada retrato produzido apresenta um estereótipo concebido à
mulher, em especial diante do olhar masculino: seja como aquela figura que esbanja
sensualidade, despertando os desejos mais ardentes; ou ainda como a típica figura
frágil, que depende do herói masculino, ingênua ou mesmo estúpida.
Os trabalhos aqui apresentados servem de base para compreender esse
trânsito contemporâneo das identidades multifacetadas, que será primordial na
execução da dimensão prática do presente trabalho desenvolvido. O retrato será
abordado com maior detalhamento sobre suas potencialidades que continuam
instigando artistas na pesquisa, traçando indagações e reflexões sobre todas as
questões discutidas até o presente momento.
Fonte:
https://www.moma.org/interactives/ex hibitions/2012/cindysherman/gallery/1/ #/3/untitled-466-2008
Fonte:
https://www.moma.org/interactives/exhibitions /2012/cindysherman/gallery/2/#/1/untitled-film-still-13-1978
Figura 4: Cindy Sherman. Filme sem título #13, 1978.
2. Retrato e Ficção
2.1 Características do Retrato
De maneira geral, entendemos o retrato como a capacidade de representar
uma determinada pessoa, ou um grupo de pessoas, mantendo o enfoque no rosto.
Há uma grande liberdade em sua produção, sendo possível realizá-lo através das
técnicas tradicionais, como o desenho, a pintura, a escultura, a gravura e
modelagem, ou dos novos artifícios da fotografia e das novas tecnologias digitais,
como as imagens de síntese (modelagem tridimensional) e bidimensionais (bitmaps
e vetoriais). O retrato é um gênero artístico complexo e rico, se estendendo tanto em
suas possibilidades expressivas quanto em sua própria dimensão histórica.
Shearer West (2004, p.12-13) estabelece três categorias fundamentais que
tornam o gênero do retrato como um objeto de estudo propício dotado de
singularidades e possibilidades:
Segundo West, primeiramente podemos considerar a essência de sua
produção. Majoritariamente, a realização de um retrato exigiu e exige a presença do
outro, ou ao menos uma imagem de referência daquele que se pretende retratar.
Historicamente falando, esse gênero traz consigo a exigência da relação entre o
artista e o modelo de referência.
O segundo ponto levantado pela autora é a característica da semelhança
pressuposta pelos objetivos da retratação. Durante a maior parte de sua história, por
convenção o retrato esteve fortemente associado à ideia de mímese, almejando ser
uma representação fidedigna da pessoa a quem esse se destinava. No entanto, não
se deve limitar a apenas esse padrão estético, como veremos durante o avanço no
percurso histórico. Essa representação é passível de referenciar outros aspectos do
seu sujeito, que não apenas, necessariamente, as características físicas. Muitos
retratistas enfatizam a evocação de características da personalidade, ou uma visão
muito particular e intimista do retratado.
Por fim, na terceira categoria a autora pontua a abrangência dos meios e
2.2 A ambivalência do gênero
A representação naturalística e fiel em uma obra de arte depende dos
padrões visuais vigentes. Cabe lembrar também que o olhar de cada sujeito sobre
um determinado objeto é singular e diferenciado, mesmo quando se propõe um
objetivo estético pelo realista. Essa afirmação se torna mais verdadeira quando se
analisam, por exemplo, as representações de uma mesma pessoa propostas por
artistas diferentes, ou encomendas direcionadas a figuras pertencentes a uma alta
hierarquia.
Sendo assim, apesar dessa busca pela semelhança, o retrato não
desconsidera a visão pessoal e íntima do artista. Podemos perceber essa dualidade
na consideração de Panofsky:
“Um retrato propõe, por definição, dois fundamentos...O primeiro é trazer aquilo que se encontra dentro do sujeito retratado que seja único e se diferencie do resto da humanidade e, até mesmo do próprio sujeito quando retratado em um momento único ou mesmo em outro tipo de situação; isto seria o que torna um retrato diferente de uma figura ideal ou um tipo. Por outro lado, o retrato também ambiciona trazer à tona algum aspecto que o sujeito tenha em comum com o restante da humanidade e aquilo que permanece inalterado nele independente do local e tempo; sendo este o aspecto que distingue o retrato de uma figura qualquer presente em outro gênero artístico ou narrativo.” (PANOFSKY apud WEST, 2004, p.24) – Tradução minha.6
A prática do retrato pode servir como válvula motora para a imaginação,
demonstrar a percepção pessoal acerca dos papéis sociais desempenhados pelo
modelo ou ainda abrindo brechas para que o artista se atenha a determinadas
qualidades e particularidades da essência do indivíduo, de sua identidade e de sua
personalidade. Por outro lado, o retrato pode exprimir consigo também convenções
e maneirismo de uma determinada época, seja no quesito artístico ou mesmo em
relação a padrões de comportamentos sociais.
6
2.3 Breve histórico do retrato
As origens exatas da prática do retrato são imprecisas, porém esse tipo de
produção é uma das mais antigas da humanidade. Sua história no Ocidente, já
constava em civilizações antigas, como no Egito (3200 a.C – 30 a.C). Neste
contexto, a função primordial do retrato estava na exaltação das divindades,
homenagens e presentes para as altas hierarquias, como a família do faraó, dos
governantes, etc. Sobretudo no Egito, convencionou-se a prática do retrato, através
das máscaras mortuárias, nas cerimônias e nos enterros. Predominavam também,
além das esculturas e bustos, a realização dos retratos através de afrescos e
murais.
Na Antiguidade Clássica, a elaboração realística das obras será tomada com
mais atenção e aperfeiçoada. Isso se torna evidente ao contemplar o requinte e a
meticulosidade com cada pormenor do trabalho. Os gregos foram o povo que mais
valorizou a centralidade do ser humano no universo e a busca do conhecimento
através da racionalidade do pensamento.
Figura 6: Busto de Nefertiti.
Fonte:
http://arqueologiaegipcia.com.br/20 12/12/07/alguns-detalhes-do-busto-da-rainha-nefertiti/
Fonte:
https://br.pinterest.com/pin/558 72851598211943/
Os retratos gregos foram especialmente produzidos através da escultura de
corpo inteiro e bustos, representando figuras emblemáticas como intelectuais da
época, atletas e também políticos. Neste período desenvolveu-se o requinte máximo
com relação ao tratamento, proporção e harmonia das formas e a composição. Mais
do que alcançar o realismo acentuado e domínio da anatomia humana, as obras
produzidas deveriam apresentar o belo em si mesmas.
Apesar do domínio técnico atingido, a representação das figuras nos retratos
gregos viria a ser idealizada, guiada pelo padrão de belo que deveria ser evocado.
Nitidamente as obras da antiguidade clássica possuem uma força e maravilham
qualquer indivíduo até os dias de hoje. Entretanto, pelo padrão idealizado na época,
não é garantia que o busto de Sócrates (Figura 9) correspondesse exatamente às
feições do filósofo como se faz apresentar. A preocupação em atribuir com mais
exatidão as particularidades do indivíduo representado torna-se marcante partir do
período helenístico. Os romanos continuaram com a perpetuação dos princípios
racionais e da estética do belo, porém suas figuras serão muito menos idealizadas
do que as esculturas e bustos gregos, atribuindo corretamente os detalhes da
fisionomia daqueles que eram retratados.
Fonte:
https://klimtlover.files.wordpress.com/2012 /09/diskobolos.jpg
Fonte:
https://pt.wikipedia.org/wiki/S%C3%B3cr ates#/media/File:Socrates_Louvre.jpg Figura 8: Discóbolo, de Míron. Figura 9: Busto de Sócrates, Museu do
Nas civilizações Greco-romanas as peças de arte estavam relacionadas à função
pública, adornando espaços, como elementos decorativos, mas também para serem
lembrados por sua monumentalidade, enfatizando os valores éticos e morais
vigentes.
Esse naturalismo que vigorava nas artes greco-romanas será gradualmente
interrompido após a Queda do Império Romano e invasões bárbaras. Os valores
culturais dos povos bárbaros eram radicalmente diferentes dos ideais predominantes
na cultura grega e romana. Pelo caráter nômade desses povos, as próprias
manifestações artísticas possuíam um viés completamente oposto ao que era
realizado na Grécia e na Roma, voltadas para cerimônias ritualísticas, homenagens
e sacrifícios ou mesmo para a produção de vestuários. Havia uma ausência quase
absoluta da figuração humana.
Na Idade Média, a Igreja foi se configurando enquanto instituição que exercia
domínio social e político, sendo a responsável por conduzir a educação dos filhos
das elites em seus monastérios e financiar outros serviços públicos, inclusive o
trabalho dos artistas e dos artesãos. Os quadros produzidos nesse período
Fonte:
voltavam-se ao serviço da catequização, uma vez que a grande maioria da
população não era alfabetizada. Deste modo, as obras retratam santos, alegorias,
passagens e cenas bíblicas.
Quanto ao retrato em si, ele voltaria gradualmente como produção artística
mais constante a partir de 1300, na Baixa Idade Média. Um dos primeiros quadros
que marca a característica do retorno à esta prática é o retrato do rei Dom João, da
França. Este retrato é considerado um dos mais importantes do período apesar de
haver incertezas quando à veracidade da fisionomia representada. (FIG. 11)
Figura 11: Anônimo, O Rei João, o Bom. 1360, Óleo sobre tela aplicada em madeira, Museu do Louvre.
Fonte:
Com Giotto, há uma pequena amostra antecipada das inovações que seriam
configuradas na maneira pictórica do Renascentismo, com a introdução dos
princípios da perspectiva e do movimento na figura. Além disso, é válido mencionar
sobre a inserção das pessoas que encomendavam o quadro dentro da obra,
costume que se estabeleceu como medida para a expiação de pecados como a
usura. Um exemplo desta prática está na figura 12, onde há a presença do
banqueiro Enrico degli Scrovegni doando uma catedral para um grupo de anjos,
ajoelhado e em tamanho menor, como símbolo de humildade.
A Renascença marca o florescimento para o gênero, com a introdução de
novas técnicas e procedimentos artísticos: a efetivação da perspectiva, o uso do
chiaroscuro e a invenção da tinta a óleo, que graças ao tempo de secagem mais
prolongado permitiu ao artista controle nos detalhes durante a execução. Apesar da
influência do catolicismo, surgem também as ideias humanistas. Este fenômeno
enriqueceu a produção artística, sendo um dos motivos pelos quais até hoje as
Figura 12: Giotto, Detalhe da obra O Último Julgamento.
Fonte:
produções deste período conseguem encantar tantos olhos e suscitar longas
contemplações por parte do espectador. Nomes como os de Leonardo da Vinci,
Rafael, Donatello e Michelângelo se tornaram famosos, sendo a eles atribuídas a
efígie de gênios do período, dadas suas realizações e técnicas terem atingido um
nível de tratamento pictórico elevado.
As imagens trabalhadas não mais enfatizavam apenas o aspecto religioso,
mas compreendiam o contexto político do sujeito retratado, normalmente um nobre,
um burguês ou algum membro que ocupava um cargo eclesiástico, como bispos e
papas. Com o sistema de mecenato, os artistas garantiam sua existência e
possibilidade de trabalhar as pinturas compreendiam temas mitológicos, proezas nas
batalhas ou o casamento de um nobre. Para demarcar o posto hierárquico, status e
cargo ocupado pelo modelo, eram comuns as utilizações de símbolos, adornos e
escolha de posturas que denotassem honra e respeito. Tais escolhas deveriam
evidenciar o caráter magnânimo daquele a quem a obra fosse destinada
Apontaremos como exemplo o retrato que Holbein concebeu do mercador
Georg Gisze (figura 14). O burguês retratado era considerado um dos mais
influentes na época, sentado à mesa em uma sala repleta de objetos simbólicos que
podem trazer pistas acerca de sua natureza e posição social: o caderno de notas
que toma à mão que pode remeter aos negócios realizados, o relógio que pode
referenciar a passagem do tempo, os objetos dispostos e organizados
modestamente indica que apesar de ocupar uma posição razoavelmente boa
Durante o Barroco e o Rococó a ênfase no destaque da posição social e
atributos da realeza foram acentuados, como se pode perceber nos retratos da
nobreza. Apesar disso, o gênero vai alcançando outros povos também, sendo
presentes os retratos de grupos. Avanços dos estudos de fisionomia e
expressividade obtidos durante a Renascença contribuíram para propiciar poses
com mais fluidez, dinamismo e emoção aos representados. Há, sobretudo, no
Barraco uma construção teatral das figuras, além da evocação do lado psicológico e
intimista.
Deste modo, do Renascimento até o século XIX o retrato é um dos gêneros
pictóricos mais apreciados, constituindo uma parte considerável dos experimentos
artísticos.
Figura 12: Leonardo da Vinci, Mona Lisa, 1503-05, Óleo sobre tela, Museu do Louvre.
Fonte:
https://upload.wikimedia.org/wikipe dia/commons/7/76/Leonardo_da_Vi nci_-_Mona_Lisa.jpg
Figura 14: Hans Holbein, Georg Gisze, 1532, Óleo sobre madeira de carvalho. Berlim.
Fonte:
Figura 15: Thomas Gainsborough, O Menino Azul, 1779, Óleo sobre telas, Galeria Henry E. Huntigton, California.
Fonte:
O advento da fotografia no século XIX teve um forte impacto para a produção
pictórica do retrato. Por tradição, a prática do retrato pressupunha a representação
fidedigna da pessoa de referência. Para isso, até então, eram necessário séries de
encontros, algumas vezes com longos períodos de duração, sendo um processo
trabalhoso e cansativo, envolvendo séries de esboços e estudos até a concretização
final do trabalho. Por um custo mais baixo, rapidez e semelhança máxima, a
fotografia aos poucos atenderia tais exigências.
No início do século XX, as vanguardas artísticas almejavam o rompimento
com as tradições clássicas, consideradas ultrapassadas. O fenômeno da fotografia é
um dos principais estímulos para que os artistas se libertassem da representação
Figura 16: Diego Velásquez, Las Meninas, 1656. Óleo sobre tela, Museu Nacional do Prado, Madrid.
Fonte:
academicista e explorassem outras possibilidades de experimentação pictórica.
Outro elemento importante para a arte moderna é a autonomia adquirida pelo artista
para realizar seu trabalho, não estando à mercê de um serviço para a aristocracia ou
a igreja. A arte do retrato popularizou-se, deixando de ser praticada apenas para as
elites, fomentada pelo pensamento de outrora pelo qual o retrato deveria ser
produzido apenas para aqueles que possuíssem condições de encomendá-lo. A
liberdade de representar quem desejasse serviu como estudo para muitos artistas
encontrarem e experimentarem novas soluções plásticas.
A busca pela representação objetiva torna-se secundária, se comparado com
o súbito interesse em explorar, trazer à tona problemáticas internas, tensões
pessoais do sujeito. Em suma, a partir do modernismo o retrato transcende sua
função primária:
“A crença, tanto no passado, quanto atualmente é de que o retrato deve transcender a ocasião ou a circunstância para a qual ele foi criado. O retrato deve permitir que certo conteúdo particular da vida interior de alguém torne-se visível para o público, e esta proposta – de trazer à tona uma informação oculta - deve ser de importância tanto para o artista qual para o eventual público.” (Nairner, 2006, p.7) - Tradução minha.7
Entretanto, isso não implica em ignorar os princípios básicos que definem o
retrato. Seja por qualidades visuais estilizadas ou ainda constituindo uma abstração
total da forma, há um referente, um sujeito que forneceu as bases principais para o
trabalho. Acredito que a produção moderna soube articular este jogo entre as
convenções tradicionais e, ao mesmo tempo, subvertê-las, ressaltando aspectos
estéticos que muitas das vezes provocam desconforto ou mesmo estranhamento no
público, como complementa Shearer West:
“No entanto, tais estilos não descartam o fato de que estes são retratos de pessoas reais. Em cada caso, as tensões existentes entre experimentos estilísticos e as revelações individuais não podem ser negadas. As qualidades referenciais e descritivas do século 20 incorporam até mesmo as mais radicais soluções com as clássicas convenções reveladoras do retato e tradição mimética. (West, 2004, p.196) – Tradução minha.8
7
Original “The supposition both then and now is that the portrait should transcend the occasion or
circumstance for which it was created. The portrait should allow something of someone´s personal interior life to be made available in public, and this purpose – to bring out hidden information – should be important to both artist and the eventual viewing public”
8
A busca pelo realismo do modelo foge da centralidade, enquanto se torna
mais interessante o alcance e exacerbação de questões de ordem psicológica e
possibilidades estéticas inovadoras, como se percebe no retrato que Alberto
Giacometti realiza de Lady Anette. A imagem é construída por linhas descontínuas e
grossas. As manchas da imagem são grosseiramente aplicadas e somando-se ainda
a tinta que escorre. Apesar da desconstrução e tratamento brusco que foge por
completo do tratamento realista que durante tanto tempo havia perdurado, a obra de
Giacometti não pode ser excluída evidentemente da categoria de retrato, uma vez
que há uma pessoa retratada.
,
Figura 17: Alberto Giacometti, Lady Annette, Óleo sobre tela. 1954.
Esta foi apenas uma análise sucinta a respeito da história do retrato e suas
configurações, que surgem nas artes e que a cada dia mais vão se reconfigurando,
alterando e induzindo o público a questionar e ressignificar conceitos e definições
antes estabelecidas como verdadeiras. A arte na contemporaneidade nos guia por
caminhos diversos e misteriosos.
2.4 Dimensões Ficcionais do Retrato
A possibilidade de pensar o retrato como um trabalho de ficção é o tema
central desta monografia. O conceito de ficção traz uma leitura polissêmica9,
possuindo significados diversos devido às suas características particulares. Bernard
Guelton (2013, p. 346-366) em seu artigo Ficções e interações: as ficções artísticas e a questão do espaço estabelece uma distinção entre o que se reconhece como ficção canônica (referente à literatura e ao cinema) e a ficção no
campo artístico (onde a experiência com o concreto é fundamental, articulando-se
de maneira especial com os elementos do imaginário).
Guelton ainda aponta três dimensões que costumam ser aceitas para definir o
termo:
“...reexaminarei as três significações – ou três dimensões – correntemente aceitas por todos os dicionários a respeito do termo ficção: a) a primeira dimensão é a da simulação, da dissimulação e da mentira (a intenção deliberada de enganar é, obviamente, excluída de uma abordagem mais precisa); b) a segunda dimensão do termo ficção é a de uma construção imaginária; c)a terceira concerne o registro da suposição, ou de uma hipótese, que permite a elaboração de um raciocínio.” (Guelton,ibid, p.347)
No campo artístico, entretanto, a questão da ficcionalidade da imagem não é
um consenso, sendo muito debatida. Sobre este ponto, Guelton (2013, p.349-350)
traz as ponderações de autores como Lorenzo Menoud e e Mary-Laure Ryan. O lado
defendido por Menoud é de que a fotografia e as linguagens tradicionais, como a
pintura e a escultura, não poderiam abranger a ficção por não serem categorias passíveis de se desenvolverem de maneira “discursiva”. Ryan, por sua vez, rebate este argumento indicando que todas as mídias possuem alguma zona de
indeterminação. A importância desta zona está condicionada ao suporte, sendo
proporcional à capacidade do meio de narrar e construir histórias. A linguagem
possui essa capacidade de transmitir informações precisas em forma narrativa, o
9
que não ocorre com uma imagem desenhada, fotografada ou pintada. Essas
imagens oferecem ao espectador uma amplitude de possíveis interpretações.
Com extrema sensibilidade, José Castello analisa e discorre em seu ensaio
Ficção e Realidade o prisma da presença da ficção em qualquer âmbito da vida,
passível de possuir lacunas. Elementos imateriais – sonhos, crenças, intuições ou
devaneios – não existem no plano do físico, da realidade concreta, sendo então
muitas vezes colocados no plano do imaginário (ou seja, possivelmente ficcionais).
Porém, são eles que preenchem as lacunas que surgem, complementando a própria
realidade.
“Não existimos sem a ficção. Arrisco-me a dizer mais: somos filhos da ficção. Todo trabalho do amadurecimento humano é a construção de uma identidade ficcional, sob a qual nós nos sustentamos para atravessar o deserto da existência. Escolhemos carreiras, parceiros amorosos, amigos; cultivamos obsessões, fobias, paixões, construímos destinos. Somos os autores de nós mesmo – ou, pelo menos (pois nosso mundo mecanizado, opressivo e dogmático sempre vai contra isso) deveríamos ser.” (Castello, 2012)10
Para explicar esta proposição, é possível pensar no exercício da narrativa
cotidiana, quando um indivíduo está a falar de si mesmo ou a relatar experiências,
memórias ou até mesmo sonhos. A memória humana é falha e está sujeita a sofrer
lapsos, criando fendas. Para preenchê-las é que se faz necessário a utilização de
elementos provindos do imaginário humano – ou ficcionais. Saercomplementa essa
colocação quando afirma que a ficção só vem a evidenciar o caráter complexo da própria vida: “Ao ir em direção ao não verificável, a ficção multiplica as possibilidades de tratamento”.11
Uma imagem se apresenta ao público tal qual ela é, representando
justamente o que ali está exposto. Seu conteúdo pode partir de um objeto presente
em uma determinada realidade, mas essa mesma imagem pode ser manipulada,
construída e inventada. O imaginário se constrói nesse processo que existe entre a
projeção inicial na mente e o lado prático do desenvolvimento.
10
CASTELLO, J. Ficção e Realidade. Disponível em:< http://rascunho.com.br/ficcao-e-realidade/>. Acesso em 17 de junho de 2018.
11 SAER, J.J. O conceito de ficção. Revista Fronteiraz, São Paulo,n.8, julho de 2012. Disponível em:<
Retomando o retrato, gênero que carrega consigo, por definição, a similitude
máxima da representação, percorrendo tempo e espaço conferindo ao espectador a
impressão de conhecer a real aparência do retratado. Partindo da lógica da ficção
enquanto construção imaginária, segundo levantou Guelton, pode parecer bizarro
conceber a ideia de um chamado retrato ficcional.
Entretanto, como se pode observar em muitos retratos produzidos ao longo
da história da arte, ainda que o índice de verossimilhança sobre a fisionomia do
sujeito representado fosse um fator almejado, a realidade existe por si só apenas
nela mesma. Posteriormente, o recorte escolhido para se trabalhar não representará
a totalidade da pessoa retratada. Nele será introjetado uma carga de subjetividade
do próprio individuo, mesclando pensamentos e interpretações originadas por um
olhar especial acerca daquele momento. Em períodos como o Barroco, por exemplo,
a carga psicológica, a dramatização e a construção teatral foram predominantes.
“...o retrato supõe a tradução fiel, severa e minuciosa do contorno e do relevo do modelo. Isso não exclui a possibilidade da idealização, ou seja, a escolha da atitude mais característica do indivíduo e enfatização dos detalhes mais importantes, em detrimento dos aspectos insignificantes do conjunto.” (Fabris,2008, p.21)
O instante que se interpõe entre os dois sujeitos, artista e modelo, pode
revelar um jogo de olhares e construções de um determinado personagem.
Independentes das condições são utilizados artifícios que evocam as características
daquele modelo para que seja reconhecível. Porém, haverá sempre uma dimensão
na qual o artista projetará seu olhar e sua interpretação da personalidade do modelo.
Anna Tereza Fabris nos propõe ainda pensar o retrato em uma dimensão literária,
como uma biografia dramatizada. O artista deve saber conjugar durante o processo
de criação o essencial para que seja possível a identificação do retratado com parte
de sua própria carga subjetiva, que é visto aqui como um elemento essencial para
despertar o oculto de uma personalidade.
Tal qual um poeta deve realizar a escolha apropriada de palavras que
transmitam da melhor forma possível a carga emocional do seu texto ao leitor.
Articular as palavras na estrutura da poesia é um trabalho ardiloso, sendo
necessário vasto conhecimento do léxico, possuir referências textuais, conhecer as
estruturas possíveis de serem criadas, regras, tema que se propõe a escrever sobre.
E ainda assim, se permitir a liberdade de registrar no papel e buscar o lado poético,
digno de um objeto artístico. Ao artista cabe também, além do domínio das técnicas
e conhecimentos sobre os fundamentos de uma imagem, conhecer sobre a temática
que se propõe a realizar. No caso do retrato, conhecer parte da história do indivíduo
é primordial para que a imagem final criada traga algo além da mera semelhança
física.
Toda imagem possui uma mensagem a revelar, cabe ao artista, assim como
ao escritor, decidir pelas formas que utilizará na concepção da sua obra. Um retrato,
além de constituir partes fisionômicas de um indivíduo, nos conta sempre um pouco
sobre sua personalidade e trajetória. Expressões gestuais, poses, trajes ou cenário
complementam a construção do retrato.
O desafio tanto na literatura como nas artes visuais está aqui: superar a forma
primeira de retratação para elaborar uma narrativa ou uma imagem que conquista o
público para torná-lo parte da experiência estética em questão.
2.5 O Retrato Ficcional na Contemporaneidade
Consciente ou não, subordinado à vontade da demanda da encomenda ou
intento do próprio autor, o viés ficcional do retrato já era explorado por meio das
linguagens tradicionais, por meio da utilização de recursos que viabilizavam o lado
teatral: escolha de poses, construção de cenários, utilização do vestuário
apropriado, etc. A inclusão das tecnologias de produção de imagens – a fotografia,
as imagens computacionais, o vídeo – como linguagens artísticas facilitaram a
produção de retratos, seja considerando o tempo necessário para o
desenvolvimento do trabalho, o custo-benefício e potencialidades inerentes a estes
meios.
A partir destas novas ferramentas tecnológicas e especificamente, com a
podendo ser manipulado com facilidade. Deste modo, a imagem torna-se mais
maleável em comparação aos modos de criação tradicionais. Temos como
resultado, uma variedade de retratos e as possibilidades de criá-los muito mais
expandidas. Com o acréscimo dos recursos e facilidades desses dispositivos há
uma amplitude maior para explorar a ficção no retrato. Essas possibilidades para a
construção de imagens e retratos, ricas e variadas, coincidem também com as ideias
pós-modernas acerca da identidade, que são abrangentes e múltiplas, como explica
West:
“A cultura visual pós-moderna tem explorado as relações entre individualidade, papéis sociais e culturais, estereótipos sexuais e de gênero, mas os artistas lidam com estes conceitos como instáveis, flutuantes e indeterminados. Em termos apropriados para o retrato, tem ocorrido uma grande tomada de consciência por parte de muitos artistas sobre as implicações da idade, gênero, etnia, nacionalidade e outros signos referentes à identidade de seus modelos.” (West, 2004, p.205) – Tradução minha.12
Uma das pioneiras na utilização das linguagens tecnológicas para a produção
do retrato foi Nancy Burson. Durante as décadas de 60 e 70, a artista realizou uma
série de estudos sobre a fisionomia das diferentes raças humanas e suas
características visuais. Outro ponto que lhe despertou a atenção foi a genealogia
humana, estudou as possíveis configurações que o rosto de uma pessoa poderia
tomar com o passar dos anos, tendo como base os genes paternos.
Ao lado de dois colegas programadores, Richard Carling e David Kramlich,
Burson utilizou da tecnologia do vídeo, para imitar fotografias de diferentes pessoas,
e posteriormente manipulando-as. Com base nos estudos realizados sobre a “morfologia parental”, foi possível obter uma série de imagens que simulam o amadurecimento das pessoas retratadas.
12
Original “Postmodern visual culture has explored the relationships between individuality, social role,
and cultural, sexual and gender stereotypes, but artists deal with these concepts as unstable,
Outra série de retratos realizados por Burson foram as tipologias criadas,
originadas através da combinação de figuras distintas. Essas figuras, no entanto,
apresentam traços simbólicos comuns entre si, especialmente se analisados sob a
ótica da política e da cultura.
Por exemplo, as séries First Beauty Composites e Second Beauty Composites
exibem retratos que são construídos por meio de combinações de personagens
emblemáticas consideradas belas dentro do padrão norte-americano. First Beauty
Composites remete ao ideal dos anos 50, trazendo a junção de personalidades
como Bette Davis, Audrey Hepburn, Grace Kelly, Sophia Loren e Marilyn Monroe.
Second Beauty Composites, por sua vez, representa o ideal de beleza da década de
80. Sendo assim, tem-se a combinação de beldades como Meryl Streep, Diane
Keaton, Brooke Shields, Jane Fonda e Jaqueline Bisset.
Figura 18: Nancy Burson. Amadurecimento de Etan Patz (aos 6 e 13 anos), 1984.
Seguindo a mesma lógica de combinações, Burson desenvolveu uma série
similar, porém com enfoque político. Denominada Big Brother, possivelmente em
homenagem à obra de George Orwel13, os retratos dessa série são constituídos a
partir da mesclagem das fisionomias de líderes ligados aos movimentos totalitaristas:
Hitler, Stalin, Mussolini, Mao Tsé Tung e Khomeini.
Esses trabalhos de Burson possuem uma peculiaridade para a qual se deve
atentar: tanto em First e Second Beauty Composites quanto em Big Brother, parte-se
inicialmente de um conjunto de indivíduos existentes, que posteriormente possuem
seus traços faciais combinados, originando um retrato que não mais é lido como um
retrato individual, mas como simbólico.
13
ORWELL,G. 1984. 20ª ed.,São Paulo: Companhia das Letras, 2009
Figura 19: Nancy Burson. First Beauty Composites (à esquerda) e Second Beauty Composites (à direita).
Outra possibilidade de pensar formas de retrato alternativas, encontramos no
trabalho de Daniel Lee. Em sua série Manimals ele investiga a metamorfose do
rosto. Inspirada pelo zodíaco chinês, a série representa um conjunto de retratos de
indivíduos transmutados com as características correspondentes ao animal
representativo de seu signo (rato, boi, tigre, serpente, dragão, coelho, galo, cavalo,
cão, cabra, porco e macaco).
As principais características fisionômicas de cada um desses animais são
atribuídas aos modelos de cada foto por meio do software Adobe Photoshop,
permitindo a distorção e manipulação das fotografias. No Ano do Galo, por exemplo,
é possível notar o cabelo manipulado para uma forma que remetesse à crista do
animal. O nariz foi aumentado, modificado, criando uma curvatura, deslocando-o
para frente; enquanto os olhos foram redesenhados em duas esferas, com o
aumento da íris e apresentam-se dentro de uma distância que foge aos padrões
convencionais da anatomia humana.
Quer se acredite em questões metafísicas como astrologia/zodíaco ou não,
uma das possíveis intenções de Lee ao realizar este trabalho foi refletir como certos
traços característicos desses signos se refletem na personalidade de cada indivíduo,
Figura 20: Nancy Burson, Big Brother. 1996.
em maior ou menor grau. Em uma entrevista14 realizada, Lee afirmou seu interesse
por trazer à tona a linha tênue que separa o próprio humano do mundo animal.
14
Disponível em: < http://peril.com.au/back-editions/edition09/interview-with-daniel-lee/>. Acesso em 17 de Junho de 2018.
Figura 21: Daniel Lee. Manimals.
Um dos fundamentos primordiais do retrato consistiu na presença do modelo,
uma vez que o próprio trabalho carregaria consigo uma espécie de atestado de
presença ou memória, afirmação daquela existência. Todos os trabalhos que foram
apresentados aqui até o momento, ainda que carreguem uma trama ficcional, tomam
como base anterior um indivíduo.
Keith Cottingham rompe bruscamente com essa noção partindo para o
extremo do que poderíamos considerar como o retrato ficcional, com a ausência
total de um sujeito de referência. Sua série Ficticious Portraits exibe várias imagens
nas quais predominam, supostamente, a existência de um garoto que às vezes
aparece com o que se supõe ser seu irmão (ou irmãos).
Esses garotos, no entanto, não existem de fato. O rapaz e seus irmãos
gêmeos são resultados de montagens realizadas por Cottingham, partindo de um
rigoroso estudo de anatomia, esboçados em um desenho para depois serem
Figura 22: Daniel Lee, Ano do Galo.
digitalizados para a tela do computador. O último passo é serem renderizados e
esculpidos através de um software 3D.
“Nesta série, eu uso o computador para desenhar sobre esculturas tradicionais, fotografias, desenhos e através do uso de pintura e montagem digital, ideias se materializam em impressões fotográficas acabadas. O realismo em meu trabalho serve como um espelho revelador de nós mesmos e de nossas invenções, belas e horríveis. As imagens em si são retratos de um jovem. Ao me combinar com os outros, esses retratos imaginários expõem o movimento e o desenvolvimento do “eu”. A alma não é vista como um ser solidificado, mas é exposta como múltiplas personalidades, cada uma expressando uma visão diferente do eu. Espero que ao mesmo tempo desafie o que o espectador percebe como retrato e questione a alienação e fragmentação da imagem da matéria, corpo da alma.” (fala do artista, retirada de seu site oficial)15
O realismo e precisão do trabalho de Cottingham são surpreendentes, a
minúcia com o tratamento dos detalhes alcançados na execução das mesmas.
Paradoxalmente, esse realismo consegue ser ao mesmo tempo assombroso. Há um
realismo que poderíamos chamar de fantasmagórico, uma vez que se tem a
impressão desses registros fotográficos retratarem de fato um sujeito existente. Ao
mesmo tempo há expressões diferentes de uma mesma personalidade, dialogando
com a fragmentação do individuo característica da identidade pós-moderna.
As séries dos artistas aqui apresentados demonstram, além dos possíveis
desdobramentos da ficção no retrato, novas interpretações do gênero que se
expandem para além da sintetização facial do indivíduo. Em Burson há
manipulações que constituem o que podemos conceber como ficcional por construir
uma face que não existe no plano da realidade, apesar de combinar personalidades
conhecidas no mundo das celebridades e também dentro de um contexto político.
Esses retratos originados podem ser percebidos como símbolos que a artista deseja
evidenciar, podendo trazer questionamentos do público ou não.
15
Original “In this series, I use the computer to draw upon traditional sculptures, photography, drawings
and through the use of digital painting and montage, ideas materialize into finished photographic prints. The realism in my work serves as a revealing mirror of ourselves and our inventions, both beautiful and horrific. The images themselves are portraits of a youth. By combining myself with others, these imaginary portraits expose the movement and development of the “self”. The soul is not seen as a solified being, but it is exposed as multiple personalities, each expressing a different view of the self. I hope ti simultaneously challenge what the viewer perceives as portraiture and question the alienation and fragmentation of image from matter, body from soul”. Disponível em: <
Lee distorce seus modelos, atribuindo a eles características de animais,
dialogando com a relação homem x natureza, e também visando trazer para o plano
do visível conteúdos da personalidade considerados ocultos.
Em Cottingham há o extremo da ficcionalidade do retrato, uma vez que o
artista os constrói sem a presença de um modelo e seu domínio técnico é
assombroso. Questionando algo mais intimista como a própria alma, imaterial, não
sólida, mas que se projeta em múltiplas personalidades.
O imaginário da ficção contribui para essa potencialização e ressignificação
do que o público percebe como sendo o retrato. Essas séries revelam que o enfoque
sobre o externo, a fisionomia de um indivíduo não é mais interessante. Uma
identidade se transforma e também se constitui por meio da dinâmica das relações
sociais e inserção na cultura. Elas evidenciam esse caráter múltiplo, fluido e