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Os Juízos de Equidade - Luciano - v. set. 2012

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TRABALHO E OS JUÍZOS DE EQÜIDADE

Luciano Athayde Chaves(**)

“Valendo-se das técnicas apuradas da interpretação extensiva e da analogia, e dos recursos mais sutis que são os princípios gerais e a eqüidade, o operador do Direito, quando forrado de conhecimentos adequados e animado de consciência ética, surge como um dos mentores da convivência social, pois, temos dito e repetido, o Direito não é mero reflexo das relações sociais. O Direito, como experiência, deve ser pleno, e muitos são os processos através dos quais o juiz ou administrador realizam a integração da lei para atingir a plenitude da vida”.

Miguel Reale

“O dilema de saber se a interpretação judicial é ato criador ou não, se a jurisdição é meramente declaratória do direito ou criado do mesmo, constitui um tema praticamente inesgotável”.

Eduardo J. Couture

“Os principais criadores do Direito podem ser, e freqüentemente são, os juízes, pois representam a voz da autoridade. Toda vez que interpretam um contrato, uma relação real ou as garantias do processo e da liberdade, emitem necessariamente no ordenamento jurídico partículas dum sistema de filosofia social, com essas interpretações, de fundamental importância, emprestam direção a toda a atividade de criação do Direito”.

Theodore Roosevelt

1. Apresentação do problema

Por meio da Lei 9.957/2000 foram introduzidas importantes modificações no corpo da Consolidação das Leis do Trabalho, notadamente no campo processual, acrescendo-se diversos dispositivos que dão forma ao denominado procedimento

sumaríssimo.

Trata-se de inovações processuais que almejam imprimir maior celeridade e simplicidade às causas de menor monta trazidas à apreciação da Justiça do Trabalho.

Em sua grande maioria, as novas regras dizem respeito a questões formais de rito e procedimento.

*Estudo originalmente apresentado na Jornada de Estudos sobre o Procedimento Sumaríssimo no Processo Trabalhista, promovido pelo

Tribunal Regional do Trabalho da 21ª Região, em Natal/RN, no dia 14 de março de 2000, com correções textuais, acréscimo de referências e notas de atualização jurisprudencial.

**Juiz do Trabalho da 21ª Região. Titular da 2ª Vara do Trabalho de Natal. Professor da Universidade Federal do Rio Grande do

Norte (UFRN). Professor da Escola Superior da Magistratura Trabalhista da 21ª Região. Mestre em Ciências Sociais (UFRN). Membro do Instituto Brasileiro de Direito Processual (IBDP). E-mail: lucianoathaydechaves@gmail.com.

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No entanto, desperta a nossa atenção um comando legal acrescido ao ordenamento jurídico trabalhista pela citada lei ordinária, comando que se dirige ao juiz quando da prolação da sentença. Eis a redação do dispositivo em destaque:

Art. 852-I... § 1º. O juízo adotará em cada caso a decisão que parecer mais justa e equânime, atendendo aos fins sociais da lei e as exigências do bem comum.

A intrigante e palpitante redação da norma - cujo estudo é o objeto deste ensaio -, longe de revelar uma corriqueira disposição processual1, parece agregar ao Processo do

Trabalho uma novel forma de exercício da jurisdição, e até certo ponto dissociada da tradição positivista do nosso ordenamento jurídico, porquanto assinala que o juiz deve, antes de tudo, buscar o justo com a sua decisão. Mais ainda. Considerando que as demais disposições atinentes ao rito sumaríssimo apenas modificam alguns prazos e fórmulas processuais, pode-se mesmo afirmar que o comando estampado no § 1º do art. 852-I, ora inserido na Consolidação, é o único que toca o exercício subjetivo da jurisdição pelo juiz e caracteriza, sob o aspecto essencial e intrínseco, o dito procedimento sumaríssimo.

Parece-nos oportuno destacar, desde logo, que a regra de julgamento ora introduzida no Processo do Trabalho inspira um maior alargamento dos chamados

juízos de eqüidade, vez que recomenda a adoção de decisões mais equânimes aos casos

submetidos ao novo rito.

A equidade - escreve François Gény - tem “algo de superior a toda a fórmula escrita

ou tradicional, é um conjunto de princípios imanentes, constituindo de algum modo a substância jurídica da humanidade, segundo a sua natureza e o seu fim, princípios imutáveis no fundo, porém cuja forma se adapta à variedade dos tempos e dos países” (GÉNY apud

MAXIMILANO, 1995:173).

Corroborando com os postulados da eqüidade expostos por Gény, assinala Paulo Nader:

Algumas normas há que se ajustam inteiramente ao caso prático, sem a necessidade de qualquer adaptação, outras há, porém, que se revelam rigorosas para o caso específico. Nesse momento, então, surge o papel da eqüidade, que é o de adaptar a norma jurídica geral e abstrata às condições do caso concreto. Equidade é a justiça do caso particular (NADER, 1990:137).

Pretendo, portanto, discutir alguns aspectos que envolvem a atividade jurisdicional trabalhista a partir dos novos paradigmas inseridos no Processo do Trabalho com a introdução do procedimento sumaríssimo.

1 “(...) julgar com justiça é obrigação do magistrado, e daí a expressão ‘mais justa e equânime’ não pode significar apenas uma

recomendação ao julgador para que decida com justiça. A lei não traz palavras inúteis, de sorte que adotar a decisão mais justa e equânime somente poderia significar o justo revelado pela eqüidade, não se destinando as expressões a reafirmar o compromisso do julgador com a justiça” (CUNHA, 2000:221).

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2. A questão da antinomia no âmbito da legislação trabalhista

Um primeiro ponto que desperta a atenção em relação à indicação da forma de decidir no procedimento sumaríssimo diz respeito à sua compatibilidade formal com o disposto no art. 8º da própria Consolidação das Leis do Trabalho, assim vazado:

Art. 8º. As autoridades administrativas e a Justiça do Trabalho, na falta de

disposições legais ou contratuais, decidirão, conforme o caso, pela

jurisprudência, por analogia, por eqüidade e outros princípios e normas gerais do Direito, principalmente do Direito do Trabalho, e, ainda, de acordo com os usos e costumes, o direito comparado, mas sempre de maneira que nenhum interesse de classe ou particular prevaleça sobre o interesse público. (grifamos)

Poder-se-ia afirmar, confrontando-se ambos os textos, que há, dentro da própria Consolidação, antinomia entre o disposto no art. 8º e a nova prescrição legal estampada no § 1º do art. 852-I. O primeiro, seguindo a tradição jurídica positiva, enaltece a lei – aqui compreendida como fonte formal em suas mais diversas modalidades de formação2 - como fonte de obrigatória recorrência do julgador, somente admitindo-se o

recurso a outras fontes do Direito no caso de lacuna3 ou omissão legislativa. O segundo

texto legal sugere desprender o julgador do balizamento normativo como primeira premissa para a entrega da tutela jurisdicional, remetendo-o a decidir a demanda com o veredicto que reputar ‘mais justo e equânime’, ou seja, mediante juízo de eqüidade.

Assim, não expressou o legislador comando no sentido de que o juízo de eqüidade tenha lugar somente quando verificada lacuna normativa.

A discussão em tela toma relevo a partir da constatação de que as primeiras impressões interpretativas do disposto no art. 852-I da CLT se colocam, de foram acentuada, no sentido de que só é autorizado ao juiz do trabalho decidir mediante juízo de eqüidade havendo lacuna legal4, situação que não foi expressamente estabelecida

pela reforma legislativa do Processo do Trabalho.

Ora, como assinala Norberto Bobbio, a coerência é uma das características de um sistema jurídico, sendo a antinomia, ou seja, a existência de normas incompatíveis ou contraditórias entre si, um fenômeno que atenta contra tal característica e que precisa ser extirpado pelo intérprete, uma vez que o Direito “não tolera antinomias” (BOBBIO, 1997:81). Noutras palavras,

supõe-se que o legislador, e também o escritor do Direito, exprimiram o seu pensamento com o seu necessário método, cautela, segurança, de sorte que haja unidade de pensamento, coerência de idéias, todas as expressões se combinem e harmonizem. Militam as probabilidades lógicas no sentido de não existirem, sobre o mesmo objeto, disposições contrárias ou entre si incompatíveis, em repositório, lei, tratado ou sistema jurídico (MAXIMILIANO, 1995:134).

2No conceito de fonte formal em Direito do Trabalho inserem-se as primárias (disposições contratuais trabalhistas) e as chamadas

imperativas, tanto as de elaboração profissional ou autônoma (acordos e convenções coletivas) como as de elaboração estatal ou heterônoma (leis em sentido estrito e sentenças normativas da Justiça do Trabalho).

3Não pretendemos discorrer aqui sobre as teorias que discutem a existência ou inexistência de lacunas no ordenamento jurídico, por

situar-se tal discussão num espectro filosófico que escapa aos objetivos do presente estudo.

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Entendemos, porém, que a antinomia exposta é apenas aparente e, portanto, de natureza solúvel, porquanto o dispositivo inscrito no § 1º do art. 852-I assume, inegavelmente, caráter especial dentro do ordenamento jurídico-processual trabalhista, tal como as demais disposições de procedimento atinentes ao rito sumaríssimo, as quais, igualmente, não colidem com o rito ordinário.

Aplica-se ao caso, como regra tradicional de hermenêutica, o princípio da especialidade, também chamado de critério da lex specialis, pelo qual “a lei especial deve

prevalecer sobre a geral: ela representa um momento ineliminável do desenvolvimento de um ordenamento. Bloquear a lei especial frente à geral significa paralisar esse desenvolvimento”

(BOBBIO, 1997:96).

No mesmo sentido a posição de Carlos Maximiliano, quando assevera que a antinomia entre dois trechos de um dado diploma legal cessa quando verificado que ambos se aplicam a hipóteses diferentes, “porque tem cada um a sua esfera de ação especial,

distinta, cujos limites o aplicador arguto fixará precisamente” (MAXIMILIANO, 1995:135).

Em suma, a concepção teleológica da regra de julgamento adotada pelo legislador para o rito sumaríssimo no Processo do Trabalho deve ser estudada a partir de sua própria existência e consciência, posto que se trata de norma especial que não se submete, em princípio, aos ditames mais gerais expostos no art. 8º do Diploma Trabalhista Consolidado.

3. Da heterointegração do ordenamento jurídico e dos juízos de eqüidade

A questão da heterointegração do Direito a partir da participação ativa dos juízes sempre foi alvo de muito debate e controvérsia, conquanto já venha, de algum tempo a esta parte, advertindo Mauro Cappelletti para o fato de que mesmo a interpretação e aplicação de preceito legal aos casos concretos pelo julgador não elimina, por completo, a participação criativa deste na composição da lide à luz dos valores superiores da sociedade.

Isso porque, a melhor arte de redação das leis, e mesmo o uso da mais simples e precisa linguagem legislativa, sempre deixam, de qualquer modo, lacunas que devem ser preenchidas pelo juiz e sempre permitem ambigüidades e incertezas que, em última análise, devem ser resolvidas na via judiciária (CAPPELLETTI, 1993:20-1).

Assim, o que se afirma, num primeiro momento, é que não há, no exercício da jurisdição, uma dicotomia clara e objetiva entre a solução dos conflitos a partir de uma norma preexistente ou a partir de uma integração exterior ao ordenamento positivo, através da atuação do juiz, criando soluções até mesmo à margem do campo das prescrições legais hipotéticas. Isto é,

o verdadeiro problema, portanto, não é o da clara oposição, na realidade inexistente, entre os conceitos de interpretação e criação do direito. O verdadeiro problema é outro, ou seja, o do grau de criatividade e dos modos, limites e aceitabilidade da criação do direito por obra dos tribunais judiciários (CAPPELLETTI, 1993:21).

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Entre nós, a possibilidade de composição de conflitos submetidos ao exame do Judiciário mediante juízos heterointegrativos tem origem mais próxima na legislação civil5, mais precisamente na Lei de Introdução ao Código Civil, que estabelece: quando a

lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito (art. 4º).

Denota-se, desde logo, que a norma em foco somente autoriza o juiz a se socorrer de outras fontes cognitivas para solucionar a lide na estampada omissão da lei. Somente

no silêncio da lei, portanto, deve o julgador, na ordem mencionada, lançar mão desses recursos, para não deixar insolvida a demanda (RODRIGUES, 1990:21).

Porém, a legislação processual, há muito, já mencionava da prerrogativa do magistrado decidir mediante eqüidade. O Código de Processo Civil de 1939, em seu art. 114, possibilitava o juiz a aplicar no caso concreto a regra que estabeleceria se fosse julgador, desde que autorizado a fazê-lo. O Código de Formalidades vigente, no entanto, substituiu a amplitude de tal prerrogativa, apenas permitindo que o juiz decida por eqüidade quando autorizado por lei.6

Dessa forma, é regra na Lei Adjetiva Civil que,

sem autorização legal explícita, porém, não pode o julgador, motu proprio, servir-se da inspiração social da eqüidade; servir-se ele servir-se ativesservir-se às suas concessões pessoais, teria consagrado a eqüidade cerebrina, merecedora de tantas censuras, por ser a indumentária vistosa com o que o arbítrio se disfarça nos pretórios (MONTEIRO, 1990:43).

Com a Lei 9.099/95, que institui o Juizado Especiais Cíveis e Criminais, foi, enfim, estampado na processualística disposição legal estabelecendo que “o juiz adotará em cada

caso a decisão que reputar mais justa e equânime, atendendo aos fins sociais da lei e às exigências do bem comum” (art. 6º).

De pronto, nota-se que a reforma processual trabalhista em debate, especialmente no que concerne ao art. 852-I, § 1º da CLT, nada mais fez do que reproduzir, literalmente, o texto adotado preteritamente pelo legislador para os Juizados Especiais. Repele-se, assim, a idéia de que a questão dos juízos de eqüidade é algo limitado ao campo trabalhista.

Nada obstante, uma visão marcadamente conservadora sobre o tema ainda se sustenta sob uma premissa que, entendo, precisa ser enfrentada.

Trata-se do entendimento de que, mesmo autorizado, o juiz somente poderá decidir por eqüidade quando da lacuna da lei, integrando a lei de forma supletiva e a partir de elementos externos ao ordenamento positivo individualmente considerado (heterointegração): “o método mais importante de heterointegração, entendida como recurso a

outra fonte diferente da legislativa, é o recurso, em caso de lacuna da lei, ao poder criativo do juiz, quer dizer, ao assim chamado Direito Judiciário” (BOBBIO, 1997:149).

5 Lembra, no entanto, Pontes de Miranda que a primeira referência ao vocábulo ‘eqüidade’ no direito positivo brasileiro foi feita

pela Constituição Federal de 1934 (MIRANDA, 1998:375).

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Embora admita que, em princípio, a eqüidade é fonte de integração do Direito preponderantemente diante da lacuna da lei, lembra Miguel Reale que, mediante juízos de eqüidade, podem ser amenizadas “as conclusões esquemáticas da regra genérica, tendo

em vista a necessidade de ajustá-la às particularidades que cercam certas hipóteses da vida social” (REALE, 1990:294-5).

No mesmo sentido, afirma Caio Mário da Silva Pereira:

Considerando o sistema de direito positivo, ainda ocorre a presença da eqüidade, como idéia de amenização do rigor da lei. Equiparada ou aproximada ao conceito de justiça ideal, a eqüidade impede que o rigor dos preceitos se converta em atentado ao próprio direito, contra o que Cícero já se insurgia a proclamar: summum ius, summa iniuria7 (PEREIRA, 1990:56).

Pensamos que é justamente nesse diapasão que milita a melhor interpretação do dispositivo legal em estudo. Não se trata de mera autorização para que o juiz possa decidir por eqüidade somente quando detectar a ausência de prescrição positiva específica. É da vontade do próprio sistema especial do qual se constitui o Procedimento Sumaríssimo que o juiz busque solucionar a lide observando as peculiaridades dos casos de pequena expressão econômica, interpretando a lei de sorte a ajustá-la numa equilibrada decisão. É da própria essência, portanto, do procedimento sumaríssimo a composição da lide mediante juízos de eqüidade.

É obvio que estamos navegando em águas de alguma margem subjetividade do julgador, mas sempre sob o fio condutor da indispensável fundamentação jurídica (art. 93, IX, CF).

Porém, não é de hoje que sustento que toda certeza processual é uma tradução subjetiva de uma realidade sensível mediada pela linguagem. E é essa carga de subjetividade, circunscrita ao caso concreto submetido à decisão, que levará o julgador a decidir, dentro de uma zona entre a Escola da Livre Investigação Científica (e, em alguns casos até a do Direito Livre) – e da e a Escola da Exegese, as causas submetidas ao rito sumaríssimo no Processo do Trabalho.

Não se trata, portanto, de arbítrio pleno, de liberdade sem fronteiras. Haverá sempre limites ao juiz, limites que encontram balizamento nos princípios gerais que dão forma e sentido ao sistema jurídico, não sendo razoável qualquer interpretação da norma desprovida de uma necessária e equilibrada justificação:

Não se recorre à eqüidade senão para atenuar o rigor de um texto e o interpretar de modo compatível com o progresso e a solidariedade humana, jamais será a mesma invocada para se agir, ou decidir, contra a prescrição positiva, clara e prevista (...) a eqüidade que se invoca deve ser acomodada ao sistema do Direito pátrio e regulada segundo a natureza, gravidade e importância do negócio de que se trata, as circunstâncias das pessoas e dos lugares, o estado da civilização do país, o gênio e a índole dos seus habitantes (MAXIMILIANO, 1995:175).

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4. As decisões dispositivas do Direito Italiano

Como vimos, longe de repetir tradição civilista - pela qual a eqüidade seria fonte secundária do julgador, que a busca somente quando ausente uma prescrição positiva apropriada para o caso -, a regra geral de julgamento imposta ao juiz do trabalho no rito sumaríssimo é, notadamente, a de um juízo de eqüidade, por expressa autorização legal.

Não se trata, propriamente, de uma inovação revolucionária a pretender transmudar a jurisdição de direito, que sempre caracterizou a processualística pátria, em jurisdição de eqüidade, desprendida de positivação prévia8.

Com o juízo de eqüidade, mesmo num sistema de jurisdição de direito, nada mais significa dizer, como já contextualizou Cândido R. Dinamarco, que “o juiz

autorizado a julgar por eqüidade faz-se intérprete dos sentimentos da nação, latentes nos seus costumes, presentes na prática judiciária e nos princípios gerais do ordenamento jurídico”

(DINAMARCO apud CUNHA, 2000:221).

No direito comparado, encontramos no ordenamento jurídico italiano uma instituição semelhante à agora adotada pelo Processo do Trabalho em seu rito especialíssimo. Referimo-nos as ditas decisões dispositivas.

De acordo com Piero Calamandrei, “chamam-se dispositivas as decisões que o juiz

toma, não na aplicação de uma norma jurídica já formulada anteriormente pelo legislador, mas no exercício de um poder de eqüidade, que significa, em substância, poder de criar o direito para o caso singular” (CALAMANDREI, 1999:163).

E prossegue Calamandrei descrevendo o instituto da decisão dispositiva, assinalando que poderia esta ser chamada, também, de providência de eqüidade, em contraposição às providências de direito (secundum ius), que seriam todas as outras nas quais o juiz não faz outra coisa senão aplicar ao caso concreto uma norma jurídica já existente (CALAMANDREI, 1999:163).

Na dicção de outro mestre italiano, trata-se de uma categoria de sentenças distinta que não se limita a declarar o dever de uma prestação a partir de um direito preexistente (CHIOVENDA, 1998:256).

Assim como está a ocorrer no Procedimento Sumaríssimo Trabalhista brasileiro, as decisões dispositivas na Itália também dependem de prévia autorização legal, e se revestem sempre de caráter excepcional em relação ao princípio da legalidade.

Afora isso, tal como já consignado alhures, as decisões dispositivas não colidem com a existência de um ordenamento jurídico tradicional, positivado. Ou seja, “a

atribuição de poderes eqüitativos ao juiz não significa a renúncia do legislador ao seu ofício de regular antecipadamente certas categorias de relações, e, por conseguinte, abolição da legalidade para ser substituída pela justiça do caso singular”. O poder de eqüidade

8 Sobre a jurisdição de eqüidade, escreveu Calamandrei: “num ordenamento jurídico em que predomine o método da formulação do direito

para o caso singular, o juiz, no momento em que é chamado para fazer justiça a respeito de uma relação concreta controvertida, não encontra diante de si uma norma preconstituída da qual possa logicamente deduzir, em forma individualizada e concreta, o mandato já potencialmente contido na vontade, abstratamente manifestada pelo legislador” (CALAMANDREI, 1999:98).

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refere-se às relações que encontram já na codificação sua plena e perfeita regulação jurídica, de maneira que, quando o juiz é chamado a decidir sobre uma destas relações, não se tem a necessidade de criar para a mesma a norma jurídica, que existe na lei. Aqui, a eqüidade é considerada, não só como poder do juiz de temperar o direito vigente, poder de criar o direito, mas como poder de adaptar o direito já existente às especiais exigências do caso singular, no espírito da codificação vigente (CALAMANDREI, 1999:166).

Como se não bastasse a aproximação teleológico e procedimental de ambos os institutos, há ainda que se atentar para o campo de aplicação das decisões dispositivas: causas de menor vulto econômica, mas nem por isso, como se sabe, de menor importância, social, jurídica e psicológica para as partes.

O tema já tem recebido a atenção da jurisprudência das instâncias judicantes da Justiça do Trabalho. Eis precedentes:

RECURSO DE REVISTA. RITO SUMARÍSSIMO. MULTA NORMATIVA. APLICABILIDADE. É direito social do trabalhador o reconhecimento das convenções e acordos coletivos de trabalho. Tribunal Regional que, apesar de reconhecer a validade do instrumento coletivo, deixa de aplicar a multa normativa com fundamento em juízo de equidade. Violação do art. 7º, XXVI, da Carta Magna configurada. Recurso de revista conhecido e provido (RR - 92200-32.1999.5.15.0062, Relatora Ministra: Rosa Maria Weber, Julgamento: 20/05/2009, 3ª Turma, Data de Publicação: 12/06/2009).

AGRAVO DE INSTRUMENTO. RECURSO DE REVISTA. PROCEDIMENTO SUMARÍSSIMO. MULTA RESCISÓRIA (ART. 477, § 8º, CLT). REGRA GERAL DE PERTINÊNCIA VERSUS SITUAÇÕES EXCETIVAS DE IMPERTINÊNCIA. A multa do § 8º do art. 477 da CLT é devida, regra geral, nas situações em que houver inadimplemento, pelo empregador, quanto ao pagamento das parcelas rescisórias, independentemente de ele ter formalizado espontaneamente o vínculo empregatício ou ter sido judicialmente compelido a o fazer. A lei prevê uma única situação excludente da multa: o fato de o empregado, comprovadamente, ter dado causa à mora (art. 477, § 8º, CLT). A jurisprudência, por eqüidade, admitiu uma segunda situação excludente, de notório caráter excepcional: a circunstância de o Julgador ter tido fundada, consistente e séria dúvida quanto à própria existência da obrigação cujo inadimplemento gerou a multa (OJ nº 351 da SDI-1 do TST). A simples recusa de cumprir a lei, pelo empregador, mantendo seu empregado na informalidade, ou a alegação frágil de eventual justa causa ou outro fator congênere não têm o condão de favorecer o inadimplente, desonerando-o da multa imperativa da CLT. Agravo de instrumento desprovido (AIRR - 66040-83.2005.5.05.0014, Relator Ministro: Mauricio Godinho Delgado, Julgamento: 21/05/2008, 6ª Turma, Data de Publicação: 13/06/2008). (grifos acrescidos) Como se pode observar, nesses precedentes o Tribunal Superior do Trabalho assentou a tese de que o exercício do juízo de equidade não se faz apenas em caráter supletivo, ou seja, na presença de lacuna normativa de qualquer natureza. Pelo contrário, os julgados indicam a fenomenologia da regra inserida na CLT pela Lei n. 9.957/2000 por sobre a ordem legal preexistente, firmando solução mais ajustada e temperada ao caso concreto.

5. Considerações finais

A breve exposição do tema já nos é suficiente para dar-se razão a Eduardo J. Couture, quando nos fala da complexidade da questão envolvendo a função criadora do juiz, a partir da própria atividade interpretativa da norma.

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Nada obstante, estamos convencidos que a Lei 9.957/2000 veio em boa hora, na medida em que reconheceu, no âmbito do Processo do Trabalho, a possibilidade de elevação da jurisdição trabalhista em sede de juízo de eqüidade, adaptando a norma às exigências de um mundo do trabalho que se complexifica a cada minuto, o que coloca a função legislativa do Estado – e porque não dizer também o campo negocial das próprias categorias antagônicas -, muitas vezes passos atrás da realidade societal e não raras vezes em assimetria com as peculiaridades dos casos submetidos à jurisdição da Justiça do Trabalho.

Essa alteração legislação, a rigor, chegou com certo atraso. Há muito a Justiça do Trabalho vem dando sinais de temperos dos meios de interpretação da norma jurídica, sensível que é a jurisdição trabalhista, tal como a sua magistratura em geral, às transformações sociais.

Aliás, a sensibilidade para as mudanças é, como bem atentou Cappelletti, uma característica própria dos juízes:

(...) embora a profissão ou a carreira dos juízes possa ser isolada da realidade da vida social, a sua função os constrange, todavia, dia após dia, a se inclinar sobre essa realidade, pois chamados a decidir casos envolvendo pessoas reais, fatos concretos, problemas da vida. Neste sentido, pelo menos, a produção judiciária do direito tem a potencialidade de ser altamente democrática, vizinha e sensível às aspirações sociais (CAPPELLETTI, 1993:105).

Resta-nos, portanto, sistematizar as conclusões iniciais a que chegamos ao cabo desta investigação:

a) a Lei 9.957/2000, ao introduzir no ordenamento jurídico-trabalhista o art. 852-I, determinou que o juiz, nos dissídios submetidos ao procedimento sumaríssimo, emita juízo de eqüidade, ao enfatizar que deverá ser adotada a decisão que reputar “mais justa e equânime” (§ 1º);

b) tendo em vista o caráter especial do § 1º do art. 852-I, há apenas antinomia aparente ou solúvel desta norma com a regra geral insculpida no art. 8º da Consolidação das Leis do Trabalho;

c) não há a condição da existência de lacuna no ordenamento jurídico positivo para que o juiz do trabalho emita juízo de eqüidade nos feitos submetidos à jurisdição trabalhista, em sede de procedimento sumaríssimo;

d) decidir o juiz por eqüidade não significa julgar com pleno arbítrio, desprendido do arcabouçou legal e principiológico do sistema jurídico vigente; o juízo de eqüidade integra, sem incompatibilidade, a jurisdição de direito, não podendo ser confundida com a ampla jurisdição de eqüidade.

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6. Referências bibliográficas

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CAPPELLETTI, Mauro. Juízes legisladores?. Porto Alegre: Fabris, 1993.

CHIOVENDA, Giuseppe. Instituições de direito processual civil. Campinas: Bookseller, 1998.

CUNHA, Maria Inês M. S. Alves da. O procedimento sumaríssimo trabalhista (Lei 9.957, de

12 de janeiro de 2000). Revista LTr, vol. 64, n. 02, 2000.

MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito. Rio de Janeiro: Forense, 1995. MIRANDA, Francisco C. Pontes de. Comentários ao código de processo civil. Rio de Janeiro:

Forense, tomo II, 1998.

MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de direito civil. São Paulo: Saraiva, 1990. NADER, Paulo. Introdução ao estudo do direito. Rio de Janeiro: Forense, 1990.

PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil. Rio de Janeiro: Forense, 1990. REALE, Miguel. Lições preliminares de direito. São Paulo: Saraiva, 1990.

Referências

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