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Legisladores do Desejo : uma etnografia das diferenças na educação infantil a partir dos debates da ideologia de gênero

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Academic year: 2021

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS

FACULDADE DE EDUCAÇÃO

ALEX BARREIRO

LEGISLADORES DO DESEJO:

UMA ETNOGRAFIA DAS DIFERENÇAS NA EDUCAÇÃO INFANTIL A

PARTIR DOS DEBATES DA IDEOLOGIA DE GÊNERO

Campinas/SP

2019

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ALEX BARREIRO

LEGISLADORES DO DESEJO:

UMA ETNOGRAFIA DAS DIFERENÇAS NA EDUCAÇÃO INFANTIL A

PARTIR DOS DEBATES DA IDEOLOGIA DE GÊNERO

Tese de doutorado apresentada ao programa de Pós-Graduação em Educação da Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas para obtenção do título de Doutor em Educação na área de concentração em Educação.

Orientadora: Prof.ª Dr.ª Ana Lucia Goulart de Faria

Este trabalho corresponde à versão final da tese defendida por Alex Barreiro e orientada pela Prof.ª Dr.ª Ana Lucia Goulart de Faria

Campinas/SP

2019

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Ficha catalográfica

Universidade Estadual de Campinas Biblioteca da Faculdade de Educação

Rosemary Passos - CRB 8/5751

Barreiro, Alex, 1986- B274L

Legisladores do Desejo: uma etnografia das diferenças na educação infantil a partir dos debates da ideologia de gênero / Alex Barreiro. – Campinas, SP: [s.n.], 2019.

Orientador: Ana Lucia Goulart de Faria.

Tese (doutorado) – Universidade Estadual de Campinas, Faculdade de Educação.

1. Gênero. 2. Sexualidade. 3. Educação infantil. 4. Ideologia de gênero. 5. Cultura Infantil I. Faria, Ana Lucia Goulart de, 1951-. II. Universidade Estadual de Campinas. Faculdade de Educação. III. Título.

Informações para Biblioteca Digital

Título em outro idioma: Lawmakers of Desire: an ethnography of differences in early childhood education from the debates of gender ideology

Palavras-chave em inglês: Gender

Sexuality

Early childhood education Gender ideology

Peer Culture

Área de concentração: Educação Titulação: Doutor em Educação Banca examinadora:

Ana Lucia Goulart de Faria [Orientadora] Claudia Pereira Vianna

Daniela Finco

Elina Elias de Macedo Helena Altmann

Solange Estanislau dos Santos Data de defesa: 22-04-2019

Programa de Pós-Graduação: Educação

Identificação e informações acadêmicas do(a) aluno(a)

– ORCID do autor: 0000-0001-8684-0497

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS

FACULDADE DE EDUCAÇÃO

TESE DE DOUTORADO

LEGISLADORES DO DESEJO:

UMA ETNOGRAFIA DAS DIFERENÇAS NA EDUCAÇÃO INFANTIL A

PARTIR DOS DEBATES DA IDEOLOGIA DE GÊNERO

Autor: Alex Barreiro

COMISSÃO JULGADORA:

Ana Lucia Goulart de Faria [Orientadora] Claudia Pereira Vianna

Daniela Finco

Elina Elias de Macedo Helena Altmann

Solange Estanislau dos Santos

A Ata da Defesa com as respectivas assinaturas dos membros encontra-se no SIGA/Sistema de Fluxo de Dissertação/Tese e na Secretaria do Programa da Unidade.

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A Rosa Vermelha desapareceu. Para onde foi, é um mistério. Porque ao lado dos pobres combateu Os ricos a expulsaram do seu império.

Bertold Brecht

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Agradecimentos

Agradeço à minha orientadora Ana Lúcia Goulart de Faria, pela amizade, disposição, paciência, sobretudo pela dedicação e carinho com este texto de doutorado. Obrigado por nossas reuniões e também pelas orientações por skype, e-mails e whatsapp durante todos esses anos, sempre atenta às leituras e indicações bibliográficas necessárias para o desenvolvimento desta tese. Uma pessoa autêntica e, sem dúvida, de grande generosidade.

Aos membros do grupo de pesquisa GEPEDISC – Culturas Infantis, em especial, à Solange, Flávio, Artur, Léia e Vanderlete pelas leituras atenciosas e pelos questionamentos realizados.

Aos membros da banca de qualificação e defesa deste trabalho que dedicaram seu precioso tempo, atenção e disponibilidade para contribuir com esta pesquisa: Helena Altmann, Solange Estanislau, Daniela Finco e Claudia Vianna.

Aos meus pais, Aparecido (Kiko), Lusimar (Lu) e à minha irmã Maria Vitória por acreditarem e investirem no meu desejo pelo conhecimento e nas minhas lutas travadas pela conquista de uma sociedade mais justa e menos violenta no que se refere à igualdade de gênero e reconhecimento das pessoas lésbicas, gays, bissexuais e transgêneros.

Aos meus amigos e companheiros de trabalho, Filipe Noé Silva, Samantha Lodi e Marcelo Rocha Campos, excelentes profissionais com os quais aprendi muito durante esses anos de trabalho, contribuindo diretamente para o desenvolvimento desta tese.

Agradeço aos membros e participantes da ACP (Associação Campinense de Psicanálise), associação da qual sou membro desde 2016, em especial, ao meu amigo Francisco Capoulade, com quem aprendi a ler Lacan desconfiando das verdades “lacanianas” interpretadas por aqueles e aquelas que valem de seus textos como escritos inquestionáveis. Também agradeço ao meu analista Terrence Edward Hill, popularmente conhecido por “Terencio”, possibilitando-me convocar o sujeito do inconsciente e ensinando-me a importância de uma escuta atenta às angústias e ao sofrimento do outro. Aos meus amigos e amigas, Elen Giovana, Fernanda, Leandro, Raphael e Rodrigo, pelos momentos de diversão e dificuldades que passamos juntos, sempre regados a bons vinhos e boas conversas.

Obrigado ao meu marido Felipe Gomes que sempre abriu mão de muitos projetos pessoais, para vivermos projetos comuns. Por ter me acompanhado todos esses anos, mudando-se de cidade quando era preciso, sem medir esforços em deixar seus empregos. Lhe agradeço pela amizade, pelo carinho e pelas palavras, afinal, palavras são gestos de amor tecido no simbólico.

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RESUMO

Este texto de doutoramento busca, a partir da pedagogia da educação infantil, dos estudos de gênero e sexualidade e de contribuições da filosofia pós-estruturalista, problematizar como as crianças de uma pré-escola, localizada no interior do Estado de São Paulo (região metropolitana de Campinas), vivenciam e experimentam diferentes papéis e performances de gênero, e como manifestam a sexualidade. Analisou-se como as professoras interpretam essas manifestações, relacionando com o contexto político municipal e suas medidas (i)legais para conter ações educativas para a equidade das relações de gênero e sexualidade, denominada pelos setores conservadores por “ideologia de gênero”. Neste estudo, recorreu-se à etnografia como parte dos procedimentos metodológicos, registrando as experiências, falas, conversas, entre outras observações constatadas no diário de campo. Também se recorreu a um questionário gravado com as professoras da educação infantil, selecionando fragmentos das narrativas concedidas para a realização de análises que permitissem uma articulação com os problemas de pesquisa evidenciados e com a atual conjuntura política da cidade, cujos debates sucedidos na sessão ordinária da Câmara Municipal foram transcritos e arquivados. Esta pesquisa, como parte de seus resultados, apresenta uma multiplicidade de gêneros existentes e possíveis diante dos corpos que são, todavia, cortados, prescritos e assinalados em uma estrutura dicotômica e binária a partir do sistema heteronormativo; e também evidencia, no trabalho das professoras, concepções pedagógicas que resistem às bravatas educacionais apresentadas pelos legisladores e setores conservadores locais, tornando a pré-escola e a educação infantil um território político de intensas disputas, as quais, muitas vezes, relegam o papel da criança como produtora de culturas e subjetividades.

Palavras-chave: Gênero. Sexualidade. Educação infantil. Ideologia de gênero. Culturas infantis.

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ABSTRACT

This doctoral text research, based on the early childhood education´s pedagogy, of the studies of gender and sexuality and contributions of the post-structuralist philosophy seeks to problematize how children in a pre-school in São Paulo State (Campinas metropolitan region) live and experience different roles and gender performances and how they express the sexuality. We analyzed how teachers interpret these manifestations, relating them to the municipal political context and its (i)legal measures taken in order to restrain educational acts towards the equality of both gender and sexuality relationship, denominated by the conservative sectors as “gender ideology”. In this study, we turned to ethnography as part of methodological procedures, registering the experiences, talks, conversations, among other observations reported on the field journal. We also used a questionnaire recorded with the pre-school teachers, selecting fragments of the collected narratives in order to conduct analysis that allowed a connection with the revealed research problems and also with the current political conjuncture in the city, whose debates took place in the ordinary session of the city council and were transcribed and archived. As part of its results, this research presents a multiplicity of existing and possible genders in face of the bodies that are still sliced, prescribed, and marked in a dichotomous and binary structure based in a heteronormative system. The research also shows that, in the teachers’ work, there are pedagogical conceptions that resist to educational bravados presented by the legislators and local conservative sectors, turning the pre-school and the childhood education into a political territory of intense disputes, which, many times, relegate the children’s role as a producer of cultures and subjectivities.

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LISTA DE SIGLAS

ANPED Associação Nacional de Pesquisadores em Educação ANPOCS Associação Nacional de Pesquisa em Ciências Sociais ANPUH Associação Nacional de História

CEI Centro de Educação Infantil

EMEI Escola Municipal de Educação Infantil

GEPEDISC Grupo de Estudos e Pesquisa em Educação e Diferença Sociocultural IFCH Instituto de Filosofia e Ciências Humanas

PME Plano Municipal de Educação

ONU Organização das Nações Unidas

RCNEI Referencial Curricular Nacional para Educação Infantil SBHE Sociedade Brasileira de História e Educação

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LISTA DE FIGURAS

Figura 1 - Proibição do Kit para combate à homofobia ... 24

Figura 2 - A formatação das famílias ... 25

Figura 3 - Os perigos da ideologia de gênero ... 26

Figura 4 - Você já ouviu falar sobre ideologia de gênero? ... 27

Figura 5 - O inimigo da família dentro das escolas ... 28

Figura 6 - Entre poderes, brinquedos e fantasias ... 30

Figura 7 - Capa do livro Quando eu sinto medo, de Trace Moroney ... 46

Figura 8 - A imersão entre as crianças ... 53

Figura 9 - As fadas ... 56

Figura 10 - Felipe: a musa de cabelos roxo ... 57

Figura 11 - A mulher Hulk ... 65

Figura 12 - Conversando sobre o que é ser menina... 74

Figura 13 - A perereca de Ceci ... 77

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ... 12

1 Ideologia de gênero: um breve histórico ... 19

1.1 As tensões sobre os projetos de gênero e sexualidade na educação brasileira: ressonâncias municipais ... 22

2 Poderes, brinquedos e fantasias: a entrada em campo no Centro de Educação Infantil ... 30

2.1 Do outro lado do muro: as conexões entre arquitetura e gênero na Escola Municipal de Educação Infantil ... 37

2.2 Transgressões e resistência simbólica às masculinidades hegemônicas ... 42

3 Eu sou a musa: um passeio etnográfico pelas múltiplas experiências de gênero ... 53

3.1 Da mulher Hulk aos xingamentos: disputas e duelos em torno do feminino ... 66

3.2 Para ser mulher você tem que se fantasiar! Performance e sexualidade infantil ... 75

4 Diálogos sobre identidades na educação infantil ... 80

4.1 Tecendo sujeitos: emaranhando gêneros e sexualidades ... 81

4.2 Gênero e organização do trabalho pedagógico ... 88

CONSIDERAÇÕES FINAIS: ... 96

REFERÊNCIAS ... 103

ANEXO A ... 112

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INTRODUÇÃO

Esta pesquisa de doutorado começa a desenhar-se a partir das reflexões e leituras realizadas durante o mestrado na Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas, sob a orientação do professor Joaquim Brasil Fontes, das contribuições teóricas do grupo de pesquisa GEPEDISC (Grupo de Estudos e Pesquisa em Educação e Diferença Sociocultural) ‒ linha Culturas Infantis ‒, do qual faço parte desde 2012 e, em especial, das provocações levantadas pela orientadora deste trabalho, a professora Dra. Ana Lúcia Goulart de Faria.

Desde pesquisas anteriores, busco compreender a rede de saberes que se formou no Brasil sobre a sexualidade infantil, particularmente a partir dos textos de psicanálise do início do século XX, entre os anos 1920-1940, publicados por um dos precursores da psicanálise brasileira, o médico psiquiatra Júlio Pires Porto-Carrero. Esses estudos permitiram refletir como um conjunto de práticas discursivas e de saberes sobre a sexualidade das crianças ainda permanecem em circulação nos espaços institucionais, como a educação infantil, possibilitando uma compreensão eugenista e higienista da sexualidade humana.

As discussões sobre a sexualidade das crianças e as interpretações freudianas dos textos psicanalíticos por médicos no Brasil apresentavam relações entre as categorias gênero e sexualidade – o denominado sistema sexo-gênero1 (RUBIN, 1975). Todavia, é importante

lembrar, para não cair em anacronismo, que tanto a utilização da palavra “gênero” nas teorias feministas, quanto os estudos nesse segmento, são posteriores à década de 1940 (MILLOT, 1992). As reflexões do mestrado moveram fluxos em direção aos estudos de gênero e sexualidade na infância, temas, sem dúvida, de extrema relevância, e que encontraram junto aos estudos do Gepedisc-Culturas Infantis a oportunidade de aprofundamento desses temas e também de imersão, com as professoras e as crianças de 5 anos na pré-escola.

Assim, alguns rabiscos passaram a desenhar as primeiras intenções e contornos desta pesquisa: os temas gênero e sexualidade; a imersão na educação infantil; e alguns propósitos metodológicos, como a pesquisa de abordagem qualitativa, por meio de questionários e também da etnografia.

Durante os anos de 2015 e 2016, em meio às leituras inquietantes para se pensar este texto, ganham projeção no cenário político nacional, estadual e municipal brasileiro as

1 O sistema sexo/gênero é um conjunto de arranjos através dos quais uma sociedade transforma a sexualidade

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discussões sobre a inserção ou não dos projetos de gênero e sexualidade na educação, fomentando um forte embate entre grupos favoráveis e contrários às propostas. Nesse contexto, eu cursava a disciplina Teoria de Gênero no departamento de sociologia do Instituto da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp (IFCH), conduzida pelas professoras doutoras Isadora Lins França e Carolina Branco de Castro Ferreira. A polêmica nacional permeou os debates durante as aulas desse curso, cuja bibliografia contemplava não apenas os estudos de gênero, como também de sexualidade e a intersecção com a categoria “raça”. Porém, o curso foi interrompido em decorrência da greve na universidade, mobilizando alunos e alunas a construírem atividades diferenciadas, resultando na edição de um vídeo sobre a defesa dessas temáticas na educação, e a posicionarem-se contrários à ruptura democrática ocasionada pela admissibilidade do processo de impeachment da presidenta Dilma Rousseff.

Toda a agitação em relação à denominada “Ideologia de gênero” e suas ressonâncias no município onde foi desenvolvida esta pesquisa, e às reações dos setores conservadores e religiosos que proclamavam uma cruzada contra estes estudos, pressionou a Câmara dos Vereadores a votar pela retirada das questões de gênero do PME (Plano Municipal de Educação) da rede2. Optei pela não identificação da rede municipal para preservar a identidade de todas as pessoas envolvidas neste trabalho científico, garantindo anonimato e segurança.

A reação dos vereadores me levou a duas importantes decisões: a escolha da imersão no campo da educação infantil na rede pública de um município3, e a reflexão sobre a preocupação desses grupos para com as propostas de discussão de gênero na infância. Além disso, outras perguntas passaram a me incomodar, como: O gênero pode ser corrompido por uma ideologia, como acusam os vereadores? Que lugar ocupa o processo de subjetividade das crianças na educação infantil? Que ameaça uma educação para as relações de gênero e sexualidade oferecia para as crianças ou para a família? Qual o papel da instituição de educação infantil na produção das subjetividades das crianças? Como as diferenças e as identidades eram produzidas? Nesse sentido, as discussões e as polêmicas levantadas no munícipio sobre as problemáticas da educação para as relações de gênero aparecem como parte do contexto da realização desta pesquisa, não podendo serem relegadas.

Todos esses questionamentos foram aparecendo no delineamento desta pesquisa e também nos encontros virtuais com minha orientadora e o grupo Gepedisc, que passaram a me indicar leituras que contemplassem as discussões. A retomada de algumas dessas obras, cujo

2 Os vereadores votaram por unanimidade pela retirada das discussões e projetos de gênero do Plano Municipal de

Educação.

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contato havia sido feito na graduação, há 10 anos, foi de suma relevância para fomentar não apenas questões, como também possibilidades de interpretação sobre as intenções e a preocupação da inserção dos projetos de gênero e sexualidade na educação infantil.

Após a elaboração de um projeto de pesquisa, submeti ao Comitê de Ética da Unicamp e também à Secretaria da Educação Municipal, solicitando minha entrada em campo. Atendido, pude ir a campo na educação infantil: em um CEI (Centro de Educação Infantil - 0 a 3 anos) e em uma EMEI (Escola Municipal de Educação Infantil - 4 a 5 anos e 11 meses) ‒ esta última, onde foi realizada a pesquisa.

É importante ressaltar que esta será a primeira tese de doutorado realizada na educação infantil desse município, abrindo espaço para que outros/as pesquisadores/as da cidade e/ou região possam dialogar, contribuindo para novos olhares e propostas educacionais.

Em fevereiro de 2017, junto às coordenadoras das unidades, sugeri um encontro inicial com as professoras/es e monitoras/as para que eu pudesse me apresentar e apresentar as ideias preliminares da pesquisa, destacando a possibilidade de mudanças e alterações no decorrer da imersão em campo. O encontro com todas as profissionais ‒ citação no feminino, por não haver nenhum professor ou auxiliar homem nas unidades ‒, foi de grande importância para diminuir a sensação de desconfiança de um “estranho” naquele território. Estranho por duas razões: por ser um homem em um espaço composto hegemonicamente por mulheres e por ser alguém que não vinha da educação infantil. Desta forma, o universo da educação infantil, seu cotidiano e as discussões que envolvem suas políticas e debates educacionais eram novos para o jovem pesquisador com percurso em outra formação acadêmica e experiência profissional com alunos de outro ciclo e idades. Adentrar os portões da creche e pré-escola me trouxeram uma miríade de lembranças pessoais dos tempos em que era criança.

A entrada em campo permitiu novos traços no desenho deste trabalho, em particular com relação aos objetivos, podendo ser elencados em alguns pontos: a) identificar como as crianças manifestavam culturalmente seu gênero, observando a relação dessas diferenças; b) verificar como as professoras trabalhavam com as questões de gênero e sexualidade na educação infantil; c) analisar se as práticas pedagógicas das professoras contribuíam para a normatização dos gêneros; d) compreender o processo de constituição e negociação das subjetividades das crianças no espaço institucional e se havia resistências ante algumas práticas pedagógicas; e) analisar se os debates políticos municipais ocorridos na Câmara dos Vereadores e no Brasil, de forma geral interferiam no trabalho pedagógico das professoras. Os objetivos descritos acima foram possíveis por meio de algumas escolhas de caráter metodológico, como a etnografia e o uso de um questionário com as professoras.

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Com relação às características do questionário, a metodologia consistiu na elaboração de um roteiro de perguntas previamente elaboradas, sendo algumas delas fechadas, ou seja, não permitindo dissertar sobre assuntos que não aquele proposto pela questão, e também questões abertas, permitindo que a entrevistada discorresse sobre outros assuntos relacionados.

O planejamento de coleta de informações levou em consideração uma série de fatores, como a elaboração de perguntas que estivessem relacionadas aos objetivos delineados da pesquisa, e a adequação sequencial das perguntas e da linguagem. Para evitar a interferência durante a coleta de dados e informações das entrevistadas, como apontou Blanchet (1988) e Dias (1997), optei, inicialmente pela entrevista individualmente. Entretanto, mediante o pedido das professoras para responderem o questionário juntas, sob a alegação de que pudessem falar com maior “tranquilidade”, gerando um clima de menor desconforto, cedeu-se às solicitações4.

Acerca desta etapa, os autores Britto Júnior e Feres Júnior (2011) atentam o/a pesquisador/a de que é necessário mais que uma pauta completa possuindo um bom roteiro, pois é importante saber registrar e interpretar o material coletado. Para isso, os autores mencionam duas técnicas: o registro das informações em um formulário ou suporte específico para esta atividade e a gravação completa. Gil (1999) considera que a gravação é a técnica mais segura de colher os dados, dizendo:

O único modo de reproduzir com precisão as respostas é registrá-las durante a entrevista, mediante anotações ou com o uso de gravador. A anotação posterior à entrevista apresenta dois inconvenientes: os limites da memória humana que não possibilitam a retenção da totalidade da informação e a distorção decorrente dos elementos subjetivos que se projetam na reprodução da entrevista. (GIL, 1999, p. 120)

A gravação das respostas das professoras assegurou maior autenticidade das falas durante o processo de transcrição e, consequentemente, do arquivamento das informações, permitindo, conforme Ribeiro (2008), que, caso ocorresse a necessidade de maiores esclarecimentos durante a análise do material coletado, o/a pesquisador/a retornasse para outras informações.

Já os registros do caderno de campo produzidos por meio do contato com as crianças e as professoras, contendo a observação entre as crianças nos espaços internos (salas) e externos (pátio, parquinho e refeitório) e também entre as professoras e as crianças, foram o material requerido para análise e interlocução com as respostas coletadas. Esse processo de

4 A mudança ocorrida no formato da entrevista foi discutida junto ao grupo de pesquisa Gepedisc, optando pela

realização em dupla, uma vez que as turmas de ambas foram acompanhadas durante o trabalho de campo, no ano de 2017.

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imersão e vivência exigiu deslocamentos, ou seja, tentativas de me despir da roupagem de adulto, para integrar-me com as crianças e participar de suas brincadeiras e sociabilidades, mesmo sabendo das impossibilidades e dificuldades que isso exigia, como nos lembra o Corsaro (2005).

A etnografia, pensada a partir de seus teóricos e dos procedimentos metodológicos (a imersão em campo), possibilitou o contato e a vivência com as crianças pequenas, permitindo estranhar o familiar nas relações cotidianas da pré-escola, mas também familiarizar-se com o estranho. Uma vez que

A etnografia estuda preponderantemente os padrões mais previsíveis das percepções e comportamento manifestos em sua rotina diária dos sujeitos estudados. Estuda ainda os fatos e eventos menos previsíveis ou manifestados particularmente em determinado contexto interativo entre as pessoas ou grupos (MATTOS, 2011, p. 53).

É importante destacar que a experiência de imersão etnográfica requer um longo período de vivência junto as comunidades e grupos estudados, permitindo uma detalhada observação, como empreendida por Geertz (1989), Lévi Strauss (1988), Woods (1986), Willis (1977), entre outros/as.

O tempo participante do pesquisador etnógrafo é importante para que ele de validade e sentidos as ações dos membros da comunidade envolvida. Assim, o objeto da etnografia é “esse conjunto de significantes em termos dos quais os eventos, fatos, ações, e contextos, são produzidos, percebidos e interpretados, e sem os quais não existem como categoria cultural” (MATTOS, 2011, p. 54).

Muitos desafios foram encontrados durante a participação etnográfica com crianças, afinal, como escutá-las? Como interagir e participar das relações de interatividade junto das crianças? Tais questões nos remetem as contribuições de autores e autoras que se dedicaram aos estudos das culturas infantis, compreendendo as crianças não apenas como produtos das relações culturais, mas também como produtoras de culturas, quais, ao apropriar-se das referenciais produzidas pelo mundo adulto, reinventam, transformam e ressignificam seus sentidos, formas, usos e operações. “O etnógrafo “inscreve” o discurso social: ele o anota. Ao fazê-lo, ele o transforma de acontecimento passado, que existe apenas em seu próprio momento de ocorrência, em um relato, que existe em sua inscrição e que pode ser consultado novamente” (GEERTZ, 1989, p. 29).

O sociólogo da infância, Corsaro em seu artigo “Entrada no campo, aceitação e natureza da participação nos estudos etnográficos com crianças pequenas” (2005) descreve desde seu primeiro dia na entrada em campo, as dificuldades enfrentadas para ser acolhido entre as

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crianças, e problematiza alguns marcadores, talvez, insuperáveis na construção da relação entre os pares, como as características físicas (tamanho) e a idade. Corsaro, interroga se esses marcadores inicialmente já oferecem resistências no contato com as crianças, pois as relações de poder estabelecidas presumem o adulto como aquele que age sobre a criança buscando o controle, a implementação das regras, as sanções punitivas em ocasiões de desobediência, entre outros aspectos.

Portanto, nossa entrada em campo exigiu desnudarmos de uma perspectiva adultocêntrica, ou seja, desta prática social que estabelece o poder aos adultos deixando as crianças com menos liberdade devido a hierarquização cultural para que pudéssemos observar as culturas infantis.

Nesta tese, além das abordagens metodológicas acima descritas, outras formas de abordagem foram consideradas: documentações, como as transcrições das atas do debate sobre a inserção dos projetos de gênero no Plano Municipal de Educação, folhetos, matérias de jornais e imagens confeccionadas e divulgadas por sites e instituições religiosas de denominação católica e evangélica, no Brasil e no município avaliado; também ilustrações de livros, charges e algumas aquarelas produzidas a partir das leituras dos fragmentos etnográficos usados do diário de campo, feitas pelo meu amigo e artista plástico Dirceu Villa Verde ‒ que não é pesquisador da área educacional e da infância, mas que carinhosamente ousou interpretar as interações e produções entre as crianças, presenteando esta tese com seus desenhos pintados em tinta aquarela, dando vida e cor às palavras que aqui se tecem, componentes marcantes do mundo infantil.

Esta tese está dividida em quatro capítulos. No primeiro capítulo “Ideologia de gênero: um breve histórico” busca-se construir, de forma cronológica, o surgimento desta expressão (ideologia de gênero) e sua chegada no Brasil, assim, como os autores responsáveis pela difusão na América Latina e suas articulações com os segmentos religiosos que passaram a combater as políticas para a equidade das relações de gênero e sexualidades com base em suas interpretações fundamentalistas. Ainda neste capítulo, é realizada uma contextualização dos debates de gênero e sexualidade na Câmara Municipal, por meio das transcrições da ata ordinária da sessão5, levantando questionamentos acerca das ressonâncias advindas do pânico

moral provocado, sobretudo através da esfera legislativa, na pré-escola do município, e no trabalho e planejamento pedagógico das professoras.

5 A cópia da transcrição das Atas Ordinárias da Câmara Municipal foram conseguidas nos arquivos da própria

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No segundo capítulo “Poderes, brinquedos e fantasias: a entrada em campo no Centro de Educação Infantil”, são relatadas, com base na experiência etnográfica e nos registros do diário de campo, as dificuldades enfrentadas no processo de imersão no Centro de Educação Infantil e em seguida na Escola Municipal de Educação Infantil ‒ este último, território em que se desenvolveu esta tese ‒, buscando, na mesma direção das pesquisas do Gepedisc-Culturas Infantis, analisar as produções das culturas infantis entre as próprias crianças e também entre crianças e adultos, atento às negociações realizadas acerca das relações de gênero e dos papéis sociais desempenhados. Este capítulo convida o/a leitor/a a repensar as categorias binárias [masculino e feminino] e as resistências simbólicas das crianças com relação à cultura e às ordens prescritivas que visam constituir identidades normatizadas.

O terceiro capítulo “Eu sou a musa: um passeio etnográfico pelas múltiplas experiências de gênero”, destaca as múltiplas possibilidades de masculinidades e feminilidades para além dos modelos usuais, ou seja, como as culturas infantis produzem outros sentidos e ressignificações sobre a utilização de objetos, adereços, brinquedos, roupas, cores, etc. possibilitando uma experiência da infância menos restritiva e coercitiva. O capítulo traz fragmentos dos discursos e debates dos legisladores na Câmara Municipal que passam a demonizar outras expressões de gênero e sexualidades desarticuladas do modelo tradicional e binário herdado do processo colonizador e heterossexual.

No subtítulo “Da mulher Hulk aos xingamentos: disputas e duelos em torno do feminino”, foi problematizado o lugar da feminilidade e sua dimensão com a anatomia sexual, levando as crianças a recorrerem a significantes e imagens do masculino ‒ para caracterizarem comportamentos ‒, e a condutas das meninas ‒ transformando a feminilidade em um território de disputa e despertando a questão: o que é ser mulher?

Em “Para ser mulher você tem que se fantasiar: performances e sexualidade infantil” é destacado o diálogo entre as crianças que passam a problematizar a mulher – enquanto categoria biológica –, mas também a mulher na sua dimensão performativa, levando em consideração os referenciais de feminilidade da cultura ocidental, como adornos, roupas, movimentos, vestimentas, entre outros. Recorreu-se ao conceito da filósofa Butler sobre “performatividade” para analisar o diálogo entre as meninas. Outra preocupação diz respeito à sexualidade infantil e suas manifestações na escola, assim como a implicação desta na constituição subjetiva.

O último capítulo, denominado “Diálogos sobre identidade na Educação Infantil”, trata do questionário aplicado com as professoras da pré-escola em que se desenvolveu o trabalho etnográfico. Os dados coletados permitiram fazer uma análise da articulação vista no contexto

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político, ou seja, no modo como o Brasil e o município, em particular, vivenciam os debates acerca da ideologia de gênero, como das ressonâncias nas práticas pedagógicas na pré-escola.

Nas considerações finais busco, a partir dos resultados obtidos, análises sobre o processo de constituição subjetiva das crianças, levando em consideração a produção das culturas infantis, suas resistências às leis e ao desejo dos adultos sobre elas, e também a ressonância das manifestações dos vereadores que buscam deslegitimar e demonizar os estudos de gênero e sexualidade na educação, percebida pelas professoras como uma verdadeira “tempestade em copo d´água”.

É importante destacar que o contexto de produção dessa etnografia realizada no ano de 2017, se difere da conjuntura política governamental atual. Com a chegada dos grupos de extrema direita ao poder e suas ocupações em cargos estratégicos da República Federativa, o Brasil assistiu à institucionalização de ideias e à legitimidade de discursos que desconsideram as produções acadêmicas e científicas sobre os estudos de gênero no país, assim como as estatísticas de violência em decorrência da cultura nacional que está assentada sob o machismo e o legado do patriarcado colonizador. Recentemente, a ministra da família Damares Alves sob os holofotes da imprensa afirmou que uma nova Era começa no Brasil, em que “meninos vestem azul e meninas vestem rosa6”, uma alusão normativa que ironiza outras possibilidades de se constituir homem ou mulher sem as referências que muitos grupos conservadores consideram emanadas de uma suposta natureza divina. Portanto, desde 2017, novas ofensivas passaram a coibir, perseguir e responsabilizar as professoras e professores que resistissem a uma concepção de mundo pré-iluminista.

6Fonte:<

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1 Ideologia de gênero: um breve histórico7

As discussões sobre a ideologia de gênero aparece no interior da Igreja Católica e do movimento nacional e internacional denominado Pró-Vida e Pró-Família8 após duas conferências internacionais de grande relevância: a Conferência das Populações9 realizada em

1994 no Cairo (Egito) e a 4ª Conferência Mundial sobre as Mulheres10 realizada em Pequim (China) em 1995, como lembram os autores Cornejo-Valle e Pichardo (2017). A partir desses eventos, Dale O´Leary ̶ delegada do Pró vida e Pró-Família ‒, elabora um documento intitulado “The Gender Agenda”11 com a intenção de resistir às mudanças e às transformações políticas

relacionadas às questões de gênero que têm ocorrido no mundo em vários campos, como na saúde e na educação. Mas é somente no ano de 1998 que o termo “ideologia de gênero” será empregado em uma conferência, denominada “Ideologia de gênero: sus peligros y alcances”12,

ocorrida em Lima, no Peru.

Para essas instituições cristãs, as políticas de gênero adotadas por vários países caminham em direção a um movimento contra a vida, por favorecer as demandas de movimentos sociais, tais como os feministas e LGBTs (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Transgêneros) e questionar a natureza da reprodução humana. Nesse sentido, as demandas desses ativismos, como o direito legal ao aborto e a constituição de famílias homoafetivas representam uma ameaça para a tradição da família cristã, uma vez que o conceito de gênero possibilita redimensionar e ampliar a noção de identidade humana, afrontando as barreiras entre masculino e feminino e do que é ser homem ou mulher socialmente.

Sobre o emprego terminológico “ideologia de gênero” e suas políticas conservadoras, expressam os autores Cornejo-Valle e Pichardo (2017, p. 6):

7 A concepção histórica do aparecimento e uso da expressão “ideologia de gênero” foi discutida em palestras e

vídeos pela professora e pesquisadora Jimena Furlani, da Universidade do Estado de Santa Catarina. Em contato com a pesquisadora, ela destacou não ter publicado a pesquisa, contudo, disponibilizou-me vídeos e textos com as obras utilizadas. Posteriormente, realizei um levantamento da leitura bibliográfica para averiguar e confrontar as informações. O texto resultado deste movimento encontra-se acima, com o subtítulo “Ideologia de gênero: breve origem do termo”.

8 <http://www.providafamilia.org.br/site/index.php.html>. Acesso em: 19 mar. 2017. 9 <http://www.unfpa.org.br/Arquivos/relatorio-cairo.pdf>. Acesso em: 19 mar. 2017.

10 <http://www.onumulheres.org.br/wp-content/uploads/2014/02/declaracao_pequim.pdf>. Acesso em: 19 mar.

2017.

11 O´LEARY, Dale. The Gender Agenda: redefining Equality, Lafayette, 1997.

(21)

En el caso particular del catolicismo, se opta por usar la expresión “ideología” en su sentido marxista como una estrategia consciente de la influencia del lenguaje en la formación de la opinión pública (López-Trujillo, 2006:8), a fin de denunciar el carácter ilusorio del término “género”, en cuanto construcción social. En este sentido, a la perspectiva de género, renombrada como “ideología de género”, se le atribuye la perversión interpretativa de promover los derechos humanos como herramientas para las reivindicaciones de las mujeres y de las minorías sexuales jugando a la confusión terminológica.

Tendo em vista que as políticas para a equidade das relações de gênero atualmente permeiam a jurisdição de vários países, estendendo direitos a pessoas trans, integrantes do movimento Pró Vida e Pró-família passaram a afirmar que as organizações internacionais, como a ONU (Organização das Nações Unidas) e a União Europeia, são responsáveis pela incitação da construção de políticas públicas e de uma visão de mundo nesse sentido. A insatisfação de grupos conservadores e ligados aos movimentos religiosos encontra-se publicada, sob o título: Contra o cristianismo: a ONU e a União Europeia como nova ideologia (ROCCELLA; SCAFFIA, 2014) e discorre sobre a ameaça que essas instituições representam para o futuro da família cristã.

Outra importante referência para entender a apropriação, utilização e os deslocamentos conceituais contrários às políticas de gênero é o livro do argentino Jorge Scala13, traduzido para o português em 2015, com o título Ideologia de gênero: o neototalitarismo e a morte da família (SCALLA, 2015). Neste livro, o advogado Scala, conhecido por suas posições ortodoxas contra o direito reprodutivo das mulheres, desenvolve argumentos para conter a aprovação de leis que ampare e promova a equidade nas relações de gênero, afirmando caminharmos para uma política da morte.

O autor ressalta que a ONU desenvolveu uma “agência do gênero” e que esta agência dedica-se a controlar que todos os organismos e programas da ONU incluam o gênero em suas agendas. Conforme o autor, a União Europeia e o Banco Mundial condicionam os empréstimos para o desenvolvimento dos países pobres, por cláusulas da difusão de gênero (SCALA, 2015).

A mal chamada […] “perspectiva” […] de gênero, é, na verdade, uma ideologia. Provavelmente a ideologia mais radical da história, posto que – ao impor-se –, destruiria o ser humano em seu núcleo mais íntimo e, simultaneamente, acabaria com a sociedade. (SCALA, 2010, p.7)

13 Na América Latina, o livro de Scala teve influência importante, sendo o combate contra o que denomina como

“ideologia”, o que justificou manifestações que vão desde movimentos a favor da família tradicional até manifestações contra políticas de governos de esquerda. Iniciada na Argentina e no Brasil, a disseminação da gramática político-moral da noção de ideologia de gênero já alcançou, em 2016, países como o México e a Colômbia, contribuindo, no caso do primeiro para a luta contra a aprovação do “matrimonio sin discriminación” e, no último, para a vitória do não à paz no plebiscito que visava referendar o acordo com as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (FARC). (MISKOLCI; CAMPANA, 2017, p. 726).

(22)

No Brasil, as tensões sobre os debates para se discutir gênero e sexualidade nas escolas emergiram a partir de 2011:

A hegemonia da noção de “ideologia de gênero” se estabelece no Brasil a partir de 2011, ano em que o Supremo Tribunal Federal (STF) reconheceu que a união entre pessoas do mesmo sexo tinha o mesmo status do casamento heterossexual. No mesmo mês da decisão do Supremo, ganhou notoriedade nacional a polêmica sobre o material didático do programa “Escola sem homofobia”, apelidado pelos conservadores de “kit gay”, que seria distribuído em seis mil escolas públicas, mas que, depois de forte oposição, foi vetado pela presidente Dilma Rousseff. Christina Vital e Paulo Victor Leite Lopes (2013) analisaram em detalhe a atuação de parlamentares evangélicos neste caso, desde fins de 2010, mostrando como a Frente Parlamentar Evangélica volta-se fortemente contra o material seis dias após a aprovação pelo STF da união entre pessoas do mesmo sexo. (MISKOLCI; CAMPANA, 2017, p. 738)

A partir de 2014, com a abertura das câmaras municipais e estaduais de todo o país para as sessões legislativas de aprovação dos Planos Municipais e Estaduais de Educação, como nos lembram Nascimento (2015) e Barreiro et al. (2017, p. 3), os debates se acaloraram:

A polêmica se desenrola desde 2014 com a aprovação do Plano Nacional de Educação (PNE) na Câmara dos Deputados que alterou a redação aprovada em 2012, suprimindo do texto sobre as desigualdades educacionais a “ênfase na promoção da igualdade racial, regional, de gênero e de orientação sexual” (2014:22), substituída genericamente por “ênfase na promoção da cidadania e erradicação de todas as formas de discriminação” (2014:12). A partir de então, a pauta seguiu para os municípios e o debate nas Câmaras dos Vereadores em todo o país tem sido marcado por preconceitos e homofobia no combate ao que se rotulou de “ideologia de gênero”.

É importante, sem dúvida, resgatar parte do contexto histórico que permitiu a construção de uma arena de batalha nacional em torno do tema e quais as suas ressonâncias no munícipio em que esta pesquisa é realizada.

1.1 As tensões sobre os projetos de gênero e sexualidade na educação brasileira: ressonâncias municipais

O crescente número de pesquisas e estudos que vinham se desenvolvendo, a partir dos anos 1980, acerca das questões de gênero e sexualidade, particularmente nos Estados Unidos, Canadá e países europeus, adquiriu notoriedade no Brasil a partir dos anos 1990, estimulando o interesse de pesquisadores/as e professores/as com relação a essas temáticas que passaram a dar maior atenção às demandas que emergiam desses segmentos sociais, vistos como minoritários em direitos. O autor Miskolci, afirma em seu livro Teoria Queer: um aprendizado pelas diferenças (2012) que os estudos Queer no Brasil, diferentemente dos outros países,

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chegaram aqui pelo campo da educação14, tendo em vista seu caráter disciplinar e suas dimensões de violência contra outras expressões da sexualidade humana e das identidades que escapavam aos regimes de normalização.

[...] A acolhida brasileira da Teoria Queer na área da educação pode estar ligada a uma compreensível sensibilidade crítica de nossas educadoras e educadores com relação às forças sociais que impõe, desde muito cedo, modelos de comportamento, padrões de identidade e gramáticas morais aos estudantes, sobretudo crianças e jovens. Trata-se, portanto, de uma acolhida positiva e louvável, pois é bom saber que o público da área de educação tem interesse e está fazendo algo que, em outros países, permanece como uma especulação desvinculada da prática e, por isso mesmo, menos apta a interferir e impulsionar a mudança social. (MISKOLCI, 2012, p. 36)

Assim, ao longo das últimas décadas no país, passaram a se formar em diversas e diferentes faculdades e institutos universitários, grupos de pesquisas e estudos tendo como objeto de atenção as desigualdades assinaladas entre homens e mulheres, e também de sujeitos que não gozavam de seus direitos básicos, como educação, saúde e segurança, por razões relacionadas à constituição subjetiva de sua sexualidade e de sua identidade de gênero.

Os autores(as) Andrade; Macedo e Oliveira, no artigo “A produção científica em gênero no Brasil” (2014) ‒ resultado de uma pesquisa científica em que expõem levantamentos e dados estatísticos ‒, apresentam com gráficos o crescente aumento dos grupos de pesquisa nesse segmento, tendo como foco a área administrativa.

Não apenas na área administrativa, como nas ciências humanas e na educação, em geral, os estudos de gênero e conjuntamente de sexualidade passaram a expandir-se e consolidar-se no país a partir da metade dos anos 1990, como apontou Zirbel em sua dissertação de mestrado “Estudos feministas e estudos de gênero no Brasil: um debate” (2007). Esse crescimento, em especial, no campo da educação foi destacado no site da Anped (Associação Nacional de Pesquisadores em Educação), como argumento da preposição de passagem do GE 23 para GT 23 em 2005:

Por um lado, observamos um número cada vez maior de teses de doutorado e dissertações de mestrado que assumem gênero e sexualidade como seu foco central ou, pelo menos, como dimensões indispensáveis para a constituição de seus objetos de estudo, bem como teses e dissertações que analisam ou propõem projetos de educação sexual nas escolas brasileiras; registramos também um aumento de publicações na área (livros, artigos e mesmo algumas revistas de projeção internacional, como a Revista de Estudos Feministas e a Pagu) e, por outro lado, continuam os nossos cursos de formação e qualificação de docentes beneficiando-se muito pouco de toda essa produção.

14 Guacira Lopes Louro é considerada uma das expoentes nos estudos Queer no Brasil. Dentre seus livros

destacam-se: Ensaio sobre sexualidade e Teoria Queer e Gênero, Sexualidade e Educação. Citamos também o artigo “Teoria Queer: uma política pós-identitária para a educação”

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[...] Acreditamos que essas considerações já se mostram suficientemente fortes para embasar nossa proposição de passagem do GE Gênero, sexualidade e educação para a condição de GT. (GT3, 28ª REUNIÃO ANUAL DA ANPED)

Grande parte desses estudos questionava o processo de naturalização dos corpos e a conformação de identidades por meio de práticas regulatórias de gênero (BUTLER, 2008), assim como a incidência biopolítica na sexualidade humana, que nunca cessou de regulá-la por meio de técnicas institucionalizadas e discursos úteis, como afirmou Michel Foucault em seu primeiro volume de História da Sexualidade (2010).

A empreitada desconstrutivista sobre o sexo, a sexualidade e os papéis de gênero começa pouco a pouco a ramificar-se, conquistando espaços políticos e pedagógicos. As demandas que emanavam de diferentes movimentos sociais e suas lutas políticas encontraram, apesar dos atritos, espaços de diálogos com as pesquisas acadêmicas, promovendo propostas construtivas para se pensar uma educação que buscasse combater as estratégias de discriminação social e de violências a que muitas pessoas estavam submetidas. Ao longo dos anos 2010, algumas iniciativas foram pensadas junto ao Ministério da Educação com o intuito de inserir nas escolas públicas maiores informações e debates sobre a homossexualidade, como o projeto Escola sem Homofobia15, nomeada por “Kit Gay” pelos setores mais conservadores do Parlamento e do Senado brasileiro e vetado em 201116.

Figura 1 - Proibição do Kit para combate à homofobia

Notícia publicada pelo site G1 em 25 de maio de 2011.

Fonte: <http://g1.globo.com/educacao/noticia/2011/05/dilma-rousseff-manda-suspender-kit-anti-homofobia-diz-ministro.html>. Acesso em: 15 mar. 2017.

15 <https://novaescola.org.br/conteudo/84/conheca-o-kit-gay-vetado-pelo-governo-federal-em-2011>. Acesso em:

30 jan. 2017.

16

(25)

Em 2015, a lei PLC 122 (Projeto de Lei Complementar) que criminalizaria a homofobia foi vencido pelos setores de oposição ao governo e arquivado17 no Senado pelos mesmos grupos ligados aos setores religiosos e conservadores, e paulatinamente os projetos de leis e programas que buscavam o reconhecimento das diferenças sexuais e de gênero foram derrotados, sob diversas acusações, dentre elas o de que criminalizaria opiniões acerca da homossexualidade.

Em outubro do mesmo ano, a comissão especial pela elaboração do estatuto da família (PL 6583/13) aprovou um texto afirmando que a entidade familiar é formada a partir da união entre um homem e uma mulher, por meio de casamento ou de união estável, e a comunidade formada por qualquer dos pais e seus filhos18. Dessa forma, o texto aprovado do estatuto da família, e encaminhado para o Senado, excluía os casais homoafetivos e outros arranjos familiares.

Figura 2 - A formatação das famílias

Charge desenhada pela cartunista Laerte Coutinho após a aprovação do texto do Estatuto da Família. Fonte: <https://acasadevidro.com/tag/laerte-coutinho/>. Acesso em: 19 mar. 2017.

Ainda em 2015, as tensões entre os grupos políticos e setores da sociedade aumentaram, envoltos às problemáticas referentes à inclusão de propostas para se discutir relações de gênero e sexualidade na educação pública nacional, denominadas por algumas bancadas no Congresso e Senado Federal por “Ideologia de gênero”.

17<http://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2015/01/07/projeto-que-criminaliza-homofobia-sera-arquivado

Acesso em: 16 fev. 2017.

18

http://www2.camara.leg.br/camaranoticias/noticias/DIREITOS-HUMANOS/497879-CAMARA-APROVA-ESTATUTO-DA-FAMILIA-FORMADA-A-PARTIR-DA-UNIAO-DE-HOMEM-E-MULHER.html>. Acesso em: 19 fev. 2017.

(26)

Para Cornejo-Valle e Pichardo (2017, p. 6-7), esta expressão “ideologia de gênero” se trata de um

juego de distorsión semántica intenta menoscabar las connotaciones positivas del término “género” (asociadas a la igualdad entre hombres y mujeres como valor) al tiempo que impone nuevas connotaciones negativas: asociándolo al concepto de “ideología” que equiparan a “falsedad” (frente a su discurso “verdadero”) e identificando el término “género” hacia lo que la Iglesia Católica llama “una cultura de la muerte”. Esta deformación semántica viene acompañada por una segunda estrategia clave: activar y promover el pánico moral frente a los avances en el reconocimiento de los derechos sexuales y contra el feminismo y el movimiento LGBT.

A disputa travada pela aprovação, ou não, das discussões de gênero nas escolas ocorreu em todas as câmaras municipais e estaduais do Brasil, como nos lembra Barreiro e Martins (2017) no artigo “Bases e fundamentos legais para as discussões de gênero e sexualidade em sala de aula”, mobilizando diferentes setores sociais para participarem das discussões, interpretadas por aqueles que posicionavam-se contra, como uma afronta à família tradicional brasileira, aos bons costumes e à violação da natureza humana compreendida como divina. Com o objetivo de censurar as discussões de gênero na educação básica, inúmeros instrumentos foram desenvolvidos para conter o avanço de ideias progressistas e humanitárias desde a pequena infância. Abaixo, encontram-se alguns exemplos:

Figura 3 - Os perigos da ideologia de gênero

Cartilhas e cartazes publicados em blogs alertando as famílias sobre os “perigos” que os/as filhos/as enfrentariam caso as discussões de gênero fossem aprovadas.

Fonte: <http://g1.globo.com/minas-gerais/triangulo-mineiro/ noticia/2016/06/cartilha-contra-ideologia-de -genero-em-escolas-gera-criticas-vereador.html>. Acesso em: 16 fev.2017.

(27)

Figura 4 - Você já ouviu falar sobre ideologia de gênero?

Folheto divulgado no site do Observatório Interamericano de Biopolítica induzindo os pais a associar os estudos de gênero ao perigo.

Fonte: <http://biopolitica.com.br/index.php/cursos/40-voce-ja-ouviu-falar-sobre-a-ideologia-de-genero>. Acesso em: 19 fev. 2017.

Folhetos como os destacados acima foram publicados e espalhados em redes sociais, blogs e diversos sites, de instituições religiosas e/ou partidárias.

No município, Câmara dos Vereadores votou em unanimidade pela exclusão dos debates de gênero nas escolas da rede municipal, promovendo eventos e publicações com o objetivo de informar a população da cidade sobre os denominados “perigos” que a família brasileira enfrentaria, caso aprovado o texto em sessão. Os vereadores fundamentaram a justificativa de seus votos por um viés religioso, sendo importante destacar que apesar de nem todos os membros da Câmara serem evangélicos, ou pertencentes a um mesmo segmento evangélico, a mobilização pela estigmatização do tema e o “pânico moral” promoveram esforços no intuito de articularem-se para a votação19.

Para o professor e pesquisador Almeida (2017, p. 7):

A presença das religiões nos poderes da República são expressões de alguns deslocamentos na estrutura social brasileira. Os evangélicos ascenderam demograficamente e produziram seus canais políticos no Legislativo e no Executivo, mas em menor incidência no Judiciário. Eles têm demonstrado forte capacidade de indução do voto, mais do que qualquer outra religião no país.

19 Ronaldo Almeida (2017) nos chama a atenção, evitando uma análise equivocada, ao considerar que todos os

segmentos evangélicos comungam de uma mesma pauta política, inviabilizando a percepção de disputas políticas internas entre os diferentes segmentos.

(28)

Figura 5 - O inimigo da família dentro das escolas

Folhetos das palestras sobre “Ideologia de gênero” divulgadas em sites e panfletos pela cidade. Fonte: Arquivo pessoal do autor.

Nos anos 2015 e 2016, como pode-se verificar nos títulos dos cartazes, as palestras e a abordagem dos conteúdos ilustrados estão em consonância com aqueles desenvolvidos em instâncias federativas por militantes contrários às propostas de gênero nas escolas, podendo, dentre eles, serem destacados o senador e pastor Magno Malta, o pastor Marco Feliciano e o deputado Jair Bolsonaro. Além desses nomes, cuja visibilidade é nacional, é importante mencionar os membros ligados ao movimento da Igreja Católica e também do movimento Pró-vida e Pró-família, tais como o padre Paulo Ricardo de Azevedo Junior, o professor Felipe Nery, o padre José Eduardo de Oliveira e Silva e a professora Fernanda Takitani. No segmento evangélico incluem-se o pastor Silas Malafaia, a professora Damares Alves20 e a “ministra evangélica” formada em psicologia Marisa Lobo. Todos esses nomes estão reunidos no Observatório Interamericano de Biopolítica21, instituição que se dedicou em agrupar essas

20 Ao longo dos anos em que esta tese vem sendo escrita, os grupos de extrema direita liderados por Jair Bolsonaro

disputaram as eleições presidenciais, assumindo a Presidência da República em janeiro de 2019, nomeando Damares Alves como ministra da mulher, da família e dos Direitos Humanos.

21 “O Observatório Interamericano de Biopolítica é uma organização de cidadãos livres, conscientes e ativos

dedicada à defesa da dignidade e dos direitos da pessoa humana. Reconhece que existem iniciativas parlamentares, em diversos países, que agridem e desvalorizam a vida humana inocente e procuram debilitar a proteção para mulheres e crianças. Reconhece ainda que os legisladores sofrem pressões para legalizar o aborto em nome dos direitos humanos, saúde reprodutiva ou equidade para as mulheres. Pretende, diante deste quadro, contribuir para o fortalecimento de condutas parlamentares comprometidas com a vida, família, educação e liberdade”. Texto extraído do site da organização: <http://biopolitica.com.br/>. Acesso em: 28 ago. 2017.

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narrativas e promover debates para conduzir a sociedade à compreensão e aceitação de seus argumentos, inviabilizando outras propostas educativas.

Portanto, ocorre uma discussão em nível nacional, contra as propostas educacionais de gênero e sexualidade, chamando a atenção para o impacto que essa compreensão de mundo, modulada nas conformidades de uma respectiva interpretação religiosa pode provocar nas propostas pedagógicas e educacionais, em especial da educação infantil. Esses discursos afetaram o cotidiano da educação infantil? Se sim, como? O “medo” e o “pânico” levantado pelos vereadores faz sentido?

A conjuntura política nacional e municipal se tornaram o contexto, ou o chamado “pano de fundo” desta pesquisa, portanto, desconsiderá-lo seria ocultar as tensões e os debates que permeiam os espaços da educação.

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2 Poderes, brinquedos e fantasias: a entrada em campo no Centro de Educação Infantil

Figura 6 – Entre poderes, brinquedos e fantasias

Ilustração produzida a partir da interpretação do fragmento etnográfico sobre as crianças brincando no parquinho do Centro de Educação Infantil. Desenho e pintura de Dirceu Villa Verde Filho.

Fonte: Arquivo pessoal do autor.

No dia 9 de fevereiro de 2017, em pé, em frente ao parquinho22, eu observava as crianças

brincando, correndo agitadas entre o gira-gira, a gangorra e os balanços, interagindo umas com as outras e transformando-se em personagens, super-heróis, como o “superman” e o “homem de ferro”. Personagens que, inclusive, encontravam-se estampados em algumas camisetas, mochilas e sandálias das crianças. Heróis que iam, conforme os fluxos de suas criações e inventividade produzindo “maquinicamente” ‒ como escreveu Deleuze e Guattari em O Anti-Édipo (2010) ‒, outros poderes, transfigurando-se em novos heróis, criaturas e monstros. As brincadeiras estavam marcadas por rupturas e cortes que produziam novas/outras personagens

22 A palavra “parquinho”, utilizada no diminutivo, se refere ao espaço pedagógico existente nas pré-escolas para

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e identidades. “Em suma, toda máquina é corte de fluxo em relação àquela com que está conectada, mas ela própria é fluxo ou produção de fluxo em relação àquela que lhe é conectada. É esta a lei de produção de produção” (DELEUZE; GUATTARI, 2010, p. 55).

O pé de um dos garotos que antes servia para andar, agora batendo no chão de areia provocava tremores, desestabilizando as construções, derrubando casas e prédios, mobilizando os colegas a se abrigarem. Quando um deles se agachava e uma de suas pernas girava em torno de seu corpo, não espalhava simplesmente a areia do parque em seus amigos, mas espirrava ‒ como ele ressaltou ‒, um “pó perigoso” que poderia provocar a cegueira de seus adversários, caso não se protegessem. Da palma da mão emanavam raios e poderes suficientemente capazes de derrubar pessoas e transformá-las em animais. Um dos companheiros de batalha, por descuido, atingido por um raio, tornou-se uma zebra (animal da história contada pela professora naquele dia). Contudo, o barulho emitido pela zebra era diferente de qualquer outro equino.

As meninas se agrupavam com o intuito de lutar contra aquelas criaturas, super-heróis ou seriam monstros? Não há certeza do que se tratava, do que eram, uma vez que se metamorfoseavam constantemente. Nunca permaneciam a mesma coisa. Ali o corpo não obedecia aos movimentos pelos quais foram educados. As mãos que antes seguravam as canetinhas, o copo para beber água ou o talher no refeitório, tornavam-se instrumentos de guerra, aparelhos fantasiosamente poderosos. Os joelhos, quando agachados, projetavam uma cápsula protetora do corpo, uma espécie de “domo de vidro” sobre ele, inquebrável. Os pés que serviam para levá-los ao banheiro e caminhar em fileiras já não correspondiam a este propósito, eram pés mutantes. Corpos sem órgãos, como colocou Deleuze e Guattari (2010).

Em grupo, as quatro garotas que desafiavam as criaturas e seus comparsas, gritavam, como se um ataque sonoro pudesse derrotá-los. Os braços de uma delas movimentavam-se constantemente, como uma corda ao ser chacoalhada, enquanto suas amigas, rindo, imitavam os gestos braçais indo ao encontro dos meninos. Entre risadas e empurra-empurra, gritos e mais gritos ecoavam no parque, ou seria uma arena de batalha? Uma cidade? Tratava-se de um espaço “desterritorializado”, em que o balanço deixava de ser apenas um pedaço de madeira com correntes, em que o gira-gira, o trepa-trepa e os demais brinquedos transformavam-se, a partir de cada uma das crianças, em um singular imaginário povoado pela fantasia. Fantasias compartilhadas. As mentes operavam como máquinas desejantes, produzindo suas próprias referências, linguagens e relações culturais.

Nesse momento, uma voz vinda do fundo do parque ordenava para que algumas crianças parassem de gritar, exclamando haver outras em salas, e que todo aquele barulho poderia

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atrapalhá-los. Os corpos aquietaram-se. Era a professora de uma das turmas do Centro de Educação Infantil (CEI) que se aproximava.

Ao meu lado, ela inicia uma conversa, perguntando se eu realizava estágio na educação infantil. Respondi que não, pois tratava-se de um trabalho de campo com as crianças e com as professoras – uma pesquisa de doutorado – me possibilitando aprender e contribuir com a experiência. Questionado sobre o meu objeto de estudo, respondi que o olhar da pesquisa voltava-se para as questões relacionadas à produção de identidades, em especial, abordando temas como: gênero e sexualidade na infância.

Se mostrando interessada pelos temas, a professora responde que estava ali há apenas duas semanas naquele ano (2017), em caráter de substituição, em decorrência da ausência da docente responsável pela turma, mas que no ano anterior (2016) havia permanecido por alguns meses no CEI, tendo a oportunidade de conhecer um garoto “nada convencional”, chamado Felipe23 (5 anos) que atualmente encontrava-se na EMEI ao lado. Então, me perguntou:

- Você chegou a conhecer o Felipe? Respondi que não, questionando quem era.

- O Felipe, atualmente, está no prédio ao lado, aqui no “prézinho”. Os pais são “testemunhas de Jeová”, muito religiosos, e não sabem como lidar com a situação. - Que situação? Perguntei. (Fragmento do diário de campo, fevereiro de 2017)

Nesse momento, a professora olhou para os lados, observando se havia alguém por perto e baixando o tom de voz, como se fosse contar-me um segredo, disse:

O Felipe é um aluno que só brinca com as meninas, fala mole e é cheio dos “trejeitos”. Ele quase nunca está com os meninos, a não ser quando na brincadeira estão todos, quando brincam com o baldinho na areia. Além de brincar só com elas, ele gosta de brinquedos de meninas, como: boneca, lacinho de cabelo, pulseiras, tudo que é do universo feminino. Você acha que isso já é um indício? Você sabe, né... será que ele vai ser gay? (Fragmento do diário de campo, fevereiro de 2017)

Pedi para que ela contasse um pouco mais sobre o Felipe, então comentou:

O ano passado (2016) na hora dos cantinhos, o Felipe estava brincando. Ele havia colocado uma tiara, segurava uma bolsa nas mãos, estava com um tecido no ombro. Eu observava, sem me intrometer, porém, meu celular apitou, eu havia recebido uma mensagem. Quando peguei o celular para visualizar, ele me olhou e achou que eu estava tirando uma foto dele. Coitado! Ele veio correndo dizer para não tirar foto! Estava desesperado, achando que eu tinha fotografado. Eu respondi que só estava vendo uma mensagem.

Os pais dele não sabem como lidar com tudo isso. O pai não aceita, porém a mãe acabou comprando uma boneca pra ele. Deve ter sido escondido do pai. Acho que esses conflitos aparecem por conta da religião, ainda mais agora com esses assuntos de gênero.

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Hoje em dia tem mais crianças assim do que antigamente, você não acha?

(Fragmento do diário de campo, fevereiro de 2017)

A professora buscava respostas para compreender as razões que levavam Felipe a brincar com artefatos tidos do gênero feminino, acreditando que poderia levá-lo a uma identificação com a feminilidade, e consequentemente à homossexualidade. A fala da professora permite interrogarmos como a normatividade dos gêneros interditam experiências, uma vez que estão condicionadas a sexualidade, e esta vigiada e rigorosamente controlada.

Dessa forma, é possível perceber como as noções de gênero encontram-se, ainda, muito imbricadas ao sexo e à orientação sexual. O dispositivo heteronormativo, como nos alertou Butler (2010), produziu um sistema inteligível e compulsório sobre as categorias sexo, gênero e desejo, como se as dimensões imaginárias de um respectivo sexo se desenvolvessem naturalmente em decorrência de um “corte simbólico”, e que o desejo devesse inclinar-se pelo sexo oposto.

Gênero e sexo, para a pesquisadora, são efeitos e não fundamentos da sexualidade. Assim, o gênero resulta de atos performativos24, tanto de nomeação, quanto de comportamentos auxiliando a estabilizar de maneira provisória a identificação com um respectivo sexo, produzindo a ilusória ideia de unidade e estabilização entre o corpo enquanto matéria, a sexualidade e as práticas sexuais.

Nessa investida, a heterossexualidade é entendida não apenas como “natural”, mas, sobretudo, como uma norma regulatória. Norma, não simplesmente por se tratar em termos numéricos, em proporção, mas, como um modelo comparativo que regula e estabelece as regras de funcionamento, produzindo “gêneros inteligíveis” (BUTLER, 2010).

Gêneros “inteligíveis” são aqueles que, em certo sentido, instituem e mantém, relações de coerência e continuidade entre sexo, gênero, prática sexual e desejo. Em outras palavras, os espectros de descontinuidade e incoerência, ele próprios só concebíveis em relação a normas existentes de continuidade e coerência, são constantemente proibidos e produzidos pelas próprias leis que buscam estabelecer linhas causais ou expressivas de ligação entre o sexo biológico, o gênero culturalmente constituído e a “expressão” ou “efeito” de ambos na manifestação do desejo sexual por meio da prática sexual. (BUTLER, 2010, p. 38)

A professora continua a discorrer sobre Felipe, dizendo:

Quem sou eu pra dizer para a criança que ela não pode brincar com isso ou com aquilo? Que mal há em brincar? É brinquedo, não oferece perigo. Às vezes, eu penso que essas questões são biológicas, sei lá, talvez hoje existam mais casos em

24 Incessantes repetições que a cultura e as instituições sociais produzem por meio das relações de poder sobre

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