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PENSAMENTO DIASPÓRICO E O “SER” EM GINGA: DESLOCAMENTOS PARA UMA FILOSOFIA DA CAPOEIRA

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Academic year: 2021

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Revista de Humanidades e Letras

ISSN: 2359-2354 Vol. 4 | Nº. 2 | Ano 2018

Luiz Rufino

Cinézio Feliciano Peçanha (Mestre Cobra Mansa)

Eduardo Oliveira

DESLOCAMENTOS PARA UMA

FILOSOFIA DA CAPOEIRA

_____________________________________

RESUMO

Este ensaio apresenta o enredamento entre reflexões dos estudos afro-diaspóricos, da crítica ao colonialismo e da emergência de pensamentos, saberes e gramáticas inscritas em presenças subal-ternizadas. Assim, reivindicamos a crítica pulsada pela condição ambivalente do “ser” na diáspora, alguns complexos de saber ne-gro-africanos transladados e ressemantizados nos fluxos transa-tlânticos e as suas políticas operadas nos interstícios da lógica colonial para propor interrogações sobre as existências e os co-nhecimentos na capoeira. Assim, a capoeira emerge neste texto como disponibilidade para problematizações filosóficas sobre o ser/saber no Novo Mundo. Para o tratamento das questões lança-remos o conceito de “ser em ginga”, um modo tático de remonta-gem do ser/saber, integibilidade, comunicação e possibilidade de uma filosofia outra assente no jogo de corpo.

Palavras-chave: Diáspora africana- Capoeira- Filosofia

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ABSTRACT

This essay presents the entanglement between reflections of Afro-diasporic studies, from criticism to colonialism, and from the emergence of thoughts, knowledge and grammars inscribed in subalternized presences. Thus, we claim the critique pulsated by the ambivalent condition of the "being" in the diaspora, some black-African knowledge complexes translated and resemantized into transatlantic flows and their policies operated in the interstic-es of colonial logic to propose quinterstic-estions about existencinterstic-es and knowledge in capoeira . Thus, capoeira emerges in this text as availability for philosophical problematizations about the being / knowledge in the New World. For the treatment of the issues we will launch the concept of "being in ginga", a tactical way of reas-sembling the being / knowledge, integration, communication and possibility of another philosophy based on the body game.

Keywords: African Diaspora- Capoeira -Philosophy

Site/Contato

www.capoeirahumanidadeseletras.com.br

capoeira.revista@gmail.com Editores

Marcos Carvalho Lopes

marcosclopes@unilab.edu.br

Pedro Acosta-Leyva

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Luiz Rufino; Cinézio Feliciano Peçanha(mestre Cobra Mansa);Eduardo Olliveira

PENSAMENTO DIASPÓRICO E O “SER” EM

GINGA: DESLOCAMENTOS PARA UMA FILOSOFIA

DA CAPOEIRA

Luiz Rufino1 Cinézio Feliciano Peçanha (Mestre Cobra Mansa)2 Eduardo Oliveira3

Cruzando a Kalunga

Engraçada a vida, a fama chegou para mim como se eu não a merecesse ou não estivesse preparado. No princípio, sentia uma certa vaidade e pensava: formidável, todos falam de mim, todos necessitam de mim, um mulatinho descendente de escravos. Terrível é des-cobrir que tudo isso é falso. Que de tudo a única coisa real foi à capoeira.

Mestre Pastinha.

O Novo Mundo se inscreve como um acontecimento duplo, tragédia e invenção. A du-plicidade aqui mencionada reivindica a força do pensamento de Du Bois (1999) e a crítica ali-nhavada por Gilroy (2008), quando o convoca para em diálogo mirar as rotas transatlânticas, tra-vessias do oceano, suas contaminações, dispersões, novos agenciamentos, experiências de morte e vida, anulação e duplicação da existência. Modernidade e dupla consciência se imbricam com marcas de um mesmo episódio, inacabado que se lança nas voltas do mundo dando o tom do que se invoca enquanto identidade afro-diaspórica.

Enquanto o colonialismo europeu-ocidental se inscreve como cisão da realidade e de produção de dicotomias, o devir que opera em seus vazios enlaça diferenças, reconfigura perten-ças e negocia as formas de jogo. A diáspora africana é curso contínuo, transe, que perspectiva a negociação não como uma forma complacente com a violência ou apaziguadora dos conflitos. A mesma opera nas frestas, dribles, rolês, gírias, pulos de deslocamento e enigmas de potencializa-ção da vida. Como Hall (2008), nos sugeriu em uma de suas reflexões, as identidades na diáspo-ra são uma espécie de reivindicação que emerge de um não lugar, nardiáspo-rativas paridas de um ima-ginário naquilo que se foi, seja ele lembrado ou traumatizado pelo esquecimento. A linguagem

1 Pedagogo, Doutor em Educação (UERJ), Pós-doutorando em Relações Étnico-Raciais (PPRER-CEFET).

2 Mestre de capoeira angola, doutorando no DMMD/UFBA, membro da Rede Africanidade e Kilombo Tenonde.

3 Professor Doutor da Faced-UFBA, professor permanente do Doutorado em Difusão do Conhecimento- DMMDC e

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Pensamento diaspórico e o “ser” em ginga: deslocamentos para uma filosofia da capoeira

borda as presenças portadoras de uma consciência dupla entre o agora e a impossibilidade de retorno.

Lembremos do Atlântico como um tempo/espaço de travessias, a liquidez, imensidão, o não retorno, acontecimento que ao ser cruzado pode torna-lo destituído de existência mesmo es-tando biologicamente vivo ou morto fisicamente e ser eternizado na ancestralidade. Não à toa, esse tempo/espaço é lembrado por aqueles que o atravessaram de maneira compulsória como sendo a “calunga grande” 4. O grande cemitério é o que nos possibilita pensar a condição de uma

existência dupla que emerge como rota de fuga para o desvio perpetrado pela agencia colonial. O chamado Novo Mundo como um contrato social pautado no homicídio, tortura, cárcere, estu-pro e escravidão é uma agência que estu-produz humanidades em detrimento da destruição de outras formas de existência.

Em uma condição dupla, que imbrica tragédia e invenção, desarranjo de memórias e a redefiniçao das mesmas é fundamental que se explore os interstícios da linguagem como registro de sabedorias que emergem nas margens do chamado Novo Mundo. Assim, propondo um giro enunciativo que venha a credibilizar as narrativas explicativas de mundo daqueles historicamen-te subalhistoricamen-ternizados, a travessia da Kalunga5se inscreve como sendo a travessia da própria linha da vida. Renascer, crescer e mergulhar no desconhecido mundo das forças invisíveis com consciên-cia é permitir-se retomar a própria história, imantar-se na ancestralidade, vibrar em outros tons, que confrontem a dominação que os antepassados foram submetidos e que permanecemos. A colonialidade se manifesta atualizando as formas de dominação, mas com a mesma essência ló-gica de terror e violência do colonialismo.

A Kalunga, narrativa assente na cosmogonia bakongo, é uma linha que divide dois mundos. O visível e o invisível, o natural e o sobrenatural, o material e imaterial, o palpável e o que não se pode pegar. Credibilizá-la como perspectiva do ser no mundo nos sugere estar em equilíbrio em dois planos da consciência. Dessa forma, nenhuma possibilidade se dissocia do outra, ambas se interligam e são necessárias. Quando estamos ligados à apenas uma dessas

4 O termo calunga grande é presente em culturas como o jongo, a macumba carioca, omolocô e a umbanda. O termo

presente nas tradições identificadas como rito/culto ancestral a memória das populações negro-africanas transladadas para as Américas na condição de escravizados, a linha dos pretos (as)- velhos, também chamada de linha das almas ou do povo do cativeiro designa a noção do oceano como um imenso cemitério. Nesse caso, a noção de calunga como cemitério transcende a ideia convencional do mesmo, pois se emprega uma compreensão de ressignificação da vida tendo como referência principal a noção de ancestralidade como a entronização da vida, presença e memória via a prática do rito. A noção de calunga como grande cemitério presente nas culturas afro-diaspóricas emerge como um desdobramento da conceitualidade inscrita com “k”, kalunga própria da tradição dos povos bakongos.

5 Kalunga, além de significar a divindade suprema ou “Deus”, também significa o mar, o oceano. Outras noções

atribuídas ao termo são os descendentes de escravos em Goiás, no Brasil, boneca elemento sagrado dos candomblés de Pernambuco e dos blocos de maracatu, no Brasil. Para os bakongo a linha da Kalunga e a linha que leva de volta a alma dos afrodescedente após a morte e reentra no mundo espiritual.

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Luiz Rufino; Cinézio Feliciano Peçanha(mestre Cobra Mansa);Eduardo Olliveira

sibilidades de expressar a existência, a outra se desequilibra e vem à tona para mostrar que ela está ali e que existe na mesma importância.

Nessa perspectiva, a condição do ser se manifesta como algo integrado entre o “eu” sensível ao mundo invisível e o “eu" terreno, visível e palpável. O gingar na linha da Kalunga é estar em movimento com um pé em cada uma dessas esferas. Porém, isso não é “estar em cima do muro”, mas experienciar a interação com os dois planos, que manifestam de maneira integra-da a fisicaliintegra-dade e a espiritualiintegra-dade integra-das coisas. O cosmograma bakongo representado em forma de encruzilhada, a linha Kalunga, marca a distinção e integração do mundo material e ancestral. Assim, circulando-a em sentido horário destacam-se quatro pontos, tukula, kala, mussoni e lu-vemba

Mussoni (ponto sul da encruzilhada), expressa o seu existir antes da sua corporificação, o sopro do espírito antes da chegada em Kala (ponto leste), a sua existência corporal, seu suporte corporal presente no universo material, sua caminhada de alma, seus conhecimentos, capacida-des e experiências. Tukula (ponto norte), expressa tudo o que a alma almeja, o seu ápice terreno e suas certezas e indecisões, suas experiências e frustrações, seu ego ou desprendimento, o que você escolhe como será lembrado e a caminhada inevitável. Luvemba (ponto oeste) marca onde se fará necessário ter essa compreensão integral da existência, uma vez que na gira da kalunga existe o momento em que o corpo se esvairá, sua alma poderá ou não ser lembrada e o espírito volta para onde ele deve estar no plano invisível, espiritual das coisas. O cosmograma bakongo como princípio explicativo acerca da existência diz sobre o ciclo da vida do Ser Humano e a in-teração com as coisas do mundo.

Sobre a perspectiva inscrita no cosmograma bakongo, Fu Kiau (1969,1980) a define como o princípio, divindade da mudança, uma espécie de força em movimento, e devido a isso, nossa terra e tudo que há nela está em dinamismo perpétuo. O próprio homem é um objeto em movimento, ele constantemente caminha em torno (around-path-goer) [n’zungi a nzila] de seu mundo inferior e superior. Assim, lançando em perspectiva o acontecimento de dispersão das populações negro-africanas nas travessias transatlântica, a partir das disponibilidades conceituais presentes na noção de kalunga dos bakongos e na conceitualidade ressemantizada como calunga dos pretos-velhos, percebemos que a duplicidade está lançada não como antagonismo, mas como ambivalência, coopresença e potencialidade criativa para outros movimentos.

Na perspectiva de outros giros e giras, como um verso improvisado diante a toada secu-lar da violência colonial emerge a questão: Quais são as possibilidades de invenção da vida dian-te a permanendian-te política de mordian-te? Partiremos de uma hipódian-tese que é aqui reivindicada e propos-ta como um rolê epistemológico, Rufino (2018), a capoeira é uma invenção negro-africana

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da nos cursos da sua diáspora que tem como marca/anseio6 identitário a tessitura de uma política em favor da vida. Como orientação ética/estética para o lançamento dessa hipótese reivindica-mos a máxima filosófica versada por Vicente Ferreira Pastinha: “capoeira é mandinga de escra-vo em ânsia por liberdade”.

Assim, na continuidade desse texto trabalharemos com dois argumentos principais, o primeiro é que os modos de ser produzidos como respostas e orientados por uma ética/estética contracultural a modernidade, Gilroy (2008), são existências de ginga. Ou seja, a ginga é o pres-supostos inteligível e existencial para os modos de ser submetidos à política de morte do coloni-alismo europeu-ocidental. Nessa perspectiva, a ginga não é meramente uma coreografia, mas o próprio substantivo que possibilita a tessitura dos repertórios comunicativos na diáspora, a ginga é linguagem e não diz meramente sobre as formas, mas sobre as existências em si.

Considerando que a condição de vida no Novo Mundo é encruzada a de morte, não co-mo oposição, mas coco-mo dupla consciência. A ginga emerge coco-mo inscrição do ser frente à polí-tica de desvio existencial. Assim, o que seria uma condição do ser vacilante é reinscrita por uma condição do ser gingada, negaceada em constante movimento e inacabamento. Essa condição emerge como tática de rasura da apreensão das identidades produzidas como subalternas pelo colonialismo europeu-ocidental. Assim, dialogamos com Tavares (2012), que nos diz que a gin-ga, portanto, é “pauta por onde se configuram os arranjos cinéticos das defesas e dos ataques. É ela um elemento essencial para a execução da prática, atuando por um efeito dissimulador da intenção”.

Nessa perspectiva, a ginga emerge como uma força existencial dotada de uma integibi-lidade que lança o “ser” em uma escrita de si que confronta os determinantes impostos pela agenda colonial. O seu efeito dissimulador, negaceado faz com que o ser pratique as frestas, os vazios deixados pela própria intenção de dominação. Assim, o ser se constitui nos fazer nas bre-chas daquilo que foi imposto para ele, ao gingar, negacear, pular nos vazios deixados o mesmo desautoriza a ordem, refaz a dinâmica do jogo mesmo que de forma provisório. Dessa maneira, se o ser se refaz na condição de ginga, a vida é interpretada como uma dinâmica de jogo inaca-bada. É nesse sentido, que os praticantes reivindicam um aforismo que diz muito sobre essa pro-blematização: “o mundo dá voltas”.

O ser em ginga, existências de ginga

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Luiz Rufino; Cinézio Feliciano Peçanha(mestre Cobra Mansa);Eduardo Olliveira

A ginga (inscrição do ser) inicia e termina o jogo (inscrição da vida) da capoeira (práti-ca de saber). Nessa perspectiva, a problematização filosófi(práti-ca que tecemos é que há uma imbri-cação e integibilidade entre essas esferas, ginga/jogo/capoeira, que traduzem a relação ser/vida/conhecimento. Assim, nas performances cotidianas escritas pelos suportes que encar-nam essa manifestação do ser, a ginga, não importa se é angola, regional estilizada ou contempo-rânea. O que se escreve nas voltas do mundo é que aprendemos muito com essa forma de pre-sença e seu devir negaceado entre equilíbrio e desequilíbrios. Mestre Pastinha comentava que antigamente o capoeirista andava gingado7, em outras palavras andava pendendo entre um lado e outro.

Em uma pequena placa na academia de Mestre Bimba, o regulamento número cinco di-zia: “procure ginga sempre”. Por sua vez, Mestre Pastinha atava o seguinte verso: “ninguém gin-ga do meu jeito cada um e cada um8”. Mestre Moraes em suas aulas manifesta: “aprenda a ginga

na roda para poder gingar na vida”. Enlaçando esses três aforismos trazemos a capoeira como rota, ação política/ética/estética pautada nos princípios da ancestralidade, da invenção, da im-previsibilidade e do jogo para lançar a inscrição de outro “ser” nos interstícios da trama colonial. Assim, a diáspora africana como um evento que é parte de uma tragédia que desterritorializa e desmantela existências lançadas a normatividade do desvio, tem seu duplo que é a inventividade, o movimento caótico e múltiplo de tessitura de pertenças, reivindicações identitárias e inscrições da existência. A ginga é a priori, a integibilidade que opera nas operações de um pensamento de fronteira, Mignolo (2008). Assim, a mesma se inscreve na ambivalência da trama colonial, que não pode ser totalizada na narrativa de redenção dos colonizadores.

Dizem que o mundo gira, acreditamos que o mundo ginga, a vida ginga, ginga com a gente, ela mandinga e quando menos se espera ela vem e te derruba no chão sem dó nem pieda-de. Uma das belezas da sapiência dos capoeiras é saber cair, daí se constituí esse brinquedo de guerrilha transgressora dos parâmetros coloniais. Sua espiritualidade se embrenha na mata para descompassar aqueles presos aos caminhos fixos. A ginga não é meramente um movimento cor-póreo, é o movimento de retomada do corpo como lócus de enunciação do ser em sua integrali-dade. O que aconteceu com Mestre Pastinha, Mestre Bimba, Mestre Waldemar da Paixão? Será que esses mestres esqueceram-se de gingar nos seu últimos momentos de vida ou foi uma

7 No meu tempo eu era capoeirista, também tinha capoeirista que andava torto mais torto como a natureza não fez

ele. Porque ele pegava um lenço e botava no pescoço, um lenço grande, uma calça boca que dava 30 centímetros de boca, chinelo de chagrin, chapéu jogado do lado direito conforme fizesse o jeito, se ajeitava nisso, né. Andava no meio da rua com aquele gingado, né... (1969).

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ção de ginga que fizeram? A ginga aposta na não obviedade, pois é dúvida comunicada na força da presença, no baile de suas performatividades.

Nessa perspectiva, defendemos que a capoeira, assim como outras esferas de saber pa-ridas na diáspora são gramáticas fundamentais para uma revisão do ser/saber/poder que apontem para ações de desestabilização da Colonialidade. Assim, reconheça-la como patrimônio da hu-manidade nos diz algo, mas tomá-la como potência que emana as invenções, táticas e luta dos seres desmantelados pelo projeto de dominação colonial enuncia sobre seu caráter como exis-tência em ginga. Uma sabedoria inconformista, rebelde, tática, antirracista e contrária à escassez produzida por um modelo de mundo avesso a diversidade. Nessa perspectiva, Oliveira (2007) comenta,

Dentro da ginga que o capoeirista descobre o seu corpo ancestral, no jogo de corpo da ginga e que o capoeirista começa a perceber, a ligação corpo, mente e percepção devem trabalhar em conjunto. A Crítica da análise cognitiva proposição e os movimentos.

A ginga é enigma que nasce da ânsia de liberdade como menciona Mestre Pastinha. Des-sa forma, não seria a ginga uma escrita em encruzilhada, uma vez que emerge como um campo de possibilidades? O corpo e os seus movimentos morada do grande senhor dos caminhos, a pró-pria expressão e imanência desse poder, aquele que volta antes de ir, que já foi lá sem nunca te saído do lugar. Exu como esfera do ser, saber e linguagem é também a esfera que se multiplica para perspectivarmos o fenômeno da ginga. Assim, é na ginga que se finge que vai, mas não vai e quando menos se espera você se lança outra rota, invenção do ser no mundo. A ginga manifes-ta a remonmanifes-tagem das sabedorias transladas na diáspora africana, uma cosmovisão que salmanifes-ta nos vazios para produzir presença de outro modo possível.

Nestas exclusões dos saberes temos de maneira concreta um total distanciamento daque-le que foi a principal arma dos negros para ativar uma resistência empreender o registro de sua história de rebeldia o seu corpo apesar de dinamitado pelo processo de escravidão e dominação o corpo negro preservou e condensou uma sabedoria pelos movimentos, pelos ritmos e pela energia, bem como pela oralidade que vem sendo transmitida como que um plano conspirativo invisivelmente instalado no interior da própria sociedade (Ta-vares, 2012).

A ginga se lança como rota inventiva para a reivindicação do ser, uma espécie de remon-tagem performática, inacabada e ambivalente das existências que são violentadas pela lógica de violência e escassez produzida pelo sistema colonial. Implicado a ginga o jogo emerge como uma espécie de o que se faz da vida. Ou seja, uma forma de responder com a própria vida ao mundo e aos outros que o interpelam. Na perspectiva de um pensamento de fronteira próprio das experiências e interlocuções tecidas na diáspora, a vida é concretude, é corpo. Dessa maneira, tudo que é vivo está para o mundo na perspectiva de se constituir enquanto corpo seja baixando em algum suporte físico, se transmutando, se dinamizando enquanto movimento ou até mesmo

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morrendo para encarnar-se na memória e rito ancestral. Assim, nessa perspectiva vida é dimen-são corporal, é nesse sentido que os capoeiras versam o conceito de “jogo de corpo”.

O jogo de corpo se inscreve como expressão de invenção daquilo que se faz da vida mesmo em condições de adversidade e precariedade. Dimensão ética e autônoma do ser, o jogo emerge como uma enunciação impossível de ser aprisionada. Assim, o jogo de corpo, em deter-minadas circunstâncias, mesmo aparentando estar aprisionado, busca forma de mostrar sua in-ventividade. Na capoeira angola o movimento de fintar (fingir fazer o movimento), nos diz que antes que se faça o outro acreditar é preciso que você acredite que o movimento vai ser feito. O jogo de corpo, nesse caso se expressa como uma tática que comunica a mudança rápida de deci-são para uma estratégia melhor no tempo/espaço necessário para aquela resposta. É nessa pers-pectiva que se escreve o caráter mandingueiro, ambivalente, inacabado e imprevisível do ser em ginga, o capoeira: antes de você convencer o outro terá de convencer a você mesmo, mesmo sa-bendo que você não fará aquilo.

Sentir, fazer e pensar, sem hierarquia e linearização, o jogo de corpo se resume em ações táticas. Penso fazendo e faço pensando. Para os capoeiras o corpo é também a instancia daquilo nomeado como mente e espírito, assim não se assume dicotomias, se reivindicamos um modo de racionalidade essa é corpórea, pois o corpo é a esfera do ser/saber e de toda sua ima-nência. É comum nas aulas de capoeira angola o mestre perguntar: o que você pensou na hora que estava fazendo certos movimentos? Assim, como é também comum questionar o porquê foi feito tal movimento em determinando momento. Ou seja, o capoeirista treina para fazer o mo-vimento pensado, assim como é necessário pensar para se movimentar. Em uma perspectiva que parte da leitura do fenômeno da capoeira como inventividade do ser/sentir/saber/fazer, conside-ramos que não há movimento sem pensamento e pensamento sem movimento, assim como cor-po desarticulado da mente e vice-versa.

O capoeirista tem a habilidade de ver sem olhar, ou seja, ‘durante a negação’, o capoeira apenas acompanha o movimento dos olhos do seu oponente, pelo olhar conhece o local vigiado pelo agressor, pois o mesmo antes de dar o golpe marcava com a vista o ponto vulnerável a ser atingido. Para evitar, assim ser descoberto, o capoeirista filiado a luta regional baiana procurava treinar e possuir um olhar manhoso ou de soslaio evitando que seus olhos fossem fixados pelo adversário eles os conservava abaixado os fintos em pon-to diversos olhando o contenpon-tor, de 'canpon-to de olho’ ou por meio de uma rápida visão de conjunto. Quando se defrontavam os contendores que possuíam essa mesma qualidade, a luta era mais perigosa e mais difícil. O capoeirista impossibilitado de se orientar pelos olhos do seu oponente aplicava o mesmo sistema de 'olhar manhoso', (Abreu, 2017, p.119).

A capoeira é esse jogo de “entrar saindo e sair entrando sem ser notado”. A chamada – o movimento de passo a dois – pode ser lida como a síntese do que é a capoeira, uma verdadeira

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encruzilhada. Ali, tem que saber entrar de mansinho para poder sair sem cair na armadilha que está ali guardada e escondida esperando o momento certo para ter pegar. Uma ratoeira armada para o rato kalunga, que no jogo de corpo, sai no momento certo antes da porta fechar. Assim, diríamos que cada golpe de um capoeira é uma chamada. Exige sagacidade para entrar e pra sair, numa ordem que frequentemente se inverte, porque nada é linear, fixo e acabado. Assim, para se viver, é preciso ser sagaz, é preciso ter jogo de corpo. Para lidar com capoeira, tem que ser inte-ligente. Para lidar com Exu tem que ser rato kalunga. Para entrar numa chamada tem que saber gingar na linha de kalunga, se não, vai se atrapalhar. É como uma metáfora sobre o viver entre os dois mundos simultaneamente sem divisão, minha mãe diria: "Um olho no gato outro no pei-xe". “Um olho no Padre outro na missa".

A capoeira como expressa no aforismo pastiniano9 é “mandinga de escravo em ânsia por liberdade (...) a capoeira é tudo que a boca come e o corpo dá”. Reivindicaremos como um saber em encruzilhada, Rufino (2018). Seu caráter de vida e jogo define quem é quem. Quem volta e quem fica. Quem vai pra esquerda e quem vai para direita. A capoeira não é partida, a capoeira é inteira. Na roda da vida, quem está no meio da roda ou na encruzilhada tem todas as possibilidades, os caminhos estão abertos.

As encruzilhadas são campos de possibilidades, tempo/espaço de potência onde todas as opções se atravessam, dialogam, se entroncam e se contaminam. Uma opção fundamen-tada em seus domínios não versa, meramente, por uma subversão. Dessa forma, não se objetiva, meramente, a substituição de uma perspectiva por outra. A sugestão pela en-cruzilhada é a da transgressão, é a traquinagem própria do signo aqui invocado. São as potências do domínio de Enugbarijó, a boca que tudo engole e cospe o que engoliu de forma transformada, Rufino (2018).

Considerações finais (Volta ao mundo)

Mestre Moraes nos ensina que existem duas rodas, a pequena e a grande roda. A peque-na roda é a da capoeira onde tudo pode acontecer, da amizade a falsidade. Nela seu melhor ami-go poder te dar uma rasteira e ainda no final sair sorrindo como se nada tivesse acontecido. As-sim, é na pequena roda que você vai se preparando, que se aprende a cair e cai bem se levantan-do com dignidade. Aluvaiá10, a potência e o saber dos caminhos nos lança na encruzilhada, seja

9 Em uma leitura orientada pelos princípios explicativos assentes na capoeira, definimos aforismo pastiniano como

uma breve narrativa verbal que enuncia uma regra, um pensamento, um princípio ou uma advertência para a roda e pra vida ao mesmo tempo em que integra o jogo de corpo e mente em uma noção de vida e sociedade. Assim, se inscreve no ar como um pensamento mandigueiro realçado pela expressividade orgânica de uma mensagem vibrante adquirida no tempo/espaço da roda.

10 Nos candomblés de Naçao Angola, Aluvaiá é o Inkisse que leva e traz informações entre os dois mundos, por isso

tido como aquele que potencializa caminhos na perspectiva das possibilidades. Em uma aproximação com os candomblés de tradição Nago Aluvaiá estabelece identificações com o orixá Exu.

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ela a roda ou a vida, é lá que se aprende a respeitar e ultrapassar os limites. Nesse sentido, a pos-tura do capoeirista desenha o fazer do ser no mundo.

Capoeira, em sentido mais amplo, se resume a um diálogo, assim diferente de um mo-nólogo, subentende-se que para seu acontecimento quem dialoga responde ao outro coma pró-pria vida. Para Mestre Moraes, é um diálogo que se inscreve como jogo, meu parceiro ou parcei-ra perde quando não tem resposta suficiente paparcei-ra minhas perguntas. Porém, na capoeiparcei-ra, como na vida, não existe de fato um vencedor, pois a conversa iniciada, orientada pelo princípio da circularidade, que perspectiva algo infinito, o diálogo nunca encontrará final. A capoeira como força inventiva é como Aluvaiá, nos dá caminhos para ser.

Nesse sentindo, o acabamento deste ensaio é provisório, como nos ensina a volta ao mundo. Assim, somos seres de caminho, transitamos nas barras do tempo. Esse, o tempo, é do-tado de sabedoria e força que nos arrebata e nos leva a jogar conforme a razão, que nesse caso não é a racionalidade moderna ocidental, mas os pressupostos da responsabilidade, da ética do jogo de corpo, saída inventiva do ser na reconstrução de suas identidades na diáspora. A propo-sição do conceito de “ser em ginga ou existência de ginga” aqui apresentado abre caminhos para a credibilização da capoeira como um complexo de saber negro-africano ressemantizado na di-áspora. Nessa perspectiva, os praticantes, a roda como instancias da vida e da arte/jogo emergem como contextos a serem lidos na potencialidade de outras formas de fazer político, educativo, ético.

REFERÊNCIAS

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Luiz Rufino

Pedagogo, Doutor em Educação (UERJ), Pós-doutorando em Relações Étnico-Raciais (PPRER-CEFET).

Cinézio Feliciano Peçanha (Mestre Cobra Mansa) Mestre de capoeira angola, doutorando no

DMMD/UFBA, membro da Rede Africanidade e Kilombo Tenonde.

Eduardo Oliveira

Professor Doutor da Faced-UFBA, professor per-manente do Doutorado em Difusão do Conheci-mento- DMMDC e Coordenador do Grupo de Pesquisa Rede Africanidades.

Referências

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