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Cabilda de facinorosos moradores: (uma reflexão sobre a revolta dos índios da Pedra Branca de 1834)

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Academic year: 2021

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DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA SOCIAL

ANDRÉ DE ALMEIDA REGO

CABILDA DE FACINOROSOS MORADORES

(Uma reflexão sobre a revolta dos índios da Pedra Branca de 1834)

Salvador,

Junho de 2009

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ANDRÉ DE ALMEIDA REGO

CABILDA DE FACINOROSOS MORADORES

(Uma reflexão sobre a revolta dos índios da Pedra Branca de 1834)

Dissertação apresentada no curso de Mestrado em História Social da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal da Bahia, como requisito parcial para a obtenção do grau de mestre.

Orientador: Profª Drª Maria Hilda Baqueiro Paraíso

Salvador,

Junho de 2009

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ANDRÉ DE ALMEIDA REGO

CABILDA DE FACINOROSOS MORADORES

(Uma reflexão sobre a revolta dos índios da Pedra Branca de 1834)

Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-Graduação em História Social da Universidade Federal da Bahia – UFBA, como parte dos requisitos necessários à obtenção do grau de Mestre em História Social.

Banca examinadora: Maria Hilda Baqueiro Paraíso

(doutora em História Social pela Universidade de São Paulo) Antônio Luigi Negro

(doutor em História pela Universidade Estadual de Campinas) Luiz Fernando Saraiva

(doutor em História pela Universidade Federal Fluminense)

Salvador,

Junho de 2009

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Agradecimentos

Agradeço primeiramente a Deus por ter-me dado forças e serenidade para levar adiante (e concluir) este trabalho de grande responsabilidade. Meus parentes merecem menção na seqüência, especialmente meu pai Keiler (com sua sapiência e simplicidade... você realmente é um maestro!), minha avó Thereza, meus irmãos Francisco, Sandro, Clara e a pequena Carol, além da querida Ana Emília e do meu grande avô Evilásio. Agradeço a todos pela compreensão e pela atenção dispensadas nas horas necessárias.

Especial agradecimento a meus parentes de Feira de Santana, notadamente a Sérvio Túlio, Servinho, Samuel, Valéria, Lílian, Mônica e Alan. Sei que devo muitas visitas a vocês e agora, com o fechamento deste curso de mestrado, eu posso pagá-las! Minha inesquecível mãe (o “passarinho” Vera Nívea), este espírito imenso que primeiro me mostrou a magia da música e a beleza da história (ainda me lembro das leituras dos livros de Monteiro Lobato)... dedico esta obra a você! A saudade é muito grande, assim como grande deve ser a sua satisfação – onde quer que você esteja – em me ver cumprir esta etapa importante e poder – mesmo que apenas intencionalmente – contribuir para a humanidade.

Gisele, Igor e Reinaldo, meus grandes colegas de mestrado! Só pelas pessoas que são, vocês já mereceriam um espaço todo peculiar aqui. Mas vocês ainda foram os meus maiores companheiros nesta caminhada, seja nos momentos difíceis, seja nos momentos mais alegres. Obrigado por vocês terem cruzado o meu caminho! Agradeço pela força e pelo espírito de grupo de Zózimo, Isabel, Bruna, Luciano Meron e Adriana. Vocês possibilitaram um arremate menos tortuoso para este trabalho. Raquelma, sempre atenciosa, meiga e compreensiva, foi também importantíssima nestes mais de dois anos de curso. Idelfonso Júnior e Ricardo não poderiam ficar de fora desses agradecimentos: eles foram companheiros de todas as horas.

Da mesma forma, um especial obrigado deve ser dado à professora Lígia Bellini, coordenadora do Programa de Pós-graduação em História Social da UFBA. Sua atenção e compreensão foram fundamentais. Soraia Ariane é também lembrada aqui. Suas informações e esclarecimentos colaboraram para que este trabalho acontecesse.

A minha paixão por história é caudatária dos grandes mestres que passaram pela minha vida. Eles me ensinaram, através do seu comprometimento, o significado de tão bela disciplina. Sou muito grato a eles e, especialmente, a Maria José de Souza

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Andrade, Zezé. A maneira como Zezé ensinava história para nós era contagiante. Se hoje eu me dedico com todas as forças a analisar o passado, é porque esta verdadeira professora e fantástico ser humano me mostrou que conhecimento é afeto.

Márcia Luzia Cardoso Neves e Raul Lomanto merecem um agradecimento todo especial. Foram eles que deram esclarecimentos indispensáveis sobre as localidades da região, possibilitando uma análise mais acurada do objeto de trabalho desta dissertação. Por fim, peço licença para falar da pessoa sem a qual este trabalho jamais aconteceria. Maria Hilda é uma profissional de gigantesco gabarito e uma pessoa de alma ímpar. O que seria de mim sem as suas sinalizações, orientações e correções. Este trabalho é um espelho da sua dedicação à história e eu sou muito feliz em tê-la como orientadora e conselheira.

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Resumo

O presente trabalho pretende analisar a revolta dos índios da Aldeia de Pedra Branca no ano de 1834. Situada na região do atual município de Santa Terezinha, no Centro-norte Baiano, Pedra Branca testemunhou uma insurreição realizada por seus habitantes, predominantemente kiriri-sapuiá. O significado histórico do levante, suas causas e consequências estarão em foco. Ao mesmo tempo, será dada ênfase às estratégias dos índios para resistir a um processo de usurpação das suas terras e de controle sobre os seus destinos. Disputas entre autoridades locais, num cenário de incertezas e tensões motivadas pela crise política do Período Regencial (1831-1840), deram contorno peculiar ao movimento, fornecendo as bases para que alianças fossem tecidas pelos rebelados, fato que foi decisivo para o rumo dos acontecimentos. O estudo desta revolta também é importante para mostrar a presença do índio na história do Brasil, colocando-os na condição de sujeitos históricos;

Palavras-chave: Revolta indígena, estratégias e opções dos índios, resistência, usurpação de terras das aldeias.

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Abstract

This present thesis intends to analyze the uprising of Pedra Branca’s village in 1834. Placed in region of Santa Terezinha Town, in Center-north of Bahia, Pedra Branca witnessed a riot carried by its inhabitants out, predominantly Indians kiriri-sapuiá. The historical meaning, its causes and consequence will be in focus. At the same time, Indians’ strategies in order to resist to process of their lands’ encroachment and control of their destines will be emphasizes. Disputes involving local authorities, in scenery of uncertainties and tensions aroused by political crisis during Period of Regence (1831-1840), rendered peculiar characteristics to the movement, providing the basis for rebels to weave alliances, which were a decisive factor to the course of the events. This research is important showing the presence of Indian in Brazilian history, putting them under conditions of historical subjects.

Keywords: Indian revolt, strategies and options of Indians, resistance, encroachment of villages’ lands.

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Sumário

Introdução………....………9

1º Capítulo: O avanço da conquista e da colonização I – O encontro das personagens...13

II – Pensando e fazendo a conquista e a colonização...14

III- O exercício do domínio e da administração e as reações indígenas...17

IV - A guerra justa e a expansão da conquista...22

V – Disputando e usando a mão-de-obra indígena nos Sertões da Bahia...26

VI - Uma nova política indigenista: a tentativa de incorporação de novos súditos produtivos e o avanço do poder dos particulares...33

2º Capítulo: “Reconstruindo” e “Inflamando” a aldeia da Pedra Branca I – Conhecendo Pedra Branca...44

II – A disputa pelas terras dos aldeamentos e os índios de Pedra Branca...47

III – A exclusão político-social, as reivindicações de participação e o prenúncio dos conflitos...50

IV – Conhecendo os atores: disputas, conchavos e alianças...58

V- As brechas de uma legislação claudicante: o estopim da revolta...61

VI- Pensando soluções e acirrando conflitos...64

3º Capítulo: “Pacificando” a Pedra Branca I – Ampliando os combates e explicando as derrotas...73

II - Um clima político propiciador de conflitos...77

III- Homens de seus tempos...83

IV- E os índios falam sobre suas mazelas...86

V- A retomada dos conflitos...91

VI – Negociando a paz...93

VII – Disputando terras e mão de obra indígena nos sertões...97

VIII – A desmilitarização do conflito...102

Conclusão...107

Fontes publicadas...111

Fontes inéditas...114

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Introdução

O Brasil mergulhava num dos mais conturbados períodos da sua história no ano de 1831. A abdicação de dom Pedro I, figura central e símbolo da independência nacional, marca o início do Período Regencial (1831-1840), fase em que o signo do conflito vigorou. Inúmeras revoltas, em diversos pontos da nação, eclodiram tão logo o trono ficou vago (esperava-se a maioridade do herdeiro de Pedro I). Esses movimentos tinham objetivos e perfis variados envolvendo, em muitos casos, alianças bastante heterogêneas, sempre guiadas por insatisfações em relação ao sistema político da regência. Todavia, enquanto membros das camadas alta e média da sociedade se revoltavam por motivos quase que exclusivamente políticos, setores das classes menos favorecidas lutavam por objetivos mais ligados às suas duras condições.

A questão indígena vivia uma fase nova desde a segunda metade do século XVIII. Em primeiro lugar, o Diretório Pombalino trouxera algumas mudanças importantes no regime de aldeamento, destacando-se a laicização da diretoria das aldeias e o maior incentivo à incorporação física e étnica dos índios ao conjunto de súditos do império português. A emancipação política nacional (1822) não veio acompanhada de uma política indigenista Clara e coordenada. Essa lacuna resultou em abusos e subtrações dos bens das aldeias. Atuando nesse sentido estavam autoridades diversas e moradores do entorno dos núcleos de aldeamento. Os conflitos tornaram-se bastante comuns e, por vezes, a saída para muitos índios era a revolta.

O Período Regencial é a época em que explode uma revolta indígena de consideráveis proporções. Um grupo de cerca de duzentos índios aldeados da Pedra Branca se rebela no ano de 1834. As motivações deste levante, o seu transcurso, assim como as suas consequências para a aldeia são o objeto deste trabalho. Previamente falando, a problemática mencionada no parágrafo anterior é a raiz daquela deflagração. Mas os aspectos peculiares da história local não deixam de exercer importante influência, ao passo que a política de aldeamento no âmbito provincial importa com a sua gestão movida por objetivos bastante pontuais e pragmáticos.

O objeto de estudo deste trabalho deve, porém, ter um tratamento adequado. A maneira como se vão abordar as fontes, assim como as inferências engendradas após seu compulsar, estarão sintonizadas com as contribuições trazidas por autores recentes no

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campo da história social e da história indígena. Regendo esse prisma, uma reversão significativa no ângulo da análise histórica tem aqui seu lugar reservado.

A busca por uma história mais enfática na visão dos grupos que não se colocavam numa posição privilegiada nas diversas estruturas sociais, a crescente preocupação com a relativização de visões e de representações da realidade atual e pretérita, além da flexibilização das visões enrijecidas sobre os mais diversos processos de dominação e de imposição, enfim, todo esse conjunto de questionamentos e discussões advindos com o transcorrer do século anterior tornará aqueles que procuram entender as sociedades - do passado ou do presente - mais cuidadosos para com a percepção das estratégias e das experiências dos vários grupos e indivíduos no fazer e refazer quotidianos das suas vidas.

No campo da história indígena, contribuições importantíssimas foram dadas no sentido de fornecer uma visão do índio como sujeito construtor de sua própria história. A análise da revolta da aldeia de Pedra Branca em 1834, desta forma, é mais uma oportunidade para trazer à tona esta dimensão. Mas ela também procurará enfraquecer uma outra visão distorcida sobre o índio. (Talvez melhor fosse falar sobre cegueira, uma cegueira metodológica!)

John Monteiro (2001) chamou a atenção de muitos para a crônica do despovoamento, uma espécie de roteiro tradicionalmente imposto à história dos povos indígenas no Brasil. Por esse script, o índio brasileiro teve com o colonizador um contato inicialmente amistoso num período conhecido como pré-colonial. É a época do escambo, do pau-brasil, das feitorias, de Diogo Álvares (Caramuru), de Catarina Paraguaçu e de João Ramalho. Com o avanço da ocupação e da exploração metropolitana, os índios passaram a ser escravizados, algo que para eles tornou-se letal, uma vez que não eram resistentes a esse regime de trabalho. Alguns grupos nativos tentaram resistir, mas foram prontamente combatidos pelos agentes da empresa colonizadora. É a época do início do ciclo do açúcar, das capitanias hereditárias, dos primórdios do governo geral e, principalmente, de Mem de Sá e dos Bandeirantes. As doenças e o escravismo dizimaram os índios, tornando-os insignificantes para a colonização açucareira (a não ser por ter legado o cultivo da mandioca e o preparo da farinha). Os que sobraram fugiram para as profundezas das matas, donde mantiveram muito pouco contato com outros grupos sociais.

Estudos importantes felizmente vêm mostrando algo bem mais além deste “índio mandioca”. O papel dos grupos indígenas na formação étnica brasileira foi

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extremamente importante. Sua contribuição não se restringiu apenas aos primeiros anos de colonização. Hoje há o entendimento de que os nativos influenciaram de diversas formas a vida da colônia. Uma visão mais cuidadosa sobre esse período mostrou que fatores como a posse da terra e o exercício de poder dependiam da relação estabelecida com sociedades indígenas que se espalhavam pelo litoral e sertão. O próprio domínio português não podia ser concebido sem a aliança estabelecida com os aborígines. Os índios contribuíram com técnicas agrícolas apropriadas aos Trópicos, seus vastos conhecimentos do meio ambiente e formas de explorá-lo, além de sua atuação como “muralhas do sertão” na defesa das vilas, povoações e propriedades dos colonos.

No Império, a questão indígena continuou sendo importante e ganhou mesmo um peso exponencial. Contribuíram para isto as discussões a respeito da identidade nacional. No terreno das questões mais práticas, vastas partes da nação continuaram a ser territórios de índios “bravios”, conforme demonstram tantos mapas provinciais da época. A consolidação do Brasil enquanto país dependia, pois, da “pacificação” do índio, uma vez que a real soberania sobre determinado território era e é condição indispensável para se conceber uma nação.

Ademais, a dimensão fundiária tocava na política de aldeamento, inferência que – mais uma vez – demonstra como a história indígena exerce influência marcante no transcorrer e na dinâmica dos eventos da evolução brasileira. Se não for assim, as questões a seguir não possuem sentido algum: Como pensar, por exemplo, os impactos da Lei de Terras de 1850 sem considerar as centenas de aldeias indígenas espalhadas pelo território brasileiro naquele século XIX (a maioria delas possuidora de uma légua em quadro)? De que forma se pode razoavelmente medir o choque entre propriedade particular e bens próprios nacionais sem levar em conta que, durante muito tempo, os terrenos das aldeias indígenas eram criados a partir de terras devolutas?

Um dos pilares em que se assenta grande parte da história do Brasil também não pode prescindir do índio. O escravismo na América Portuguesa e no Brasil não foi apenas negro: a escravidão vermelha perpassou toda história da Colônia e do Império, principalmente nos locais menos opulentos. O problema é que – muitas vezes – este tipo de escravidão vinha disfarçado sob rótulos vários, enganando não raramente as reflexões sobre essa matéria.

Quando os índios da Pedra Branca insurgiram-se no final de março do ano de 1834, iniciando um levante de proporções consideráveis, abriu-se uma oportunidade para comprovar, mais uma vez, a presença do índio na história do Brasil. Este trabalho,

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no final das contas, tentará mostrar como a vida das sociedades indígenas pesa na hora de se reconstruir a trajetória histórica deste país.

O primeiro capítulo desta dissertação tentará fornecer o histórico da ocupação da região onde se situa a aldeia, utilizando para esse fito uma análise sobre a política indigenista desde os primórdios da colonização até o século XIX. A compreensão desse processo é importante para o entendimento do cenário onde a revolta da Pedra Branca de 1834 ocorreu, uma vez que a forma histórica como a região foi ocupada determinou a natureza dos confrontos entre aldeados e proprietários. Isso fica patente quando se verifica que os problemas envolvendo grupos indígenas na região do Recôncavo baiano remontam as guerras de conquista dos séculos XVI e XVII.

Situar geográfica e historicamente a aldeia é a função do segundo capítulo, assim como o é a análise dos eventos que precederam o conflito de 1834, uma tentativa de apreender as razões que fizeram a resistência indígena chegar ao paroxismo. Nesta seção, também se insere a análise dos tempos iniciais da revolta, quando as tropas designadas pela presidência da província sofrem o primeiro revês. A retomada da aldeia e a fuga dos índios para as matas vicinais fecham as discussões desta segunda parte do trabalho.

O terceiro capítulo enfatizará a fase em que o conflito com os índios não mais se dá na aldeia. As matas do Ribeirão fornecem então a paisagem para a perseguição das tropas da Guarda Nacional aos sublevados. O processo de pacificação da região exigiu um misto de confrontação e negociação com os índios, o que cindiu o grupo de insurretos em duas partes. Desta forma, uma parcela dos índios retornou à aldeia, exigindo uma série de garantias para isto, enquanto os demais tomaram o caminho da fuga, direcionando-se para o núcleo inicial de dispersão dos seus ancestrais. Acompanhando esta última seção, um tópico tentará significar historicamente a revolta de 1834.

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1º Capítulo: O avanço da conquista e da colonização

I – O encontro das personagens

A região que hoje compreende o Estado da Bahia, quando do início do processo de colonização, no século XVI, era habitada por povos falantes de dois grupos linguísticos: tupi-guarani e macro-jê. A heterogeneidade era uma das principais características dentre os segundos, o que se pode notar pela existência de inúmeras línguas e dialetos afiliados pertencentes à mesma família.

Entre os tupi-guarani podem ser assinalados os seguintes subgrupos: os tupinambá-tupiniquim (migrando do sentido norte-sul, há cerca de um milênio antes da chegada dos portugueses, encontravam-se, à época, no litoral, região por eles ocupada recentemente); tupina (no Rio Paraguaçu); amoipirá e obakoatiara (ambos sitos nas margens do Rio São Francisco).

A família macro-jê englobava as seguintes sociedades: kiriri (extenso grupo que se subdividia em quatro ramos de acordo com os dialetos falados: kipeá, entre os rios São Francisco e Salitre, dzubukuá, também no São Francisco, sapuiá, entre os rios Paraguaçu e Contas, e camamu, localizado na baía de Camamu); camacã-mongoió, no mediterrâneo dos rios de Contas e Pardo; além dos pataxó, maxakali, malali, kutaxó, kumanaxó, kutatoi, monoxó e maconi, todos situados na região entre os rios Pardo e Doce.

Além desses grupos, os aimoré-gren-botocudo viviam, semi-nômades, entre o norte da Capitania de Ilhéus e o Rio Doce, no Espírito Santo, sem se achegarem ao litoral. Podem ser assinalados ainda os tuxá, os catembri e os natu, grupos de falas isoladas, que habitavam a região do curso baixo do rio São Francisco, assim como aqueles povos que, em períodos de seca, se deslocavam do Piauí para a região hoje pertencente à Bahia. Neste último caso, trata-se dos gueguê e dos acroá, especificamente1.

Tal era a disposição das sociedades indígenas no território foco deste capítulo. Quando da chegada dos colonizadores, as relações foram constituídas principalmente com os tupinambá da costa. O cunhadismo, espécie de associação de parentesco e alianças intergrupais, criou as condições para a constituição de importantes redes de colaboração entre os gentios e os primeiros aportados vindos do reino. A exploração do

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PARAISO, Maria Hilda Baqueiro. De como se obter Mão-de-obra Indígena na Bahia entre os Séculos XVI e XVIII. Revista de História, São Paulo. 1994.

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pau-brasil, madeira tintorial muito apreciada no circuito mercantil europeu, foi estabelecida à base de relações de escambo e do cunhadismo. Essas relações sociais, que geriram as econômicas, tanto eram usadas nas trocas comerciais legalizadas pelo aval da coroa como pelos contrabandistas franceses e viabilizaram o prestígio e o poder de algumas pessoas perante os índios, os portugueses e os franceses. Desta forma, um Diogo Álvares – cognominado Caramuru – e um João Ramalho -este atuante na futura capitania de São Vicente - vão obter êxito no relacionamento com os índios, convertendo-se em verdadeiros potentados, justamente porque vão ser hábeis em fluir no universo sócio-cultural dos aborígines.

O transcurso do tempo, não obstante, mais especificamente três décadas após a chegada de Pedro Álvares Cabral à costa nordeste, traria outras preocupações e projetos. Novas formas de relações e novas estruturas vão se estabelecer. Na conta do rei e de seus conselheiros, aglutinar, de fato, as terras recém descobertas ao Império Ultramarino Português urgia com uma força que se alimentava do recrudescimento das rivalidades entre as nações recentemente erguidas na Europa. É claro que isto implicava mudanças profundas na maneira como se vinha conduzindo a colonização nestas terras de além-Atlântico.

Inequívoco também é constatar a marcante alteração ocorrida na maneira de lidar com os gentios da terra a partir de então. Mas esclarecer e mensurar dificilmente são exercícios desnecessários e o signo desta assertiva pesa determinantemente na confabulação das indagações postas na sequência: Qual a natureza dessas mudanças? Qual o seu impacto para as relações estabelecidas entre administração colonial, colonos e sociedades indígenas nestas terras posteriormente insertas na região administrativa denominada Bahia? Diga-se de passagem, a aquiescência dessas demandas é a meta primordial da presente seção.

II – Pensando e fazendo a conquista e a colonização

A tentativa de colonizar de fato as possessões portuguesas na América inicia-se com o estabelecimento das capitanias hereditárias. A ameaça de potências estrangeiras – entenda-se Inglaterra, França e Holanda – mostrará ao rei dom João III a premência da ocupação das recém-descobertas terras do Atlântico Sul. Os reveses sofridos pelo império lusitano no Oriente também colaboraram para esta busca de um reforço nos laços de domínio territorial. Martim Afonso de Sousa recebe a missão de dar início ao povoamento efetivo das possessões da América Portuguesa. Uma Ordem Régia recebida

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em 1532 determinava a partição da costa Sul-atlântica em vastas porções de terra que, do litoral, adentravam muitas léguas para o quase-intacto sertão. A distribuição desses tratos de terra seria feita pela coroa “entre fidalgos da pequena nobreza... e funcionários da burocracia monárquica, muitos de extração burguesa” (SILVA, 1990: 57).

Essa busca inicial pelo efetivo povoamento das terras portuguesas na América, o processo de implementação das capitanias hereditárias, se assentou em alguns pilares jurídicos reguladores da administração e da exploração do território colonial. Para o primeiro caso, estabeleceu-se a figura do capitão-donatário, senhorio maior das capitanias e possuidor – mediante a carta de doação e o foral - de largas atribuições e obrigações frente à coroa. Assim, o capitão-donatário era senhor das moendas d’águas, dos engenhos de açúcar e das marinhas de sal, o que lhe proporcionava a cobrança de tributos sobres os colonos para a utilização de tais serviços e atividades. Havia ainda a permissão para escravizar e vender em Portugal 24 índios anualmente, além do direito de cobrar a vintena (5%) sobre o valor da exploração do pau-brasil. Ele ficava com a “metade da dízima do pescado, a redízima (10/10) das rendas da Coroa, a dízima dos metais, preciosos ou não, e os direitos de passagens em rios, portos e ‘outras águas’” (SILVA, op. cit.: 58).

Os amplos poderes do capitão-donatário não se encerravam no âmbito dos tributos: a alta e a baixa justiças eram seu monopólio, ou seja, a exceção da morte ou retalhamento de membros sobre pessoas de condição nobre, o senhorio destas herdades tinha alçada sobre a morte de escravos, índios e homens livres de baixa estirpe, podendo impor degredo de até dez anos aos fidalgos. Em caso de traição, heresia, sodomia ou moeda falsa, sua competência prescrevia a opção pela decretação de morte sobre qualquer classe de indivíduo sem apelação ao rei. Por fim, os donatários tinham o direito de recrutar colonos e formar tropas (SILVA, op. cit).

O instituto que regeu, a partir de 1530, o povoamento da colônia portuguesa na América foi o da sesmaria. De origens medievais (fora instituída pelo rei Fernando I em 28 de maio de 1375) e brotando num reino português devastado pela peste negra, a lei das sesmarias buscava, no contexto de decréscimo da oferta de mão-de-obra – com a consequente valorização da remuneração –, garantir a exploração agrícola. Grosso modo, ela era um conjunto de instrumentos que procurava obrigar o cultivo nos domínios, evitando assim a incidência de herdades incultas. O postulado básico do estatuto em questão era o seguinte: a propriedade da terra deveria recair sobre quem realmente possuísse condições para explorá-la. Na colônia, o transplante desta

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legislação fundiária adveio com as capitanias hereditárias. Recaía sobre o capitão-donatário o direito de doar terras aos sesmeiros dentro do seu senhorio. A capacidade de exploração da sesmaria deveria ser observada, sendo que o beneficiado deveria possuir cabedal para lavrar o trato que lhe coubesse.

Todo o projeto fracassou imediatamente. As razões foram várias e, certamente, a carência de recursos para levar a cabo a exploração da colônia era um forte motivo. A ínfima presença de colonos era nítida e preocupava os agentes empenhados no plano de ocupação e desenvolvimento da costa do Brasil. É perfeitamente possível afirmar que, apesar do relativo êxito das capitanias de Pernambuco (especificamente do núcleo de Nova Lusitânia), sob a égide de Duarte Coelho, e de São Vicente, os reveses vão se constituir na marca maior desta fase. Um dos principais obstáculos eram, sem sombra de dúvidas, os gentios da terra, e isto se torna mais verossímil à medida que se vai focando a visão para as capitanias que hoje correspondem ao território do estado da Bahia2. A revolta dos tupinambá, na vila do Pereira (núcleo inicial de povoamento)3, a posterior fuga do donatário Francisco Pereira Coutinho para a vizinha capitania de Porto Seguro e, por fim, seu assassinato assinalam o início de uma nova forma de relação entre colonos e indígenas nesse local que é objeto de análise do presente capítulo.

O rei, ainda dom João III, resolve modificar alguns aspectos da colonização americana. Percebendo que era necessário centralizar o poder e, ao mesmo tempo, dar suporte aos colonos dispersos pela costa brasileira, criou-se o cargo de governador-geral, uma figura equivalente a um vice-rei. Uma cidade sede – centro da colônia – deveria ser erigida e o local escolhido foi elevação que se contrapõe à face norte da ilha de Itaparica. São Salvador foi fundada em 1549 com o objetivo de reforçar a defesa dos agentes colonizadores, além de abrigar a sede dos prepostos da Coroa portuguesa. Os cargos de ouvidor-mor, provedor-mor e capitão-mor também foram instituídos visando à centralização da justiça, da fazenda (principalmente o recolhimento de impostos e taxas auferidos pelo rei) e da atividade militar, respectivamente.

O primeiro governador-geral foi Tomé de Sousa, um nobre que se enriquecera bastante na carreira das Índias. Além da tarefa árdua de implementar o novo sistema, Sousa deveria resolver a áspera questão do trato com o gentio da terra. El-Rei, a par da complexidade envolvendo o intento, muniu seu preposto com um Regimento,

2

De forma geral, trata-se das capitanias da Bahia de Todos os Santos, de Ilhéus e de Porto Seguro.

3

A Vila do Pereira (ou Vila Velha) situava-se onde hoje se localiza a praia do Porto da Barra, em Salvador. Francisco Pereira Coutinho foi assassinado, juntamente com o séqüito que o acompanhava no seu retorno à Vila Velha, por índios antropófagos na ilha de Itaparica.

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explicitando as funções, os deveres, as obrigações e o que se deveria fazer. O Regimento de Tomé de Sousa, lavrado em 1548, reforçou alguns aspectos da política colonial, como a instituição da sesmaria; inovou em outros, tal e qual a centralização. Seu objetivo máximo era desenvolver a colonização das possessões portuguesas no continente americano.

O Regimento lançou oficialmente as bases da conduta da administração colonial em relação ao índio, ainda que de forma bastante embrionária. Essa nova forma de atuação, quando do seu posterior desenrolar em legislação ulterior, constituiu-se numa complicada fusão entre princípios do direito europeu e concepções apreendidas das relações suscitadas entre conquistadores e gentios. Nas suas linhasgerais, regulava-se o princípio da guerra justa, instrumento largamente utilizado pelos colonos (e que será objeto de análise mais detida daqui a alguns parágrafos). A instituição da guerra justa legitima a agressão ao “bárbaro”. Na Europa medieval, período em que se originou tal regra, bárbaro estava identificado ao muçulmano. Na América Portuguesa, esse conceito vincular-se-á ao indígena que, de alguma forma, impedia o avanço da colonização. O sistema de alianças estabelecido entre colonizadores e nativos fez dos tupi os colaboradores iniciais do projeto de ocupação portuguesa. Aos seus inimigos, os tupi davam o nome de tapuia, uma designação que não primava pela estreiteza, uma vez que, na categoria tapuia, encaixavam-se ameríndios de diversas procedências. O colonizador incorporou essa classificação na sua prática e a prática foi sacramentada na legislação. Dessa forma, oficialmente, a coroa dava tratamento diferenciado aos grupos tupi (e também aos guarani), identificados como mansos, a quem se devia aldear e trazer para as proximidades dos povoados, aproveitando a sua força para o trabalho e para a defesa. Os tapuias eram vistos como bravios e avessos ao modo de vida cristã. Contra eles dever-se-iam mover expedições punitivas ou coercitivas. O tapuia deveria ser escravizado e, em casos extremos, exterminado.

III – O exercício do domínio e da administração e as reações indígenas

Exceções, obviamente, foram bastante comuns e os casos de hostilidades empreendidas contra os grupos aliados e classificados como mansos incidiam à medida que se expandiam atividades como a pecuária, a agricultura e o comércio, conforme se verá adiante. Por seu turno, a política de deslocamento e realocação para os arrabaldes das vilas e arraiais foi aplicada a vários grupos alcunhados de tapuia, como foi o caso dos aimoré e paiaiá. Os tempos eram de muitas indefinições e o projeto colonizador

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estava bastante ameaçado. Além disto, o binômio tupi-tapuia respaldava-se em critérios militares, regra que muitas vezes passava por cima de classificações quanto ao modo de vida das populações autóctones.

O governo-geral tinha então urgência na pacificação dos índios da costa. Mesmo alguns grupos da família tupi deveriam ser punidos por alegados e nem sempre verdadeiros ataques realizados contra colonos e autoridades. Tomé de Sousa, por exemplo, imediatamente empreende expedições punitivas aos tupinambá da costa da capitania da Bahia, seguindo determinação do próprio rei de Portugal. Do repertório do castigo constavam a destruição de aldeias, o extermínio e a escravização. Mas os conflitos com os nativos apenas estavam começando. Esse alvorecer coincidia com o início da colonização efetiva da América Portuguesa, quando terras e braços para alargar cabedal tornavam-se cada vez mais necessários.

A Companhia de Jesus, cujos primeiros membros aqui aportaram com Tomé de Sousa, entrou na linha de frente deste combate. Algumas de suas figuras mais relevantes produziram relatos fundamentais, atestando o grau de complexidade do trato com o gentio da terra. Ao longo do século XVII, o projeto jesuíta de monopólio sobre a alma (e o corpo) dos índios se cristalizou, fazendo recrudescer, desta forma, o famoso confronto entre a Companhia de Jesus e os colonos. Mas o século XVI era a fase da experiência: tudo era bastante novo e não foram raros os jesuítas que apoiavam a ação dos colonos no sentido de escravizar o índio. É Manoel de Nóbrega, padre jesuíta, quem – em 1558 – deixará clara a eleição da subjugação como o melhor meio para trazer a indiada no respeito às leis e na obediência dos preceitos cristãos. Comungando de semelhante idéia, seu confrade, José de Anchieta, erguerá versos laudatórios para aquele que foi considerado o grande pacificador da costa brasileira no início da ocupação portuguesa. De Gestis Mendi de Saa compõe-se de dois mil versos em loa direcionados a Mem de Sá, terceiro chefe do governo-geral da América Portuguesa (administrando no período compreendido entre os anos de 1554 e 1572).

De fato, mesmo levando em conta alguns exageros nos testemunhos das suas campanhas, a violência e a intolerância infundidas sob a administração deste preposto impressionam. Só na porção nordeste, Mem de Sá subjugará os tupinambá (da capitania da Bahia e dos rios Sergipe, Itapicuru e Real), os tupinaê (do vale do Paraguaçu), os kaeté de Alagoas e os tupiniquins (Ilhéus, Porto Seguro e Rio São Mateus). O governador-geral conseguirá debelar a primeira das duas tentativas de instalação dos franceses na costa brasileira. Apoiado pelo seu sobrinho, Estácio de Sá, e por tropas de

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nativos (principalmente tupiniquins), Mem de Sá derruirá a França Antártica, um núcleo de colonização posto sob a direção de Nicolau Durand de Villegainon e funcionando com a conivência dos tupinambá locais. A ação de Mem de Sá será também decisiva para se impor frente aos tamoios em Santos.

A espiral de hostilidades e de resistências e reações continua e intensifica-se. Mas ela gradativamente vai mudando de direção e de foco. Não bastasse a espada que torturava, matava e escravizava os índios da costa, outrora ligados por laços de parentesco com os primeiros colonizadores, as epidemias grassavam nas comunidades de corpos indenes das primeiras missões. Muitas vezes o próprio missionário era o aríete a desferir duros golpes em meio a esta guerra que já possuía a sua dimensão biológica. O despovoamento espantava os contemporâneos. É o mesmo José de Anchieta quem ficará abismado com o desastre e, em sua Informação dos Primeiros Aldeamentos da Bahia, cerca de 1587, asseverará que “a gente que de vinte anos a esta parte é gastada nesta Bahia, parece cousa que não se pode crer, porque nunca ninguém cuidou que tanta gente se gastasse nunca” (ANCHIETA Apud RIBEIRO, 1995: 51)

Com a dizimação e a drástica redução demográfica indígena, os colonos e a administração adotam duas opções: incentivar a escravização dos africanos e adentrar os sertões em busca dos tupi “fugitivos”e dos chamados tapuias (grupos não-tupi). Estes eram, para o caso das capitanias da Bahia de Todos os Santos, Ilhéus e Porto Seguro, acima de tudo, kiriri e gren-aimoré-botocudos.

A mudança na direção das campanhas de apresamento, das proximidades do litoral para o sertão, intensificou o fenômeno dos descimentos. Esta prática traduzia-se no deslocamento de levas de índios (geralmente de uma mesma aldeia) e seu posterior assentamento em locais determinados. Sua organização e sua efetivação cabiam aos agentes da colonização, sendo bastante usuais descimentos patrocinados inteiramente por particulares. Estas realocações tinham características estratégicas e pretendiam contribuir na defesa das vilas e cidades e, ao mesmo tempo, garantir o aproveitamento mais eficaz da mão-de-obra indígena. Os primeiros descimentos na região nordeste da colônia não serão modestos: quatro mil índios de Sergipe, vinte mil kiriri da Serra do Orobó e oitocentos Potiguara de Pernambuco e da Paraíba (HEMMING Apud PARAÍSO, 1994: 16).

Os descimentos foram utilizados para formar uma espécie de muro de contenção a etnias consideradas mais perigosas como os aimoré/gren/botocudo. Gabriel Soares de Sousa fez a primeira tentativa neste sentido. Ele esperava estabelecer o que batizou de

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“muralhas do sertão”, barreiras constituídas pela relocação de tribos aliadas postas em locais estratégicos a cada 50 léguas. Todavia o seu projeto de construção de casas-fortes não vingou e a única fortaleza construída foi o núcleo do qual se originou a aldeia de Pedra Branca. Mais tarde,após a morte de Sousa, os deslocamentos passaram a ocorrer efetivamente sob o comando de Gaspar Dias Adorno4, descendente dos colonizadores de Cachoeira e um dos mais importantes senhores da guerra da Bahia colonial. Os índios passaram, então, a ser reduzidos com mais intensidade em locais administrados por particulares ou clérigos regulares.

A política de descimentos conviveu e foi, por vezes, utilizada como instrumento para a estratégia de penetração do sertão, da qual a administração colonial lançará mão nos primórdios da efetiva ocupação destas terras. Os rios, para essa empresa, eram de primordial importância e, onde desaguassem os maiores deles, estabelecer-se-iam as “bocas do sertão”, pontos de onde avançaria a penetração rumo ao interior, interior este que era uma espécie de espaço físico-imaginário alimentador de histórias acerca de riquezas, local também estimado como a morada, por excelência, dos cada vez mais demandados “tapuias”.

Na região da Capitania da Bahia, os rios mais importantes – e que, portanto, cumpriam esta função estratégica - eram o Sergi, o Jequiriçá, o Açu, o Itapicuru, o Subaé, o São Paulo, o Guaí, o Jaguaripe, o Jacuípe, o Parnamirim, o Batatã e, principalmente, o São Francisco e o Paraguaçu (BARICKMAN Apud BRAINER, 2008: 13). No rio Paraguaçu foi construída a linha de base para divisão territorial da porção nordeste da colônia, marcando a distinção entre sertão e recôncavo, demarcando também duas regiões: o Sertão de Cima, ao norte do seu leito, e o Sertão de Baixo, na área sita ao sul das suas águas.

É justamente no Vale do Paraguaçu onde aconteceram os primeiros combates na capitania da Bahia. Na rota da pecuária extensiva e dos imensos latifúndios, os kiriri-sapuiá, os maracá e os paiaiá foram os que mais sofreram com as expedições empreendidas, as denominadas “jornadas do sertão”. As terras daquela região foram inicialmente doadas a Álvaro da Costa – filho do governador Duarte da Costa – (que ficou com a porção concernente à margem esquerda do rio) e a Brás Fragoso (que se assenhoreou de quatro léguas à margem direita). Ainda no século XVI, sesmarias foram criadas e os principais beneficiários eram figuras como Gaspar Rodrigues Adorno e

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Mas o próprio Dias Adorno enfrentará sérios problemas com o descimento dos paiaiá na Serra do Orobó, região do Vale do Paraguaçu, num episódio constituinte das Guerras do Recôncavo.

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Antônio Dias Adorno5, homens que se destacaram como senhores da conquista e líderes de campanhas contrapostas aos gentios da região6.

A motivação inicial da penetração no vale do Paraguaçu não foi a abertura de vias de comunicação. A busca por metais e pedras preciosas ainda hipnotizava muitos sertanistas, levando-os a se moverem referenciados em notícias sobre abundância de riquezas em ouro, prata e esmeraldas. Assim, Antônio Dias Adorno partiu do rio Doce em direção ao São Francisco, no final do século XVI, descobrindo a Serra das Esmeraldas, no caminho para a Capitania de Porto Seguro. Uma outra incursão, da qual participou Gabriel Soares de Sousa, também possuía o mesmo objetivo, mas não obteve o êxito daquela. O malogro incidiria em muitas outras expedições e a sede inicial por riquezas minerais foi sendo substituída pela necessidade cada vez mais premente de explorar a mão-de-obra e a força indígenas, seja para a faina agrícola, seja para a atividade bélica. Abrir caminho para o gado, para o comércio e para a lavoura também entrou na ordem do dia, tornando-se urgente para os colonos a eliminaçãoou o controle de grupos autóctones resistentes a este avanço.

Fatalmente, a intensificação dos descimentos e apresamentos recrudesceu o fenômeno das revoltas, abrindo espaço, por conseguinte, para a decretação desucessivas guerras justas e para mais escravização. Este ciclo culminará nas chamadas Guerras do Recôncavo, ocorridas entre 1651 e 1679,também em terras banhadas pelo mencionado rio Paraguaçu. O avanço da pecuária foi o principal motivador destes conflitos, mas é importante assinalar que esta linha fluvial era a via de acesso a outros dois importantes rios, quais sejam o Jacuípe e o São Francisco. A região, portanto, tornou-se estratégica para o abastecimento e para a circulação não só de reses, mas de pessoas e aviamentos. Ilustrando tão bem essa enunciação, assinala-se o exemplo da cidade de Nossa Senhora do Rosário do Porto da Cachoeira (hoje, simplesmente, Cachoeira), às margens do Paraguaçu, local para onde confluía um caminho interligando o Maranhão, o norte do Piauí, as minas de Jacobina e a Vila de Água Fria (localizada na região dos atuais municípios de Inhambupe,Aramari e Alagoinhas).

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A história da família Adorno no Brasil tem início com a chegada do fidalgo genovês Paulo Dias Adorno, tripulante da expedição de Martim Afonso de Souza de 1531. Aportaram na América Portuguesa outros quatro irmão de Paulo Adorno, todos eles fugidos da perseguição empreendida pela família fregoso, quando da invasão de Gênova empreendida por Andrea Dória (BRAINER, 2008: 19).

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Paulo Dias Adorno foge de São Vicente por ter cometido um homicídio. Seu destino é a Capitania da Bahia. Lá Paulo Adorno recebe sesmarias na região do recôncavo, mais especificamente na margem esquerda do rio Paraguaçu. Adorno vincula-se a Afonso Rodrigues e ambos contraíram matrimônio com filhas de Diogo Álvares (Caramuru), o que lhes possibilitou importantes alianças com grupos indígenas locais (BRAINER, op. cit.: 19-20).

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IV - A guerra justa e a expansão da conquista

Desta forma, com o intuito de expandir atividades econômicas, guarnecer este importante entroncamento e escravizar gentios, as Guerras do Recôncavo, um dos segmentos espaço-temporal da Guerra dos Bárbaros, foram movidas. Alexandre de Souza Freire, governador mais adiante mencionado pelo endurecimento na questão indígena, construiu os argumentos para a decretação de guerra contra os “bárbaros” que habitavam a região. No seu repertório de justificativas, estava a resistência dos paiaiá (principal grupo contra que se moveram as ditas guerras) em estabelecereme manterem acordos de paz com os colonos e em descerem pacificamente para as aldeias às margens do rio Paraguaçu. Ataques às vilas de Aporá, Cachoeira e Maragojipe também eram utilizados para fundamentar expedições punitivas. As guerras do Recôncavo, que contabilizaram muitos fracassos do lado dos sertanistas expedicionários, tiveram seu fim decretado em 1671. Mas as relações entre ameríndios e colonos continuaram tensas e a irrupção de conflitos não cessouna região. (BRAINER, op. Cit: 55-59).

As revoltas dos gentios se alastram: Maragojipe, Boipeba, Cairu, Tinharé, Capanema, Aporá, Itapororoca, Cachoeira, Jaguaripe e Jequiriçá sofrem com ataques indígenas naquele período. É o início de um novo ciclo de embates originado pelo declínio demográfico dos aldeados tupi, kiriri e aimoré – em virtude de epidemias. Procurando repor a mão-de-obra que escasseava, os colonos intensificaram as expedições e entradas à cata de cativos, abrindo espaço para a confrontação aberta.

Outros focos de conflito entre colonos e índios surgiram em virtude da expansão de atividades econômicas. Desta forma, os paiaiá da região de Jacobina, que foram reduzidos a escravos da mineração do ouro e salitre, revoltaram-se e foram massacrados com a ajuda de levas de aimoré/gren. As proclamações de guerras justas multiplicavam-se à medida que grupos até então considerados inofensivos ou aliados passavam a multiplicavam-ser vistos como óbices a certos interesses. Foi o caso dos camacã-mongoió e pataxó, julgados a partir de então como entraves para a abertura da rota do Sertão de Baixo caminho por onde transitavam as boiadas rumo ao norte da Minas (Araçuraí e Serro Frio); era o caso também dos maracá, outrora aliados, agora vistos como obstáculos ao trânsito para o Rio São Francisco, via rota central.

A característica de conciliação nas leis e na política referente ao trato com o índio, uma das marcas da administração da Colônia, vai – obviamente se refletir na região hoje correspondente à Bahia. Assim o Vice-rei Vasco de Mascarenhas, o conde

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de Óbidos (1663-1667), ao mesmo tempo em que aldeava revoltosos, não raramente decretava guerra justa. O conde de Atouguia agira no mesmo diapasão, conforme se pode verificar na Carta Régia de 23 de junho de 1655, em que se determinou guerra justa a todo índio insurreto das capitanias da Bahia, Ilhéus e Porto Seguro. Todavia, a política de Vasco de Mascarenhas era mais heterogênea nas suas estratégias, uma vez que ele também ordenou a Gaspar Rodrigues Adorno a transferência da todas as aldeias “tapuias” (compreenda-se aqui os paiaiá e os maracá) das nascentes dos rios Iguape, Cachoeira, Maragojipe e Jaguaripe para as proximidades das povoações. O seu objetivo era exercer um maior controle sobre tais grupos o que resultou em malogro, pois os índios, em 1668, saquearam Jequiriçá e São José das Itapororocas e – em 1670 – acossaram Cairu (NEVES, 2005: 155).

Aos poucos a concepção de que aos tapuias cabiam apenas a guerra e a escravidão ia se consolidando, mas o extremo pragmatismo e flexibilidade nortearam as ações dos colonos e as leis eram instituídas para sancionar esta diversidade de intenções. É por isto que a legislação sobre a questão indígena do período colonial retira a sua lógica e coerência da dubiedade, como demonstram Beatriz Perrone-Moisés (1998) e, de certa forma, Luis Felipe Alencastro (2000). A coleção de normas específicas do trato com o indígenas vai se bifurcar em dois ramos. Pela via da generalização, cristaliza-se o binômio tupi-tapuia, não obstante toda frouxidão inerente a estes termos. No campo dos casos específicos, predominaram a acomodação e a contemplação dos diversos elementos, sempre com uma forte tendência a aplacar os intentos dos senhores de terras. Nesta política de dubiedades e contradições, entrementes, o índio é o que contabiliza as maiores derrotas. Duramente atacados, os paiaiá de Jacobina, os maracá da Serra do Orobó, os gren e os kiriri - de Cairu, Jequiriçá, Itapororocas e Jaguaripe -, os camacã-mingoió e pataxó (de Maraú, rio de Contas e Serra dos Aimorés) formam a face real deste conjunto disperso de políticas e leis supostamente pensadas para os índios e realmente instrumentalizadas para a defesa de poderosos interesses coloniais vigentes na América Portuguesa.

O recrudescimento dos levantes, conforme acima se verificou, aliado a alguns reveses sofridos por expedições empreendidas, fez com que a administração reservasse para as capitanias do norte um novo expediente: a contratação de paulistas para colaborar na “pacificação” do sertão. Para implementar as diretrizes da Carta Régia de 1665, foi chamado o bandeirante Domingos Barbosa Calheiros. A compensação para os

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serviços deste e de outros que seguiriam seu exemplo seria terras, dinheiro e títulos honoríficos.

Antes disso, no final da década de 1650, o governador Francisco Barreto de Menezes (1657-1663) recorrera ao capitão-mor de São Vicente e à Câmara Municipal de São Paulo de Piratiningapara enviarem bandeirantes experimentados no combate aos nativos insurretos nas Guerras do Recôncavo. Uma expedição comandada por Domingos Barbosa Calheiros foi remetida. Mas a sorte desta tropa não foi das melhores. Após receber reforços na Capitania da Bahia, o destacamento foi ludibriado e atacado pelos paiaiá. Designados para ajudarem os colonos, os guias kiriri-sapuiá tiveram uma participação fundamental, pois, monopolizando as decisões sobre os caminhos a seguir, contribuíram para exaurir as tropas e prepararem a ocasião para o ataque dos paiaiá, destruidores da bandeira. É óbvio que a reação do governador pautou-se na cólera: considerando todos os índios como potenciais inimigos e passíveis de punições, encarregou Tomé Dias Lassa (ou Lasso) de imprimir uma cruel repressão às aldeias da região, degolando homens e cativando mulheres e crianças.

O governador Alexandre de Sousa Rodrigues (1667-1671) endurece ainda mais a repressão. Seu argumento partia do princípio de que a nova onda de revoltas indígenas – fenômeno naturalmente compreensível como reação a tantas guerras justas – decorria da excessiva candura com que os colonos tratavam os índios. Estes, aos olhos do novo governador, cometiam uma série de atrocidades como roubos, estupros, antropofagia e assassinatos. Souza Freire, após plenária do Tribunal da Relação da Bahia, proclama uma guerra justa de amplas proporções, pautando sua ação numa série de medidas, como a contratação de bandeirantes paulistas familiarizados na repressão e captura de índios, destruição das aldeias e distribuição das terras desocupadas, nomeação de capitães-mores para todas as expedições e enrijecimento da repressão aos índios que apoiaram ou se refugiaram entre os revoltosos. O mesmo administrador determinou o Assento de 1643 como a fonte única para a declaração de Guerra Justa (SOUTHEY, op. cit: 322- 323; ACIOLY e AMARAL, op. cit: 126 Apud PARAÍSO, op cit: 18).

Gren, kiriri, maracá, anaió e paiaiá foram os grupos mais atingidos nestas ações empreendidas principalmente em Cairu, vale do Paraguaçu, Jacuípe, Jequiriçá, São Francisco, Jacobina e Rio Real. Paulistas como Manoel Rodrigues de Arzão, Pascoal Rodrigues e Estevão Ribeiro Bailão (Baião) Parente encabeçam as tropas de razia e subjugação, ao passo que protagonizam embates com o próprio governo (acerca dos

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contratos estipulados7) e com os capitães-mores – na questão da equiparação dos privilégios.

Um dos combates mais bem documentados foi o da guerra feita aos maracás (1671-1673), episódio ocorrido já durante o governo de Afonso Furtado de Castro Mendonça, o marquês de Barbacena (1671-1675). A ofensiva foi proferida contra as aldeias de Jaca Asuí, Joiaicá, Capitua Topins, Ortiga e Sá Cambuasu. A liderança desta campanha ficou a cargo dos cabos de guerra Estevão RibeiroBaião Parente (governador da conquista), Braz Rodrigues de Arzão – capitão-mor -, Antônio Soares Ferreira (sargento-mor) e Gaspar Luba (capelão-mor). Os capitães Gaspar Velho, Francisco Mendes, Feliciano Cardoso, Manoel Gonçalves Freitas, João Viegas Xorte, João Amaro [Maciel Parente], Vasco da Mota e Manoel de Inojosa formavam o segundo escalão. Quatrocentos e treze soldados brancos e índios formavam a expedição. O sesmeiro Antônio Guedes de Brito enviou auxilio, às suas próprias expensas, composto por uma companhia de homens brancos das suas fazendas e setenta índios. A tropa regressou a Salvador (1673) com seiscentos prisioneiros “levados para o cativeiro paulista ou comercializados em outras praças” (NEVES, Op. cit: 157).

As campanhas chefiadas pelos paulistas não obtiveram o resultado esperado e, para alguns setores, elas foram mesmo contraproducentes. Assim, além de contabilizar mais mortos do que prisioneiros (em virtude da própria guerra e das epidemias que dizimavam índios agora juntos em levas de descidos e reduzidos), a atuação dos paulistas contribuiu para depreciar o preço dos negros da terra pela saturação do mercado de oferta devido à excessiva quantidade de índios disponíveis.

Já os capitães-mores, um dos pilares da política de subjugação da mão-de-obra indígena imposta na administração do governador Alexandre de Sousa Rodrigues, aplacaram o seu descontentamento quando passaram a auferir os mesmos benefícios que eram concedidos aos paulistas que prestavam o honroso serviço de guerrear e dominar índios (títulos honoríficos, sesmarias, dinheiro...).

Os bandeirantes, por seu turno, a partir desta experiência nos sertões das capitanias da Bahia, Ilhéus e Porto Seguro, experiência consolidada com a atuação na Guerra dos Bárbaros, converter-se-iam num grupo paramilitar especializado em reprimir

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Para as tropas encabeçadas por Estevão Parente, estipulava-se o seguinte contrato: a campanha franca, ou seja, os despojos e as presas ficariam com os líderes das tropas, que dividiriam entre os combatentes; os cabos desta expedição receberiam soldos equivalentes aos militares; as tropas seriam aparelhadas e socorridas; embarcações e carroças seriam fornecidas às tropas para transporte de mantimentos e de índios aprisionado e, por fim, por este serviço, receberiam a mercê do rei. Para mais detalhes, ver PARAÍSO, op. cit. e NEVES, op. cit.

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revoltas indígenas, quilombos e invasores estrangeiros. Nesta mudança de orientação e graças às recompensas por serviços prestados, muitos paulistas transformaram-se em sesmeiros no norte-nordeste da colônia, deixando de lado as expedições de descimento e a busca por metais preciosos, dedicando-se – por outro lado – à pecuária e à administração de vários índios.

A consolidação desse grupo de interesse engrossa o pólo que pressiona pela expansão das atividades econômicas pautadas na utilização da mão-de-obra indígena. Girando na mesma lógica, as terras das aldeias deveriam ser reduzidas ao máximo, a fim de que a pecuária e a agricultura não fossem estorvadas. Capitães-mores, sesmeiros (paulistas ou não) e missionários (acima de tudo jesuítas) atritam-se, explicitando a necessidade do estabelecimento de alguns acordos de convivência, o que advém com a Provisão Real de 15 de outubro de 1679, documento em que se definem as competências de cada grupo no que toca o controle do trabalho dos índios. Desta forma, a administração colonial determina que os clérigos deveriam ceder aldeados sempre quando solicitados pelos capitães-mores, ao passo que mais recursos seriam investidos na criação de novas aldeias. Era uma tentativa clara de disponibilizar braços para atividades consideradas fundamentais, bem como confinar os grupos até então dispersos, a fim de que setores da economia colonial levassem adiante o seu alargamento material8.

Longe de pacificar a questão, a intervenção estatal chega a acirrar os conflitos entre jesuítas e colonos. Se João Peixoto Viegas e Antônio Guedes de Brito, donos de vastas porções de terras, eram obrigados a restituírem os índios que haviam subtraído de aldeamentos vários, na região do São Francisco, os jesuítas foram expulsos e substituídos pelos capuchinhos italianos. Em Jacobina (com os paiaiá), Natuba (com os kiriri) e São Francisco, o capitão Manoel de Castro Nogueira consegue impor pesada influência sobre a administração da mão-de-obra dos aldeados, demonstrando que, em fins do século XVII, a contenda estava bem distante da sua resolução.

V – Disputando e usando a mão-de-obra indígena nos Sertões da Bahia

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A pecuária extensiva, ao contrário do que afirmavam muitos historiadores econômicos, utilizou pouca mão-de-obra indígena. A relação estabelecida entre esta atividade e os índios era de oposição, uma vez que o gado invadia o terreno das aldeias e, por vezes, comia o telhado das choupanas (feitos de galho e palha). Já o índio incorporou na sua dieta esta fonte de alimentos tão abundante e viável para grupos acostumados com atividades de caça mais complexas. É justamente o abate de reses particulares pelos índios um dos principais motivos de dissensões entre colonos e aldeados, notadamente no século XIX.

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Os jesuítas exerceram um impressionante controle sobre as aldeias, enriquecendo bastante e se tornando um óbice para muitos colonos. Sua estratégia de dominação tinha, em muitos aspectos, eficácia, dando a esta ordem o papel de principal administrador de índios. Seu poder e prestígio cresceram na mesma proporção que seus opositores. Tornou-se necessária cada vez mais a intervenção da Coroa para apaziguar as celeumas entre particulares e a Ordem. A questão indígena, obviamente, sempre foi o core dos problemas.

Em meio a tudo isto, capitães-mores iam conseguindo controle sobre muitos aldeados, fortalecendo o lado secular nessa disputa, notadamente na transição do século XVII para o XVIII. Assim, em 1700, Pedro Gomes de França, com o intuito de abrir a rota entre o Rio de Contas e o Norte de Minas Gerais, subjuga os índios da região dos Rios Pardo, Jequitinhonha, Contas e Paraguaçu. Em 1712, a região viu erigir-se um aldeamento de gren administrado por capuchinhos (os referidos índios recusavam-se a se reduzir sob custódia dos padres da Companhia de Jesus). Já o capitão-mor Antônio Veloso da Silva ganha o direito de administrar os índios das aldeias de Cairu e Jequiriçá, após revoltas destes mesmos aldeados (BORGES DE BARROS, op, cit; 182-183; SILVA CAMPOS, op. cit: 205 Apud PARAÍSO, Op Cit). Revoltas de índios em Jacobina e nas minas do Rio Salitre, motivadas por atritos com particulares e capitães-mores, vão marcar tambémessa época.

O período também vê recrudescer a prática de utilização de aldeados como força militar. Delegava-se aos capitães-mores a instrução de combate e o fornecimento de armas de fogo. Sesmarias e permissão para controlar a mão-de-obra indígena eram as compensações legadas aos militares que estruturassem tais tropas. Entre as capitanias da Bahia, Ilhéus e Porto Seguro, um dos primeiros a serem constituídos em tropa foram os maracá, designados para guardarem a região dos Rios Salitre e Jequiriçá, território rico em minas de salitre e dinâmico na exploração de madeira.

Essa estratégia de deslocamento e utilização de determinados grupos de índios para a contenção de etnias mais resistentes foi utilizada também contra os aimoré, e isto aindano século XVI, gerando medidas repressivas que abarcaram as regiões do Baixo Recôncavo e as Capitanias de Ilhéus e Porto Seguro. Acima de tudo, porção do Baixo Recôncavo, já naquela época, possuía importância econômica de relevo, haja vista constituir-se em caminho para o gado que abastecia as zonas açucareiras, além de fornecer para o litoral gêneros como madeira e farinha. Sofrendo a decretação de guerra justa em 1595, os aimoré foram combatidos por tropas de colonos auxiliadas pelos

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potiguara deslocados da Paraíba. A permanência dos potiguara na região foi exigida pelos colonos após os primeiros embates (SOUTHEY, 1977: 271 – 275; SILVA CAMPOS, 1947: 104 –105 Apud PARAÍSO, 1994: 17).

Guerreiros paiaiá, por outro lado, engrossaram as fileiras das tropas comandadas por Pedro Gomes, Gaspar Rodrigues Adorno, Luís Álvares e Bartolomeu Aires, em episódio correlacionado como uma das consequências diretas das Guerras do Recôncavo. Das margens do rio Utinga, essa expedição reprimiu as tribos que atacavam fazendas nas margens dos rios Paraguaçu e Jacuípe e nos campos de Cachoeira e Inhambupe (NEVES, 2005: 155). É interessante notar que, em todos os momentos desse processo de conquista, o papel das chamadas tribos aliadas foi fundamental, mostrando uma outra vertente das relações estabelecidas entre colonos e índios - a do estabelecimento de alianças pontuais.

São a violência, a repressão e a subjugação, contudo, que vão marcar esse período. Os próprios maracá (só que os situados nos rios de Contas e Paraguaçu) vão ser massacrados pelas tropas do capitão Antônio Veloso, em 1726. Mulheres e crianças sobreviventes foram levadas para a missão dos gren no Rio Una (atual cidade de Valença) e, logo em seguida, transferidas para Palmas, na Chapada Diamantina. O aumento do interesse pela região dos rios Pardo e Contas motivou a guerra efetuada contra pataxó, camacã-mongoió, maxakali, gren e paname. Os infligidores estavam sob a liderança de Pedro Leolino Mariz, o qual lançou mão das já referidas tropas de maracá (de Jequiriçá). Os índios aliados dos colonos receberam, como era usual, em troca do auxílio, armas de fogo, munição, tecidos, anzóis, pedras-de-fogo, sal e enxofre (BORGES DE BARROS, op. cit: 183 Apud PARAÍSO, Op. Cit.).

Em alguns momentos, a ferocidade da repressão foi tão forte, que exemplos são eleitos como modelos de repressão aos grupos considerados arredios. Nesse sentido, a atuação de Francisco Marques de Oliveira ante os insurretos de Cairu, de acordo com carta do Rei datada de 18 de julho de 1733, é julgada como referência a ser seguida por outras campanhas. Aquele chefe de expedição foi extremamente eficaz, sob os olhos dos conquistadores, a partir do momento em que dizimou toda a população masculina entre os revoltosos, apresando e deslocando mulheres e crianças9.

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Fazia parte das estratégias de dominação, não somente na região a que se dedica este capítulo, aproveitar a mão-de-obra indígena infantil e feminina. Se os homens eram preferidos para as atividades de combates, caça e extração de madeira, as mulheres e crianças eram mais prezadas para o serviço da agricultura e doméstico. De maneira complementar, o processo de imposição cultural se fazia menos complicado quando se estava lidando com índios em idade pueril. Estes e mais outros fatores concorrentes para a

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A escravização indígena prosseguiu em larga escala, a despeito da proibição da Santa Sé em Bula de 20 de dezembro de 1741. Como, mormente, fosse necessário subjugar, invadir e guerrear para obter cativos da terra, a reação a esta prática, conforme já se enunciou, traduzia-se em confrontação aberta. Assim, 1746 – com os paiaiá infligindo ataques nas minas e na vila de Jacobina -, 1749 – quando os grenirrompem em saques em Cairu- e 1750 -com os mesmos gren acossando Camamu - são marcas que ilustram o quanto o processo de conquista de amplas porções das Capitanias da Bahia, Ilhéus e Porto Seguro estava ainda por se fazer. A reação dos índios a este avanço é visível nesta altura.

Até aqui, fica claro que o trabalho indígena foi fundamental para o processo de colonização. Entre os séculos XVI e XVIII, mais do que o interesse nas terras das aldeias, a mão-de-obra foi o elemento que dispensou maior atenção dos colonos. A gama de atividades era vasta e dependia da classificação feita por colonos e administradores acerca do estado de relacionamento e integração dos grupos com a sociedade, a citada lógica bipolar delimitando o tupi e o tapuia, o aliado e o inimigo, o índio sedentário e o índio de corso. Assim, os mansos-aldeados-aliados eram fator fundamental na realização de tarefas sem as quais a colonização estaria ameaçada. Produtores de alimentos nas terras das aldeias, guias das expedições de descimento, intérpretes, defensores da colônia contra ataques de estrangeiros e grupos indígenas “hostis”, trabalhadores em empreendimentos públicos, o emprego dos ameríndios dependia das particularidades locais e dos tipos de vínculos estabelecidos, além da maneira como interesses contraditórios (expresso principalmente na oposição projeto jesuítico versustensão dos colonos) influenciavam. O Regimento das Missões de 1686 explicita esta intenção da administração colonial em utilizar-se de maneira regular do trabalho indígena (PARAÍSO, op. cit.: 28).

Aos bravios (julgados como errantes e inimigos) eram reservadas as guerras justas com todo o seu respaldo legal e as suas consequências, a saber: apresamento, distribuição, vendae escravização. É desta forma que eles vão dar seu suor e seu sangue para o empreendimento lusitano em terras americanas.

O trabalho do escravo vindo da África tornar-se-á importante a partir do século XVII. A presença e comércio de cativos negros aumentarão vertiginosamente. Todavia, mesmo em locais próximos aos centros dinâmicos da economia colonial, a exploração

escravização de mulheres e crianças das sociedades indígenas podem ser vistos em PARAÍSO, Op. Cit. p 26.

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da mão-de-obra indígena será – senão a única – a mais viável das alternativas, ainda que esta opção apresentasse obstáculos consideráveis residentes principalmente na resistência e nas revoltas de que tantos índios lançaram mão10.

A expansão sobre territórios antes habitados por gentios, por seu turno, faz parte do processo conhecido como conquista do Sertão. Nele, posseiros e sesmeiros adquiriam seus quinhões mediante doação, ocupação, mas – principalmente – usurpação. Não é preciso evidenciar a maneira como este açambarque era realizado e quem via subtraído, restrito ou eliminado seu espaço. De muitas maneiras, isto já foi aclarado nos parágrafos anteriores. Basta recordar a atuação dos capitães-mores (ou mestres de campo ou senhores da conquista do sertão), basta reter na mente o papel desempenhado pelos paulistas convocados para pacificação de grupos arredios à expansão da colonização. Este exercício intelectual é suficiente para perceber que a apropriação de terras tomadas das aldeias indígenas era o principal mecanismo de apropriação fundiária em vastas plagas das capitanias da Bahia, Ilhéus e Porto Seguro.

Exemplificando a inferência acima exposta, o caso de um dos maiores senhorios da região é posto a seguir. Em carta ao governador de Minas Gerais, datada de fins do século XVII, a filha de Antônio Guedes de Brito, Isabel Maria Guedes de Brito, evidencia a conquista de terras dos nativos como a base para a formação do gigantesco latifúndio possuído por aquela família. É interessante notar que em outras correspondências, havia uma nítida tentativa de mascarar os meios pelo qual o domínio dos Guedes de Brito se estendera tanto. Era então comum assinalar as doações recebidas de parentes. Este caso é o paroxismo e o modelo para outros de menor envergadura. Antônio Guedes de Brito herdara de seus antepassados, também pela via da conquista aos índios, ainda que aqui não referida, como se o tempo houvesse legitimado o processo, algumas léguas de terras nos rios Piauí (em Sergipe), Sergipe, Itapicuru, Inhambupe e São Francisco e, ao longo de sua trajetória, construíra uma herdade que se estendia “desde as nascentes dos rios Salitre, Jacuípe e Itapicuru,no centro-norte da Bahia, até as cabeceiras do rio das Velhas ou do Paraopeba, no centro-sul do atual território de Minas Gerais” (NEVES, 2005: 148).

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A alta taxa de mortalidade, a dificuldade de entender as línguas não tupi, a difícil convivência entre etnias inimigas no mesmo espaço e, finalmente, o desconhecimento de técnicas agrícolas também figuravam como óbices à exploração da mão-de-obra escrava indígena não-tupi, segundo a perspectiva da época.

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