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Vista do O consumo na sociedade: a subjetividade e o papel do dinheiro | Acta Científica

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Resumo: A sociedade contemporânea ocidental tem na produção, industrial ou cultural, uma forma de manifestação do potencial humano, do zeitgeist e do estágio evolutivo da sociedade. Produção é o processo de construção de nossa própria identidade como civilização. No entanto, a produção só se realiza no consumo, uma manifestação cultural que exprime o modo de vida de uma sociedade, mas que também distingue e qualifica os indivíduos, formando sua subjetividade. O presente artigo une em cadeia dedutiva os pensamentos mais destacados de autores como Veblen, Marx, Bourdieu, Baudrillard, Baumman e Simmel a respeito da relação produção e consumo, bem como enuncia aspectos relevantes da influência de variáveis adicionais ao sistema produção-consumo, que o validam e alimentam. A reflexão encerra-se com considerações a respeito do papel do dinheiro no estudo da sociologia do consumo na sociedade pós-moderna.

Palavras-chave: Produção; Consumo; Sociologia do Consumo; Dinheiro. CONSUMPTION IN SOCIETY: THE SUBJECTIVITY AND THE ROLE OF MONEY

Abastract: The contemporary Western Society has in the industrial or cultural production a form of manifestation of human potential, of zeitgeist and of evolutionary stage of society. Production is the process of building our own identity as a civilization. However, the production takes place only in consumption, a cultural manifestation that expresses the lifestyle of a society, but that also distinguishes and qualifies individuals to form their own subjectivity. This article combines in a deductive chain the most prominent thoughts of authors such as Veblen, Marx, Bourdieu, Baudrillard, Bauman and Simmel about the relationship between production and consumption and outlines relevant aspects of the influence of additional variables which validate and feed the production-consumption system. The discussion concludes with considerations about the role of money in the sociology of consumption study in postmodern society.

Keywords: Production; Consumption; Sociology of Consumption; Money.

SUBJETIVIDADE E O PAPEL DO DINHEIRO

Luís Henrique dos Santos. Mestrando em Comunica-ção e Práticas de Consumo da Escola Superior de Pro-paganda e Marketing (ESPM). Professor no Curso de Comunicação Social do Centro Universitário Adven-tista de São Paulo (Unasp). Email: lhsantos@lhsantos.

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O único meio prático de impressionar esses observadores não simpatizantes da nossa vida cotidiana é a demonstração ininterrupta de nossa capacidade de pagar. Na comunidade moderna há também uma frequência mais assídua de grandes reuniões de gente que desconhece nosso modo de vida, em luga-res tais como a igreja, o teatro, o salão de baile, os hotéis, os parques, as lojas e semelhantes. A fim de impressionar esses observadores efêmeros e a fim de manter a satisfação própria em face da observação deles, a marca da força pecuniária da pessoa deve ser gravada em caracteres que mesmo correndo se possa ler. É portanto, evidente que a presente tendência do desenvolvi-mento vai na direção de aumentar, mais que o ócio, o consumo conspícuo (VEBLEN, 1965).

A citação acima, de Thorstein Veblen (1965), é um dos exemplos peculiares de um dos conceitos de sua economia institucionalista, chamada assim em razão da grande ênfase que o autor de A Teoria da Classe Ociosa coloca sobre o que ele chamou de instituições. Na economia vebleniana, instituições são hábitos, rotinas de conduta bastante arraigadas num determinado momento histórico. Assim, por exemplo, a existência de uma classe de indivíduos que se abstêm do trabalho produtivo, a “classe ociosa”, é uma instituição.

Outros exemplos de instituições são a propriedade absenteísta, ou seja, o hábito, bastante presente na economia capitalista, de o dono do negócio não ser exatamente quem cuida pessoalmente dele; a financeirização da riqueza, isto é, a representação do equipamento produtivo da sociedade através de “papéis”; e a emulação, que talvez seja o mais importante no livro A Teoria da Classe Ociosa, que diz respeito ao desejo das pessoas de serem reconhecidas como melhores que os outros indivíduos1.

Há no exemplo um teor eminentemente emulatório. Mais do que isso, há um teor de intencionalidade do sujeito na prática da emulação e, consequentemente, em pertencer ao sistema de símbolos e significados que, em última instância, formam o universo da produção e consumo dentro da teia social.

No entanto, há certa tensão entre essa intencionalidade subjetiva e coadjuvância em uma sociedade que, por si só, está estruturada nesse sistema, independentemente dos esforços ou intencionalidades dos indivíduos, desde que considerados isoladamente. Explica-se: mais do que protagonista, senhor das ações e conhecedor dos resultados dessa manipulação dos demais indivíduos através do consumo como uma mera ferramenta de imposição social, e, portanto sujeito com intencionalidade absoluta, o homem é um coadjuvante, de certa forma, de um sistema de mecanismos enconômicos e produtivos no qual o consumo é um dos estágios, e que se manifesta independentemente da vontade do sujeito, ou de sua intencionalidade.

Posto assim, o sujeito de Veblen (1965) consome para protagonizar um fenômeno social (a imposição social pelo consumo conspícuo) ou simplesmente racionaliza sobre um fenômeno sobre o qual ele não tem poder como indivíduo isolado e, portanto, seria levado 1 Para uma introdução ao Veblen ver: http://pt.wikipedia.org/wiki/Thorstein_Veblen. Acessado em 29/12/2010

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ao mesmo comportamento (emulação) mesmo que não racionalizasse dessa forma? Veblen (1965) propõe uma resposta híbrida. Ao mesmo tempo em que sugere um comportamento intencional em sua obra, como a citação parece deixar claro, também se aprofunda na discussão da influência da estrutura social sobre os comportamentos dos indivíduos. A sua definição sobre o que são os gastos ordinários e o que é o consumo conspícuo justifica essa interpretação:

O padrão de vida que, em geral, governa nossos esforços, não são os gastos ordinários comuns, já alcançados; é o consumo ideal pouco além do nosso alcance, ou cujo alcance requer um certo esforço (VEBLEN, 1965).

“Padrão de vida que governa esforços” certamente é uma força mais ancestral do que o comportamento evolutivo de se impor socialmente. O que poderia ser tão poderoso a ponto de governar a vontade humana de realização? Que sistema fica implícito nessa afirmação que o padrão de vida governa esforços? Afinal, qual é a lógica construtiva social que define, em última instância, qual é o padrão de vida que vai governar esforços? Marx (2004) responde indiretamente essa questão.

Sistema produção-consumo

Karl Marx foi pródigo na construção do pensamento econômico social que relaciona produção e consumo. Não se destaca pela análise detalhada da influência social, mas indubitavelmente a evidencia.

Ao tratar da produção, Marx (2004) cuida de criar uma ligação entre a produção enquanto fenômeno técnico e a produção como manifestação do potencial humano, do zeitgeist e do estágio evolutivo da sociedade. Produção é, portanto, mais do que máquinas trabalhando e mercadorias saindo ao final da linha de produção. Produção, segundo Marx aponta, é o processo de construção de nossa própria identidade como civilização. As ferramentas usadas, os métodos empregados, a relação da força de trabalho humana com sua organização para produção fazem com que o homem, além de produzir mercadorias, produza a si mesmo. Vale-se dos ingredientes que lhe estão disponíveis para, em sua combinação, expressar o que realmente é, naquele momento da história.

Assim, a produção de subjetividade é a essência da relação que o homem tem com o trabalho, que, por sua vez, implica em produção. Tratar, portanto, de constituição de trabalho, e em gradação de produção, é falar de constituição de sujeitos.

Mas a produção - ainda que mais importante sociologicamente do que vista somente pelo aspecto tecnicista – não explica a força do sistema que pode gerar comportamentos e governar as motivações de toda uma civilização. A produção, por mais que seja uma parte importante da materialização da personalidade complexa de uma sociedade, é isso: uma parte. Por si só, não justificaria nem alimentaria o ciclo contínuo que mantém a sociedade capitalista ocidental num desenvolvimento linear, sociologicamente falando, por séculos. Há de existir outra parte, outra variável, que catalise o poder empreendedor que forma sujeitos, mas não os mantém na ativa. Essa outra variável se manifesta na percepção social da utilidade da produção e é, portanto, o resultado da equação tecnicidade multiplicado

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pelo utilitarismo. E se há percepção social, há comportamento correspondente.

As pessoas têm uma ideia clara de quanto vale o seu trabalho – uma nítida relação de identidade entre trabalhador e produto. Ainda que o sistema monetário tenha mudado a configuração do sistema de troca entre trabalho funcional e benefício funcional advindo dele, como exploraremos mais adiante discutindo Simmel (SOUZA; ÖEZEL, 1998), a percepção ancestral de que o que o homem produz benefia a outros, mas também a ele, individualmente, motivaram a civilização ocidental a empreender e premiar a produção com benefícios.

Mesmo em momentos e sociedades escravocratas, os próprios escravos tinham clara essa relação, quando consideravam sua produtividade como índice e a própria preservação de sua vida como benefício pela produção (vê-se que é uma precepção muito mais profunda que o senso de merecimento de recompensa financeira ou social).

Assim, a lógica de que o homem consome o que produz, em termos de sociedade, e que pode consumir mais individualmente quanto mais produzir, individualmente, dá vazão aos conceitos meritocráticos protestantes, mas mais do que a eles, à percepção de que o consumo é parte integrante do sistema de produção. Produção sem consumo não é produção, pois não se completa no significado. A produção se realiza no consumo.

Mais do que se realizar a produção, o consumo encerra uma cadeia em forma de galhada: a produção como tronco, em certo sentido única, posto que vários indivíduos transformam-se em uma massa produtora, e o consumo como os diferentes ramos de diferentes galhos, posto que a massa produtora única se fragmenta em vários indivíduos diferenciados pelo seu consumo.

A fábrica, locus preferencial nos estudos de Marx e Weber, é um excelente exemplo. Quando compreendida como um conjunto de trabalhadores origanizados em função de uma mesma tarefa, em vários estágios, mas com um objetivo único, a mercadoria, a fábrica, ou seja, a produção, é geral, genérica, indistinta, coletiva.

A partir de finalizada a mercadoria, a transferência dela da fábrica para o consumo final precisa, necessariamente, passar pela distribuição, que é particular, específica de acordo com as características da mercadoria. Finalmente, quando entregues ao consumidor, o mesmo que formava em coletivo a fábrica (produção), a mercadoria passa a ser objeto do consumo, que vai ser executado de diferentes formas, em diferentes momentos, com diferentes motivações, o que o caracteriza como individual, subjetivo, pessoal, próprio do indivíduo e não da coletividade.

Produção, distribuição, troca e consumo formam, assim (segundo a doutrina dos economistas), um silogismo correto: produção é generalidade; distri-buição e troca, a particularidade; consumo, a individualidade expressa pela conclusão (MARX, 1978).

Marx (1978) mostra como esse sistema de produção se encerrando no consumo é por si mesmo retroalimentador: A produção engendra, portanto, o consumo: 1o. fornecendo-lhe o material; 2o. determinando o modo de consumo; 3o. gerando no consumidor a necessidade dos produtos que, de início, foram postos por ela como objeto.

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Produz, pois, o objeto de consumo e o impulso do consumo. De igual modo, o consumo engendra a disposição do produtor, solicitando-lhe a finalidade da produção sob a forma de uma necessidade determinante.

Mas se a produção, que é o impulso inicial do sistema, é ligada ao comportamento coletivo, como o consumo, ligado ao comportamento individual, se manifesta na sociedade, além do ato de troca em si, muito superficial para definir efetivamente consumo?

Vida para consumo

A “subjetividade” dos consumidores é feita de opções de compra – opções assumidas pelo sujeito e seus potenciais compradores; sua descrição adquire a forma de uma lista de compras. O que se supõe ser a materialização da verdade interior do self é uma idealização dos traços materiais – ‘objetificados’ das escolhas do consumidor (BAU-MAN, 2007).

Consumir, então, além de ser o ato de complementação da produção (aspecto funtional com reflexos sociológicos), é o ato de constituição de subjetividade (aspecto sociológico com reflexos funcionais). Bauman propõe, dessa forma, que a “lista de compras” é a metáfora correta para traços de personalidade, por exemplo.

No entanto, mantendo esse pensamento isolado do sistema, volta-se indubitavelmente à Veblen (1965): é o homem que escolhe a “lista”, por intencionalidade, somente? Certamente que não.

Para influenciar essa lista, numa mistura de fenômeno natural decorrente do funcionamento orgânico do sistema, com o saldo da interação entre produtores e sua intencionalidade, Marx (2004) sugere a existência do fetichismo: da mercadoria e da produção.

Basicamente, o fetiche da mercadoria é desvinculação da mercadoria com sua produção – quando então ela, a mercadoria, passa a ganhar valor intrínseco e extrínseco. É o fenômeno social e psicológico no qual as mercadorias aparentam ter uma vontade independente de seus produtores.

Segundo Marx, o fetichismo é uma relação social entre pessoas mediada por coisas. O resultado é a aparência de uma relação direta entre as coisas e não entre as pessoas. No caso da produção de mercadorias, ocorre que a troca de mercadorias é a única maneira pela qual os diferentes produtores isolados de mercadorias se relacionam entre si. Dessa maneira, o valor das mercadorias é determinado de maneira independente dos produtores individuais, e cada produtor deve produzir sua mercadoria em termos de satisfação de necessidades alheias. Disso resulta que a mercadoria mesma (ou o mercado) parece determinar a vontade do produtor e não o contrário.

Aliado então ao fetiche da mercadoria há o fetiche da produção – ocultamento da produção em si que passa a não mais ter influência determinante no valor da mercadoria – e o fetiche do consumo – a ideia de que o consumidor tem direito a uma escolha livre a qualquer outra coisa. Parafraseando Jackson Lears, qualquer homem livre tem o direito

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de escolher quais são suas prioridades, o que para si é essencial, o que é supérfluo. Essa é a essência do fetichismo do consumo.

Adicionalmente, essa torrente natural decorrente da estruturação do sistema produção-consumo pode ser incentivada (tarefa possível à intencionalidade, já que se vale do mainstream, e não tenta reinventá-lo). O fetichismo do consumo, então, na sociedade capitalista moderna, deve ser alimentado.

O primeiro passo para isso é conhecer os mecanismos motivacionais do indivíduo. Um desses mecanismos, o mais poderoso, segundo a interpretação de Barthes (1987), é a apropriação do sistema de signos-significantes-significados: partindo do universo simbólico de uma sociedade (ambiente explorado também por Bourdieu e Baudrillard), a apresentação da mercadoria como um objeto de desejo pessoal consolida o driver pelo consumo e a possibilidade de ampliação do valor da mesma.

Barthes (1987), de fato, usa a expressão “encantamento do olhar” pela forma como os objetos do consumo são oferecidos às pessoas. Um dos exemplos foi a eclosão do vitrinismo – ao mesmo tempo que as mercadorias perdiam a aura de “únicas”, artesanais, apelava-se ao sensório, ao universo de signos da sociedade, para criar uma aura diferenciada na exposição da mesma mercadoria, uma espécie de humanização do produto – uma estratégia sensível.

Porém, era necessário que o significado motivador fosse aderente à mercadoria, que prescindisse de julgamentos e interpretações individuais, mesmo que essas fossem possivelmente comuns, dado que seriam oriundas de indivíduos de uma mesma sociedade. A construção natural desse argumento dedutivo era narrativa e, conforme Barthes (1965), a narrativa mitológica é a forma narrativa que mais revela e influencia o comportamento humano.

Nesse sistema produção-consumo, influenciando, portanto, diretamente o consumo, a narrativa mitológica, compreendida como a construção de um universo semiológico determinado pela ideologia hegemônica, determinante dos padrões e signos superiores, cumpre o papel de criar as perguntas que tenham como resposta o desejo de possuir para fazer parte daquele universo, logo, de consumir para possuir. E envolver-se nessa narrativa, tomar partido, frequentar o ambiente onde ela se desenrola e o que significa, tem o poder de abstrair da mercadoria sua relação asséptica com a produção. A experiência passa a incindir sobre o valor da mercadoria: compõe a narrativa mítica e contribui para o estabelecimento do fetiche do consumo (Uma soma das perspectivas de Marx e Barthes).

Assim, está criado um caminho: o sonho (criado pela mitologia, tendo a mercadoria como herói, tendo a experiência como prova) que leva ao desejo (que tem o significado no universo simbólico) que leva ao consumo (na perspectiva de Bauman).

Essa ideologia implícita na narrativa mitológica que abastece o sonho, e, em última instância o consumo, é chamada por Baudrillard (2007) de ideologia do consumo.

Toda a ideologia do consumo pretende levar-nos a crer que entramos numa era nova e que uma Revolução Humana decisiva separa a Idade dolorosa e heróica da Produção da Idade eufórica do Consumo, em cujo seio se faz justiça ao Homem e aos seus desejos (BAUDRILLARD, 2007).

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A subjetivodade: distinção

Fecha-se um ciclo nesse estudo quando se trata da subjetividade. Houve no começo desse artigo uma desconstrução do papel da intencionalidade subjetiva em favor da exploração da importância da influência do sistema produção-consumo na sociedade moderna, contemporânea e pós-moderna. No entanto, ressalta-se, que, apesar de uma participação menor da intencionalidade, é fato que ela é uma das variáveis importantes.

Se Veblen (1965) só explorou em algumas passagens essa característica, não foi porque acreditasse que não era relevante. Logo, mesmo que passível de relativização, a intencionalidade subjetiva cumpre um papel importante na sociologia do consumo. Esse papel, demonstrado no palco do comportamento individual, que em sua soma compõe o comportamento social, é definido por Bourdieu (1998) como distinção. Distinção é uma propriedade relacional, uma dinâmica e um estilo de vida. É uma visão de mundo.

E o conjunto dos indivíduos que compartilham de uma mesma distinção numa sociedade, e têm essa percepção, forma uma classe. Uma classe, na sociedade, tem então afinidades de interpretação do universo simbólico e de comportamento social, que forma o habitus de classe. O habitus de classe, portanto, é uma forma de distinção do indivíduo. O habitus é estrutura estruturada: o princípio da divisão em classes lógicas que organiza a percepção do mundo social é, por sua vez, o produto da incorporação da divisão em classes sociais.

É um produto das posições, é diferenciado e diferenciador, gera práticas distintivas e distintas, é princípio de classificação [...] conjunto inequívoco de escolhas de pessoas, de bens, de práticas (BOURDIEU, 1998).

A implicação disso é que o consumo de bens, ou de cultura, por exemplo, compõe com outras características discrimintaórias, um pacote de identificação, que pertence ao sujeito mas que o insere em uma classe. “Para o homem ocioso, o consumo conspícuo de bens valiosos é um instrumento de respeitabilidade” (VEBLEN, 1965).

Essa citação de Veblen (1965), representativa do habitus de classe, explicita que o consumo faz parte do rol de comportamentos que destaca o ser humano em relação a outros numa mesma sociedade. Faz, portanto, que haja diferenciação de classes, de indivíduos. O consumo, então, pode ser considerado a forma de manutenção dessa distinção. Manifesta-se no campo, que é o ambiente das compreensões e afinidades.

E se o consumo é ao mesmo tempo discriminador e reflexo do pertencimento a uma classe, da mesma forma que é constituída em parte por ele, a classe molda o consumo. De fato, Bourdieu (2007) usa a expressão “pedagogia do consumo”: a educação dos sentidos que se manifesta a partir dos gostos, que por sua vez, segundo Veblen (1965), são constituídos culturalmente, do que se despreende umas das mais importantes constatações na sociologia do consumo: consumo é uma manifestação cultural de um sujeito social.

Que os seres humanos sempre preferiram a felicidade à infelicidade é uma observação banal, um pleonasmo, já que o conceito de ‘felicidade’ em seu uso mais comum diz respeito a estados ou eventos que as pessoas desejam que aconteçam, enquanto a ‘infelicidade’ representa estados ou eventos que

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elas queiram evitar. Os dois conceitos assinalam a distância entre a realidade tal como ela é e uma realidade desejada. Por essa razão, quaisquer tentativas de comparar graus de felicidade experimentados por pessoas que adotam modos de vida distintos em relação ao ponto-de-vista espacial ou temporal só podem ser mal-interpretadas e, em última análise, inúteis. A maior atração de uma vida de compras é a oferta abundante de novos começos e ressurrei-ções (chances de renascer) (BAUMAN, 2007).

Numa cultura em que o consumo traz felicidade, distingue as classes e é alvo de esforços de implementação do fetiche, pode-se então considerá-lo como o principal fator motivador do empreendimento humano na sociedade pós-moderna.

O papel do dinheiro na sociologia do consumo

Posto que o presente artigo é uma reflexão sobre os aspectos mais gerais da sociologia do consumo, cabe incluir considerações sobre um dos aspectos que mais se destacaram no estudo do tema, mesmo que a condução do diálogo entre autores construído até o momento não tenha dado margem à inclusão do mesmo: o papel do dinheiro. Isso não significa que não haja relação do dinheiro com o sistema produção-consumo e as inferências da subjetividade. Ao contrário, como citações mostrarão à frente, o dinheiro cumpre papel por vezes substitutivo de todas as demais motivações, inclusive as de pertencimento.

Esta última (a economia do dinheiro) interpõe em cada instante, entre pes-soa e coisa definitivamente qualificada, a instância totalmente objetiva e não qualitativa em si mesma do dinheiro e do valor monetário. Ela impõe uma distância entre pessoa e posse, tornando a relação entre ambas mediada. Ela diferenciou, com isso, a relação anteriormente tão íntima entre elementos pessoais e locais, de tal modo que posso receber, hoje em dia, em Berlim, as minhas encomendas de trensamericanos, de hipotecas norueguesas e de minas de ouro africanas. Aceitamos esta forma de posse, eficaz à distância, como se fosse uma trivialidade. Mas ela só se tornou possível desde que o dinheiro se impôs entre posse e proprietário, separando-os e ligando-os (SOUZA; ÖELZE, 1998. p. 30).

O dinheiro, portanto, mantém uma relação direta com consumo: é o seu mediador, na maioria das vezes (o consumo cultural muitas vezes é considerado isento de influência do dinheiro, já que é inteletual e não instrumental; porém, se considerarmos que muitas vezes só ocorre mediado por uma plataforma de apresentação e que o acesso à plataforma implica em relação monetária, então este indiretamente depende, também, de dinheiro). Se o dinheiro é variável crítica na equação do consumo e o consumo é uma manifestação cultural, de um sujeito social, o dinheiro por consequência também tem um impacto direto na tecitura social.

Uma breve leitura de Simmel (apud SOUZA; ÖELZE, 1998), apresenta funções do dinheiro na sociedade:

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- Fomentador das relações sociais, já que é o componente comum dos interesses de produtores, trabalhadores, consumidores, fornecedores e benefiários terceiros;

- Agente determinante na divisão do trabalho, já que não pode ser consumido e, portanto, aponta para a necessidade de um sistema de interrelações no qual cresce a interdependência baseada na troca mediada por mercadorias que satisfaçam as necessidades de diferentes indivíduos;

- Funciona como um cimento social, já que é uma das poucas convenções sociais imunes às mudanças de valores sociais;

- Catalisador da responsabilidade social, já que é ponto de convergência para obras coletivas mais relevantes dos que iniciativas isoladas e é antídoto contra os personalismos ou vaidades inadequadas nos momentos nos quais se decide o que fazer como obra social;

- Ponto de união para auxílio entre grupos com interesses não-convergentes, que podem, depois de adquiri-lo em conjunto, transformá-lo em consumo de itens separados que melhor atendam às necessidades de cada grupo;

- Substituto do desempenho pessoal, já que as dívidas podem ser saldadas por transferência de moeda e não mais por empenho pessoal/trabalho, como na Idade Média, liberando o trabalhador para, no mesmo período em que pagaria a dívida com trabalho pessoal, desempenhar funções que o permitam conseguir dinheiro que a pague e acomular saldo para outros consumos;

- Nivelador social, já que tudo na sociedade pode passar a ser medido pela mesma régua: o seu valor em dinheiro, independentemente da aura, relevância ou raridade;

- É “vulgarizador” dos objetos, transformando em escala numérica e num objeto passível de troca, qualquer mercadoria, serviço ou bem cultural, independentemente da aura, relevância ou raridade, gerando uma arrogância por parte do comprador.

Dada a lista de funções, é correto afirmar que seu conjunto causa impactos sociológicos na sociedade. Dentre os mais relevantes cita-se:

- O lado qualitativo dos objetos perde sua importância psicológica, já que tudo passa a ser quantificável (o que amplia a importância do fetichismo como contracorrente);

- A onda metonímica em tudo passa a ser “monetizável”: penitências, multas, fianças, o que faz com que quem tenha mais dinheiro, sinta-se mais apto a infringir as leis;

- Equiparação das coisas em contraste com a diferenciação dos seres humanos, já que, no senso comum da sociedade “capitalista cristã ocidental”, pessoas são os únicos agentes que não podem ser “monetizados”;

- Erosão do dinheiro pelo círculo crescente de seus equivalentes, que paradoxalmente o eleva de casta: dinheiro sendo o fim, não o meio, a motivação final, não o mediador.

Da erosão e da deterioração do dinheiro pelo círculo crescente de seus equi-valentes resulta uma segunda consequência extremamente importante da dominação do sistema monetário na mesma direção: não se percebe que o dinheiro é meramente um meio para obter outros bens – pensa-se nele como se fosse um bem autônomo, quando toda sua significação advém do

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fato de ser um elemento numa seqüência que leva a um fim e a um consumo definidos. Do mesmo modo que a maioria dos homens modernos precisa ter diante dos olhos, na maior parte da vida, o ganho de dinheiro como motiva-ção mais próxima, forma-se a ideia de que toda felicidade e toda satisfamotiva-ção definitiva na vida são ligadas, intrinsecamente, à posse de uma certa forma de dinheiro. (SOUZA; ÖELZE, 1998. p. 38).

A exploração do papel do dinheiro na sociologia do consumo seria suficiente para uma obra completa sobre o tema. No entanto, uma das proposições/observações de Simmel (SOUZA, ÖELZE, 1998) é mais do que suficiente para mostrar como o dinheiro assumiu um papel acima das outras variáveis no sistema estruturante da sociedade.

Essa observação é de que existe um permanente estado de alma desejoso de dinheiro, análogo e equivalente ao estado de alma permanente desejoso de Deus no protestantismo. Mais do que subjetividade, dinheiro e sua relação com o consumo é o ingrediente distintivo da identidade da civilização no estado em que se encontra.

Considerações finais

Como explorado nesse artigo, a produção de subjetividade é a essência da relação que o homem tem com o trabalho que, por sua vez, implica em produção. Assim, o trabalho, que se materializa em produção, também ajuda a materailização, ou na constituição, de sujeitos. Toda a cadeia de relacionamentos humanos, em menor ou maior grau, é estruturada com base nas relações de subjetividade organizadas a partir do resultado das espécies de trabalho (produção) e das espécies de consumo.

O dinheiro, que por sua vez tem o papel de mediador qualificatório da relação que passa a ser indiretamente de produção-consumo, na sociedade ocidental contemporânea, ocupando com personalidade vicária o posto de meta, ainda que intermediária, e de catalisador dos esforços de trabalho/produção, de distinção (adequação ao habitus de classe) e de conspicuidade como forma de estabelecimento de subjetividade.

No entanto, ao final de reflexões a respeito da interligação entre os temas de autores como Veblen, Marx, Bourdieu, Baudrillard, Bauman e Simmel, nota-se um movimento social ancestral e inercial no rumo da consolidação da cultura como variável de interpretação do real valor da classificação social. Assim, mais importa observar a produção, o consumo e o dinheiro como personagens descritos sob a ótica da cultura de um povo, do que se ater ao enganoso senso comum de que o dinheiro, como representante expiatório do consumismo, é que molda os interesses e movimentos sociais.

Ao leitor: menos importância ao dinheiro! Se tem um papel mais significativo do que simplemesmente o pecuniário, tem menos importância intrínseca do que a sociedade efetivamente credita a ele.

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Referências bibliográficas

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Referências

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