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A FUNÇÃO DO FANTÁSTICO NOS CONTOS DE MURILO RUBIÃO

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A FUNÇÃO DO FANTÁSTICO NOS CONTOS DE MURILO RUBIÃO

Daiane da Silva Lourenço IC-Fecilcam, Letras, Fecilcam, dailourenco4@hotmail.com Me. Wilson Rodrigues de Moura (OR), Fecilcam, wilsonromoura@hotmail.com

1. Introdução

A literatura fantástica é um gênero literário pouco produzido no Brasil. Em nosso país, apareceu de forma mais elaborada apenas a partir do século XX. Em suas origens, esse gênero literário procurava causar espanto no leitor apresentando monstros, fantasmas e castelos assustadores. As publicações do último século, ao contrário, empregam elementos sobrenaturais não em forma de criaturas estranhas, mas de eventos inesperados que ocorrem no cotidiano das personagens. Tal mudança nos chamou a atenção, pois os fatos estranhos passaram a ser aceitos pelo leitor, no decorrer da leitura, como reais.

Devido a essas constatações, esse artigo é resultado de uma pesquisa bibliográfica a cerca das definições publicadas por teóricos sobre o gênero, que não é estanque, mas manteve, ao longo dos séculos, características como a hesitação do leitor, a inserção de fatos estranhos e a fusão do real e do irreal. Com o objetivo de compreender a função do gênero fantástico em narrativas, realizamos análises de alguns contos de Murilo Rubião, escritor considerado um dos precursores da literatura fantástica no Brasil. As análises tinham como pressuposto que todos os contos rubianos são fantásticos e os resultados comprovaram tal proposição. Por meio das análises de A Cidade, O Convidado, Os Comensais, percebemos que nos contos existem elementos que favorecem o aparecimento do fantástico e contribuem para enfatizar os problemas do ser humano presentes nos contos, são eles: a metáfora, a hipérbole e a metamorfose. Por isso, procuraremos além de mostrar a função do elemento fantástico nas narrativas rubianas, mostrar como esses elementos citados são importantes para que o fantástico apareça nos contos e consiga chamar a atenção do leitor para questões da sociedade.

2. O gênero literário fantástico

O fantástico teve suas origens em romances que exploravam o medo, o susto, porém, ao longo dos séculos, foi se transformando até chegar ao século XX como uma narrativa mais sutil. Volobuef (2000) afirma que tal gênero abandonou a sucessão de acontecimentos surpreendentes, assustadores e emocionantes para adentrar esferas temáticas mais complexas. Devido a isso, a narrativa fantástica passou a tratar de assuntos inquietantes para o homem atual: os avanços tecnológicos, as angústias existenciais, a

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opressão, a burocracia, a desigualdade social. Assim, o gênero fantástico deixou de ser apenas narrativa de entretenimento, pois “não cria mundos fabulosos, distintos do nosso e povoados por criaturas imaginárias, mas revela e problematiza a vida e o ambiente que conhecemos do dia-a-dia” (VOLOBUEF, 2000, p. 110).

As obras publicadas a partir do século XX têm sido estudadas por diversos teóricos, que procuram uma definição para as mesmas e analisam as semelhanças que possuem. A seguir, apresentaremos os resultados que obtivemos da pesquisa bibliográfica que realizamos sobre o gênero fantástico produzido no último século.

2.1. Literatura fantástica: tentativas de definição

Muitos trabalhos sobre a literatura fantástica já foram publicados no século XX, quando esse gênero ganhou mais destaque, porém foi a publicação da obra Introdução à Literatura Fantástica, de Tzvetan Todorov, que deu início às discussões sistematizadas sobre o fantástico e é, por isso, considerada essencial para o estudo do mesmo, devido às análises profundas feitas pelo escritor.

Todorov (2004) antes de falar sobre o fantástico esclarece que ele deve ser entendido como um gênero literário. O autor apresenta algumas características presentes na maioria das narrativas fantásticas na tentativa de definir o gênero. Para ele, a essência do fantástico consiste na irrupção, em nosso mundo, de um acontecimento que não pode ser explicado pelas leis racionais. É nesse momento que surge a ambigüidade, a incerteza diante de um fato aparentemente sobrenatural. O sentimento de dúvida causado no leitor permite, então, a aparição do fantástico. “A fé absoluta, como a incredulidade total, nos levam para fora do fantástico, é a hesitação que lhe dá vida” (TODOROV, 2004, p. 36).

Tentando esclarecer o gênero fantástico, Todorov (2004) afirma a necessidade de que sejam preenchidas três condições para que um texto pertença a esse gênero:

Primeiro, é preciso que o texto obrigue o leitor a considerar o mundo das personagens como um mundo de criaturas vivas e a hesitar entre uma explicação natural e uma explicação sobrenatural dos acontecimentos evocados. A seguir, a hesitação pode ser igualmente experimentada por uma personagem (...). Enfim, é importante que o leitor adote uma certa atitude para com o texto: ele recusará tanto a interpretação alegórica quanto a interpretação “poética” (TODOROV, 2004, p. 39).

A primeira e a terceira condições constituem o gênero, já a segunda pode ou não ser cumprida. A natureza do fantástico estaria, nesse caso, relacionada à evocação de sentimentos no leitor, que se encontra diante de acontecimentos que fogem às leis naturais.

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Algumas afirmações feitas pelo teórico são contestadas em relação as narrativas fantásticas contemporâneas, já que Todorov estudou apenas narrativas do século XIX. Os textos fantásticos dos séculos XX e XXI têm características diferentes das publicações anteriores. Uma de suas afirmações contestadas é a proposição de que sempre no final da narrativa o leitor ou a personagem encontram uma explicação para os fatos sobrenaturais e o efeito do fantástico desaparece. Em muitas narrativas atuais, ao contrário, a hesitação diante do sobrenatural é mantida até o final.

Além de expor acerca de algumas características do gênero fantástico, Todorov (2004) trata de suas funções no texto, considerando-as como função literária e função social. A função social está presente nas narrativas porque o emprego do sobrenatural seria um pretexto para que os escritores falem sobre assuntos que não ousariam dizer na realidade, considerados “proibidos” na sociedade, como o incesto, a necrofilia, o homossexualismo. A função literária realiza a modificação do enredo da narrativa de forma mais rápida, rompendo o equilíbrio inicial.

A publicação da sistematização da literatura fantástica realizada por Tzvetan Todorov, no final dos anos 60, proporcionou a publicação de outros trabalhos sobre obras fantásticas focando, principalmente, as narrativas do século XX. De modo geral, os estudiosos do gênero enfatizam a oposição existente no interior das narrativas fantásticas entre o real e o irreal.

Goulart (1995) considera o gênero fantástico antinômico, combinando a irrealidade ao realismo, “o insólito e o estranho ocorrem no universo familiar, e o cotidiano se caracteriza pela mistura do desconhecido com o conhecido”. O aparecimento do fantástico é propiciado pela ruptura da ligação da obra literária com elementos extraliterários, criando o impossível e improvável. Para o autor, é a fluidez das fronteiras entre o natural e o sobrenatural que torna aceitáveis as situações insólitas, por isso tanto as personagens quanto o leitor não questionam os fatos e não sentem medo.

A falta de compreensão da realidade contida na narrativa é o que origina o fantástico, segundo Volobuef (2000). Para a autora, o leitor, à princípio, sente-se desorientado, pois são deixadas lacunas no texto, não há explicações ou justificativas para os acontecimentos. “O texto realiza uma espécie de jogo com a verossimilhança, em que realismo e fantástico se alternam (...)”. Dessa forma, surge a incerteza em meio a um ambiente antes considerado familiar, nosso cotidiano, e aparece o fantástico. Por conter enredos complexos e tratar de temas críticos, Volobuef afirma que esse gênero ultrapassa as fronteiras da literatura trivial.

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Paes (1985), outro estudioso do gênero, considera o fantástico um fato inteiramente oposto às leis do real e às convenções do normal que ocorre no mundo da realidade. O fato sobrenatural, portanto, afeta o leitor por ocorrer em meio ao cotidiano, colocando-o em dúvida em relação ao seu conceito de realidade. A recusa da realidade é uma maneira metafórica de denunciar problemas sociais.

Além dos teóricos mencionados, Schwartz (1981) realizou um estudo aprofundado da narrativa fantástica contemporânea focando a obra do escritor Murilo Rubião. Um fato fantástico, para o autor, seria tudo aquilo que transgrida as normas da tradição cultural. Tais normas seriam os valores e juízos existentes em nosso mundo referencial. Por isso, “a avaliação de um fantástico ficcional tem sempre como ponto de referência o repertório normativo do leitor”. Devido à presença do real junto ao irreal, causando o “efeito do real”, no decorrer da leitura o leitor dá credibilidade à narrativa, distanciando a dúvida.

Por ser um gênero que sofreu e tem sofrido diversas modificações ao longo dos séculos, o fantástico tem sido muito estudado e seus estudiosos o definem de formas diferentes. No entanto, algumas características são comuns a todos os estudos realizados, são elas, em suma, a evocação de emoções no leitor por meio de fatos sobrenaturais, a presença desses fatos sobrenaturais no cotidiano e a fusão do real e do irreal.

3. O aparecimento do fantástico na literatura brasileira: Murilo Rubião e seus contos

Até o início do século XX, a literatura brasileira não havia apresentado importantes obras fantásticas. O florescimento do gênero fantástico em nosso país, de acordo com Rodrigues (1988), ocorreu por volta dos anos 40, contudo Machado de Assis já havia utilizado elementos sobrenaturais em uma de suas obras do século XIX: Memórias Póstumas de Brás Cubas, na qual o narrador é um defunto relembrando fatos de sua vida. Outros autores também haviam utilizado o sobrenatural, como Aluísio Azevedo, Mário de Andrade, em Macunaíma, Monteiro Lobato, Raul Bopp, em Cobra Norato, e Guimarães Rosa também.

O uso do fantástico de uma forma mais elaborada, porém, ocorreu no conto e Murilo Rubião é considerado seu precursor, com a publicação em 1947 do livro O Ex-Mágico. Fonseca (1987) também considera importantes as contribuições de Moacyr Scliar, citando O Carnaval dos Animais (1968) e de José J. Veiga, com Os Cavalinhos de Platiplanto (1959), entre outras obras. Apesar de ambos publicarem contos fantásticos, Murilo Rubião foi quem utilizou o gênero de forma mais sistematizada, dedicando-se a ele exclusivamente.

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Murilo Eugênio Rubião é o primeiro contista do gênero fantástico na literatura brasileira. Sua obra, com a primeira publicação em 1947 de O Ex-Mágico, permaneceu desconhecida por algumas décadas, mas ganhou reconhecimento com O Pirotécnico Zacarias (1974).

O modo como emprega o fantástico em seus contos causa perplexidade nos leitores, contudo o mais impressionante é a forma como os fenômenos sobrenaturais são aceitos no decorrer da leitura como se fossem reais. Segundo Goulart (1995), o sobrenatural está presente também na elaboração da obra de Murilo Rubião, considerada pelo crítico grande e pequena ao mesmo tempo. Isso porque, contando apenas os livros, sua obra consta de oito livros, com 89 contos. Seria um número considerável, contudo dos contos citados, apenas 32 são originais, os outros são republicações que o autor fez. Quando questionado sobre o assunto, o autor disse que reelaborava suas obras para torná-las mais claras e reais. A cada nova publicação, o escritor alterava os contos, às vezes modificando-os muito. Atualmente, o escritor mineiro é considerado de fundamental importância para a literatura nacional e os críticos consideram suas obras de grande qualidade, principalmente pelo trabalho com a linguagem.

3.1. A função do elemento fantástico nas narrativas rubianas

A partir da revisão bibliográfica feita sobre o gênero fantástico, analisamos os contos A Cidade, O Convidado, Os Comensais de Murilo Rubião para tentar entender a função do elemento fantástico em suas narrativas. Percebemos, por meio das análises, que as narrativas rubianas contêm uma linguagem denotativa, por esse motivo seus contos devem ser lidos além do sentido literal do texto. As metáforas presentes contribuem para o aparecimento do fantástico e conduzem o leitor a uma compreensão da totalidade do conto. O surgimento do fantástico em meio ao enredo das narrativas rubianas tem um objetivo, “o elemento extraordinário não se limita apenas a uma experiência de leitura prazerosa para efeitos de distração do leitor, mas assume uma função eminentemente crítica” (SCHWARTZ, 1982, p. 101). Por meio do fantástico, o leitor é instigado a prestar atenção ao seu próprio cotidiano diante do exagero de algumas situações referentes à sociedade contemporânea que, até então, poderia não ter percebido. O elemento fantástico, portanto, é um artifício para tratar de problemas da nossa sociedade. O exagero apresentado chama atenção a uma questão social em específico, a fim de que o leitor ultrapasse o nível ingênuo de leitura.

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O elemento fantástico é considerado por Goulart (1995) um mecanismo que sacode o leitor, questionando a validade de conceitos tidos como definitivos. A realidade conhecida na verdade é uma máscara social e o sobrenatural possibilita a reflexão sobre uma situação de vida que tomamos como normal durante um longo período, sem questionamentos. Por essa razão, Schwartz (1988) afirma que o texto fantástico rubiano mascara a mais realista das literaturas. Ainda diz que o mundo presente nos contos não é absurdo pela intersecção de realidades incompatíveis ou inverossímeis, mas é absurdo pela própria condição humana.

Os contos rubianos são considerados ideológicos por Schwartz (1981), por terem uma linguagem que adquire funções além do texto ficcional. O teórico enquadra as narrativas em três temas: cristão, por ser notável a presença de simbologia de figuras cristãs em alguns contos, como A lua e Botão-de-rosa; social, devido a críticas feitas a realidade da sociedade focando temas como a opressão, em A cidade, a burocracia, em A fila, o sistema industrial, em O edifício, entre outros; e existencial, por questionar a existência humana e seu relacionamento, como no conto O convidado. Os temas abordados são universais e conduzem o leitor à reflexão sobre questões sociais importantes por meio do emprego do fantástico.

Por meio dessa pesquisa, além de compreender a função do fantástico nos contos, percebemos que há elementos que são fundamentais para que o fantástico surja, ou seja, para que o leitor hesite ante os fatos. Esses elementos são a metáfora, a hipérbole e a metamorfose, constantes nas narrativas rubianas.

3.1.1. A metáfora do homem contemporâneo

Ao estudar a função do elemento fantástico nas narrativas, constatamos que a metáfora é um elemento importante para que o fantástico apareça nos contos. No decorrer da leitura dos textos, notamos que diversas lacunas são deixadas, sem a demonstração de preocupação do escritor em preenchê-las. Contudo, ao término do conto, a totalidade do texto nos revela que, na verdade, as lacunas são intencionais para criar uma ambigüidade e favorecer as metáforas presentes. A metáfora é, portanto, parte constitutiva do elemento fantástico.

A forma mais conhecida de conceituação da metáfora é a de uma comparação abreviada, conceito que não abrange seu sentido e função real. Para Castro (1977), a metáfora não é mais vista hoje como ornamento de discurso ou simples variante da

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comparação, é uma atividade recriadora da linguagem, a mais usada de todas as figuras de linguagem pelos escritores de todas as épocas.

Essa figura é amplamente utilizada pelos poetas como recurso estilístico para desenvolver o trabalho com a linguagem. Há o emprego do termo em seu sentido próprio e no sentido metafórico, chamado de transposto. É essa mudança de sentido que caracteriza a metáfora. Segundo Genette (1966), ela tem a característica de significar mais que a expressão literal, há um acréscimo de sentido além dos objetos, dos pensamentos.

Ao pensar sobre a metáfora e a comparação, Moisés (2004) considera a primeira como dependente da segunda. A metáfora é estruturada em torno de uma comparação, explícita ou implícita, que inclui dois termos e resulta na transformação de sentido de cada um e no nascimento de um sentido novo.

O emprego da metáfora no texto em prosa é diferente do poético. Seu emprego não é na forma direta e imediata, e sim indireta e mediata. As metáforas presentes no texto só se revelam quando a leitura chega ao fim, por meio da totalidade da narrativa. Elas permitem ao leitor uma nova compreensão da leitura realizada e a atribuição de novos sentidos e novas imagens, a partir da realidade conhecida.

Boranelli (2008), estudioso dos contos de Murilo Rubião, mostra que a metáfora percorre toda a narrativa do escritor. Segundo ele, no gênero fantástico a metáfora se apresenta de modo sistemático e original, é um dos elementos geradores do fantástico e dá novos sentidos à realidade presente na narrativa. A metáfora permite a aproximação de duas realidades afastadas por meio da criação de uma nova imagem. O efeito de surpresa, de acordo com Castro (1977), é fator peculiar da metáfora verdadeiramente original e viva, e intensifica o efeito do fantástico sobre o leitor, contribui com o universo absurdo do texto. Moisés (2004) afirma que a metáfora procura representar simbolicamente a realidade e, assim, contribui com o elemento fantástico.

Os contos rubianos sempre apresentam um fato sobrenatural com a intenção de enfatizar acontecimentos da sociedade que têm como centro o homem contemporâneo. Em A fila, a personagem protagonista, Pererico, sai de sua cidade do interior e vai à cidade grande com o objetivo de conversar com o gerente de uma fábrica, porém é encaminhado para uma fila composta de pessoas que aguardam para conversar com o gerente, fila que não tem fim, mesmo após dias e dias. A metáfora presente no conto é a fila como representação da burocracia e o homem alienado e levado a aceitá-la, ou seja, o sistema alienador existente na sociedade atual. É, portanto, como afirma Boranelli (2008), uma metáfora do comportamento social que procura alertar contra uma realidade alienante. Como a metáfora consegue unir a razão e a imaginação, dois mundos contrários e

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distantes, nos contos fantásticos aquilo que nos parece estranho no início torna-se familiar, mesmo com elementos sobrenaturais. A ambiguidade ilimitada resultante da metáfora é traço importante para a existência do fantástico.

Além desse, outros contos também são metafóricos. Dentre eles, em A cidade, a prisão de Cariba por fazer perguntas metaforiza a alienação do cidadão atual diante das autoridades e a opressão social ainda vigente. O convidado mostra o relacionamento artificial da sociedade que procura apenas manter aparências. E Os comensais procura salientar a força que a rotina exerce sobre o homem contemporâneo.

Por meio da metáfora, os contos rubianos conduzem o leitor a uma visão mais crítica da sociedade. Ao término da leitura, conseguimos entender o significado metafórico de cada um de seus contos.

3.1.2. Hipérbole: o exagero da metáfora humana

Um outro elemento que contribui para que o fantástico apareça na narrativa é a hipérbole, o exagero dos fatos presentes no texto. Segundo Schwartz (1981), a hipérbole aparece nas obras de Murilo Rubião como figura-chave que desvenda os mecanismos fantásticos da narrativa. Sendo assim, além da metáfora, essa figura é importante para o surgimento do elemento fantástico nos contos.

Considerada por Moisés (2004) uma forma de enfatizar por meio do exagero, de forma negativa ou positiva, a hipérbole ajuda a chamar atenção a uma verdade e pode ser empregada na linguagem falada ou na literária. Em um texto fantástico, seu emprego, como afirma Todorov (2004), conduz ao sobrenatural.

Baseando-se em Roland Barthes, Schwartz (1981) mostra que a hipérbole se apresenta sob duas formas: aquela que exagera por aumento, a auxesis, e a que exagera por diminuição, tapinosis. Em seu estudo, afirma que a obra rubiana apóia-se, em geral, na auxesis. Para exemplificar tal proposição, cita o conto Bárbara. O narrador desse conto, marido de Bárbara, conta sobre a ambição da mulher, que realizava diversos pedidos e, ao mesmo tempo, engordava. “Bárbara gostava somente de pedir. Pedia e engordava”. Quanto mais aumentava sua ambição, mais aumentava seu tamanho. Pediu o oceano, uma árvore de cerca de dez metros de altura, um navio, uma estrela. E o narrador afirma, no final do conto, que crescera de tal maneira que vários homens dando as mãos uns aos outros não conseguiriam abraçá-la.

Em outros contos rubianos também há o emprego do exagero, mas de formas diferentes, nem sempre se referindo ao tamanho da personagem. O conto O edifício, no

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qual um engenheiro recém-formado, João Gaspar, foi contratado para dirigir a construção de um grande arranha céu, apresenta uma hipérbole sem limites. Mais de cem anos foram necessários para que as fundações do edifício ficassem prontas, e o edifício tinha ilimitado número de andares. No decorrer do conto, o edifício ganhava mais e mais andares, até que o próprio engenheiro não tinha mais controle sobre o trabalho incansável dos operários. A falta de controle das ações é característica dos contos de Murilo Rubião. Como ocorre também em Aglaia, onde o casal, apesar de evitar contato sexual e se prevenir, continua gerando filhos em períodos cada vez mais curtos. Ainda há o conto Teleco, o coelhinho, na qual a personagem Teleco, acostumada a metamorfosear-se para agradar ou brincar com as pessoas, ao final da narrativa perde o controle sobre as transformações e morre em forma de uma criança.

Sendo parte essencial para o surgimento do fantástico na narrativa, a hipérbole é de grande importância nos contos e se manifesta de diversas formas, atinge não somente as personagens, mas o tempo, o espaço, aparece representada nas ações e nas descrições.

3.1.3. Metamorfose: um elemento metafórico dos problemas humanos

A metamorfose é, assim como a metáfora e a hipérbole, um elemento importante para o aparecimento do fantástico, entretanto não é tão frequente nos contos quanto os outros dois elementos citados. O tema da metamorfose é constante na literatura antiga e contemporânea. Ultrapassando séculos, sofreu evoluções e aparece de diferentes modos nas narrativas. Santos (2006) analisou a evolução de tal tema e afirma que recebeu tratamento diverso em cada época. Na mitologia grega, a metamorfose estava relacionada ao desejo de um ser de se transmutar, ou a causas externas, como forma de punição ou prêmio. Na literatura clássica, tinha um fim determinado: a punição a uma afronta ou crime. Na literatura do maravilhoso, contos de fadas, as transformações voluntárias ou involuntárias estão presentes, há frequentemente seres mágicos, como bruxas e fadas, que têm a capacidade de modificar fisicamente os seres. Na literatura contemporânea, a metamorfose deixou de ser somente física e passou à utilização da metáfora. No universo criado por Murilo Rubião, a metamorfose é uma forma de abordar os problemas humanos, tais como: burocracia, marginalização, relacionamentos, rotina.

Segundo Santos (2006), nos contos rubianos o tema da metamorfose remete à problemática existencial: o sentido da vida. As narrativas são constituídas de dúvidas, mistério, absurdo. A metamorfose não é apenas física, mas reflete também a própria

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reescritura dos contos, a tentativa das personagens de se ajustarem ao mundo que os rodeia. O absurdo surge diante o leitor, mas, curiosamente, não incomoda as personagens.

Em Teleco, o coelhinho, Teleco tem o poder de transformar-se em qualquer animal para agradar as pessoas, mas sua verdadeira busca é pela forma do ser humano, pois sente-se marginalizado e quer ser aceito socialmente. Apesar de agir como humano, não tem a aparência de um. Suas tentativas são frustradas e, ironicamente, apenas quando morre consegue adquirir a forma tão desejada: uma criança.

Alfredo, personagem do conto que recebe o mesmo nome, é irmão do narrador. O narrador, após a insistência da esposa em dizer que ouvia o som de um lobisomem, sobe uma montanha e se depara com um dromedário, seu irmão Alfredo que estava desaparecido. Cansado de conviver com os homens, devido ao fato de “se entredevorarem no ódio”, transforma-se em um porco, mas não foi feliz, porque passava o tempo disputando comida com os companheiros e fossando o chão. Com vontade de resolver a situação, a personagem transmuda-se no verbo “resolver” e não teve mais descanso, tendo que resolver assuntos e não conseguindo solucionar a todos. Desanimado, Alfredo transforma-se em um dromedário, na esperança de ter que somente beber água, o resto de sua vida.

A metamorfose é mais um artifício empregado pelo escritor para criticar o homem moderno. “Seus contos não se propõem a responder ou resolver as questões do mundo, ao contrário, são enigmas que conduzem à reflexão do real” (SANTOS, 2006, p. 196). A metamorfose, nessas narrativas, tem o sentido de degradação, de impotência diante do mundo, revela um homem que não se compreende e não consegue fugir de sua condição de vida. O absurdo, portanto, não resulta do sobrenatural presente no texto, mas da própria condição humana.

4. Considerações finais

A pesquisa realizada nos ajudou a entender o surgimento e as transformações sofridas pelo gênero literário fantástico, no decorrer dos séculos, as quais o permitiram abandonar a intenção de evocar medo no leitor. No século XX, como apresentado, esse gênero passou a suscitar a dúvida devido a perplexidade do leitor ante um acontecimento estranho que surge em meio a fatos do cotidiano.

O estudo teórico realizado sobre o gênero em questão e as análises de contos de Murilo Rubião permitiram a comprovação de que tais contos são realmente fantásticos e utilizam o sobrenatural não apenas como forma de o leitor questionar a veracidade dos fatos presentes na narrativa, mas como uma forma de chamar-lhes a atenção para a vida do

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homem contemporâneo. A função desempenhada pelo fantástico, portanto, é a de conduzir o leitor a um questionamento da realidade, chamar sua atenção para algumas situações reais vivenciadas pelo ser humano. Mas, para que o fantástico apareça, a metáfora, a hipérbole ou a metamorfose deve estar presente no texto, fazendo o leitor hesitar de antemão e criando uma ambiguidade no texto que leva ao aparecimento do fantástico.

Por fim, uma leitura dos contos rubianos após compreender a função do fantástico e a importância da metáfora, da hipérbole e da metamorfose nessas narrativas, permite entender que as situações inexplicáveis enfrentadas pelas personagens rubianas refletem a condição real humana, repleta de conflitos, dificuldades e questionamentos acerca da vida e do relacionamento entre os homens, que está cada vez mais difícil e inseguro.

A proposta de continuação deste trabalho procurará mostrar que a leitura desses contos em sala de aula, conduzida pelo professor de uma maneira que os alunos aprendam e consigam fazer uma interpretação profunda deles, pode ajudá-los a ver o mundo ao seu redor de forma mais crítica, refletir sobre o que tem visto ocorrer na sociedade. Para tanto, as metáforas, elementos que contribuem para o surgimento do fantástico nas narrativas, devem ser compreendida como crítica à sociedade.

Acreditamos que o aluno, ao conhecer melhor o gênero fantástico e descobrir que a metáfora, a hipérbole e a metamorfose são elementos importantes nas narrativas, conseguirá ir além da leitura superficial dos textos e compreenderá o quanto os textos literários podem contribuir para sua formação.

5. Referências

BORANELLI, Valdemir. O fantástico nos contos de Murilo Rubião e de Júlio Cortázar: entre o mito literário e a polimetáfora. São Paulo: PUC, 2008. Tese (Doutorado) – Programa de Pós-Graduação em Literatura e Crítica Literária, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2008.

CASTRO, Walter de. Metáforas machadianas: estruturas e funções. Rio de Janeiro: Ao livro técnico, 1977.

FONSECA, Pedro Carlos Louzada. O fantástico no conto brasileiro contemporâneo. Estudos de literatura luso-brasileira. Ribeirão Preto, SP: Editora Coc., 1987. p. 165-199. GENETTE, Gérard. Figuras. São Paulo: Editora Perspectiva, 1966.

GOULART, Audemaro Taranto. O conto fantástico de Murilo Rubião. Belo Horizonte, MG: Lê, 1995.

MOISÉS, Massaud. Dicionário de termos literários. 12. ed. São Paulo: Cultrix, 2004. PAES, José Paulo. As dimensões do fantástico. Gregos e baianos. São Paulo: Brasiliense, 1985.

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RODRIGUES, Selma Calasans. O fantástico. São Paulo: Ática, 1988.

SANTOS, Luciane Alves. A metamorfose nos contos fantásticos de Murilo Rubião. Nau Literária. Porto Alegre, n. 3, p. 186-199, jul./dez., 2006.

SCHWARTZ, Jorge. (Org.). Murilo Rubião. São Paulo: Abril Educação, 1982.

SCHWARTZ, Jorge. Murilo Rubião: a poética do uroboro. São Paulo: Ática, 1981.

TODOROV, Tzvetan. Introdução à literatura fantástica. 3. ed. São Paulo: Perspectiva, 2004.

VOLOBUEF, Karin. Uma leitura do fantástico: A invenção de Morel (A. B. Casares) e O processo (F. Kafka). Revista Letras, Curitiba, n. 53, p. 109-123, jun. 2000.

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OSCAR WILDE E A FÓRMULA CÔMICA CLÁSSICA

Me. Déborah Scheidt TIDE, Fecilcam, deborahscheidt@yahoo.com.br

The time-honored bread-sauce of the happy ending. Henry James, 1894

1. Introdução

A chamada “comédia nova” latina, do século II a.C. é uma decorrência da comédia1 nova grega. Esta é representada principalmente por Menandro, Dífilo e Filemão, no final do século IV a.C. A comédia nova grega, assim como a sua sucessora romana dois séculos mais tarde, como nos explica Zélia de Almeida Cardoso (2003, p. 26), “tem por assunto fatos corriqueiros e engraçados, ocorridos entre pessoas pertencentes às mais variadas classes sociais. É uma comédia de costumes que explora, sobretudo, o amor contrariado que, após algumas peripécias vividas pelas personagens, consegue triunfar, num final feliz.”2

O final feliz é, portanto, um elemento crucial da comédia, chegando a ser equiparado por Henry James ao “bread sauce”, um tradicional acompanhamento do rosbife ou dos assados natalinos, à base de farinha de pão, já conhecido na Roma antiga e apreciado até hoje pelas famílias britânicas. Graças à popularidade de Menandro, Plauto e Terêncio a “velha receita de final feliz” foi sendo propagada ao longo dos séculos, chegando até a modernidade com força renovada.

Na Inglaterra vitoriana poucos souberam fazer uso dessa fórmula melhor do que Oscar Wilde (1854-1900). Sua peça mais famosa é, sem dúvida, A Importância de Ser Prudente. Nessa peça Wilde consegue fazer com que os ingleses riam das convenções que mais prezam. Nada escapa à língua mordaz do dramaturgo, que satiriza tanto a nobreza (na figura de Lady Bracknell), quanto as classes populares, o clero (Reverendo Chasuble), o casamento, os hábitos alimentares, a família, o moralismo, as regras de etiqueta e a própria literatura.

Neste trabalho procuram-se demonstrar alguns pontos de intertextualidade entre a comédia nova latina do século II a.C. e a comédia de costumes de Oscar Wilde, na

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As origens da comédia, segundo Aristóteles, estariam em certas canções fálicas e no tratamento leve de temas que, de outro modo, seriam considerados vergonhosos ou imorais. A diferença básica entre tragédia e comédia estaria no fato de a comédia representar os homens melhores do que realmente são, e a comédia, piores do que na realidade.

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Ainda de acordo com Cardoso (2003, p. 26), difere da comédia grega antiga de Aristófanes (V a.C.) de caráter mais político e satírico; assim como da comédia média, de Antífanes e Aléxis (início do século IV a.C), que fazia uso de temas mitológicos.

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Inglaterra vitoriana, notadamente o trabalho com a palavra, o emprego de personagens-tipo e as reviravoltas e complicações do enredo.

2. Brincando com as palavras

Os comediógrafos latinos, especialmente Plauto, são conhecidos pela exploração engenhosa das possibilidades cômicas das palavras e pelo extensivo uso de frases de efeito e de paradoxos cômicos. Segundo E. Paratore (s/d, p. 52), a linguagem plautina “é uma surpresa contínua” devido a “jogos de palavras”, “formações desmesuradas de vocábulos de efeito cômico assegurado”, “nomes imaginários” e “palavras forçadas ou estropiadas de propósito, para sublinhar a viveza de certas situações”.

Também Oscar Wilde pertence ao grupo de dramaturgos ingleses para os quais a linguagem “is not only as the means by which the characters’ feelings and beliefs are expressed but an important part of the play in its own right, particularly when it is used for a witty or comic effect to contrast with the seriousness of the theme beneath.” (Thornley e Roberts, 1997, p. 174)

Para Wilde, assim como para seus precursores romanos, o modo de expressar as idéias é muitas vezes mais relevante do que o próprio tema da peça, o que se dá, entre outros meios, através da utilização de trocadilhos, frases de efeito e reversão cômica.

Nesse tipo de comédia até mesmo os nomes de personagens costumam ser bastante representativos e seus significados são, muitas vezes, explorados comicamente na própria trama. Em Estico, por exemplo, o pequeno escravo mensageiro Pinácio, cujo nome de origem grega significa “pinturinha”, “quadrinho” (uma “figurinha” no português atual), costuma expressar-se do seguinte modo, bem pouco condizente com sua baixíssima posição na escala social:

Mas, afinal, na minha opinião, o mais certo seria a minha senhora ficar me suplicando e enviar até mim embaixadores, e presentes de ouro e quadrigas que me transportem, pois a pé é que eu não posso ir. [...] Tamanho é o bem que do porto transporto, tão grande júbilo grago, que minha própria dona [...] dificilmente ousaria esperá-lo dos deuses. (Plauto, 2006, p. 129)

A mesma estratégia de utilização irônica de nome de personagens é crucial em A Importância de Ser Prudente. O título original da peça contém um trocadilho entre o adjetivo “earnest” (“sério”, “ajuizado”) e o nome próprio homônimo Ernest3, a que os dois

3

Infelizmente é muito difícil manter tais jogos lingüísticos nas traduções. A opção de Guilherme de Almeida e de Werner Loewenberg por “Prudente” é uma saída satisfatória.

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protagonistas aspiram (eles pretendem ser rebatizados pelo reverendo Chasuble, já que as moças por quem estão apaixonados fazem questão de se casar com um homem chamado Ernest), mas perfeitamente opostos às suas reais personalidades.

Ainda em Estico, o parasita Gelásimo (“risível”, “ridículo” em grego), afirma:

O nome Gelásimo, meu pai me deu quando eu era criança, porque desde então, menino pequenininho, eu já era engraçado. Mas, na verdade, foi por causa da pobreza que eu reassumi esse nome, porque, a um certo ponto, a pobreza fez com que eu me tornasse engraçado; pois ela, quando atinge alguém, ensina-lhe todas as habilidades. (Plauto, 2006, p. 117)

No trecho acima, temos a combinação da exploração dos nomes próprios e de frases de efeito (“A pobreza [...], quando atinge alguém, ensina-lhe todas as habilidades”), pelas quais também Wilde tornou-se célebre. Seu livro Aforismos (2000), publicados pela primeira vez em 1904, traz centenas desses ditos, muitos deles provenientes de A Importância de Ser Prudente, tais como o discurso de Algernon para seu mordomo Lane: “Realmente, se as classes baixas não nos dão bons exemplos, para que servem elas então? Parecem, como classe, não terem absolutamente noção alguma de responsabilidade moral.” (Wilde, 1998, p. 22)

A reversão de conceitos do senso comum, como vimos no último exemplo, parece ser um outro ponto em comum entre o humor de Wilde e de seus antecessores latinos. Observemos como o parasita Gelásimo, aconselhando a si mesmo, comenta o desaparecimento dos hábitos tradicionais das classes altas em Estico:

Gelásimo, veja que decisão você vai tomar. Eu? Você, sim. Em seu interesse? Em seu interesse sim. Não vê como o custo de vida está alto? Não vê como a generosidade dos homens está em extinção, junto com as amabilidades? Não vê que os parasitas são totalmente desconsiderados e que as personalidades dão uma de parasitas? (Plauto, 2006, p. 171)

Em tiradas como: “Os divórcios são feitos no paraíso” e “A verdade raras vezes é pura e nunca é simples.” (Wilde, 1998, p. 28) – paródias dos provérbios ingleses “marriages are made in heaven” e “pure and simple truth” – Wilde utiliza a mesma técnica da subversão do lugar-comum.

3. Personagens-tipo

Como vimos, a comédia de costumes, originária da Grécia, foi abraçada pelos dramaturgos romanos após seu declínio no país de origem. Pode ser definida como um tipo

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de comédia que brinca com os códigos sociais de um grupo, fazendo uso de personagens-tipo. Os tipos mais comuns são o soldado fanfarrão, o jovem apaixonado, o parasita glutão, o escravo mensageiro, o escravo abusado, a sogra intrometida, a prostituta inescrupulosa, a matrona virtuosa, o velho libidinoso e a mocinha inocente. De Roma a comédia de costumes ganhou o mundo e rompeu as barreiras temporais, sendo que esses tipos, chegaram até nós através de vários dramaturgos e têm encantado platéias no mundo todo.

4. Os jovens apaixonados

Um tipo muito comum na comédia clássica é o jovem apaixonado, capaz de fazer verdadeiras loucuras em nome de seu sentimento desenfreado. Fédromo, de O Gorgulho, chega a compor uma elegia para uma porta fechada e Quérea de O Eunuco traveste-se de eunuco para aproximar-se do objeto de sua paixão. Em Os Dois Menecmas, o Menecma 1 rouba pertences da esposa para doá-los à amante, mas complica-se com o aparecimento de seu irmão gêmeo, que nada sabe de sua vida amorosa.

Oscar Wilde utiliza esse tema com maestria. João inventa um irmão mais velho bastante problemático, Prudente, para poder desvencilhar-se de sua imagem respeitável e das obrigações como tutor da sobrinha Cecília e ir até Londres, aproveitar os prazeres urbanos e cortejar Gwendolen, prima de seu amigo Algernon. Este, por sua vez, cria um amigo hipocondríaco, Bunbury, que está sempre precisando de cuidados, para livrar-se de compromissos sociais indesejáveis, especialmente com sua tia Lady Bracknell. Ao descobrir que João tem uma bela sobrinha, Algernon assume, ainda, a identidade do imaginário Prudente para poder cortejá-la.

Ambos são obrigados a enfrentar contratempos para manter essas identidades paralelas e conquistar as moças, e ao mesmo tempo provar seu valor e prestígio social.

5. A sogra intrometida

O estereótipo literário da sogra intrometida, que até hoje povoa o universo das piadas e ditos populares, já estava presente na literatura clássica. Vejamos o que um marido da peça A Sogra, de Terêncio já tinha a dizer sobre o assunto: “Será possível que todas as mulheres tenham os mesmos caprichos e as mesmas embirrações – todas!... [...] Para fazerem pirraça aos maridos, é a mesma teimosia, igual casmurrice... Foi na mesma escola, parece-me a mim, que todas se doutrinaram para a malvadez.” (Terêncio, 1993, p. 205)

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Na arte dramática do século XIX esse estereótipo é recuperado por Wilde, na personagem de Lady Bracknell, que pretende exercer controle absoluto sobre a vida de todos os que a cercam. Assim, quando o sobrinho recusa seu convite para jantar, com a desculpa de que precisa visitar seu amigo Bunbury, ela protesta: “Você não vai fazer isso. Seria um desastre para o arranjo da mesa. Seu tio teria que jantar no quarto. Ainda bem que já está acostumado com isso” (Wilde, 1998, p. 32) E quanto aos interesses amorosos de sua filha, as considerações sócio-econômicas falam mais alto: “Então o senhor pensa que eu e Lord Bracknell vamos consentir que a nossa única filha – uma menina educada com todo carinho e cuidado – acabe casando-se com uma peça de bagagem numa estação ferroviária? Passe muito bem, sr. Worthing.” (Wilde, 1998, p. 40)

6. As moças ingênuas

As personagens femininas da comédia latina, especialmente as jovens, são, via de regra, vítimas passivas dos desígnios de seus pais. Sua vontade conta muito pouco nas escolhas que afetarão suas vidas, principalmente a do casamento. Podemos dizer que as irmãs Pânfila e Panégiris, de Estico, fogem desse padrão quando desafiam a vontade de seu pai. Este, devido a uma longa ausência dos maridos, deseja levá-las para sua casa para arranjar-lhes novos e lucrativos casamentos. As moças, no entanto, não se deixam levar pela autoridade paterna e, através de argumentos lógicos, conseguem dissuadi-lo de seus propósitos:

Pânfila: “Além de você, papai, [são importantes] só nossos maridos, de quem você mesmo quis que fôssemos esposas.”[...]

Panégiris: “ Nós, porém, a quem o assunto diz respeito, o aconselhamos de outro modo. Pois, ou antes, se nossos maridos não lhe agradavam, não deveríamos ter sido dadas em casametno a eles, ou não é correto sermos separadas deles, pai, agora que estão ausentes.” [...]

Antifonte: E eu devo admitir que vocês fiquem casadas com maridos que são uns mendigos, estando eu próprio vivo?

Pânfila: O meu mendigo me agrada, a uma rainha agrada seu rei. Tenho na pobreza o mesmo estado de alma que tive outrora, na riqueza. [...]

Antifonte: Definitivamente nenhuma de vocês vai cumprir a vontade de seu pai?

Pânfila: Cumprimos, pois não queremos nos separa do noivo que você nos deu.

Antifonte: Passem bem. Vou indo e contarei aos meus amigos a sua decisão. (Plauto, 2006, 107-113)

Na Inglaterra Vitoriana das classes abastadas, com sua preocupação com a manutenção de títulos e fortunas e casamentos arranjados, a situação das mulheres não deixa de ser diferente da retratada acima. Mas as jovens protagonistas de A Importância

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de Ser Prudente , Gwendolen e Cecília, assim como suas precursoras romanas, não são tão ingênuas quanto seus familiares gostariam que fossem. Ao ter seu namoro com João vetado por Lady Bracknell, Gwendolen toma a iniciativa de orquestrar um plano: “Não é rápido o serviço de correio? Pode ser que tenhamos que tomar qualquer medida extrema... Isso é coisa que requer séria ponderação. Escreverei a você todos os dias.” (Wilde, 1998, p. 44). Assim também Cecília, demonstrando um comportamento desafiador semelhante ao de Pânfila no trecho citado acima, ao conhecer Algernon / Prudente tem com ele o seguinte diálogo:

Cecília: Vejo pelo seu cartão de visita que o senhor é o irmão de meu tio João, meu primo Prudente, aquela peste do meu primo Prudente.

Algernon: Não, prima Cecília, não sou assim essa peste que você imagina. Cecília: Se não é, anda enganando a todos nós de um modo absolutamente imperdoável. Espero que não tenha levado uma vida dupla, fingindo ser mau, quando, na realidade, era bom. Isso seria hipocrisia. (Wilde, 1998, p. 51)

Ao subverter o comportamento de personagens-tipo, tanto Plauto como Wilde evidenciam o seu grande domínio sobre as potencialidades cômicas dessa categoria de personagem.

7. Os criados

Na comédia latina, importantes papéis cômicos são reservados a criados (escravos) e parasitas (escravos libertos). Várias das peças, inclusive recebem o nome de um escravo ou parasita, que são definidos por Paratore como “urdidores de enganos e trocistas desavergonhados.” (s/d, p. 49)

Wilde contempla o mordomo de Algernon, Lane com uma mescla de características de vários tipos de criados do acervo clássico. Do parasitus e do seruus audax, Lane herda seu gosto por bebidas alcóolicas e seu sarcasmo:

Algernon: A propósito, Lane, vejo pela caderneta da adega que, na quinta-feira à noite, quando jantaram comigo Lord Shoreman e o sr. Worthing, estão marcadas, como tendo sido consumidas, oito garrafas de champanha. Lane: Sim, senhor: oito garrafas e meia.

Algernon: Por que é que em casa de homem solteiro são os criados que invariavelmente bebem a champanha? Pergunto apenas a título de curiosidade.

Lane: Atribuo isso à superior qualidade do vinho, senhor. Tenho observado freqüentemente que em residências de casais é raro o champanha ser de primeira qualidade. (Wilde, 1998, p. 21-22)

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Mas Lane também tem um quê dos criados leais à família do acervo de Terêncio, quando defende seu patrão e corrobora as mentiras por ele inventadas para livrar-se de alguma situação embaraçosa. Faz ainda, o papel de seruus currens ao anunciar entradas de personagens novos em cena.

8. Imbróglios

A comédia nova latina costuma fazer uso de situações absolutamente inverossímeis, a caracterização das personagens deixa a desejar e as resoluções são forçadas. Os enredos das comédias valem-se mais da familiaridade do público com certas situações dramáticas (reencontros de parentes há muito separados, velhos que são enganados por seus escravos ou filhos mais jovens, esquemas de um parasita faminto para conseguir uma refeição gratuita, mulheres virtuosas julgadas erroneamente) e das possibilidades cômicas que a adoção e/ou subversão dessas fórmulas podem engendrar, do que da verossimilhança propriamente dita. No caso de Oscar Wilde, como observa Heaney et al., a utilização de convenções vai mais longe do que o simples propósito cômico:

Wilde’s writing emphasized the artifice and the conventions of comedy in order to turn these conventions into the mirror of a hypocritical society. Each of Wilde’s comedies ends with the reassertion of Victorian moral standards, like the marriage of the hero and the heroine. But by the time the “happy ending” is achieved, everything it stands for has been discredited and trivialized. (2003, p. 279)

O propósito satírico das peças muitas vezes fica camuflado por detrás da aparente fachada farcesca.

9. Confusão de identidades

Situações hilárias costumam ser fruto de identidades trocadas. Em Os Dois Menecmas essa estratégia é muito bem explorada, quando o Menecma 2 chega à cidade do Menecma 1 e, inadvertidamente, atrapalha a vida do irmão tanto com sua esposa como com sua amante. Os gêmeos são confundidos um com o outro e ambos acabam sendo tachados de mentirosos, traidores e doentes mentais. Em O Eunuco, Quérea disfarça-se de Eunuco para aproximar-se da mulher por quem está apaixonado.

Em A Importância de Ser Prudente, a chegada de João à sua casa de campo, anunciando a morte de seu irmão Prudente, causa divertidos mal-entendidos:

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Cecília: Adivinhe quem é que está na sala de jantar! Seu irmão! João: Quem?

Cecília: Seu irmão Prudente. Chegou há meia hora, mais ou menos. João: Que absurdo! Não tenho irmão nenhum.

Cecília: Oh! Não diga isso! Por pior que ele tenha procedido, irmão é sempre irmão. O senhor não pode ser assim tão intransigente, ao ponto de repudiá-lo. [...]

Chasuble: Oh! Que prazerosa notícia!

Miss Prism: Agora que já estávamos resignados com a sua perda, essa súbita ressurreição parece-me particularmente lamentável. (1998, p. 37) Assim como a amistosidade inicial entre Cecília e Gwendolen, transforma-se em animosidade quando pensam estar ambas noivas de Prudente, para tornarem-se cúmplices no desprezo pelos dois rapazes quando descobrem que nenhum deles chama-se Prudente e finalmente planejarem o casamento triplo do final da peça.

10. O segredo vergonhoso e a anagnórise

Vários dos conflitos cômicos são gerados por algo de triste ou vergonhoso no passado das personagens. No caso de Os Dois Menecmas, e de O Gorgulho, de Plauto e de O Eunuco de Terêncio, temos a separação de irmãos durante a infância que precisa ser reparada. E em A Sogra, de Terêncio, a esposa estuprada, cuja gravidez pode significar a desgraça de todos. Também João Worthing sofre por não saber quem são seus verdadeiros pais e ter sido encontrado em uma valise numa estação de trem, fato que é usado com desdém por Lady Bracknell, para recusar o pedido do rapaz pela mão de sua filha:

Confesso, sr. Worthing, que me sinto um tanto desnorteada pelo que me acaba de dizer. Ter nascido, ou, pelo menos, ter sido criado numa maleta, com alças ou sem alças, parece revelar tal desprezo pelas ordinárias decências da vida familiar, que nos lembra os piores excessos da Revolução Francesa. [...] Quanto ao local em que foi encontrada a maleta – um vestiário de estação ferroviária -, podia muito bem servir para ocultar uma inconveniência social. (Wilde, 1998, p. 40)

O desfecho desses situações conflitantes só pode ocorrer após a anagnórise, próxima ao final da peça. A anagnórise, ou reconhecimento, é mencionada por Aristóteles na Poética como um dos pontos altos do gênero trágico. O mais famoso episódio de anagnórise na tragédia talvez seja a cena em que Édipo se dá conta de sua verdadeira identidade. Nas comédias (e os melodramas que dela surgiram) esse momento costuma ser parodiado. Em O Gorgulho, isso ocorre no momento em que o soldado Terapontígono descobre, ao mencionar um fato de sua infância, que a escrava que havia comprado é na verdade, sua irmã, de quem havia se separado durante uma tempestade. Em A Sogra,

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Filúmena, a esposa sofredora, descobre que o pai da criança a quem deu a luz é seu próprio marido. O reaparecimento de um anel que lhe havia sido tirado pelo estuprador é a evidência necessária para que a anagnórise ocorra.

Esses dois temas (reconhecimento de parentesco depois de um longo tempo e o aparecimento de um objeto-chave que serve como prova de identidade) ocorrem em A Importância de Ser Prudente, quando João descobre, após a confissão da preceptora Miss Prism, que ele é, na verdade, irmão de Algernon, e que seu nome, como o de seu falecido pai, é realmente Prudente, o que lhe confere posição social aos olhos de Lady Bracknell e o cobiçado nome de Prudente, para que possa se casar com Gwendolen.

Em todos esses casos a anagnórise proporciona o final feliz para todos os envolvidos.

11. Conclusão

Terêncio no prólogo de O Eunuco nos diz que:

Mas se não é lícito ao poeta usar as mesmas personagens, por que razão seria mais lícito compor o mensageiro apressado, fazer as mulheres serem boas; as prostitutas, más;

o parasita, faminto; o militar, fanfarrão;

a criança ser trocada, o velho ser enganado pelo escravo, fazer amar, odiar, suspeitar? Enfim,

do que já foi dito, nada há que não tenha sido dito antes. (Plauto, 2006, p.40)

Essa afirmação nos chega hoje como uma percepção precoce do fenômeno da intertextualiade que, como afirmam Ingedore Koch e Vanda Elias

em sentido amplo, [...] se faz presente em todo e qualquer texto, como componente decisivo de suas condições de produção. Isto é, ela é condição mesma da existência de textos, já que há sempre um já-dito, prévio a todo dizer. Segundo J. Kristeva, criadora do termo, todo texto é um mosaico de citações, de outros dizeres que o antecederam e lhe deram origem. (2006, p. 86)

Assim como a literatura romana foi influenciada pela grega, todo o drama moderno acaba por nos remeter à riqueza da comédia clássica. A Importância de Ser Prudente evidencia que a linguagem e as convenções da comédia nova latina, notadamente o trabalho com a palavra – através de trocadilhos, frases de efeito e reversão cômica – o emprego (e a subversão do uso) de personagens-tipo e as reviravoltas fantásticas do

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enredo, mantém-se vivas e têm sido adaptadas para públicos muito distintos daqueles para os quais foram originalmente criadas, com o mesmo estrondoso sucesso.

12. Referência Bibliográfica

CARDOSO, Z. de A. A Literatura Latina. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

HEANEY, D. et al. Echoes. Milano: Lang Edizioni, 2003.

KOCH, I. e ELIAS, V. Ler e compreender: os sentidos do texto. São Paulo: Contexto, 2006.

PARATORE, E. História da Literatura Latina. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, s/d.

PLAUTO. Os Dois Menecmos. Coimbra: Instituto Nacional de Investigação Científica, 1983. Ibid. Estico de Plauto. Trad. e introdução de Isabella Tardin Cardoso. Campinas: Editora da Unicamp, 2006.

Plauto e Terêncio. A Comédia Latina. Trad. Agostinho da Silva. Rio de Janeiro: Ediouro, s/d.

TERÊNCIO. A Sogra. Brasília: Editora da UNB, 1993.

THORNLEY, G. e ROBERTS, G. An Outline of English Literature. Harlow: Longman, 1997.

WILDE, Oscar. Aforismos ou Mensagens Eternas. São Paulo: Landy, 2000.

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ADOLESCENTES APRENDENDO INGLÊS COM MÚSICA: NOS EMBALOS DA ZONA DE DESENVOLVIMENTO PROXIMAL

Fernando Silvério de Lima, GP PLE/CNPq , Letras, Fecilcam, fernando_ironic@hotmail.com Dra. Edcleia Aparecida Basso (OR), GP PLE/CNPq, Letras Fecilcam, edcleia@hotmail.com

1. Introdução

“Things have changed for me, and that’s ok, I feel the same, I’m on my way, and I say, things have changed for me!”

(Panic At The Disco)

Mudanças, mudanças e mais mudanças. Ser adolescente é uma tarefa muito complicada, geralmente rotulada por inúmeros adjetivos, até pejorativos, por pais, professores e pela sociedade (BASSO, 2008, p.113). Mesmo assim, a adolescência também é conhecida como a fase das descobertas e como nos têm revelado algumas pesquisas da Lingüística Aplicada (MACOWSKI, 1993; BASSO 2008, ROCHA & BASSO et alii) também uma fase propícia para aprender novas línguas, pois lidamos com o potencial de aprendizes em constante desenvolvimento. Partindo de tal pressuposto, utilizamos a música That Green Gentleman (Things have Changed1) da banda norte-americana Panic at the disco para elaborar um conjunto de atividades a serem desenvolvidas em uma turma de adolescentes.

Partindo das hipóteses de que a música é um elemento motivacional para maioria dos alunos e de fácil acesso aos professores (MURPHEY, 1992, p.02), e que demonstra ser uma rica fonte para o preparo de atividades diversas em aulas de Língua Inglesa (MEDINA, 1993, 2000, 2003; LIMA 2008a, 2008b), pensamos em atividades que pudessem discutir o tema “adolescência e suas mudanças” elaboradas na língua alvo, buscando a motivação dos alunos iniciantes para aprender essa nova língua. E ancorados nos estudos da psicologia sociocultural, mais especificamente no construto teórico da zona de desenvolvimento proximal, e no desenvolvimento do aprendiz em situações em que este necessita de suporte de um par mais experiente, elaboramos as atividades que serão descritas e discutidas neste artigo.

Apresentaremos dados coletados ao longo do desenvolvimento das aulas, por meio de questionários e gravação em áudio, discutindo os fatores positivos de atividades desenvolvidas a partir de uma música, que cremos serem relevantes não somente para adolescentes, mas para qualquer aprendiz, desde que sejam elaboradas considerando a

1

PANIC AT THE DISCO. Pretty Odd. Florida: Fueled by Ramen/Decaydance, 2008 (disco compacto) (48 min).

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música e sua potencialidade como ferramenta pedagógica para preparação de aulas diferenciadas.

2. Vygotsky no Ensino de LE: considerações importantes

As atividades que aqui apresentamos e discutimos foram elaboradas tendo em mente os pressupostos teóricos do psicólogo soviético Lev Semenovich Vygotsky que explicam os diferentes estágios do desenvolvimento cognitivo e social do ser humano. Vygotsky parte do pressuposto de que a aprendizagem tem início muito antes do período escolar. Mediados pela linguagem, os seres humanos interagem entre si e desta forma constroem o seu conhecimento, sempre havendo espaço para as relações intrapessoais, que registram as mudanças próprias das pessoas. Seu estudo com crianças enfatiza que as interações entre a criança e os demais seres inseridos em ambientes culturais são fundamentais para construção do conhecimento e formação cultural da criança. Com a reestruturação do pensamento nas relações intrapessoais, estas retornam ao meio em novas formas de interação.

No campo de estudos sobre o processo de ensino-aprendizagem de Língua Estrangeira (doravante LE) vários estudiosos têm conduzido pesquisas iluminadas por tais pressupostos, mais especificamente pela Zona de Desenvolvimento Proximal (ZDP). Ela tem inspirado novas pesquisas que lidam com as limitações e o êxito de aprendizes e professores na árdua tarefa de aprender e ensinar uma nova língua. De acordo com o referido autor o desenvolvimento humano se dá em dois níveis. O primeiro deles é o Nível de Desenvolvimento Real (NDR). Neste nível encontramos a capacidade dos aprendizes de realizar tarefas com maior autonomia, se pensarmos nas aulas de Língua Inglesa (doravante LI), no NDR se encontram os conhecimentos já adquiridos que permitem que o aluno possa interagir na língua alvo em uma situação de comunicação que já tem domínio, ou de reconhecer em determinada música vocabulários que aprendeu anteriormente. O segundo nível é o Nível de Desenvolvimento Potencial (NDP). Este nível, até então desconsiderado pelos psicólogos no tempo de Vygotsky, diz respeito ao conhecimento que se encontra em fase “embrionária” (VYGOTSKY, 1989a, p.97).

Sendo um conhecimento embrionário, este requer um período para que possa amadurecer, e pensando em um ensino constituído socialmente, é necessário que haja condições para que um conhecimento até então em nível potencial possa fazer parte do nível de desenvolvimento real de cada aprendiz. No nível potencial, os aprendizes lidam com suas limitações, mas que ao serem acompanhados ou assistidos por um par mais

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experiente (professor ou colega ao pensarmos no contexto escolar) podem superá-las, até chegar o momento em que conseguirão realizar o mesmo desafio com menos dependência de auxílio ou suporte do par mais experiente.

Outro construto vygotskiano importante para as pesquisas de LE e L2 é o conceito de Scaffolding2 (andaime). Recebe este nome pelo fato de que “na interação social um participante mais experiente pode criar, por meio da fala, condições de auxílio em que o aprendiz pode participar, e estender habilidades e conhecimentos atuais para níveis mais elevados de competência (DONATO, 1994, p.41)”. Este conceito será discutido posteriormente, no item 5 deste artigo.

Assim, a partir de atividades elaboradas com música, buscamos investigar como tais atividades podem ser coerentes com os princípios sociointeracionistas vygotskianos, que considerem a participação ativa dos aprendizes e que ofereçam condições para que eles possam progredir nos seus níveis de desenvolvimento real. Após tais considerações, apresentamos a seguir os procedimentos metodológicos e as atividades realizadas.

3. Metodologia da Pesquisa

Partindo de tais pressupostos teóricos, conduzimos uma pesquisa qualitativa. De acordo com Falcomer (2009, p. 39), baseada em Chizzotti (2006) “as pesquisas qualitativas admitem que a realidade não é estática”. Complementa ainda que os objetos de pesquisa são constituídos por pessoas e fatos, e que a atenção do pesquisador “ sustentará a sua investigação e o norteará rumo à questão de sua pesquisa (op.cit).”

A partir da música That Green Gentleman (Things Have Changed) elaboramos diferentes atividades, todas elas relacionadas ao mesmo tema. A turma selecionada é formada por um grupo de adolescentes entre 13 e 15 anos que estudam inglês como LE em uma escola de idiomas localizada no município de Ubiratã, Paraná. O grupo de oito alunos se reúne para duas aulas semanais com 75 minutos de duração cada aula (150 minutos por semana). A turma é de nível iniciante e os alunos têm freqüentado as aulas há aproximadamente seis meses e tem utilizado material criado pela própria instituição. O professor-pesquisador é graduando em Letras Português/Inglês e tem experiência com ensino de LI para escolas de idiomas.

Os procedimentos metodológicos notadamente etnográficos utilizados para coleta de dados neste artigo foram:

2

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 Dois questionários compostos por questões abertas aplicados aos alunos do grupo após o encerramento de cada atividade.

o O primeiro questionário buscava investigar sobre as percepções dos alunos durante a atividade da entrevista e a necessidade de ajuda durante alguma etapa. (cf. item 3 deste artigo).

o O segundo questionário buscava levantar as opiniões dos alunos sobre a compreensão das letras de músicas nas aulas de LI e sua importância. (cf. item 4)

 Gravação em áudio da atividade lúdica “Hot Potato” realizada na terceira aula.  Transcrição da atividade para melhor observação dos momentos de interação

em que alguns alunos buscavam auxílio com o professor ou com os próprios colegas.

As atividades foram realizadas durante quatro aulas (75 minutos cada) em que os alunos respondiam aos questionários após cada atividade realizada, na maioria das vezes no fim da aula. Por questões éticas optamos por não revelar a identidade dos alunos que participaram das atividades, portanto, abaixo de cada resposta citada neste artigo utilizaremos a seguinte referência (gênero, idade e série que freqüenta no ensino regular) e quanto ao excertos da atividade gravada em áudio e transcrita, optamos por utilizar apenas a inicial de cada nome dos alunos envolvidos.

4. Find Someone Who : buscando informações com os colegas

Nesta fase introdutória optamos por uma atividade de Speaking que envolvesse os alunos de forma a fazer com que estes andassem pela sala, fazendo perguntas e respondendo aos colegas em geral, e não somente aos que se encontravam mais próximos. O estilo de entrevistas “find someone who” permite que o aluno saia em busca de encontrar um colega que se encaixe na informação que é exigida e mesmo que não encontre tal colega, a atividade possibilita interagir em LI ao questionar vários de seus colegas. Os dez itens (fig.1) foram elaborados a partir de vocabulário e assuntos presentes na letra da música escolhida, como uma forma de introduzir também parte do vocabulário novo presente na letra/texto. Apresentamos a seguir o modelo da atividade desenvolvida com os alunos.

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Esta atividade ocupou toda a aula (aproximadamente 75 minutos). A maior parte da aula foi utilizada para explicar aos alunos sobre como a atividade deveria ser feita, mas principalmente para tirar dúvidas de pronúncia e compreensão das informações novas para a turma. Orientamos os alunos para que não tivessem receio quanto à pronúncia, mas que focalizassem o objetivo da entrevista, de encontrar ou não um colega que se encaixasse na descrição de cada item. A importância do auxílio através do par mais experiente (neste contexto, professor ou outro colega) se tornou marcante pelas recorrentes dúvidas que os alunos tiveram quanto à pronúncia, destacados a seguir em dois trechos de questionários respondidos pela turma:

As duas respostas revelam o receio que os alunos tinham quanto à pronúncia, e como esta pode ser eliminada aos poucos conforme pediam ajuda, seja ao professor ou outro colega. O primeiro trecho nos permite compreender que a partir do auxílio oferecido, na eliminação da dúvida de pronúncia, a aluna pôde desenvolver a atividade sem ter que desistir frente ao seu primeiro obstáculo. E o segundo trecho revela a dificuldade tanto em pronúncia quanto no novo vocabulário, uma vez que a aquisição de vocabulário não se dá somente no primeiro contato, mas especialmente a partir de seu uso ao longo das aulas.

“Precisei de ajuda do professor na pronúncia, mas também pedi ajuda para alguns colegas. E a ajuda foi muito boa, pois depois de saber a pronúncia eu tive mais facilidade para fazer o exercício.”

(L.N, Feminino, 14 anos, aluna de 8ª série)

“Algumas vezes eu precisei contar com a ajuda do professor nas palavras desconhecidas e grandes quando eu perguntava aos meus amigos. Essas ‘ajudas’ me ajudaram muito.”

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5. That Green Gentleman: compreensão da letra/texto

Conforme discutido anteriormente, a música tem sido um valioso recurso pedagógico utilizado para incrementar aulas de LE. Partindo de tal afirmação, nossos recentes trabalhos (LIMA, 2007, 2008a, 2008b; LIMA & BASSO, 2008 dentre outros) têm enfatizado a importância deste recurso ser utilizado de maneira diferenciada das atividades tradicionais3, de forma que não desconsidere sua letra para priorizar atividades clássicas de discriminação auditiva ou com propósitos gramaticais (BASSO, 1999; LIMA, 2007).

Neste item discutimos o processo de compreensão da letra/texto da música trabalhada. Após a primeira atividade, discutida acima, em que o questionário utilizado envolvia uma proposta de descobrir como os colegas se sentiam, ou se determinadas situações estavam acontecendo em suas vidas de adolescentes, os alunos nos questionaram se haveria alguma relação entre o que fizeram anteriormente e a atividade seguinte, em que teriam o primeiro contato com a música.

A compreensão da letra foi feita de maneira dedutiva, para que os alunos sugerissem interpretações dos versos. Percebemos ainda que este tipo de atividade requer um tempo maior para que o trabalho com a letra/texto seja bem realizado, e que possa despertar no aluno o interesse de buscar o vocabulário novo com o qual se depara. No entanto, sugerimos que esta atividade não se estenda demais, pois os alunos na maioria das vezes preferem terminar logo para finalmente ouvir a canção. Uma boa alternativa é trabalhar com a compreensão e intercalar com momentos para ouvir a música em turmas mais ansiosas.

Sob este aspecto fazemos referência ao estudo de Medina (2000) sobre a aquisição de vocabulário através de story songs4. Em sua pesquisa a autora enfatiza a importância de dois tipos de suporte (propostos por Krashen5) para compreensão de textos: o suporte lingüístico e o extralingüístico6. De acordo com Krashen (apud MEDINA, 2003, p.02) o suporte lingüístico pode ser compreendido nos momentos em que nós, enquanto professores, oferecemos um sinônimo (na língua alvo) que facilite a compreensão do

3

Vide o trabalho de BASSO (1999) sobre atividades com música em aulas de língua inglesa. Neste trabalho a autora discute o conceito de atividades pseudocomunicativas, sendo as atividades elaboradas tendo em vista pressupostos comunicativos ou interacionistas, mas que resultam em atividades comuns do método tradicional de ensino de línguas (preenchimento de lacunas, tradução, etc.)

4

Medina (2003, p.01) propõe que o termo story-song é “basicamente um poema com uma história entrelaçada”. E que as crianças gostam mais, pois é cantado e não somente falado, assim como muitas músicas infantis brasileiras.

5

Vide. KRASHEN, S. The Input Hypothesis: Issues and Implications. New York: Longman Group Limited. 1985

6

Referências

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