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HILDA HILST RESPIROS: uma experiência de divulgação - A senhora D

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Revista do EDICC (Encontro de Divulgação de Ciência e Cultura), v. 1, out/2012. 156

HILDA HILST – RESPIROS: uma experiência de divulgação - A senhora D

Mariana Garcia de Castro Alves1

RESUMO:

O artigo a seguir trata de um dos quadros da exposição HILDA HILST – RESPIROS, realizada em 2010, na Universidade Estadual de Campinas. A mostra foi composta de desenhos da escritora em diálogo com trechos de sua literatura e teve o objetivo de produzir uma leitura poética da obra. A poeta desenhava quando o exercício da escrita se tornava pesado a ela, e assim, traçava no papel suas atribulações para “dar uma respirada”. Como um convite à leitura, este texto toca em alguns sentidos em torno de Hilda Hilst nas relações entre obra, autor e público. Apesar do reconhecimento de crítica, atingindo excelência nos três gêneros, sua obra ainda é pouco conhecida, o que poderia ser atribuído a muitos fatores, entre eles a reiteração do mito da artista excêntrica.

Palavras-chave: Hilda Hilst, Divulgação cultural, Literatura, Desenhos, Interpretação ABSTRACT:

This article came from the exhibition HILDA HILST - RESPIROS, presented in 2010 at Universidade Estadual de Campinas, in Brazil. The exposure consisted of drawings of the writer in dialogue with parts of her literature. The purpose of the exhibition was to make a poetic reading of her work. Here we present the experience of the disclosure through one of the drawings exhibited. The poet used to draw when the writing exercise was hard, so she used to draw to "take a breath", “dar um respiro” in Portuguese. As an invitation to read, this work brings thoughts about the senses between work, author and public. She achieved excellence in all the three genres but, in spite of the critical recognition, her work remains unknown. This could be attributed to many factors, including the reiteration of the myth of the eccentric artist.

Key words: Hilda Hilst, Cultural diffusion, Literature, Drawings, Interpretation

De 22 de abril a 21 de maio de 2010, foi realizada a exposição HILDA HILST – RESPIROS, no Centro de Documentação Cultural “Alexandre Eulalio” (CEDAE), no Instituto de Estudos da Linguagem da Universidade Estadual de Campinas, que guarda o acervo da poeta desde 1995. A mostra foi composta de onze desenhos feitos por Hilda Hilst (1930-2004), em caneta esferográfica e hidrográfica (canetinha), emoldurados ao lado de trechos livremente pinçados de sua obra literária. Pela primeira vez, foram apresentados seus traços iconográficos, documentos de quase quarenta anos, de modo conjunto.

O texto que segue é uma breve reflexão sobre um dos diálogos entre verbal e não-verbal promovidos pela mostra. Aqui, apresentamos uma composição de imagem e trechos de

A obscena senhora D (1982).

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Mestre em Divulgação Científica e Cultural pelo Instituto de Estudos da Linguagem e o Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo (Labjor), da Universidade Estadual de Campinas.

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Revista do EDICC (Encontro de Divulgação de Ciência e Cultura), v. 1, out/2012. 157 Primeiramente, fizemos uma leitura do desenho e do texto. Após, trouxemos alguns aspectos particulares da obra de Hilda e de sua divulgação para apontar como a pecha de escritora de pornografia, vista em geral como literatura de baixa qualidade, pode interferir no seu reconhecimento. Desse modo, ao refletir sobre a ilustração e o trecho a partir da relação obra, autor e público, mostramos que sua obscenidade vai além da mera pornografia, na medida em que ultrapassa a sensualidade erótica ao tocar, com a malícia da linguagem com a qual a poeta trabalha, nas questões fundamentais do homem, por exemplo, na morte, no envelhecimento e no não compactuar com as regras e convenções de uma sociedade animalizada e cruel.

A figura feminina olha-nos de frente, com olhos de sangue, como se nos desafiasse. Descabelada, é traçada por linhas leves e velozes. Traz um corvo de bico adunco à sua direita, como mensagem de maus presságios.

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Revista do EDICC (Encontro de Divulgação de Ciência e Cultura), v. 1, out/2012. 158 A obscenidade está aqui com um retrato desesperado de uma senhora de um “enrugado mole”, com a imprudência e rapidez de linguagem coloquial e termos chulos dirigidos à vil vizinhança.

A ilustração, datada de 1982, conversa com dois trechos de A obscena senhora D, livro publicado pela primeira vez também em 1982.

Os traços a formar suas olheiras, vincar sua testa e contornar sua boca são, junto ao texto, ao mesmo tempo marcas do envelhecimento – o companheiro chamado Ehud diz “um pouco caidinha sim” – e do estupor, do nunca compreender, sobretudo o rosto de D de desespero, de desamparo, de derrelição.

“E agora vejamos as frases corretas para quando eu abrir a janela” ilumina o rubro da boca. O traço da esferográfica vermelha reitera, no segundo excerto, o ódio nas frases dirigidas aos moradores vizinhos da vila. No ritmo poético e popular da tradição infantil, como a de “hoje é domingo, pede cachimbo...”, as palavras de agressão são desdobradas em movimentos quase causais. Percebidos por um alinhavar episódico, pontuado pelas diversas formas escatológicas, tais movimentos ficam evidentes ao final, a partir da repetição de “dado” e “olha”: “o sapo engolindo o dado/ o dado no cu do lago, olha lá no fundo/ olha o abismo e vê/ eu vejo o homem”.

A definição do que é o homem e a visão de que tal seria a última instância de todas as podridões traz a memória de outros poetas que buscaram entender o homem pelo baixo, como Manoel Bandeira com seu O Bicho (“Vi ontem um bicho/ Na imundície do pátio/ Catando comida entre os detritos./ Quando achava alguma coisa,/ Não examinava nem cheirava:/ Engolia com voracidade./ O bicho não era um cão,/ Não era um gato,/ Não era um rato./ O bicho, meu Deus, era um homem.”)

Hilda, entretanto, fala aqui da condição do humano não como se a culpa fosse exclusivamente de um sistema econômico injusto, cuja vítima seria aquele pobre no lixão. Nela, o homem é parte de uma natureza em si podre, violenta e estúpida. Nela, não há surpresa em igualar o homem ao bicho, como em Bandeira. Tal qual “o pau do porco” e “a buceta da vaca”, Hilda fala da “pata do teu filho cutucando o ranho”. O homem é, em Hilda, capaz de “inimagináveis pestilências”.

Não há nenhum refúgio, nem mesmo na literatura. Para ela, olhar “o sem sorte” é também olhar sua morte, seu nojo – tanto dos imundos vadios mijando nos muros e das putas cadelas, quanto de si própria, do próprio poeta: “olha a cançãozinha dela”. Ácida, pungente, a senhora D aqui ilustrada não compactua com a hipocrisia, mas vê a bestialidade intrínseca à espécie.

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Revista do EDICC (Encontro de Divulgação de Ciência e Cultura), v. 1, out/2012. 159 Tal negatividade, desenhada por seu palavreado hostil, ao mesmo tempo que reitera a obscenidade de Hilda – a escritora maldita – traz a interpretação de que sua obscenidade não é gratuita, mas se configura como uma experiência decisiva de rechaçar poeticamente a ilusão de que a humanidade, tão abjeta quanto desamparada, vale mais do que permite sua perecível condição de pó. Isto é, pode-se ler os registros baixos de Hilda Hilst pela via do que está “fora de cena” e, com tal acepção de raiz da palavra “obsceno”, assim entender seu “soco” poético como expressão daquele que se nega a moldar-se às determinações sociais convencionalmente aceitas. Mais simples que isso, mostra que a ideia de pornografia em Hilda Hilst é ultrapassada por questionamentos que vão além da mera sensação erótica eminentemente superficial.

A ideia de que Hilda Hilst seja uma escritora pornográfica ainda a acompanha. Tal noção adquiriu força no fim dos anos 1980 quando, com quase sessenta anos, às vésperas do lançamento de O caderno rosa de Lori Lamby, Hilda divulgou que passaria a escrever somente bandalheiras em tom galhofeiro, anunciando claramente sua incursão no gênero pornográfico. Em depoimento a Leo Gilson Ribeiro, para o Jornal da Tarde, a escritora afirmou:

E com relação ao meu trabalho como escritora eu reconheci que meu esforço todo tinha sido excessivo, na renovação da linguagem, na busca, na tentativa de transmitir a quem me lesse a sensação profunda da vida; da experiência da vida; você colocar o horizonte mais longínquo de si mesmo a serviço da sobrevivência do Outro. É, eu queria despertar um lado do ser humano que ele ainda se recusa a ver, como, entre outros aspectos da vida humana, a morte, essa experiência mais importante que o homem pode ter. Agora, sim, eu sinto que eu posso, que eu tenho o direito de fracassar. Eu passei 40 anos de reclusão dedicada a escrever e de tudo de mim não houve quase eco, não fui compreendida, não fui consumida, não fui aceita. Os editores, com uma ou outra exceção de amigos meus como a Nelly Novaes Coelho e o Massao Ohno, eu compreendi: os editores no Brasil não estão interessados em uma obra que leve a pensar. (RIBEIRO, 1989)

E ainda:

Não, eu não vou parar de escrever, vou parar de publicar a não ser deboches e bandalheiras de tom galhofeiro. Mas vou terminar um texto curto chamado Rútilo Nada. Creio que de agora em diante vão gostar dos textos que eu escrevo, O Caderno Rosa de Lori Lambi uma pornografia jeca sobre a sexualidade de uma menina (com 25 ilustrações de Millôr Fernandes), quero que as pessoas se divirtam, podem até me achar grotesca, não importa, depois vêm, no mesmo volume, as Histórias de Escárnio. Agora, toca aos editores, se quiserem, editar e divulgar todo o meu teatro, que está inédito, toda a minha poesia, todos os meus textos em prosa. Isso não me compete. E aí terminou. Eu quero transformar esse fim de vida meu em uma coisa doce para mim, vou ter tempo agora para ler autores amadíssimos, vou ter tempo

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Revista do EDICC (Encontro de Divulgação de Ciência e Cultura), v. 1, out/2012. 160 para estudar, ler toda a obra de Otto Rank, do Ernest Becker, quero tempo para mim e tempo para o riso. Eu queria que a cidade inteira risse comigo. Com doçura, com riso, finalmente eu me tornarei – espero – consumível. (RIBEIRO, 1989)

Amigos próximos teriam considerado a nova empreitada de Hilda uma agressão contra a qualidade de sua literatura. Por outro lado, mais tarde, alguns críticos apontaram em

O caderno rosa de Lori Lamby a mesma qualidade do restante da obra. (PÉCORA, 2010, p.

32). Não demoraria muito para a escritora voltar a se queixar: “Fui muito ingênua. Achei que, optando pela pornografia, talvez chamasse a atenção, mas sabe o que aconteceu? Os que gostam de pornografia disseram que aquilo não era pornográfico. E os críticos “sérios” se decepcionaram comigo.” (CASTELLO, 1992)

A estratégia de chamar a atenção para sua obra ao divulgar que só escreveria bandalheiras aumentou o interesse jornalístico por Hilda Hilst. Tanto que O caderno rosa foi o único livro editado por Massao Ohno a ser reimpresso e, depois, a tradução para o francês de Contos d’escárnio. Textos grotescos foi notícia. (PÉCORA, 2010, p. 33).

Se o marketing deu alguma visibilidade a Hilda, é inegável que, de lá para cá, a marca de escritora de pornografia, considerada gênero menor, acompanhou-a. Na sua morte, em 2004, por exemplo, grandes veículos de imprensa, como Época, da editora Globo, que comprara sua obra completa em 2001, Folha de S. Paulo e Isto É Gente, não reproduziram a análise de especialistas sobre o legado de Hilda Hilst, mas o que possuía maior apelo popular em seus lides, a pornografia, por desconhecimento mesmo. (REYNOL, 2009).2

Não só o jornalismo brasileiro, mas exposições e eventos culturais também tratam, a seu modo, de reproduzir a imagem de Hilda apenas enquanto uma personalidade excêntrica, rodeada de cachorros, cheia de namoros com famosos e amigos interessantes. Ou então, para a resguardar, mostram-na como escritora cuja pornografia não é tão pornográfica.

Contra a ideia de que a temática obscena revelaria por si só a qualidade de uma obra, em 1990, a estudiosa Eliane Robert Moraes afirmou no Jornal do Brasil: “Não tenhamos dúvidas: O caderno rosa de Lori Lamby é, sim, um livro obsceno e, como tal, passível de ser catalogado ao lado de textos afins.” (MORAES, 1990). Tal posicionamento revelou-se decisivo na defesa de O caderno rosa em um momento em que a perplexidade da crítica transformara-se em silêncio.

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A citação refere-se a trabalho feito por Fábio Reynol para avaliação da disciplina Hilda Hilst: obra e imagem, ministrada no Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo, Unicamp, ao Mestrado em Divulgação Científica e Cultural, pelo prof. Dr. Alcir B. Pécora.

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Revista do EDICC (Encontro de Divulgação de Ciência e Cultura), v. 1, out/2012. 161 Para Alcir Pécora (2010), a tetralogia obscena de Hilda Hilst composta por seus últimos livros, O caderno rosa de Lori Lamby, Contos d’escárnio. Textos grotescos, Bufólicas e Estar sendo. Ter sido, manifesta um núcleo que não se esgota nessa fase, de 1990 a 1992, mas percorre toda obra de Hilda Hilst: o do riso cruel, que fere, em ataque à idiotia geral, numa resistência inventiva e bem-humorada, no pior dos mundos. O obsceno daria sentido a esse núcleo, ao se fazer presente inclusive nos textos não considerados pornográficos.

Ao se referir a quem separa a obra em obscena e séria, Alcir Pécora diz que haveria uma tendência a um tipo de normalização que se daria ou pelas expectativas rasteiras dos leitores, por interesses comerciais dos editores ou por vaidades. Dividir o sério do obsceno seria estabilizar os sentidos que não poderiam ser estabilizados, pelo menos ao se tratar de uma escritora da grandeza de Hilda Hilst:

Tendo isso em mente, torna-se forçoso reconhecer, mais uma vez, que esse cenário básico não é exclusivo dos livros obscenos, o que torna inútil ou irrelevante o esforço de críticos apologéticos de Hilda Hilst, que julgam possível isolar a parte de sua obra que arrisca ser acusada de pornografia daquela outra julgada séria. A intenção é singela: salvar Hilda séria de sua produção chula, como certa vez Bilac intentou fazer com o Bocage sonetista que admirava, livrando-o da carga pesada do satírico boquirroto. (PÉCORA, 2005)

Nesse sentido, a experiência de divulgação de Hilda Hilst se depara com complicações. Caso se deixasse sua pornografia em segundo plano, o risco seria o de tornar-se moralista. Do contrário, caso o foco fosse essa temática, o risco seria o de incorrer em sensacionalismo ou conservadorismo, haja visto o fato de que a separação entre o sério e o obsceno já pressupõe uma distinção moral.

A Senhora D, “eu Nada, eu Nome de Ninguém, eu à procura da luz numa cegueira silenciosa, sessenta anos à procura do sentido das coisas” (HILST, 1982, sem página), vem para mostrar a face mais complexa da obra, em que o amor se desenvolve na realidade conjugal (“Em mim, Ehud... olha como é a minha cara sem o teatro para o outro”) e o deslocamento se desenvolve em “frases corretas” contra a mediocridade da sociedade.

Alcir Pécora, que escolheu abrir a coleção da editora Globo com A obscena

senhora D por considerar o livro “uma pancada justa, certeira, para apresentá-la sem meias

medidas aos leitores potenciais, capazes dela” (PÉCORA, 2001, p. 11), garante que a obra assegura a apresentação de temas e elementos discursivos particulares da ficcionista, poeta e dramaturga, pois representaria “um momento de perfeito equilíbrio de desempenho, no qual

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Revista do EDICC (Encontro de Divulgação de Ciência e Cultura), v. 1, out/2012. 162 se cruzam todos os grandes temas e registros da prosa de ficção que Hilda Hilst vinha praticando desde o início dos anos 70” (PÉCORA, 2001, p.12).

Na esteira de temas do livro, encontram-se questões amorosas, desde as “terrenamente sensuais” às de “extremos dramáticos”; questões metafísicas, com dúvidas teológicas nascidas de inquietações do corpo que envelhece e questões de resistência ao senso-comum, tratado pela narradora com ironia “obscena e visceralmente política”. Assim, o “bom-mocismo” é mediocridade, a prudência é mesquinhez e a vizinhança, metáfora para toda a sociedade, burra e sádica. As formas são muitas vezes de um humor negro, caricato,

nonsense, exacerbado pela escatologia. Superlativa, uma literatura “cheia de viço, de

juvenilidade energética e excessiva”, segundo o organizador de suas obras. Como em outros trabalhos, alusões literárias, com apropriações seguras, e violações da gramática são recorrentes.

Outro argumento de Pécora para a apresentação de Hilda Hilst através de A

obscena senhora D seria de que o livro organizaria “numa unidade coesa, bem ajustada em

suas partes, os registros e dicções presentes também nos dois outros gêneros praticados com maestria por ela: a poesia e o teatro.” (HILST, 2011, p. 13). Isto é, além dos temas do amor, de questões metafísicas e das dicções altas e baixas, sua ficção em prosa apresentaria também a poesia e o teatro de Hilda Hilst.

Há mistura de gêneros no interior dos textos de Hilda Hilst, de qualquer gênero. Em textos narrativos, há trechos de poesia lírica, pela inclusão de versos ou impressão de ritmo à prosa, bem como diálogos dramáticos.

Muitos temas de seu teatro são encontrados na prosa. Por exemplo, a peça O

visitante, de 1968, antecipa a desconfiança da traição da mãe e do amado da prosa Matamoros (da fantasia), de Tu não te moves de ti, publicado pela primeira vez em 1980. Maria desconfia

de Homem e de sua mãe, Ana. Em Matamoros, a também Maria vive atormentada pela relação entre Meu, seu homem, e sua mãe, Haiága.

O tom galhofeiro das crônicas aparece tanto na prosa quanto na poesia, como em passagens de Contos d’Escárnio e em Bufólicas. A poesia é encontrada dentro do texto de A

obscena senhora D, no andamento que mescla diálogos a fluxos de consciência. No que

tange ao teatro dentro dessa prosa, os fluxos de consciência não apagam os diálogos, mas, ao contrário, encenam disputas próprias do drama – algo que teria feito mais de uma adaptação teatral dessa obra ser considerada bem sucedida. Nesses dois trechos apresentados, vemos tanto diálogos próprios do drama quanto poesia dentro do que seria prosa.

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Revista do EDICC (Encontro de Divulgação de Ciência e Cultura), v. 1, out/2012. 163 Em suma, o desenho e o trecho podem mostrar a obscenidade maldita de uma escrita madura que congrega diálogos teatrais em uma prosa ritmada pela poesia, gêneros que se multiplicam em Hilda Hilst. Ao colocar em cena o desespero interior aliado a uma subjetividade tanto mais crítica, esse quadro atua no sentido de embaralhar não só as fronteiras entre gêneros e registros altos e baixos, mas também as delimitações entre o obsceno, o pornográfico, o lírico, o político e outras dicotomias às quais o pensamento se submete quando se põe um rótulo estanque em uma escritora do nível de Hilda Hilst.

A exposição HILDA HILST – RESPIROS foi concebida durante o curso de Mestrado em Divulgação Científica e Cultural, do Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo - Labjor. O objetivo foi realizar uma experiência de divulgação que propagasse poeticamente o universo literário de Hilda Hilst.

Hilda gostava de desenhar. Exemplares desse costume pouco conhecido da poeta, dramaturga e ficcionista podem ser encontrados nos arquivos do CEDAE, da Unicamp, e em anotações em seus livros pessoais, hoje na biblioteca da Casa do Sol, onde morava. Nos arquivos da Unicamp, encontramos cerca de oitenta recortes com desenhos, além de ilustrações encontradas nas bordas de cadernos, diários e cartas. Muitas vezes, os desenhos estão misturados a inscrições numéricas, a cálculos de contas a pagar e a frases dispersas, divagações.

Hilda Hilst tomava a caneta como ponte do processo de criação. No delinear de seus desenhos, a escritora encontrava uma acomodação para buscar a continuidade do árduo exercício do poeta. Em uma palestra, documentada no livro “Feminino Singular” (1989), um ouvinte pergunta se Hilda havia aprendido pintura, ao que escuta como resposta: “Não, não aprendi pintura. Às vezes, quando fico muito tensa e não consigo escrever, aí eu pinto, desenho um pouco.” A resposta aponta para uma questão recorrente na obra: a sofreguidão da criação, que em si é um salto no vazio a ultrapassar qualquer garantia, a tocar no incomunicável: “e eu tentando apenas inventar palavras, eu tentando apenas dizer o impossível” (HILST, 1991). Assim, à pergunta do espectador, Hilda completa: “São as horas da respirada, quando não dá para dizer nada, quando está muito difícil tudo. Aí então, eu desenho um pouco”.

Mergulhada entre a imaginação de detalhes e o aparecimento inopinado de frases, versos e personagens, “de redes e de anseios inundada” (HILST, 1992, p. 34), Hilda emergia para tomar ar nos desenhos, nas anotações, nos passeios da caneta por pedaços de papel, nos cadernos... por onde lhe vinham penduradas figuras logicamente improváveis em paisagens naturalmente insólitas.

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Revista do EDICC (Encontro de Divulgação de Ciência e Cultura), v. 1, out/2012. 164 A exposição retratou a poeta através de seus desenhos, seus respiros. As relações entre suas ilustrações e sua obra literária ainda não haviam sido foco de uma exposição sobre a autora, nem objeto de estudo.

Referências Bibliográficas

ALVES, Mariana Garcia de Castro. HILDA HILST – RESPIROS: uma experiência de

divulgação. Campinas, SP : [s.n.], 2012.

CASTELLO, José. Hilda Hilst troca “pornô” por erotismo. O Estado de São Paulo, SP. 22 de junho de 1992.

COELHO, Nelly Novaes et al. Um diálogo com Hilda Hilst. In: Feminino singular. São Paulo: GRD; Rio Claro, SP: Arquivo Municipal, 1989.

HILST, H. A Obscena Senhora D. São Paulo: Massao Ohno-Roswitha Kempf, 1982. HILST, H. Bufólicas. São Paulo: Globo, 2002a.

HILST, H. Cartas de um sedutor. São Paulo: Editora Paulicéia, 1991. HILST, H. Contos d’Escárnio Textos grotescos. São Paulo: Globo, 2002b. HILST, H. Estar sendo Ter sido. São Paulo: Nankin Editorial, 1997.

HILST, H. Júbilo, memória, noviciado da paixão. São Paulo: Globo, 2003c. HILST, H. O Caderno Rosa de Lori Lamby. São Paulo: Globo, 2005a. HILST, H. Poemas malditos, gozosos e devotos. São Paulo: Globo, 2005b. HILST, H. Tu não te moves de ti. São Paulo: Globo, 2004b.

MORAES, Eliane Robert . A Obscena Senhora Hilst. Jornal do Brasil. Ideias - Livros n 189 - Rio de Janeiro, 12 maio 1990.

PÉCORA, Alcir. hilda hilst: call for papers. Agosto de 2005. Disponível em <http://www.germinaliteratura.com.br/enc_pecora_ago5.htm> Acesso em: 1º de outubro de 2008.

PÉCORA, Alcir. (org.) Por que ler Hilda Hilst. São Paulo: Globo, 2010.

PÉCORA, A. Nota do organizador. In: HILST, H. A obscena senhora D. São Paulo: Globo, 2001.

REYNOL, Fábio. Da morte. Análise de três matérias jornalísticas sobre o falecimento de

Hilda Hilst. Campinas: Unicamp, 2009.

RIBEIRO, Leo Gilson. Luminosa despedida. Jornal da Tarde, São Paulo, 4 de março de 1989.

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