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Meu cabelo me empodera : relações de gênero e raça no cotidiano de uma escola pública da periferia urbana de Duque de Caxias/RJ

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Academic year: 2021

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“Meu cabelo me empodera”: relações de gênero e raça no cotidiano de uma

escola pública da periferia urbana de Duque de Caxias/RJ

Paulo Melgaço da Silva Junior1

Resumo: A modernidade reflexiva tem sido caracterizada, entre outros aspectos, por uma explosão de identidades políticas centradas no feminismo, nas identidades gays, lésbicas e negras. Nesta pluralidade da vida social, me interessa refletir sobre os corpos negros como sujeitos que foram apagados pela modernidade, e que sempre são apontados nos censos e nas pesquisas como em situação de inferioridade. A discussão sobre cabelos serve como um claro exemplo de questões que fazem parte do cotidiano escolar e que podem trazer grandes marcas de inferiorização. Assim, este estudo aborda alguns modos pelos quais duas alunas de uma escola da periferia urbana constroem suas identidades culturais, de raça e de gênero, e como essas são vivenciadas no ambiente escolar. De acordo com Sommerville (2000) e Barnard (2004), tais questões devem ser vistas como intersecionais. Para tanto, discuto neste texto cenas do cotidiano de uma escola onde uma professora desenvolveu um trabalho sobre o tema ‘cabelos’ com seus/suas alunos/as, visando ampliar a autoestima e promover a valorização cultural. Os principais instrumentos para a geração de dados foram: as narrativas da professora e de uma aluna, a observação do cotidiano escolar e as anotações de conversas informais consideradas significantes. Tal processo evidenciou a importância de se trazerem aquelas discussões para o cotidiano escolar de modo que se apresentem aos/às estudantes outras possibilidades de sociabilidades que, por sua vez, ampliem o conhecimento de si próprios/as e do outro. Assim, também serão ampliadas a autoestima e o respeito ao próximo.

Palavras-chave: Raça. Cabelos. Cotidiano Escolar. Interculturalidade.

Introdução

Este estudo aborda alguns modos pelos quais alguns/mas alunos/as de uma escola da periferia de Duque de Caxias/RJ constroem suas identidades culturais, de raça e de gênero e como essas são vivenciadas no ambiente escolar. De acordo com Sodré (1999), Quijano (2001), Wilchins (2004) e Barnard (2004), a raça é uma abstração, uma fantasia móvel que não tem nada a ver com o determinismo biológico. Ainda assim, Sommerville (2000) e Barnard (2004) entendem que as questões de raça, de sexualidades, de gênero e de classe social devem ser vistas como intersecionais, ou seja, não podem ser dissociadas, uma vez que se deve olhar para o sujeito social como um todo, e não apenas por um ângulo de suas subjetividades.

As questões relativas à raça, ao gênero e à classe social estão imbricadas e são responsáveis pela hierarquização social. A todo momento, somos interpelados/as e classificados/as a partir das expectativas que aquelas subjetividades criam para os outros sujeitos sociais. Contudo, cabe

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salientar a complexidade da questão racial no Brasil2: se por um lado, no senso comum, o/a negro/a tem sua identidade social construída de maneira negativa e subalternizada, por outro, ele/ela vê sua sexualidade explorada, exaltada e hipervalorizada. Ao longo da história da civilização brasileira, o/a negro/a vem sendo marcado/a por meio de estigmas e ‘mitos’ essencialistas, fazendo com que muitos sujeitos tenham dificuldade de se aceitar como pertencentes à raça negra.

Uma reflexão atenta sobre essa questão nos mostra que a educação e a escola podem tanto contribuir para a perpetuação do racismo e para a manutenção do status quo inferiorizante do/a negro/a em nossa sociedade3, quanto podem ser agentes de transformação social e de luta contra o racismo. Nesse sentido, acreditamos que a escola possa oferecer uma grande contribuição ao problematizar as visões essencializadas de identidades raciais e de gênero e, com isso, fazer com que os/as estudantes reconheçam quão injustos são os sentimentos e as atitudes racistas e sexistas.

Apropriamo-nos dos estudos decoloniais (LUGONES, 2007, 2010; WALSH 2009) não só para discutir a escola e seus diversos e complexos atravessamentos culturais, como também para problematizar as maneiras como estes/as jovens estudantes constroem e revelam suas subjetividades no cotidiano escolar. O objetivo central da pesquisa foi passar dos limites, atravessar-se, desconfiar do que está posto e olhar de mau jeito o que está posto; colocar em situação embaraçosa o que há de estável naquele corpo de conhecimentos (LOURO, 2004).

Fabrício e Moita Lopes (2010) destacam a importância da realização de pesquisas na área educacional que se transformem em atividades relevantes e em oportunidades de aprendizagem. Assim, a pesquisa se constitui numa tentativa de contribuir para conceber e investigar o repertório de significados e conceitos construídos a partir do senso comum e, com isso, (tentar) desestabilizar visões congeladas de gênero e de raça. O artigo está estruturado da seguinte maneira: no primeiro momento, apresentamos as reflexões iniciais. Em seguida descrevemos o contexto em que se

2 No senso comum, encontramos ideias do determinismo biológico e do mito da ‘democracia racial’. O primeiro mostra as características biológicas inerentes à raça negra: aptidão inata para as atividades que exigem força e habilidades físicas. O segundo informa que em nosso país não existe racismo, que as oportunidades sociais são iguais para todos/as. Contudo, nesta investigação, compreendo que somos marcados diariamente, seja pela falta de oportunidades na sociedade, seja pelo fetiche corporal. Dois exemplos que contestam o mito da ‘democracia racial’ são: (1) a letra da música Todo camburão tem um pouco do navio negreiro do grupo O Rappa (2) uma fala muito recorrente entre meus/minhas alunos/as das comunidades em que trabalho: “Todo policial, porteiro ou segurança sabe muito bem quem é negro/a e quem não é”.

3 Aqui abrimos um parêntese para destacar que muitos/as professores/as, no desejo de atender às exigências da Lei 10.639/03 (que tornou obrigatório o ensino da história e das culturas afro-brasileira e africana em todas as escolas, públicas e particulares, do Ensino Fundamental até o Ensino Médio), acabam reforçando o papel do negro como escravo liberto que tem eterna gratidão à Princesa Isabel, ou visões essencializadas do que é ser negro. Tais atividades pouco contribuem para a autoestima dos/as alunos/as negros/as.

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desenvolveu o trabalho que serviu como fonte para geração de dados para esta pesquisa e, por fim, apresentamos as considerações.

Reflexões iniciais

As questões de subalternização e de hierarquização de determinadas subjetividades e as ações que justificam a violência contra o outro estão pautadas no processo de colonialidade. De acordo com Mignolo (2007), a colonialidade envolve as relações de poder que emergiram no contexto do colonialismo europeu na América, na Ásia e na África. Entretanto, seus efeitos não se limitam àquele período histórico de domínio imperial, que deixou suas consequências físico-psicológicas de subalternidades epistêmicas e racistas no Ocidente. Não obstante o término do tempo histórico do regime colonialista, seus efeitos são evidentes nos modos como os conhecimentos são projetados e concebidos.

Nesse aspecto, Castro-Gómez (2005) nos mostra que a espoliação colonial foi legitimada por um conjunto de concepções de mundo que acabou por estabelecer as diferenças entre colonizador/a e colonizado/a. É relevante destacar que ‘colonialidade’ é diferente de ‘colonialismo’. Walsh (2012) esclarece que, apesar de relacionados, esses conceitos são distintos. A colonialidade é mais duradora e envolve as relações de poder emergentes do/no contexto da colonização europeia, as quais, apesar da emancipação das colônias, têm mantido as associações entre dominação e subordinação, colonizador e colonizado. A colonialidade é parte constitutiva da modernidade: é o seu lado sombrio, oculto e silenciado que determina a subalternização e a dependência (MIGNOLO, 2003.)

Para justificar a proposta de dominação/subalternização a colonialidade foi um dos pilares da construção da modernidade, marcando a relação dicotômica entre o branco/europeu/racional/civilizado e o outro/não europeu/irracional/não civilizado. Assim, a ideia e a invenção da ‘raça’ acabaram operando como dispositivos centrais no processo de hierarquização dos povos, justificando a violência e a exploração. Foi nesta perspectiva que Aníbal Quijano cunhou a denominação colonialidade do poder: a partir da relação histórica responsável pela classificação e pela reclassificação das pessoas do planeta, levando-se em conta a categoria ‘raça’ como forma de controle social e desenvolvimento do capitalismo mundial. Nesse contexto, o/a colonizado/a vê seus modos de conhecimento e seus saberes reprimidos e descaracterizados.

A partir desse eixo, foram cunhadas outras possibilidades de colonialidade. Um exemplo é a colonialidade do saber, relacionada à geopolítica do conhecimento que, por sua vez, estabelece um

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paradigma de conhecimento universal e racional embasado nas produções eurocêntricas e na sua relação com o resto do mundo. Assim, são desqualificadas outras formas de saber, outros conhecimentos e outras racionalidades advindas dos povos subalternizados.

Outro exemplo é a colonialidade do ser (desenvolvida por Maldonado Torres) que envolve um longo processo histórico de formação de identidades subalternizadas sob a hegemonia de uma herança colonial. Nesse caso, a não existência do outro, isto é, do/a colonizado/a, é observada e discutida a partir de sua negação sistemática, de sua inferiorização e de sua desumanização: desconhece-se, portanto, a alteridade e o outro é reduzido ao não ser, condição que desqualifica o seu valor.

Contudo, Lugones (2007) acrescentou a categoria ‘gênero’ e buscou chamar a atenção para a importância desta nos processos econômicos e históricos nas formas de colonialidade. Ao tensionar a interseção entre as categorias ‘raça’, ‘gênero’ e ‘colonialidade’, a autora afirma que existem os humanos – o homem branco, portador da inteligência e da razão, seguido da mulher branca – e os não humanos – negros/as, índios/as e outros/as. Nesse aspecto, Lugones (2014) caracteriza o gênero como uma ficção que sustenta a colonialidade do poder e a dominação racial. Só os civilizados são homens e mulheres. Os povos indígenas das Américas e os/as africanos/as escravizados/as eram classificados como não humanos – como animais, incontrolavelmente sexuais e selvagens (LUGONES, 2014). Assim, “pensar sobre a colonialidade do gênero permite-nos pensar em seres históricos compreendidos como oprimidos apenas de forma unilateral” (LUGONES, 2014, p. 939).

É relevante destacar que Lugones (2007) nos mostra que as mulheres negras e as indígenas não estão representadas nas categorias universais de mulher, de índio ou de negro. A crítica da autora é que essas categorias excluem as mulheres com especificidades relativas à raça e à classe, sendo necessário construir um feminismo decolonial para superar essa dominação sobre as mulheres não brancas. Em outro texto, Heterosexualism and the Colonial/Modern Gender System (LUGONES, 2007), a mesma autora propõe a interseção entre raça e gênero como uma forma de dar visibilidade às mulheres não brancas e de reconhecer suas lutas.

Outra grande contribuição de Lugones está no texto Subjetividad esclava, colonialidad de

género, marginalidad y opresiones múltiples (2012). Nessa obra, a pesquisadora propõe a criação

de um feminismo de resistência à dominação do modelo eurocêntrico, a ser defendido por mulheres que vivem e que sofrem diversas opressões, e que intersecione com as questões de raça, de classe e de gênero. A autora diz que a despatriarcalização só é possível se houver a descolonização do saber e do ser a partir de um feminismo decolonial (LUGONES, 2012).

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Como já foi dito anteriormente, a colonialidade ocupa um lugar central nos processos de dominação/subordinação. Nessa perspectiva, Mignolo (2003) argumenta que a diferença é de origem colonial. Em seu livro Histórias locais/projetos globais (MIGNOLO, 2003), o autor defende que tal diferença está associada ao processo de colonização, sendo denominada “diferença colonial” (p.10), ou seja, o espaço que se desdobra a partir da colonialidade do poder. Nas palavras de Mignolo (2003, p. 10):

[...] a diferença colonial é o espaço onde histórias locais que estão inventando e implementando os projetos globais encontram aquelas histórias locais que os recebem; é o espaço onde os projetos globais são forçados a adaptar-se, integrar-se ou onde são adotados, rejeitados ou ignorados.

Para esse autor, o referido espaço pode ser físico ou imaginário. Nele atua a colonialidade do poder, que configura historicamente uma geopolítica do conhecimento, na qual se destaca o privilégio de indivíduos localizados em determinados lugares geo-históricos do globo. Lugones (2010) afirma que a diferença colonial de gênero é uma marca da colonialidade de gênero e que essa deve ser trabalhada pelo feminismo decolonial, junto às questões das esferas da ecologia, da economia, do governo e do conhecimento, dentre outras.

Por esse caminho, neste texto, interessa-nos pensar as questões que relacionem ‘mulheres negras’, ‘cabelo’ e ‘escola’. Para Walsh (2008), a perspectiva decolonial caminha no sentido de desafiar e de questionar as estruturas sociais, políticas e epistêmicas da colonialidade, denunciando os seus níveis de poder nos conhecimentos e, por sua vez, nas pedagogias. Walsh (2005) também destaca os possíveis caminhos para a efetivação de práticas inspiradas na pedagogia decolonial, situando-os em três âmbitos: o espaço da sala de aula, a formação docente e os materiais pedagógicos.

Neste artigo, interessa-nos refletir especificamente sobre o espaço da sala de aula. A proposta é voltar o olhar para a escola a partir de suas relações cotidianas de raça, de gênero e de classe social. Esse local detém significativa importância na construção das identidades dos/as estudantes. A escola constitui o primeiro centro social fora do núcleo familiar. Ali, a criança poderá colocar em questionamento ou confirmar todas informações e visões de mundo ensinadas pelos familiares.

No que se diz respeito à raça, a escola é um dos primeiros locais que se aprende que a cor da pele negra é um problema. Nesse espaço, meninos e meninas ouvem brincadeiras, xingamentos e críticas, e são excluídos/as de diversas práticas sociais devido ao marcador corporal. Tais exclusões acontecem de duas maneiras: por um lado, o silêncio que invisibiliza a desigualdade racial, desencorajando alunos/as de se posicionarem como negros/as. Por outro lado, nos bancos escolares,

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deparamo-nos com discursos que essencializam binarismos, podendo inferiorizar ou erotizar o/a negro/a.

Nessa perspectiva, a discussão sobre cabelos, para as alunas negra, pode servir como um claro exemplo de questões que fazem parte do cotidiano escolar: eles podem representar a marca de uma cultura? Podem empoderar e representar novas perspectivas e possibilidades de reconhecimento social? Para Costa de Paula (2010), a lógica binária subjacente – ‘alisar ou não’ os cabelos –acaba por desvalorizar a mulher negra, porque o que está em jogo, nesse caso, é a comparação com um padrão, cuja referência é o cabelo da mulher branca. Ao propor aquelas duas alternativas, não se está considerando o direito de a mulher negra buscar sentir-se bonita do jeito que melhor lhe convier. Já para o aluno negro, seus traços físicos (formato de rosto, nariz e o próprio cabelo) são motivos de piada. Contudo, esse mesmo corpo negro pode se tornar um ‘fetiche’, significando fonte de sexualidade viril, sensualidade inesgotável, vigor e força inatos para a prática de esportes.

As noções de identidades de raça e de gênero em questão: metodologia, desafios, contextos e realizações

Neste texto, os dois principais instrumentos para a geração dos dados foram: a observação dos marcadores e dos acessórios significados como racializados, e as conversas informais inspiradas no método das entrevistas episódicas. Esse último é apontado por Flick (2002) como originário no contexto dos estudos sobre representação social. A entrevista episódica se baseia em um guia de entrevista com o fim de orientar o/a entrevistador/a para os campos específicos a respeito dos quais se buscam narrativas e respostas. O autor argumenta que o guia de entrevista pode ser criado a partir de duas fontes: (1) da experiência do/a pesquisador/a na área em estudo e (2) do conhecimento das dimensões teóricas dessa área, de outros estudos e de seus resultados.

Nesse ponto, é importante desenvolver uma compreensão preliminar da área em estudo, de tal modo que as partes relevantes possam ser cobertas, que as perguntas possam ser formuladas e que o guia possa permanecer suficientemente aberto para acomodar novos aspectos que venham a emergir com os/as entrevistados/as (FLICK, 2002). Assim, a produção de dados foi facilitada pelo fato de que o pesquisador envolvido na geração dos dados atua na escola investigada. Isso também auxiliou na participação das jovens envolvidas, com livre consentimento, na produção dos dados.

Quanto aos marcadores e aos acessórios, esses foram confirmados nas conversas e obedeceram a uma lógica de planejamento e de investimento. Nessas ações, os corpos foram

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tomados como suportes de currículos de raça reproduzidos, criados e ensinados nas escolas. Eles são os lócus de produção e de expressão da cultura em que os cabelos, a raça e o gênero passaram a ser significados. Assim, os currículos prescritos e/ou praticados pelos inúmeros sujeitos da escola ganham importância por serem um dos dispositivos pelos quais a escola executa a formação nos corpos dos sujeitos.

A escola do Cantão4, onde os dados do presente estudo foram gerados, está localizada em um bairro da periferia da cidade da Baixada Fluminense – Duque de Caxias (RJ) – e oferece desde a Educação Infantil ao segundo segmento do Ensino Fundamental. A escola possui cerca de 700 alunos/as, provenientes da classe trabalhadora e de baixa renda.

É relevante destacar que além de pesquisador, eu leciono nessa escola. Quando cheguei à escola do Cantão em 2016, uma das questões que mais me chamaram a atenção foi o fato de a maioria das alunas negras do Fundamental 25 usarem cabelos naturais, com tranças, enfeitados com flores, laços ou até mesmo turbantes. A segurança dessas alunas e a sua elevada autoestima como mulheres negras aguçaram minha curiosidade, pois se consistiam em fatos que eu não presenciei em outras unidades escolares6.

Em conversa com a professora Regina7, ela me contou que trabalhava nessa escola havia 21

anos. Ela destacou que quando chegou na escola, era muito nova, recém-formada e, por isso, não pensava em questões de raça e/ou de gênero. Regina também me contou que alisava os cabelos de modo a se encaixar, sem sucesso, no modelo hegemônico de beleza8. Por outro lado, ela frequentava aulas de dança afro e tinha contato com pessoas que discutiam questões da cultura afro-brasileira. Porém, até então, não relacionava as atividades magistério e dança afro. Conforme mostra Costa de Paula (2010), a mulher negra pode se mostrar insegura em relação à própria imagem por causa do cabelo.

De acordo com a professora Regina, a grande virada em sua vida aconteceu há aproximadamente 10 anos. Em suas palavras: “Aconteceu uma mistura situações que foram desencadeando aos poucos. Primeiro, foi um problema pessoal que enfrentava. Com isso, eu resolvi me assumir como mulher negra: mudei o cabelo, parei de alisar, mudei o modo de vestir”. Essas

4 Nome fictício, escolhido pelo fato estar localizada em uma região afastada do 2º distrito de Duque de Caxias chamada pelos/as moradores/as de ‘Cantão’.

5 Do 6º ao 9º ano.

6 Destaco que quando desenvolvi minha tese de doutoramento (SILVA JUNIOR, 2014) em outra escola da rede municipal de Duque de Caxias (RJ), as alunas demonstraram grande dificuldade em aceitar como ‘belos’ seus cabelos e seus próprios traços físicos.

7 Nome fictício

8 De acordo com a mesma professora, ela fazia uma série de dietas para perder peso, mas não levou em consideração que a mulher negra tem quadril, coxa e corpo mais acentuados naturalmente.

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mudanças chamaram atenção na escola Cantão, de professores/as aos/às alunos/as, vários/as perceberam a mudança.

Regina contou que um dia, numa sala de aula, ocorreu o seguinte: “Um aluno criou coragem, virou para mim e perguntou se eu ia ficar assim, daquele jeito, feia e jogada como as meninas da escola.... que eu tinha que voltara arrumar os cabelos... imagina o choque... aí, comecei a entender o pensamento e os olhares de alguns colegas.”

Com esta fala podemos observar que, desde o processo de colonização, o/a negro/a veio sendo construído/a como inferior, e que as diferenças foram marcadas em relação ao/à branco/a (MUNANGA, 1986; WALSH, 2012). Segundo a professora Regina, naquele ela buscou mostrar e discutir com a turma que, enquanto ‘ser branco/a’ significa ‘ser bonito/a’, ‘ser negro/a’ corresponde a ‘ser feio/a’; que o cheiro do/a branco/a é ‘bom’, ao passo que o/a negro/a ‘fede’, dentre outras comparações que quem é negro/a conhece muito bem, incluindo todos aqueles atributos relativos aos cabelos, especialmente aos das mulheres negras.

Devo destacar que apesar de estar falando principalmente de cabelos, a fala da professora Regina se estendia a todas condições que reduzem os/as negros/as ao nível ‘inferior’, em diversos aspectos de suas subjetividades. Finalmente, ela estava experimentando novas formas de identificação, e não mais aquelas relacionadas aos processos de determinismo biológico ou social (SOMMERVILLE, 2000; BARNARD, 2004). Esses episódios contribuíram para que a professora iniciasse seu trabalho.

Foi então que resolvi desenvolver um trabalho na escola. Comecei a sentir o quanto que as pessoas estavam comprometidas com um modelo de beleza e os negros não se encaixavam neste modelo. Então, senti que tinha que começar a trabalhar, fazer alguma coisa, principalmente com as alunas negras como eu e com os meninos também... Nunca fiz projetos ou parei a escola para festas especiais. Eu sempre tive muitas turmas aqui na escola, então, eu conhecia quase todos alunos da escola. Então, eu trabalhava com pequenos grupos, conversava com pequenos grupos de alunas, discutia beleza, possibilidades de usar cabelos naturais ou cacheados, tipos de roupas, enfim, como a mulher negra pode ser bonita sem copiar as brancas. Sentia que as meninas foram se aproximando, acreditando e mudando comigo. Ao longo destes anos, coloquei trança, usei turbantes, cortei curtinho, usei flores, laços, entre outros. Sempre conversando muito com os alunos e alunas. Sempre trago fotos de negros, procuro montar dançar negras nas festas das escolas e integrar a minha disciplina que é a geografia....

Não vejo minha atividade aqui na escola como um trabalho extraclasse... mas como curricular. Me gratifica muito saber que meu posicionamento, que era pessoal, acabou influenciando muitas meninas... Verdade, em uma escola com a maioria negra, são poucas as que alisam cabelos. Veja principalmente no 8º e 9º anos, cada uma busca valorizar sua beleza... tem menina de trança, com flor, com fita... eu mesma trago muitos enfeites, arcos, laços e dou para elas... quero vê-las poderosas... com autoestima elevada... é interessante que os meninos aprenderam a respeitar e achar as meninas negras bonitas e atraentes...

É relevante destacar que as ações da professora podem nos remeter à proposta de efetivação de práticas inspiradas na perspectiva decolonial (WALSH, 2005; 2008), ou seja, ela buscou espaços

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na escola que permitiriam tensionar os discursos hegemônicos de raça e de gênero. Apesar de não trabalhar com o currículo formal, as ações de Regina revelam como essa professora privilegiou a prática pedagógica cotidiana e, assim procedendo, conseguiu quebrar o silêncio que tanto invisibiliza as questões raciais na escola, quanto desumaniza as mulheres negras. Nesse aspecto, ao propor a interseção entre raça e gênero, provavelmente Regina está na busca pela visibilidade e pelo reconhecimento das lutas de suas alunas negras (LUGONES, 2007).

O comentário a seguir, feito pela aluna Camila9 do 9º ano daquela unidade escolar, pode nos dar a dimensão do trabalho desenvolvido pela professora Regina:

Olha, professor... a professora Regina é uma das melhores professoras desta escola. Estudo com ela deste o 6º ano. No ano passado, coloquei tranças, foi depois que ela colocou.... nós conversamos, ela colocou primeiro, as delas eram compridas, muito bonitas... já viu como ela amarra? Então eu animei, várias meninas colocaram... a Regina sempre conversou com a gente sobre a beleza da mulher negra. Tem um grupo aqui que diz que somos filhas dela... sempre que ela pode, ela traz uns presentinhos para as meninas, enfeites de cabelo, brincos para realçar a beleza... ela diz muito que temos que nos amar, nos achar bonitas... ela fala que a mulher negra tem que acreditar no seu potencial e ter autoestima...

Se a pesquisa de Costa de Paula (2010) nos mostra que as meninas querem ser bonitas para além da discussão binária sobre alisar ou não os cabelos, a fala dessa aluna e as observações do cotidiano nos revelam que as meninas, apoiadas por uma ampla discussão de gênero e de raça, se sentem com a autoestima elevada e assumem seus cabelos de acordo com as possibilidades de suas raças.

Eu perguntei a outra aluna do 9º ano, Isabella10, em quais momentos a professora desenvolvia estas discussões e como era a relação da professora com o conteúdo de geografia. A aluna prontamente respondeu: “Ela trabalha normal... dá o livro, passa exercícios, dá trabalhos...”. A partir dessa resposta, eu fiz duas outras perguntas: “Então qual é a diferença? Em que momentos a professora Regina conversa com vocês?” A aluna Isabella respondeu o seguinte:

Ela conversa muito com a gente nos horários de folga, no recreio... na sala de aula também... ela sempre junta um assunto do livro com um assunto da gente... quando tem um assunto no livro... se aparece uma família branca... ela traz uma família negra... se aparece um homem, ela traz uma mulher... ela sempre traz coisas de fora para misturar... nas aulas, tem sempre uma conversa... tem professor que reclama, porque quase sempre na aula dela a gente fica em roda... e eles falam que atrapalha a sala... sempre antes dela chegar... a gente já arruma a sala e antes dela sair, volta tudo igual... para ninguém reclamar...

Posto isso, acreditamos que a professora Regina está desenvolvendo o feminismo de resistência à dominação, conforme proposto por Lugones (2012). Ao buscar que os/as alunos/as

9 Nome fictício 10 Nome fictício.

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tensionem as questões de gênero e de raça, e ao trazer para a escola as discussões sobre cabelos, certamente, a professora está, a seu modo, convocando algumas meninas negras – que, em geral, vivem algumas opressões de raça, de classe social e de gênero – para a apropriação de suas lutas e o enfrentamento de suas questões.

Algumas considerações

A questão que esteve implícita ao longo do texto foi como as/os alunos/as de uma escola publica de Duque de Caxias constroem suas identidades de gênero, de raça e a partir de um trabalho realizado por uma professora. Assim, a proposta do presente estudo foi mostrar como as marcas culturais influenciam as formas de agir e de pensar, podendo inferiorizar algumas identidades. Contudo, um trabalho construído de maneira sistemática e constante, que promova possibilidades de valorações positivas de gênero e de raça, pode significar a construção de caminhos de resistência à dominação colonial que marcam o/a outro/a.

Essas discussões confirmaram a relevância de se trazerem, para o cotidiano escolar e para as salas de aula, questões relativas ao gênero, à raça e à classe social. Nesse sentido, o tema ‘cabelo’ contribui para o tensionamento de diversas questões sociais e, sobretudo, para o empoderamento de algumas meninas negras na escola. Como resultado de tal empoderamento, podemos destacar uma tentativa de enaltecer a beleza negra e, consequentemente, a elevação da autoestima daquelas alunas. O trabalho realizado pela professora Regina colocou em xeque certas visões essencializadas e os congelamentos identitários, trazendo o/a diferente, isto é, o/a colonizado/a, para a sala de aula e promovendo o diálogo entre as diferenças.

Referências

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“MY HAIR EMPOWERS ME”: GENDER AND RACE RELATIONS IN THE EVERYDAY LIFE OF A PUBLIC SCHOOL IN AN URBAN PERIPHERY OF

DUQUE DE CAXIAS CITY, RIO DE JANEIRO (RJ)

Abstract: Among various aspects, reflexive modernity has been characterized by an explosion of political identities centered on feminism and on gay, lesbian and black identities. From such social life plethora, we took interest in reflecting upon the black bodies as subjects, considering that they have been erased by modernity, as well as that they have always been placed in an inferior status by the official censuses and researches. As an issue to be under debate, black people’s ‘hair’ can clearly serve as an example of a school’s everyday matter, which can bring over enormous traces of inferiority. Therefore, the present text approaches a few ways by which black female students, at a school in an urban periphery, both construct their cultural, racial and gender identities, and how such identities are ‘lived’ in that school’s environment. According to Sommerville (2000) and Barnard (2004), such matters should be considered in an intersectional way. For this reason, this text debates about some every day’s scenes of a school where a female teacher raised the issue ‘hair’ with her male and female students. Her main goal was to enhance the black students’ self-esteem, and to promote a cultural appreciation. In order to generate data, the following ‘tools’ were used: the aforementioned teacher’s narratives, one of her female black students’ narratives, the observation of this school’s everyday life, and informal conversations’ notes that were regarded meaningful. It is notorious that raising such issues in a school’s everyday life is of paramount importance: not only does it present the (male and female) students other possibilities of being and living, it enhances their knowledge about themselves and about the ‘other’ as well. The enhancement of their self-esteem and of the respect towards diversity are some of the expected outcomes.

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