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OLHARES SOBRE TOM ZÉ: ANÁLISE SEMIÓTICA DA CANÇÃO TODOS OS OLHOS

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Academic year: 2021

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OLHARES SOBRE TOM ZÉ: ANÁLISE SEMIÓTICA DA CANÇÃO TODOS OS OLHOS

Carlos Jáuregui - UFMG 0 Introdução

A partir do instrumental teórico-metodológico da semiótica discursiva nos propomos analisar a canção de Tom Zé Todos os Olhos1. Pretendemos fazer algumas observações a respeito de uma aparente subversão do esquema narrativo canônico que se apresenta na canção, além de discutir a paixão do medo relacionada com uma situação de interrogatório e/ou tortura sugeridos pela canção. Em nossa análise vamos considerar apenas a letra e as vocalizações, ignorando elementos rítmicos, melódicos e harmônicos. Abaixo apresentamos o material a ser analisado:

Todos Os Olhos Tom Zé

[Ruídos guturais, gemidos e onomatopéias] De vez em quando

todos os olhos se voltam pra mim, de lá de dentro da escuridão, esperando e querendo que eu seja um herói.

[vocalização – vozes humanas imitando latidos] Que eu se-ja um he-rói.

Mas eu sou inocente,

eu sou inocente, eu sou inocente, eu sou inocente, eu sou inocente, Mas eu sou inocente,

eu sou inocente, eu sou inocente, eu sou inocente, eu sou inocente [Ruídos guturais e gemidos] De vez em quando

todos os olhos se voltam pra mim, de lá do fundo da escuridão esperando e querendo que eu saiba

[vocalização – vozes humanas imitando latidos] Que-ren-do que eu sai-ba

Mas eu não sei de nada,

Eu não sei de nada, Eu não sei de nada,

1 Todos os Olhos é a segunda faixa do álbum homônimo lançado por Tom Zé em 1973. Tom Zé é um importante

cantor e compositor baiano conhecido principalmente pela sua participação no movimento tropicalista no fim dos anos 1960.

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Eu não sei de nada, Eu não sei de nada Mas eu não sei de nada,

Eu não sei de nada, Eu não sei de nada, Eu não sei de nada, Eu não sei de nada

[Ruídos guturais, gemidos e – vozes humanas imitando latidos] De vez em quando

todos os olhos se voltam pra mim, de lá do fundo da escuridão esperando que eu seja um deus

querendo apanhar, querendo que eu bata, querendo que eu seja um Deus.

[vocalização e vozes humanas imitando latidos] Mas eu não tenho chicote,

Mas eu não tenho chicote, Mas eu não tenho chicote, Mas eu não tenho chicote, Mas eu não tenho chicó Mas eu sou até fraco,

Mas eu sou até fraco, Mas eu sou até fraco, Mas eu sou até fraco, Mas eu sou até fraco. Ahhhhhhhhhhhhhhhhhhh...Eu sou inocen... [vocalização e vozes humanas imitando latidos]

1. A atualidade da semiótica discursiva e as análises do discurso

Antes de iniciar a análise, faz-nos importante traçar algumas reflexões sobre nossa opção teórica pela semiótica do discurso, articulada com algumas noções da Análise do Discurso (AD), e sua adequação para nossos objetivos.

No prefácio à edição brasileira do livro Semiótica do Discurso, o semioticista francês Jacques Fontanille (2007: pp. 15-19) faz uma breve reflexão a respeito da relevância e da atualidade da semiótica discursiva uma vez que a AD integrou grande parte dos conceitos semióticos. A resposta do autor ao seu próprio questionamento é a de que o fato da AD ter incorporado conceitos da semiótica não fez com que essa disciplina - mais recente - tenha assumido o “próprio projeto semiótico” (2007: p. 15).

A AD, segundo Fontanille (2007 pp. 15-16), teria um caráter mais geral não tratando especificamente da construção da significação discursiva. Ela demonstraria também, ou principalmente, um interesse pela função das manifestações discursivas nas trocas comunicativas.

Numa outra perspectiva, a atualidade e o papel da semiótica discursiva também se justifica ao se incluir a disciplina no escopo de uma AD vista de forma ampliada, sendo então referida no plural como análises do discurso ou estudos discursivos.

O semioticista brasileiro José Luiz Fiorin mostra-se adepto a essa abordagem ao classificar as atuais teorias do texto e do discurso em duas principais vertentes complementares a seguir:

De um lado, podem-se analisar os mecanismos sintáxicos e semânticos responsáveis pela produção do sentido; de outro, pode-se compreender o discurso como objeto cultural, produzido a partir de certas condicionantes históricas, em relação dialógica com outros textos (FIORIN, 2008: p. 10)

A semiótica discursiva seria, dessa forma, uma disciplina – no campo dos estudos discursivos - focada na construção de uma gramática do discurso e na aplicação dessa gramática para a

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compreensão da construção do sentido nos textos2. Assim, a natureza histórica do texto não é negada, ela apenas não é privilegiada.

Tendo em vista as posições de Fontanille (2007) e Fiorin (2008), compreendemos o marco teórico-metodológico da semiótica discursiva como adequado aos objetivos deste artigo, que é mais centrado na compreensão da significação gerada em Todos os Olhos do que em suas condições de produção ou em discussões sobre gêneros discursivos.

Além disso, consideramos que a natureza gerativa3 da semiótica discursiva facilitará a compreensão dos temas e esquemas narrativos da canção Todos os Olhos, que, sob uma observação preliminar sem uma metodologia de análise mais formal, demonstrava não ser tão obviamente apreensível.

Tentaremos, dessa forma, fazer uma interpretação que englobe os três níveis do percurso gerativo de sentido, partindo da oposição semântica no nível fundamental, passando pelos programas narrativos e passionais para chegar à análise dos temas e figuras no nível discursivo. A partir disso, faremos breves reflexões sobre a possibilidade de se aliar a observação desses aspectos intradiscursivos com algumas considerações sócio-históricas que possam contribuir para o objetivo de extrair o sentido do texto e compreender os mecanismos que o geram.

2. A oposição fundamental

Segundo a proposta da semiótica discursiva, o sentido de um texto se constrói a partir de um percurso gerativo de sentido que é “uma sucessão de patamares, cada um dos quais suscetível de receber uma descrição adequada, que mostra como se produz e se interpreta o sentido, num processo que vai do mais simples ao mais complexo” (FIORIN, 2008: p. 20). O mais simples e abstrato desses patamares é o chamado nível fundamental, que abriga a categoria semântica, oposição, que dá a base para a construção do texto (FIORIN, 2008: p. 21).

Em Todos os Olhos a oposição que dá base ao texto é /vida/ vs. /morte/. Tal oposição é enriquecida de forma a gerar, no nível discursivo, oposições temáticas como humanidade vs. divindade; saber vs. ignorância; força vs. fraqueza; culpa vs. inocência; heroísmo vs. covardia.

Todos esses percursos temáticos apresentadas na superfície do texto mantêm uma relação com o confronto presente na categoria de base. Contudo, mais adiante, na análise do nível discursivo, perceberemos que a passagem da categoria de base para os temas não se dá de forma óbvia e previamente determinada. O processo dependerá dos mecanismos intradiscursivos de geração de sentido. Em Todos os Olhos, os temas da força, divindade e conhecimento, por exemplo, terão um valor negativo, mantendo relação com a /morte/ que, no nível fundamental, tem um valor disfórico (negativo), enquanto a /vida/ é eufórica (positiva). Essa última afirmação é confirmada pelo fato de que, durante toda a canção, figuras relacionadas à força, como “herói”, “deus”, “saber”, são negadas. 3. Subversão narrativa

No segundo nível de análise, trataremos de compreender a letra da canção de acordo com a seqüência canônica proposta na semiótica narrativa, que prevê quatro fases (Programas Narrativos - PNs) para a narrativa: 1) manipulação - quando um sujeito é levado a querer4 ou dever fazer algo -, 2) competência - quando é atribuído ao sujeito um saber ou poder fazer -, 3) perfórmance - fase onde ocorre a transformação principal - e 4) sanção – fase do reconhecimento da transformação (sanção cognitiva) seguida ou não da atribuição de prêmios ou castigos pela realização da perfórmance (sanção pragmática) (FIORIN, 1995: p.165).

Percebe-se que a letra da canção gira em torno de uma manipulação fracassada. A cada estrofe o destinador-manipulador tenta levar o destinatário a realizar uma ação. O destinador-manipulador é

2 Esse posicionamento do autor pode ser obviamente percebido pelo fato de Fiorin intitular como Elementos de

Análise do Discurso um livro introdutório à semiótica do discurso.

3 O percurso gerativo do sentido parte de categorias simples e abstratas que se enriquecem e tornam mais

complexas e concretas.

4 Como a letra da canção contém os verbos ser e saber optamos pelo uso negrito todas as vezes que estivermos

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concretizado na figura de Todos os olhos e o destinatário, na figura de eu. A narrativa, dessa forma, não alcança os percursos da ação (composto pelos PNs da competência e perfórmance) e da sanção.

Na primeira tentativa de manipulação, Todos os olhos quer que eu se torne ou se assuma como um herói (“querendo que eu seja um herói”). Eu não se deixa manipular por Todos os olhos, e para responder à tentativa de manipulação, diz que não tem a competência para ser “um herói”. Eu prevê um provável fracasso caso ele passe para o percurso da ação. Se o contrato fosse estabelecido entre os sujeitos, ele não poderia ser cumprido pela incompetência prevista (ou manifestada) por eu.

Na segunda tentativa de manipulação, a canção diz que Todos os olhos está “querendo que eu saiba”. Entendemos, dessa forma, que Todos os olhos quer arrancar a qualquer custo uma informação de eu, que repete várias vezes que não sabe de nada.

Na terceira tentativa de manipulação, Todos os olhos quer que eu assuma o papel de deus e que bata em alguém (possivelmente no próprio Todos os olhos que “quer apanhar”). Eu não se deixa manipular, pois não se crê (ou diz que não se crê) competente para isso, afirmando não possuir um “chicote” (instrumento que usaria para executar a perfórmance) e dizendo ser fraco, uma característica que o impediria de bater e de ser um deus. Em outras palavras, eu não pode e nem sabe fazer o que lhe é pedido.

Podemos afirmar que a tentativa de manipulação se dá por intimidação. O fato de o destinador-manipulador ser Todos os olhos insunua uma vantagem numérica em relação a eu (são todos contra eu). Por outro lado, Todos os olhos surge “de lá de dentro da escuridão”, o que sugere um tom sinistro, obscuro, intimidador para a manipulação que ele tenta levar a cabo.

Além disso, nas vocalizações que se dão entre cada tentativa de manipulação e a resposta negativa de eu, podem-se ouvir gemidos, gritos e latidos de cães (imitados por vozes humanas). Os latidos são difíceis de serem percebidos na gravação, porém são fundamentais para se perceber o caráter intimidador dessa manipulação.

Um aspecto interessante e intrigante da análise do nível narrativo dessa canção é a aparente subversão do esquema narrativo canônico. Segundo tal esquema, o PN da sanção pressuporia o da perfórmance, que por sua vez pressuporia o da competência e, este finalmente, pressuporia o da manipulação (FIORIN, 1995: p.166). Em Todos os olhos, acreditamos que tal esquema sofreria uma espécie de inversão. A manipulação não se consuma, pois o destinatário pressupõe que não poderia levar a cabo os outros PNs. Nesta narrativa, de alguma forma, o fracasso da competência pressupôs o fracasso da manipulação.

4. Dos temas e figuras

No nível discursivo, é produtivo fazer uma descrição e análise dos percursos temáticos – relativo aos temas, ou seja, termos abstratos - e figurativos – relativos a termos concretos - presentes no texto (FIORIN, 1995: p.167). Percebemos o cruzamento e a implicação mútua entre os temas da força com a culpa e da fraqueza com a inocência.

Há um percurso figurativo que põe em contraste as figuras do cão e do cordeiro, uma vez que se ouvem “latidos5” nas vocalizações e, no último verso da canção (“eu sou inocente”), a voz trêmula do cantor se assemelha muito ao som de um cordeiro. Esse percurso figurativo também estaria relacionado, de alguma forma, com aos temas da força, fraqueza, culpabilidade e inocência. O cão ladra nos momentos em que Todos os olhos quer forçar eu a tomar uma atitude, e a “voz” do cordeiro se ouve quando eu diz pela última vez “eu sou inocente”. A figura do cão estaria ligada ao censor, ao interrogador, e a da ovelha, ao interrogado, que no texto se mostra como um ator fraco e inocente, coagido a se incriminar.

O cão seria uma figurativização da força e da culpabilidade, enquanto o cordeiro, da fraqueza e inocência. Tal figurativização é comum em diversos textos. Ovelhas costumam são imoladas em narrativas bíblicas; cachorros costumam ser fortes guardiões, como no caso de Cérbelo, cão de três cabeças e rabo de dragão, que, na mitologia grega, guarda a entrada para o Hades.

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É interessante como os temas da fraqueza e a inocência se auto-implicam e relacionam na canção de Tom Zé, assim como acontece com os temas da força e a culpabilidade. Nessa canção, o forte é culpado e, por isso, figuras como “herói”, “chicote”, “querendo bater”, “querendo que eu saiba”, “deus” e “cão” carregariam um valor negativo; já o fraco seria inocente e, por isso, figuras como “inocente”, “fraco” e o “cordeiro” estariam relacionadas entre si, positivamente.

A oposição expressa entre as figuras do herói e do inocente é algo não muito comum em outros textos. Heróis costumam ser dignos de orgulho e de celebração. Essa operação semântica fica clara quando eu repete várias vezes “eu sou inocente”, logo após ser dito que Todos os olhos quer que eu seja um herói. Poderíamos deduzir assim que: por ser inocente, eu não é herói.

A repetição de algumas figuras seria uma referência ou até mesmo a simulação de uma situação de interrogatório: “eu não sei de nada” (repetido dez vezes), “eu sou inocente” (repetido dez vezes), “eu sou até fraco” (repetido cinco vezes), “eu não tenho chicote” (repetido cinco vezes). O interrogatório seria ligado aos temas da culpabilidade ou inocência de eu.

A presença da figura de um interrogador violento e intimidador - que tenta coagir o interrogado a dar uma resposta ou a tomar uma certa atitude – somada à paixão do medo, que será discutida adiante, desencadeia uma isotopia de leitura relativa à repressão política.

5. Considerações sócio-históricas

Embora a semiótica não trabalhe com o contexto sócio-histórico sentimo-nos fortemente tentados a relacionar o interrogatório e a tortura sugeridos na canção à perseguição política realizada pelo governo militar à época do lançamento de Todos os olhos6. Naquele ano de 1973, o Brasil era governado pelo general Emílio Garrastazu Médici. No momento do lançamento, é inegável que o enunciador e o enunciatário se inseriam nesse contexto, sendo provavelmente influenciados por essas questões nos respectivos processos produção e recepção de textos7.

A canção faria, então, referência à perseguição e tortura aos supostos opositores do regime. Muitos deles submetidos a violentos interrogatórios nos quais eram coagidos de várias formas a se incriminarem e se assumirem como “comunistas” que tramavam contra a nação brasileira.

Tais opositores, considerados como heróis para muitos, seriam, aos olhos dos militares, verdadeiros vilões. Num regime totalitário, o heroísmo pode significar uma posição contrária ao Estado, que caça heróis e os condena para manter seu poder.

Ao se estabelecer tal relação entre texto e contexto histórico fica mais fácil compreender a oposição herói vs. inocente proposta na letra da canção. Arriscamo-nos a dizer que num interrogatório como do texto analisado, buscava-se extrair a confissão do herói para se obter uma justificativa para uma prisão (ou execução) já planejada de antemão. Eu tenta se livrar da acusação de ser herói e das implicações que ela pode trazer. Compreendemos então porque a força tem um valor negativo conectando-se assim com o elemento /morte/ presente na oposição semântica de base.

Tal análise, situada nos limites entre texto e contexto-histórico, se torna mais rica se, a partir deste ponto, o nível narrativo for retomado. Se considerássemos que, de acordo com as oposições encontradas na canção, ser herói é um crime e um crime deve ser punido, poderíamos talvez afirmar que o objetivo final de Todos os olhos, ao querer que eu “seja um herói”, é levar eu a ser sancionado negativamente.

Num primeiro momento, o destinador-manipulador concretizado em Todos os olhos estaria disposto a fazer eu firmar o contrato de herói, mas, num segundo momento apareceria um destinador-julgador (talvez também concretizado Todos os olhos) que sancionaria eu pela quebra de um outro contrato: uma norma não declarada segundo a qual, numa ditadura, herói bom é herói morto.

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Assim como a Análise do Discurso integrou conceitos da semiótica em seu escopo direcionando-os para outros fins, acreditamos que numa análise semiótica também podemos nos munir de “empréstimos” da AD para avançar no que Fontanille (2008) chama de “projeto semiótico”.

7 Mesmo sendo interpretadas desde os dias de hoje, as canções de Tom Zé compostas durante a ditadura serão

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Nossa análise se concentrou até o momento na tentativa mal sucedida de manipulação na qual o sujeito eu é intimidado a assumir o papel do herói, do forte, do deus; dessa forma, acabamos por considerar o actante concretizado em Todos os olhos como destinador-manipulador. Contudo, se lançarmos um olhar mais ampliado sobre a narrativa, considerando a possibilidade de uma manipulação prévia para que eu não seja um herói (como apresentamos no parágrafo anterior), a figura do interrogador poderia ser a concretização de uma espécie de anti-destinador-manipulador que se opõe a um destinador – não explicitado no texto, mas sim pressuposto - que trataria de manipular eu a não ser um herói no Brasil ditatorial8.

6. Considerações passionais

Ao traçar algumas breves considerações sobre a paixão do medo gerada na canção Todos os Olhos, optamos por privilegiar um enfoque narrativo, assim como Matte & Lara (2007) 9. Dessa forma, compreenderemos as paixões como efeitos de sentido “afetivos” ou “passionais” decorrentes das qualificações modais que modificam o sujeito de estado. Sendo elas basicamente o querer, dever, saber e poder (ser).

No nosso corpus de análise - uma canção que simula um interrogatório provavelmente violento - podemos reconhecer a geração da paixão do medo relacionada com a uma dupla possibilidade de punição que eu pode vir a sofrer. Num interrogatório, o interrogado é forçado a confessar um crime. Uma vez reconhecido ou comprovado, o crime torna-se motivo para sua punição. Se, por um lado, eu teme sofrer10 sanções por não fechar o contrato de herói com Todos os Olhos, ele será igualmente punido se confessar seu heroísmo, sua força e sua divindade – em outras palavras, a sua culpa.

Em termos semióticos, compreendemos que a paixão do medo é desencadeada no texto analisado por um duplo não querer. Por um lado, eu não quer entrar em conjunção com um valor negativo “apresentado” pela tentativa de manipulação (uma possível ameaça de surra, tortura ou do ataque dos cães caso ele não confesse seu “crime”) e, por outro, eu não quer o valor da sanção a ele reservada se for comprovado que ele é sim “culpado de ser um herói”.

Considerações finais

Eu, amedrontado e pressionado para aderir ao contrato do herói, tenta convencer Todos os olhos de sua incapacidade para tal. A partir disso, levantamos um último questionamento: eu é realmente um sujeito fraco incapaz de ser um herói ou essa negação é apenas uma inteligente

8 Uma possibilidade é que esse destinador-manipulador pressuposto fosse o próprio Estado Brasileiro

militarizado, que, com sua conhecida truculência, lançaria mão da intimidação como meio de manipulação. Se partirmos desta hipótese, poderemos considerar que o sujeito eu se encontra na incômoda situação de ser assediado por duas tentativas de manipulação por intimidação.

9 Em artigo que discute a paixão da cólera no conto “o cobrador” de Rubem Fonseca, a partir da proposta teórica

presente na Semiótica das Paixões, de Fontanille e Greimas, Matte & Lara (2007) lembram que a semiótica pode dar uma abordagem vertical e horizontal ao estudo das paixões no discurso: “a abordagem horizontal é aquela que privilegia o eixo narrativo, o percurso, as modalizações e as relações entre sujeitos. Já a abordagem vertical é a que dá primazia à geração do sentido de paixão e, portanto, tem um caráter epistemológico forte” (Matte & Lara, 2007: p. 48).

10 Ou efetivamente sofre, uma vez que a canção é repleta de gemidos, gritos e outras expressões vocais que

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estratégia pela qual eu tenta convencer Todos os olhos a “deixá-lo em paz”11? Fica claro que eu, encurralado por um dever ser, nega a todo momento um poder ser e um saber ser.

Tentar convencer o manipulador de que não tem a competência para ser herói pode significar uma manobra que servirá para salvar eu da dupla possibilidade de punição observada linhas acima. Reforçando sua incompetência, sua fraqueza, eu poderá ganhar a compaixão de Todos os Olhos que o ameaça. Se eu não consegue cumprir o contrato de herói é porque eu não pode e não sabe e não porque ele não quer obedecer o interrogador.

Por outro lado, quando eu reforça veementemente sua condição de fraco, isto é, a sua incompetência para ser um herói, eu demonstra que, nem se ele quisesse, seria capaz de sê-lo (não saberia e não poderia), livrando-se da sanção reservada para quem se atreve a confessar o crime de ser (ou pensar em ser) herói no Brasil ditatorial.

Referências

FONTANILLE, Jacques. Semiótica do Discurso. São Paulo: Contexto, 2007.

FONTANILLE, Jacques & GREIMAS, Algirdas J. Sémiotiques des passions - Des états de choses aux états d’âme. Paris: Éditions du Seuil, 1991.

FIORIN, José Luiz. Elementos de Análise do Discurso. São Paulo: Contexto, 2008. ______, José Luiz. A noção de texto na semiótica. IN: Organon, v.9, p.163-73, 1995.

LARA, Glaucia M. P & MATTE, Ana Cristina F.M. A paixão da cólera em “o cobrador”, de Rubem Fonseca. In: Ida Lucia Machado;William Menezes;Emília Mendes. (Org.). As emoções no discurso. 1 ed. Rio de Janeiro: Lucerna, 2007, v. 1.

ZÉ. Tom. Todos os olhos. In: ZÉ, Tom. Todos os olhos. São Paulo: Continental, 1973. 1 CD (Faixa 2)

11 Futuramente poderíamos retomar esta análise numa perspectiva que considera eu como um

destinador-manipulador que tenta fazer com que o sujeito Todos os Olhos abandone o interrogatório/tortura. Seria uma manipulação por tentação, já que eu oferece a seu destinatário o valor de sua subserviência?

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