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IDENTIDADE CULTURAL NA MÚSICA NEGRA: O EXEMPLO DO SOUL E DO RAP

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IDENTIDADE CULTURAL NA MÚSICA NEGRA: O EXEMPLO DO SOUL E DO RAP

Maria Cristina Prado Fleury Magalhães1 Ana Guiomar Rêgo Souza2

RESUMO

Este artigo resulta de pesquisa cujo objetivo é investigar a influência da música negra na formação da identidade cultural da população afrodescendente americana. Para tal, foram verificados os processos de hibridação cultural e de representação social imbricados na produção e socialização dos gêneros musicais soul e rap, utilizando-se a seguinte metodologia: revisão bibliográfica e pesquisa documental, seguida de análise e interpretação dos dados. Os resultados parciais da pesquisa demonstram que o soul e rap não constituem gêneros musicais puros, ao contrário, são permeados por uma série de hibridações culturais vindas da Europa, África e das Américas do Norte e Latina. Características como as letras engajadas, as batalhas de freestyle e o resgate de elementos musicais originalmente africanos são utilizadas nos referidos gêneros como símbolo do orgulho negro, da identidade cultural e como forma de demarcar e reforçar as diferenças e fronteiras entre grupos sociais distintos. PALAVRAS-CHAVE: Identidade Cultural; Hibridação Cultural; Representações Simbólicas; Soul Music; Rap.

INTRODUÇÃO

A reflexão inicial acerca da identidade cultural na música negra suscitou os seguintes questionamentos: os gêneros musicais norte-americanos soul e rap fazem parte da formação da identidade cultural da população afrodescendente? Quais influências culturais africanas encontram-se hibridadas nos gêneros musicais soul e rap? Esses gêneros se configuram como formas de “lutas de representação simbólica”?

A partir desta problemática estabeleceu-se a metodologia a ser utilizada no processo de investigação e análise, qual seja: revisão de literatura seguida de pesquisa documental e bibliográfica e posterior organização, análise e interpretação dos dados. Na pesquisa documental foram utilizados registros oficiais, gravações musicais, vídeos, fotos, letras de música, depoimentos em jornais e demais formas de manifestação cultural que se configurem como documentos originais.

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Mestranda em Música (UFG), Graduanda em Educação Musical (UFG) e Graduada em Serviço Social (PUC Goiás). E-mail: cricafleury@hotmail.com

2 Professora do Programa de Pós-graduação em Música (UFG), Doutora em História Cultural (UnB), Mestre em

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2 A concepção pós-moderna de identidade aqui adotada como referencial para a análise dos fenômenos e manifestações sócio-culturais é definida historicamente por um sujeito que assume diferentes identidades em diferentes momentos, o que necessariamente aponta para a fragmentação da unidade identitária assumida pela modernidade. Assim, assinala Hall (2003), o sujeito pós-moderno não possui uma, mas muitas identidades contraditórias entre si, gerando uma tensão permanente.

Além da concepção de identidade de Hall (2003), a fundamentação teórica utilizada apoiou-se no pensamento e conceituação de Pierre Bourdieu (lutas de representação e campos de produção simbólica) e Nestor Canclini (hibridismo cultural).

DESENVOLVIMENTO

A partir do pensamento de Canclini (2003) e partindo do pressuposto de que não existe cultura em estado de pureza, é possível analisar diversos gêneros musicais buscando identificar as diferentes culturas que se encontram hibridadas em suas constituições. Na presente pesquisa, optou-se pela análise de dois gêneros musicais da black music3: o soul e o

rap.

Conforme Ribeiro (2010), a história da black music no século XX começa a ter seu papel escrito a partir do blues. A origem do blues (ainda nos últimos anos do século XIX), por sua vez, é atribuída ao lamento dos escravos nos campos de trabalho estadunidenses. As características provenientes da música africana podem ser notadas a partir de elementos semelhantes aos hollers (gritos de entonação forte e de caráter comunicativo, os quais identificavam seus emissores), e às worksongs (“canções de trabalho” utilizadas pelo grupo de escravos como forma de conferir estímulo e ritmo ao labor), que podem ser verificados no blues.

Porém, é importante lembrar que o blues, assim como qualquer gênero musical, é resultado de processos de hibridação cultural, ou seja, não é composto por elementos de uma única cultura. Além dos elementos advindos da cultura africana, o blues também foi

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Termo utilizado para designar a música afro-americana nos Estados Unidos. Atualmente o termo é amplamente conhecido pelo mundo e engloba diversos gêneros musicais surgidos na América e derivados de elementos da cultura africana, tais como blues, soul, rhythm and blue, jazz, hip-hop e funk.

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3 fortemente influenciado pela cultura européia por meio dos spirituals que, apesar de se caracterizarem como hinos religiosos afro-americanos, herdaram seus acordes básicos da harmonia das canções religiosas da Europa protestante. Ao final da Segunda Guerra Mundial, quando muitos negros deixaram a região sul dos Estados Unidos em direção ao norte e aos guetos do oeste, surge o gênero rhytm and blues, que nada mais era do que a urbanização do blues, que fora adaptado ao novo contexto.

A formação dos guetos nas cidades mais populosas dos Estados Unidos, a exemplo de Chicago e Nova Iorque, teve seu início no século XX, pós Primeira Guerra Mundial, período em que o trabalho não qualificado dos negros era força-motriz do desenvolvimento econômico das metrópoles fordistas. Nesta ocasião, um grande fluxo de negros migrou para as cidades industriais norte-americanas, assinala Wacquant (2004). Tal processo foi o grande responsável pela consolidação, e até mesmo “institucionalização”, da segregação racial que até então ocorria na informalidade. Rígidos padrões de demarcação étnico-racial foram aplicados nos mais diversos equipamentos sociais, tais quais escolas, hospitais, sistemas de transporte, estendendo-se também à economia e à política. Frente a esse cenário, uma das soluções encontradas pela comunidade afro-americana para continuar a viver nas metrópoles, foi refugiar-se em aglomerações, formando os chamados Black Belts (em português, cinturões negros). Era o início do que, posteriormente, seria conhecido como “gueto”.

No processo de formação do gueto está embutida a construção de uma identidade coletiva. Muito embora a ação coercitiva e discriminatória não lhe tenha dado outra opção que não o isolamento social e territorial, a comunidade negra sentia orgulho por ter estruturado a vida no gueto com características culturais próprias. Este orgulho e reconhecimento identitário da comunidade negra, provocado pelo fenômeno da guetização, foi imprescindível para o surgimento da black music e, portanto, do soul e, posteriormente, do rap. O sentimento de identidade negra promovido pelo gueto em seus moradores foi definido por Castells (2002) como “profunda noção de significado coletivo”.

Portanto, a cultura negra, de acordo com a análise de Cornel, teve de aprender a conviver com essa negação sem que se permitisse cair na auto-aniquilação. Conseguiu. Das canções às artes, das igrejas da comunidade às irmandades, a sociedade negra emergiu, imbuída de uma profunda noção de significado coletivo, que não se perdeu durante o êxodo rural maciço para os guetos do norte, traduzida em uma extraordinária criatividade nas artes, na música e na literatura, e em um movimento político poderoso e multifacetado, cujos sonhos e potenciais foram personificados em Martin Luther King Jr. Nos anos 60 (CASTELLS, 2002 p. 74).

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4 Entre o final da década de 1950 e o início da década de 1960 a associação do rhythm and blues (música profana) ao gospel (música protestante negra descendente dos spirituals) deu origem ao soul. Enquanto o fenômeno do rock dominava o consumo de música entre os jovens “brancos” e economicamente favorecidos, o soul visava o resgate de um ritmo autenticamente negro nos guetos norte-americanos.

Os elementos característicos da música africana herdados pelo soul são a complexidade rítmica, a polifonia vocal (herança vinda também dos cantos religiosos da Europa) e a utilização de algumas escalas não convencionais na música européia. Porém, segundo Hobsbawm (1989), as contribuições mais significativas da cultura africana para o blues (e conseqüentemente, para o soul e toda a black music), foram o caráter improvisatório e o padrão do “canto e resposta” (call-and-response).

Ocorre que a técnica do call-and-response (em que uma voz solo emite um som que em seguida é repetido pelo “coro”) não é exclusiva da música africana, mas configura-se como prática encontrada em diversas culturas, independentemente do estabelecimento de contato ou influências entre os grupos. Um dos principais exemplos da utilização do call-and-response fora da cultura africana ocorre no ocidente cristão, em que essa mesma técnica, agora denominada “canto responsorial”, é utilizada em ofícios religiosos desde a Idade Média. Sendo assim, existe a possibilidade do call-and-response presente no blues e em muitos outros gêneros da soul music constituir-se em herança africana, como também em herança da colonização européia nos Estados Unidos ou ainda (e mais provável), uma confluência entre essas culturas.

Na soul music, o call and response pode ocorrer de diversas maneiras, dentre outras, quando o cantor produz um som, estimulando o público/platéia a reproduzi-lo em seguida ou quando o vocalista principal produz um som em solo e em seguida obtém a “resposta” em coro dos backing vocals. Uma terceira maneira é a improvisação instrumental de um curto fragmento musical, de forma que, em seguida, todo o conjunto de instrumentos repita o que foi proposto.

O contexto sócio-político dos Estados Unidos na década de 1960 foi marcado pela luta do movimento negro pelos direitos civis e, posteriormente, pelo assassinato de dois de seus maiores líderes (Malcolm X e Martin Luther King). A música popular passava por um profundo processo de mudança. Enquanto o fenômeno do rock impressionava os Estados

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5 Unidos, nos guetos norte-americanos o que se ouvia era a soul music, que tinha em James Brown um de seus mais expressivos representantes. James Brown, conhecido pela autoria de letras que abraçam a causa negra, influenciava multidões ao cantar: Say it loud, I’m black and proud! (diga alto: sou negro e tenho orgulho disso!). Além de James Brown, o soul de Ray Charles, Wilson Pickett, Otis Redding, Aretha Franklin e Sam Cooke também compunha a trilha sonora que impulsionava a luta pelos direitos civis. Segundo Ribeiro (2008, p.96) “a soul music demarca os limites com a América branca ao utilizar uma linguagem específica denominando-se irmãos (brothers) e irmãs (sisters) que se reunia em uma comunidade solidária e fraternal que brilhava pela alma (soul)”.

A soul music ajudou a criar a atmosfera na qual o orgulho negro cresceu. Junto com o movimento pelos direitos civis, com a expectativa de crescimento econômico e o crescente idealismo da época, a soul music refletia e incitava o avanço dos negros. Tanto o publico branco quanto o negro experimentavam a música como uma expressão daquela qualidade subjetiva chamada autenticidade emocional, definida como ‘soul’ (alma). (FRIEDLANDER, 2006, p. 241-242).

Ao final dos anos 1960, mesmo com a conquista de alguns direitos civis, a população negra dos Estados Unidos ainda era considerada uma subclasse. A segregação se estendeu aos imigrantes latinos com suas peles de cor morena. Vindos de países como a Jamaica, Porto Rico e México em busca de oportunidades, esses grupos acabaram empurrados para os guetos que abrigavam os afro-descendentes. É em meio a essa mistura de descendentes de escravos africanos e imigrantes latinos que surge o rap.

Enquanto a soul music cantava o orgulho negro, o rap surgia no Bronx4 como mais uma expressão musical afrodescendente. O termo é uma abreviação da expressão rhythm and poetry (ritmo e poesia). Até onde foi possível verificar, as idéias musicais que deram origem ao rap começaram a surgir no final da década de 1960, quando o jamaicano Kool Herc migrou para os Estados Unidos e, como a maioria dos afro-descendentes naquele país, foi morar em um gueto. A partir de então, Herc passa a difundir a técnica do toast pelo Bronx. O toast é uma maneira de se fazer música utilizando os sound systems5, técnica bastante popular

na Jamaica, principalmente na capital Kingston, cidade em que a língua inglesa é

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Gueto estadunidense habitado por afro-americanos e imigrantes vindos, em sua maioria, das ilhas caribenhas. Constitui um dos cinco distritos de Nova Iorque, sendo considerado o mais pobre e violento da cidade.

5 Em português, sistemas de som. Muito populares na década de 1960 nas grandes cidades jamaicanas.

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6 extremamente difundida. No toast os Dj’s jamaicanos utilizavam discos que continham os reggaes mais populares da época para realizar mixagens artesanais, as quais constituíam base sonora para a recitação de versos improvisados que expressavam suas idéias políticas e espirituais (MAGALHÃES; SOUZA, 2009).

Adaptando-se ao contexto norte-americano, Kool Herc fez uso das gravações de soul music (gênero musical de maior popularidade nos guetos da época) como elemento para suas mixagens em substituição à utilização do reggae jamaicano. Desta forma esse Dj conquistava cada vez mais adeptos, os quais passaram a frequentar as festas de rua, chamadas de block parties, atraídos pelo equipamento de som jamaicano. Cabe lembrar que, nesta época era o próprio Dj quem improvisava e declamava os versos ao microfone enquanto as mixagens artesanais tocavam ao fundo.

Dj é uma abreviatura para o termo disc jockey que existia desde a década de 1950 para designar o responsável por colocar os discos para tocar nas rádios. Porém, no gênero musical rap, a figura do Dj vai além do ato de colocar e retirar discos do aparelho de som. De fato esse personagem atinge o patamar de músico em virtude da técnica complexa de manipulação do disco, a qual, possibilitando a desconstrução da música gravada, cria uma nova obra a partir da combinação de fragmentos sonoros da música contida no disco, fazendo do toca-discos um instrumento musical.

Além de Kool Herc, houve outras personalidades importantes na organização e realização das block parties. Uma delas foi Afrika Bambaataa, americano afro-descendente nascido no Bronx, que ainda em sua adolescência se interessou pelas técnicas dos Dj’s. Bambaataa tornou-se famoso por mixar trechos de gravações dos discursos de Martin Luther King e Malcolm X às suas músicas, fazendo com o rap o mesmo que James Brown fez com o soul utilizando-o como veículo de expressão identitária e de protesto.

Kool Herc, por sua vez, passou a desenvolver técnicas de discotecagem que isolavam pequenos trechos musicais retirados da parte em que as vozes desaparecem dando lugar a um solo rítmico, algo muito comum nas gravações de soul music. Fazendo uso de um recurso minimalista, Herc conseguiu prolongar esses fragmentos rítmicos, originalmente muito curtos, ao manipular, simultaneamente, dois discos idênticos. Isso era feito utilizando-se dois pratos de toca-discos e realizando uma mixagem com as mãos, de maneira que utilizando-se pudesse repetir determinado trecho inúmeras vezes. Estava criada a break beat (batida

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7 quebrada) que logo atraiu todos para a dança, fato que mais tarde iria dar origem à break dance (dança quebrada).

Inspirados pelo mais novo fenômeno urbano, muitos Dj’s surgiram e com eles novas técnicas de manipulação dos discos. Um exemplo é o Dj Grandmaster Flash, que introduziu a Quick Mix Theory (teoria da mixagem rápida), além de outros conceitos como o backspin (voltar o disco manualmente), o phasing (manipulação da velocidade dos aparelhos de som), o scratching (movimentar o disco para frente e para trás gerando sonoridades que sugerem “arranhões” na música ) e o cutting (técnica em que se consegue mudar de uma música para outra sem que se “perca” a batida.

Com o objetivo de se dedicar mais às técnicas de Dj, Kool Herc deixou de recitar os versos ao microfone, repassando esta função a outros jovens. Desta maneira, foi estabelecida uma nova formação musical: enquanto Herc realizava as remixagens, outra pessoa era convidada a assumir o microfone, tendo a responsabilidade de improvisar o texto. Este modelo passou a ser adotado também por Afrika Bambaataa e Grandmaster Flash.

A improvisação de versos, que no início não passava da declamação de ditados populares, foi se tornando cada vez mais elaborada, fazendo com que os improvisadores fossem chamados de master of ceremony (mestre de cerimônia), dando origem ao termo Mc. A expressão também é uma referência à outra função assumida por quem estava ao microfone: além da improvisação de versos, os Mc’s eram os responsáveis por recepcionar o público, comandar o andamento da festa e interagir com os jovens presentes. As figuras do Mc e do Dj, juntas, formam um gênero musical denominado Rap e, juntamente com a dança (break) e as artes visuais (grafite) representam os quatro elementos da cultura hip-hop6 (MAGALHÃES; SOUZA, 2009).

Segundo Martins (2005), o rap leva à ascensão de dois elementos de herança africana: o griot e o drum. Griot é o nome dado aos contadores de história das comunidades localizadas no norte do continente africano, uma tradição de séculos que perdura até os dias de hoje em países como o Senegal, Guiné, Gâmbia e Mali. Tidos como sábios, os griots (que recebem nomes diferentes devido aos diversos dialetos africanos) são verdadeiros depositários

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O hip-hop consiste em uma cultura de rua surgida no Bronx, em Nova Iorque, que contempla em seus quatro elementos constitutivos - Dj, Mc, Grafite e Break – diferentes formas de expressão: música, poesia, artes visuais e dança. Assim, o hip-hop se firma como um movimento articulador de quatro campos de produção artística, conseguindo se comunicar por meio de diferentes manifestações que comungam de uma mesma ideologia.

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8 de tradições, e, acompanhados pelo Corá7, contam suas histórias com narrativas que se situam entre a fala e o canto, com características recitativas semelhantes às interpretações da commedia dell’arte, ds cantos do repente nordestino ou mesmo do sprechgesang criado por Schoenberg.

A história narrada pelo griot não deve ser contada de qualquer maneira. Deve, ao contrário, ir ao encontro do drum, ou seja, a batida do tambor. O tambor na cultura africana se constitui em meio fundamental de expressão e comunicação, uma representação da batida vital do coração. O griot e o drum são elementos da cultura africana que emergem nos Estados Unidos de forma ressignificada, por meio do Mc e do Dj (o narrador da história e a batida rítmica, respectivamente) – uma relação de complementaridade em que um elemento dá sentido ao outro.

A partir do referencial teórico de Bourdieu (1998), nota-se que grupos sociais buscam sua definição identitária na demarcação e valorização das diferenças e divisões. Assim, os gêneros musicais soul e rap surgem como materialização destes confrontos e tensões sociais travados no plano simbólico. Estes confrontos simbólicos foram denominados por Bourdieu (1998) como “lutas de representação”.

As lutas em torno da identidade étnica ou regional, quer dizer, em torno de ... marcas que lhes são correlatas, como, por exemplo, o sotaque, constituem um caso particular das lutas entre classificações, lutas pelo monopólio do poder. O móvel de todas essas lutas é o poder de impor uma visão do mundo social através dos princípios de divisão que, tão logo se impõem ao conjunto de um grupo, estabelecem o sentido e o consenso sobre o sentido, em particular sobre a identidade e a unidade do grupo, que está na raiz da realidade da unidade e da identidade do grupo. (BOURDIEU, 1998: p. 108)

No momento em que o grupo formado por jovens moradores do gueto (um espaço socialmente excluído) apropria-se do espaço urbano para cantar rap (pois o rap é uma música concebida, executada, ouvida e dançada nas ruas) e imprime sua marca e identidade na propriedade pública, ocorre uma invasão simbólica do gueto/periferia rumo ao centro urbano, configurando-se como uma disputa simbólica pelo poder.

Outra forma de “luta de representação” encontrada no rap é a modalidade denominada freestyle. As “batalhas de freestyle” ocorrem quando um grupo de rappers formam um círculo em espaço público (ruas, calçadas, praças ou edifícios abandonados) com

7 Instrumento de cordas muito difundido na África Ocidental. Com suas vinte e uma cordas, o instrumento possui

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9 o objetivo de praticar a improvisação de versos. A disputa pode ser realizada com vários integrantes, com “rodadas” em que cada um terá a sua oportunidade de improvisação. Porém, a forma tradicional é aquela em que apenas dois integrantes vão ao centro da roda e iniciam a disputa, que se assemelha bastante às disputas de “repente” do nordeste brasileiro ou ao “samba de roda”, também chamado de “partido alto”.

Geralmente a improvisação musical ocorre nas recitações, ou seja, a batida rítmica principal (executada por um Dj ou realizada pela técnica do beatbox8) permanece a mesma,

ditando o mesmo pulso e andamento e repetindo a mesma célula rítmica do início ao fim da batalha. Enquanto isso, variações rítmicas são criadas sobre a batida principal por meio do jogo de palavras e acentuações de sílabas dos versos recitados. O desafio está em improvisar frases que possuam acentuações rítmicas interessantes e que sejam coerentes dentro do tema/contexto narrativo de cada batalha, sem sair da pulsação.

Uma batalha de Freestyle pode ser bem divertida e bem humorada, com críticas político-sociais ou mesmo mais pesada, chegando à troca de ofensas entre os que estão na disputa. Os cantores de rap se alternam de maneira que um sempre deve iniciar sua improvisação a partir do “gancho” temático proposto pelo outro. Ganha aquele que for mais criativo, tiver maior rapidez de raciocínio para improvisar sem sair do ritmo e declamar rimas difíceis, inusitadas e bem elaboradas.

Observa-se que as lutas de representação são mais evidentes no rap do que no soul, uma vez que o primeiro gênero é mais crítico e agressivo. Este fato é evidenciado não só nas letras das músicas, mas também na forma de interpretação e entonação da voz. O soul, por sua vez, faz uso de representações simbólicas que evidenciem características positivas dos afrodescendentes e que promovam o orgulho e a auto-estima deste segmento.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A partir do exposto, pode-se concluir que tanto o gênero soul, quanto o rap constituem expressões musicais híbridas, que atuam como forma de representação de poder da população afro-descendente. Características como as letras engajadas, as batalhas de freestyle,

8 O beatbox, cuja tradução literal seria “caixa de batida”, consiste na técnica de percussão vocal utilizada no rap

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10 o resgate de elementos musicais originalmente africanos e a utilização do penteado black power como símbolo de orgulho negro e identidade cultural, são maneiras de demarcar e reforçar as diferenças e fronteiras existentes tanto entre um gueto e outro, quanto (e principalmente) entre um grupo social e outro. O objetivo é a obtenção do poder simbólico.

A análise também leva à conclusão de que o soul e o rap não constituem gêneros musicais puros, ao contrário, são permeados por uma série de hibridações e “contaminações” culturais vindas da África, da Europa e das Américas do Norte e Latina. Esta hibridação é fator imprescindível para a definição dos referidos gêneros musicais e também para a construção identitária do público ouvinte desta música.

O gênero musical rap apresenta características residuais de diversas práticas culturais que se imbricam em sua configuração. Dentre estas práticas culturais pode-se destacar a articulação entre tradições africanas (por meio das práticas recitativas acompanhadas da “batida” rítmica), jamaicanas (por meio da prática dos sound sistems) e norte-americanas (por meio da influência da própria soul music, que por sua vez, já constituía um gênero repleto de hibridações).

A soul music, por sua vez, hibrida características provenientes da música africana (caráter improvisatório, complexidade rítmica, polifonia vocal, padrão pergunta e resposta e a utilização de escalas não convencionais) e européia (polifonia vocal, padrão pergunta e resposta, harmonização e utilização da língua inglesa).

Por fim, a identificação de diferentes formas de representação simbólica nos gêneros soul e rap demonstra que esta música não contém seu significado apenas nela própria, mas também expressa um significado social de contribuição para a integração e formação da identidade cultural de determinado grupo social.

REFERÊNCIAS

BOURDIEU, Pierre. A Economia das Trocas Linguísticas. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1998.

CANCLINI, Nestor Garcia. Culturas Hibridas: estratégias para entrar e sair da modernidade. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2003.

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11 FRIEDLANDER, Paul. Rock and roll: uma historia social. Rio de Janeiro: Record,2006. HALL, Stuart. A Identidade Cultural na Pós-modernidade. Rio de Janeiro: Editora DP&A, 2003.

HOBSBAWM, Eric. J. História Social do Jazz. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1989.

MAGALHÃES, Maria Cristina P. F.; SOUZA, Ana Guiomar Rêgo. Aspectos do Movimento Hip-Hop: matrizes culturais e elementos constitutivos. In: Seminário Nacional de Pesquisa em Música, 9, 13-16 out, 2009. Goiânia, 2009. p. 92-96.

MARTINS, R. Hip-Hop: O estilo que ninguém segura. Santo André: ESETec Editores Associados, 2005.

RIBEIRO, Rita Aparecida da Conceição. As Interações Entre Moda e Música na Constituição de Identidades: uma análise das influências da black music. Unesp-Bauru, 2010.

WACQUANT, L. Que é um Gueto? Construindo um Conceito Sociológico. Revista de Sociologia e Política. Curitiba, n.23, p.155 – 164, 2004.

Referências

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