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Era o princípio do mês de outubro, porém, estava um

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Academic year: 2021

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ra o princípio do mês de outubro, porém, estava um calor de agosto na cidade.

As aulas tinham começado, havia pouco tempo, no ve lho Colégio da Sagrada Família, que passara os meses de verão em obras de modernização mas que, ainda as sim, continuava a parecer uma velharia, quase um monumento muito antigo, situado num dos bairros mais velhos de uma cidade com séculos de história.

Desde o internamento da mãe na clínica psiquiátrica, tinha ele nove anos, Edu passara a viver em casa da avó pater na, e o percurso até ao colégio e de regresso a casa era sem pre feito no Mercedes da avó Aninha, conduzido pelo Florêncio. A viagem durava pouco mais de um quar to de hora quando não havia muito trânsito, mas, em dias problemáticos, geralmente às sextas ‑feiras, podia durar meia hora. Nesses dias, Edu, sentado no banco tra‑ seiro, aproveitava para relembrar as matérias, recitando em voz baixa o que decorara no escasso tempo que dedicara ao estudo, em casa.

Ao princípio, temia que o Florêncio pensasse que ele ia a falar sozinho como via fazer a algumas das pessoas in ternadas na Clínica do Sagrado Coração; contudo, à me ‑ dida que foi fazendo menos cerimónia com o motorista, que era também o jardineiro de casa da avó, descon traiu ‑ ‑se e viu que podia ir papagueando nomes de per sona gens históricas ou regras gramaticais.

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O Florêncio, homem paciente quase na idade da refor‑ ma, até gostava de o ouvir e sorria quando ele se punha a recitar os tempos primitivos de verbos irregula res ingleses que a professora fazia questão de que todos soubessem de cor. Na verdade, Edu tinha a memória bem treinada e, por‑ tanto, não lhe era difícil decorar fosse o que fosse, sobretu‑ do quando se punha a papaguear em voz alta, como estava a fazer naquele momento, na viagem de regres so a casa.

— To eat, ate, eaten... Sabes o que quer dizer?

— E eu lá sei alguma coisa dessa língua de trapos?! — ria ‑se o Florêncio, sem olhar para trás. — O menino sabe que eu só andei na escola até à quarta classe e já foi mui to para a minha cabeça... Mas, afinal, o que é que isso quer dizer, diga lá...

— Quer dizer «comer», em inglês.

— Coitados desses ingleses... Têm de enrolar muito a língua para alguém perceber que estão com a barriga a dar horas!

Edu ria ‑se.

— Por falar nisso, estou cá com uma fome! Já passa das cinco... Cada vez há mais carros nesta cidade! E sexta ‑ ‑feira ainda é pior! Nunca mais chegamos a casa!

— Já não deve faltar muito, menino, tenha paciência, que eu não posso voar sobre os outros carros, não é ver dade? — disse o Florêncio, com a sua voz bondosa. De pois, acrescentou, sorrindo: — O Mercedes é um grande carro, mas ainda não lhe nasceram asas... É mesmo só o que lhe falta, porque, de resto, tem tudo o que é preci so, do bom e do melhor! A sua avó sabe bem o que tem qualidade, não se assoa a qualquer guardanapo!

Edu riu ‑se novamente. Já tinha ouvido aquela expres‑ são ao Florêncio e a mais um adulto já de idade avançada, mas, por mais que a ouvisse, dava ‑lhe sempre von ta de de

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rir. No que se referia ao que o Florêncio dissera sobre a avó Aninha era a mais pura verdade, pois ela era mes‑ mo exigente em tudo, sobretudo em matéria de higiene, alimentação, transportes e calçado, por esta ordem. Já o filho, pai de Edu, não era assim, contentava ‑se com pouco, a não ser no que dizia respeito à sua carreira de piloto de aviação civil — nesse campo, esme rava ‑se para ter uma conduta exemplar, jamais se poupan do a esforços para se valorizar.

Quanto a Edu, era ainda muito novo para ter certas exi gências; por outro lado, era muito ambicioso, sem dú vida. Queria, tal como o pai, vir a ser piloto ‑aviador, o me lhor do mundo. Este desejo estava tão enraizado na sua alma que não colocava uma única alternativa a este seu projeto para o futuro, embora tivesse de usar óculos desde os oito anos... Na verdade, acalentava uma grande espe rança de que, um dia, um cirurgião extraordinário o operasse e livrasse de todo e qualquer problema de vi são, por pequeno que fosse. Esta esperança não podia morrer, apesar de ele saber que era muito parecido com a mãe e que, do lado materno, não havia quem não tivesse de usar óculos ou lentes de contacto.

De facto, o avô Sarmento, que vivia em Braga com a filha mais velha, estava quase a perder por completo a visão do olho direito, tendo já sido operado às cataratas no esquerdo. No que se refere à sua mãe, Catarina, o problema era menor, mas ainda assim suficientemente grave, pois, sem óculos, os seus belíssimos olhos de cor verde ‑água (quase transparente!) não conseguiam ler uma letra nem distinguir um rosto a poucos metros de distân cia. Con tudo, na opinião de Edu, não havia razão para desesperar, porque bem sabia que, em cada ano que passava, os cientistas descobriam coisas nunca antes imagi‑

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nadas para tratar doenças e fazer avançar o mundo. Por essa razão é que havia prémios como o Nobel, de que já ou vi ra falar no colégio, a respeito do médico português, um tal Egas Moniz, tão sábio que até havia um hospital com o seu nome. Esta ideia enchia Edu de sonhos gran‑ diosos: como seria bom que, um dia, dessem o seu nome a um grande aeroporto de uma capital — «Aeroporto Eduardo Sarmento Rosa»! Só de pensar nisso, enchia ‑se de ânimo e sentia que valia a pena estudar o mais que pudesse de modo a conseguir as melhores notas para vir a atingir os seus objetivos. Como seria possível que, na sua maioria, os colegas não tivessem planos para o fu turo?, interrogava ‑se às vezes, sobretudo nos dias de en trega dos testes escritos... Dava a ideia de que quase todos os rapazes pretendiam apenas saber usar um computador e fazer disso a sua profissão para virem a possuir coisas mais ou menos banais, publicitadas pela televisão ou em car‑ tazes espampanantes, espalhados pela cidade. A exceção era o seu único amigo do colégio, o Tiago Limoeiro, que queria vir a ser futebolista profissional, apesar de ser um lingrinhas desajeitado que ninguém (ninguém mesmo!) queria para companheiro de equipa.

Edu bem sabia que a carreira de futebolista também outros rapazes sonhavam ter, mas o seu amigo Limão (como lhe chamava quando não havia mais nenhum colega por perto) causava ‑lhe verdadeira admiração por se esforçar tanto, apesar da evidente falta de dons para aquele ou outro desporto qualquer! Era impressionante como ele se sujeitava a tanta humilhação só para poder participar num jogo sem a mínima importância e do qual, poucos minutos depois, viria a ser obrigado a retirar‑ ‑se para ser substituído por outro que, ao menos, acertasse na bola e não tropeçasse nos próprios atacadores. A mara‑

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lha assobiava e ria ‑se dele cruelmente, mas o Li mão pouco se importava, acalentando sempre o seu sonho de vir a ser um ás da seleção nacional.

— Estamos a chegar, menino — disse o Florêncio, interrompendo as divagações de Edu.

* * *

Mal entrou em casa, a avó Aninha chamou ‑o da saleta: — É você, Edu?

E ele lá deixou a mochila no chão e foi ter à saleta. De pois de dar um beijo à avó, preparava ‑se para ir para o seu local de eleição quando foi interrompido:

— Vou dar uma notícia maravilhosa, querido: sua ma dri nha vem nos visitar! Ligou, faz uma meia ‑hora, avi‑ sando que vai chegar amanhã pelas duas horas da tarde!

Eduardo arregalou os olhos. — A tia Tóia vem do Brasil?!

— Vem! Não é legal? Também estou muito feliz! Seu pai virá jantar connosco hoje e tenho certeza de que também ficará muito contente com a notícia.

Edu ficou surpreendido. A tia Tóia, irmã mais nova da avó Aninha, vinha novamente a Portugal, onde só esti‑ vera ainda duas vezes: uma para o seu batismo e outra para a festa do quinto aniversário do afilhado. No en tan to, Edu não pensava nela como uma parente distante, já que ela lhe escrevia frequentemente, enviando ‑lhe sempre presentes no dia de anos e no Natal.

— Eu não me lembro muito bem da cara da tia Tóia, ‘vó...

— Isso é normal, querido. Você não vê sua madrinha faz um tempão, mas agora vai poder estar algum tempo com ela e vai gostar muito dela, tenho certeza!

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— Ela vem cá passar férias, ‘vó?

— Vem, sim, meu bem. Ficará uns dias connosco e, depois, segue numa excursão para Roma. Na verdade, sua madrinha está quase se reformando, mas ainda é enfer‑ meira lá no Rio, num hospital muito importante. E é uma excelente profissional!

— A tia Tóia vai a Roma para conhecer o novo Papa, é?

— Julgo que sim. Sua madrinha é muito ligada em religião. Sempre foi. Ela entende tudo de religião! Sabe, meus pais chegaram a pensar que ela ia ser freira, mas depois ela se interessou por enfermagem e foi fazendo sua carreira nos hospitais. — A avó Aninha soltou um lon go suspiro. Em seguida, prosseguiu, cheia de orgulho: — Tóia era uma moça bonita de mais, precisava ver! Tinha assim de pretendente rico querendo casar com ela! Mas ela não dava bola pra nenhum... Era muito independente. Gostava de passear sozinha, na praia, quan do chegava da escola. Se alguém conhecido se apro‑ ximava, ela arrumava uma desculpa qualquer e regressava a casa.

— Estou a ver... Era assim uma espécie de... bicho do mato.

— Era mesmo! — riu ‑se a avó. — Tóia era um bicho do mato, mas de um mato só dela: não deixava entrar mais bicho nenhum... Tinha dias que eu podia entrar lá no mundo dela, mas era raro. Que saudade de minha irmã!

Edu sorriu, vendo como a avó estava enternecida. — Posso ir agora, avó?

— Pode sim, Edu. Ah! Já esquecia... Se seu pai não puder ir buscar sua madrinha no aeroporto, eu vou ter de mandar o Florêncio...

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— Mas amanhã é dia de eu ir visitar a minha mãe! — Eu sei, querido, eu sei, mas dessa vez você poderá ir no domingo, não é?

— Não, ‘vó — respondeu ele, com uma expressão tão séria que parecia a de um adulto. — Eu já lhe disse que a minha mãe está sempre a contar comigo ao sábado e, se eu não fosse, tenho a certeza de que ia ficar triste. Mui to triste e zangada.

— Bem, nesse caso, vou pensar numa solução.

— Não é preciso. Eu já pensei. Apanho o autocarro que passa ali em baixo na avenida e pronto.

— É muito longe, Edu! Que autocarro é esse?

— O sessenta e oito. Eu sei porque já vi lá na clínica um cartaz onde estão indicados os autocarros que vão para aqueles lados. Não se preocupe, que eu vou muito bem sozinho.

— Mas você nunca pegou nenhum transporte público sozinho, querido!

— Pois não, ‘vó! E já fiz onze anos! Qual é o proble‑ ma? Os outros também andam de transportes públicos e alguns são mais novos do que eu.

— Sabe o que é, Edu? É que a viagem é muito longa. Precisa atravessar a cidade para chegar na clínica!

— E que mal tem? Aliás, não é assim tanto tempo. Deve ser talvez meia hora... E eu preciso de ir, avó!

— Eu sei, meu bem. Olha, senta aqui um pouco, que eu preciso falar uma coisa pra você... Se não fosse por ser sua madrinha quem vai chegar amanhã, eu não mandaria o Florência ir no aeroporto... É que sua madrinha Tóia é minha irmã caçula, Edu. E tem mais: eu acho que nun ca contei pra você, mas foi ela quem me ajudou a criar seu pai quando ele era criança, lá no Rio, porque Juve nal, seu avô, estava sempre no consultório ou no hospital, ven do

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doentes, e só chegava em casa de noite... Foi também ela quem tratou de seu avô Juvenal quando ele adoe‑ ceu gravemente... Tóia foi nosso anjo! Você entende, não entende, Edu?

— Eu entendo, ‘vó. Não se preocupe. Não há pro‑ ble ma nenhum em eu ir de autocarro, a sério que não. Aliás, eu até já era para lhe ter dito que não é preciso o Flo rên cio vir trabalhar ao sábado à tarde só para me levar à clíni ca. Nem é lógico! Posso perfeitamente ir sozinho. Já fiz onze anos! Além disso, o Florêncio também precisa de descansar e só no domingo é pouco, porque ele já não é assim tão novo...

Finalmente, a avó Aninha parecia recetiva àquela mu‑ dança que o neto propunha. Ainda tinha alguns re ceios, mas, pelo menos naquele sábado, talvez fizesse sentido dar licença ao neto para se aventurar sozinho na viagem para a visita semanal à mãe.

— Bom, é claro que, primeiro, temos de ver se seu pai concorda com sua ideia, Edu...

— Ele vai concordar, ‘vó — garantiu o neto, muito confiante. — Agora, já posso ir, não posso?

— Pode sim, querido. Eu já ‘tou um pouquinho atra‑ sada, mas ainda vou no cabeleireiro, que minhas unhas ‘tão um horror e não quero receber sua madrinha desse jeito.

O neto levantou ‑se e olhou para o relógio. Eram quase seis horas. Passaria pela cozinha para comer a sanduíche que a Olívia já devia ter preparado, iria buscar o livro que andava a ler e, em seguida, sairia para dar a volta do cos‑ tume, que, naquele dia, teria de ser mais breve para não se atrasar, já que o pai viria jantar com ele e com a avó.

Bebendo o resto do sumo de pacote (uma vitória so bre a avó Aninha, que só queria que ele tomasse sumos

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naturais), saiu pela porta das traseiras. Atravessou o quintal da vivenda e, pouco depois, estava a cruzar o portão do cemitério.

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