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DISCURSO SOBRE A MULHER: MANIPULAÇÃO NA MÍDIA JORNALÍSTICA

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263 DISCURSO SOBRE A MULHER: MANIPULAÇÃO NA MÍDIA

JORNALÍSTICA

Dayane Caroline Pereira1 Mayara Yukari Kato2 Resumo: O objetivo dessa pesquisa é analisar as formas de manipulação que distorcem, transformam e ridicularizaram o discurso feminista na mídia jornalística. Para a análise, serão adotados alguns estudos de Van Dijk (2015) acerca do tema discurso e manipulação, bem como de outros autores, em suas respectivas contribuições aos estudos discursivos e também a Análise do Discurso de orientação francesa, teoria que permeia este artigo através de alguns conceitos, como o de ideologia, o de poder, entre outros. O corpus selecionado é composto por uma reportagem publicada no site do jornal “O Globo”, no dia 10 de janeiro de 2018, a qual reproduz um depoimento na íntegra da jornalista e escritora Danuza Leão, com comentários sobre a manifestação “Time’s Up”, que ocorreu durante a cerimônia do Globo de Ouro, nos Estados Unidos, três dias antes da publicação do depoimento. Assim, pretende-se analisar as estratégias de manipulação utilizadas tanto pelo site quanto pela autora do depoimento, a fim de identificar o(s) discurso(s) das elites dominantes, levando em conta os contextos, os modelos mentais dos sujeitos envolvidos e suas possíveis ideologias reveladas por meio do discurso.

Palavras-chave: Discurso feminista. Manipulação. Mídia. Poder.

Introdução

O feminismo é um movimento cujos ideais e perspectivas voltaram a ser discutidos socialmente com mais notoriedade nos últimos anos. Tendo como marco histórico a Revolução Francesa, no século XVIII (PINTO, 2003), o movimento feminista traçou um longo percurso com a luta pelo reconhecimento da equidade e igualdade de direitos entre os gêneros e pela abolição do pensamento patriarcal em relação aos diversos âmbitos e papéis da figura feminina na sociedade.

Certamente, os discursos produzidos acerca do feminismo ainda são bastante controversos, uma vez que o movimento envolve não somente aspectos de cunho social, mas também político, econômico, religioso, entre outros. Vale ressaltar que esses aspectos estão intimamente ligados ao poder, e, consequentemente, são importantes para

1 Aluna regular do Programa de Pós-Graduação em Estudos da Linguagem em nível de

doutorado. Universidade Estadual de Londrina. E-mail: dayanecarolinepereira@yahoo.com.br.

2 Aluna regular do Programa de Pós-Graduação em Estudos da Linguagem em nível de

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264 compreender como a manipulação sobre o discurso feminista – ou discursos que defendam o movimento – ocorre na mídia jornalística, pois esta é uma das instâncias de dominação da elite, que detém o poder.

Para tanto, será analisada uma reportagem publicada no site do jornal “O Globo” no dia 10 de janeiro de 2018, a qual reproduz um depoimento na íntegra da jornalista e escritora Danuza Leão, com comentários sobre a manifestação “Time’s Up”, que ocorreu durante a cerimônia do Globo de Ouro, nos Estados Unidos, três dias antes da publicação do depoimento. Assim, pretendemos analisar as estratégias de manipulação utilizadas tanto pelo site quanto pela autora do depoimento a fim de identificar o(s) discurso(s) das elites dominantes, levando em conta os contextos, os modelos mentais dos sujeitos envolvidos e suas possíveis ideologias.

Ressaltamos que, ao analisar o feminismo, não serão detalhadas as suas vertentes, focalizaremos mais o nível geral do termo, o qual está mais restrito ao movimento mencionado, por conta do espaço limitado. Não pretendemos, também, denegrir ou rivalizar a figura masculina em relação aos movimentos, mesmo porque acreditamos na busca pelo equilíbrio e igualdade de gêneros, visando expor os aspectos encontrados na reportagem a ser analisada, sobretudo quanto às estratégias de manipulação do discurso.

Poder, mídia e manipulação

O conceito de poder, normalmente está associado às ideias de controle, hierarquia, autoridade, influência, enfim, termos que podem denotar cerceamento da liberdade enquanto sujeitos políticos, dotados de memórias, tanto discursivas quanto as de curto e de longo prazo, ou ainda que a mente realize um processo inconsciente, tendemos a atribuir sentidos negativos ao poder.

De acordo com Foucault (2009), porém, o poder não é necessariamente negativo, ou seja, não carrega em si tais sentidos, tampouco é naturalmente opressor, pois é flexível e passível de mudança. É justamente por conta disso que o discurso manipulador torna-se possível: por meio de estratégias discursivas, o sujeito faz uso da linguagem para atingir seu objetivo ou para manter seu poder, a fim de subverter o pensamento do outro acerca de determinado assunto. Isto quer dizer que se o poder fosse inalteravelmente negativo, em todas as situações, a manipulação por meio do

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265 discurso seria ineficaz, pois os sujeitos teriam menos chances de serem mentalmente manipulados, dominados.

Portanto, é necessário diferenciar, de certo modo, a noção de manipulação e a de poder, desvinculando-as um pouco. A questão central, nesse aspecto, para identificar a manipulação em um discurso, como no caso das mídias, segundo Van Dijk (2015), é a de legitimidade, pois o que a manipulação implica é o abuso de poder, ilegítimo.

O abuso de poder, então, significa a violação de normas e valores fundamentais no interesse daqueles que têm o poder e contra os interesses dos outros. Os abusos de poder significam a violação dos direitos sociais e civis das pessoas (VAN DIJK, 2015, p. 29).

O autor ressalta também que a questão da legitimidade não é tão simples: o que é legítimo ou não é relativo está historicamente em constante mudança, além de ser culturalmente variado, mesmo que determinados atos (i)legítimos se pretendam universais. Tomando como exemplo o sufrágio feminino, no caso do Brasil, no início do século XX, o direito ao voto era negado às mulheres, e, após o engajamento feminino da sociedade da época, houve a conquista ao voto. Atualmente, há inclusive propagandas a favor de mais participação ativa das mulheres no poder público, denunciando a mudança de cenário em relativamente pouco tempo.

Assim, “Se temos o uso de poder legítimo e o abuso de poder ilegítimo, precisamos aceitar que podemos também ter formas de desigualdade legítimas que são produzidas por eles [representantes democraticamente eleitos]” (VAN DIJK, 2015, p. 29). Notemos, então, a importância do contexto histórico para analisar o que é legítimo ou ilegítimo (caracterizando, assim, abuso de poder). Esse pensamento é corroborado por Charaudeau (2016, p. 147):

Vê-se a porosidade de fronteiras entre estratégias legítimas de persuasão e a manipulação das mentes. Isso porque, na democracia, instauram-se relações de forças entre o poder e os contrapoderes nas quais se enfrentam a potência institucional e a potência cidadã.

Na perspectiva adotada por Van Dijk (2015), toda manipulação implica manipular mentes, em vários âmbitos, ou seja, manipular crenças, ideologias, opiniões etc., estando a persuasão presente, direta ou indiretamente, no poder discursivo, por meio de recursos retóricos, como os argumentos. Esses recursos, por sua vez, podem

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266 direcionar o sujeito leitor/receptor a criar representações mentais almejadas pelo “detentor” do poder, isto é, aquele que busca por um domínio sobre o outro.

Dessa forma, notamos aqui a importância de três conceitos, cuja junção é denominada de triangulação por Van Dijk (2015): discurso, cognição e sociedade. A cognição, então, seria a ponte entre os outros dois, uma vez que a manipulação normalmente ocorre por meio da fala e da escrita, ou seja, por meio do discurso; tendo em vista que pessoas são manipuladas por meio do discurso, pressupõe-se, assim, a interação, e, portanto, para o autor, a cognição, mediante os modelos mentais, não pode ser excluída dessa tríade, pois, como dito, “a manipulação sempre envolve uma forma de manipulação mental” (VAN DIJK, 2015, p. 233).

Essa manipulação mental ocorre em dois níveis, a saber: na memória de curto prazo (MCP) e na memória de longo prazo (MLP). Na primeira, acontece a decodificação do discurso, por meio de operações fonológicas, sintáticas etc., além de outros elementos, como, por exemplo, na mídia jornalística, é possível notar a manipulação por meio da disposição do título, do tamanho da letra da manchete, das fotos que acompanham a reportagem, entre outras estratégias.

Já na MLP, o foco são as ideologias, as opiniões, as atitudes e os conhecimentos, a fim de que o receptor possa ou ativar representações mentais que sejam condizentes ao esperado pelo manipulador, ou então para modificá-las a seu favor, sendo que o manipulador normalmente diz respeito às elites simbólicas e dominantes. É importante ressaltar que essas elites não se referem necessariamente a pessoas ou instituições que pertencem à classe econômica mais alta, e sim àquelas que, na interação, obtêm o controle, o poder.

Assim, Van Dijk (2015) atenta para o fato de que os modelos mentais, as experiências subjetivas dos indivíduos, não são os únicos armazenados na MLP, pois as crenças e as representações sociais também pertencem a esse tipo de memória, sendo adquiridas ao longo da vida da pessoa. Logo, para que a manipulação possa surtir o efeito esperado, dirige-se o foco para essas crenças, pois são elas que costumam conduzir e nortear as atitudes sociais e individuais dos seres humanos. Seguindo essa linha de raciocínio, o autor considera o poder social em suas pesquisas mais que o poder individual, pelo caráter interativo do primeiro. Por conta disso,

Não é nenhuma surpresa que, dada a vital importância das representações sociais para a interação e o discurso, a manipulação se

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centrará geralmente na cognição social e, consequentemente, em grupos de pessoas, e não em indivíduos e seus modelos mentais particulares. É também neste sentido que a manipulação é uma prática discursiva que envolve tanto as dimensões cognitivas quanto as sociais. Por essa razão, devemos prestar mais atenção nas estratégias discursivas que tipicamente influenciam as crenças socialmente compartilhadas (VAN DIJK, 2015, p. 247).

Também não é surpresa que os meios de comunicação, como o jornal, impresso ou online, são propagadores dessas crenças compartilhadas, as quais são por muitas vezes reforçadas. Em muitos casos, essas crenças podem ser negativas, como em reportagens que retratam um episódio de violência contra a mulher. Uma das maneiras de manipular o receptor é dando ênfase em determinados aspectos da notícia, como, no caso de violência sexual, enfatizar as vestimentas consideradas vulgares que a mulher trajava no momento em que sofreu o abuso, ou a circunstância em que se encontrava (uma mulher alcoolizada, por exemplo), reforçando implicitamente a crença de que a mulher “precisa se dar ao respeito”, e, por não ter seguido as orientações sociais, foi responsável por ser assediada e violentada. Essa manipulação, portanto, poderia ter como objetivo culpar a vítima, para que a dominação de determinado grupo social continuasse assegurada, a fim de proteger seus interesses.

As mídias jornalísticas, desse modo, “fazem circular a palavra coletiva nas diferentes camadas da população, tocando assim o maior número de indivíduos através de manchetes, citações e fórmulas de impacto” (CHARAUDEAU, 2016, p. 49), sendo assim um meio propício para que a manipulação das mentes ocorra de forma satisfatória. Além disso, por representar uma elite simbólica, ou seja, aqueles que têm acesso ao discurso público de forma especial, como os políticos, os advogados, os escritores e os próprios jornalistas, a mídia auxilia na execução e manutenção do poder na sociedade, reproduzindo as ideologias dominantes, pois, conforme Van Dijk (2015, p. 47), “a ideologia dominante de um determinado período costuma ser a ideologia dos que controlam os meios de reprodução ideológica, especificamente, a classe dominante”, sendo o meio de comunicação um desses meios de reprodução ideológica.

Consideramos ideologia um sistema de normas que explicam diferenças sociais, políticas e culturais, de acordo com Chauí (2006), sem deixar transparecer que essas diferenças ocorrem por conta das divisões de classes sociais, uma vez que a ideologia tem como função apagar essas diferenças, a fim de fortalecer a identidade social, o sentimento que o sujeito tem de pertencimento à sociedade. Portanto, a ideologia não

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268 diz respeito somente às crenças sociais, mas também às atitudes, às práticas sociais coerentes com a ideologia de determinado grupo social, conforme poderá ser visto na análise da reportagem selecionada para compor este artigo.

O discurso feminista em foco

A análise a ser realizada refere-se à reportagem publicada no site do jornal “O Globo”, em 10 de janeiro de 2018, a qual apresenta um depoimento da jornalista Danuza Leão sobre a manifestação ocorrida durante o Globo de Ouro, no dia 7 do mesmo mês. Para compreender o fato, volta-se para o ano de 2017, quando então um dos maiores e mais reconhecidos produtores de cinema, Harvey Weinstein, foi acusado de assédio sexual e estupro por modelos, atrizes de Hollywood e funcionárias que trabalharam com ele.

A partir de uma publicação no jornal americano “The New York Times” sobre o assunto, vários relatos começaram a surgir, incriminando o produtor. Lembramos que as acusações dos abusos e assédios são referentes a anos e décadas passadas, revelando, assim, diversos efeitos de sentido, como, por exemplo, o silenciamento das vozes femininas por intimidação, uma vez que esses relatos por parte das mulheres que sofreram os abusos não são necessariamente recentes, e, por medo de terem suas carreiras prejudicadas (como dito, Weinstein é bastante influente na indústria cinematográfica), atrizes como Gwyneth Paltrow não denunciaram o assédio sofrido (SCHERER, 2017, p. 1).

Após as acusações por parte de diversas mulheres, um grupo de atrizes e outras profissionais lançou o movimento “Time’s Up” (em tradução livre, “acabou o tempo”) no dia 1 de janeiro de 2018, a fim de levantar fundos para mulheres que não têm condições para manter os custos dos processos judiciais movidos contra agressores sexuais. O objetivo é também lutar pela igualdade no ambiente profissional, uma vez que apenas uma a cada dez mulheres ocupa um cargo alto de chefia nos Estados Unidos (TIME’S UP, 2018), onde o movimento nasceu, mas o número pode ser considerado a média também em outros países.

Um dos reflexos do movimento “Time’s Up” ocorreu na cerimônia de premiação de melhores filmes e séries do Globo de Ouro deste mesmo ano, na qual a maioria das artistas foi vestida de preto e acompanhadas de ativistas feministas, ao passo que alguns

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269 profissionais homens vestiam cores escuras e um adesivo com o emblema do movimento, em apoio à causa. A cerimônia foi marcada por discursos feministas que foram bastante aclamados e repercutidos na mídia, porém os trajes de gala também chamaram a atenção dos jornalistas.

Esses eventos de entretenimento sempre são notícias por conta dos modelos de roupas desfilados pelas artistas – um estereótipo da mulher é, sem dúvida, o de beleza, cujo padrão é ter um corpo magro, curvilíneo, e ser bem-vestida, sobretudo em ocasiões como a do evento em questão –, portanto o fato de as mulheres terem comparecido à cerimônia todas vestidas de preto (assim, havia pouco a se comentar sobre os trajes em si) foi amplamente destacado na mídia jornalística, pois causou estranhamento para o público, embora a manifestação já fosse esperada pelos jornalistas, que têm acesso especial às fontes de informação.

Dessa vez, houve um espaço maior para os discursos que tomaram conta do Globo de Ouro, por causa do protesto, que ganhou visibilidade justamente porque as artistas valeram-se de algo chamativo para o público para se expressarem e apoiarem a causa contra o assédio sexual. No entanto, várias pessoas se manifestaram publicamente sobre o protesto, uns a favor, outros, como o grupo de artistas e intelectuais francesas, contra. Esse grupo publicou um artigo no jornal francês “Le Monde”, afirmando que defendiam a “liberdade de importunar, indispensável à liberdade sexual”3, e também que o que houve na cerimônia americana foi uma verdadeira “caça às bruxas”.

3 NOUS DÉFENDONS une liberté d’importuner, indispensable à la liberté sexuelle. Le Monde,

09 jan. 2018. Disponível em: <http://www.lemonde.fr/idees/article/2018/01/09/nous-defendons-une-liberte-d-importuner-indispensable-a-la-liberte-sexuelle_5239134_3232.html>. Acesso em 12 jan. 2018. Tradução livre.

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270 Desconstruindo o discurso manipulador

No dia posterior ao da publicação do artigo do grupo francês, no Brasil, o jornal “O Globo” publicou o depoimento da jornalista e escritora Danuza Leão, cuja manchete diz: “Danuza Leão: ‘O Globo de Ouro me pareceu um grande funeral’”, e, em seguida, no lead, encontra-se escrito: “Escritora questiona os limites para algo ser considerado assédio e critica onda de denúncias”.

Na manchete, observamos alguns elementos de manipulação, segundo Van Dijk (2015), como a sintaxe local, representada pela oração ativa, entre aspas. Encontra-se, portanto, uma forma de polarização entre Nós (a elite dominante) e os Outros, pois ao se colocar em primeiro plano o nome da escritora na manchete em posição daquela que

RIO — Um grupo de cem artistas e intelectuais franceses levantou polêmica ao publicar no jornal “Le Monde” um artigo defendendo a liberdade dos homens de “importunar” as mulheres com “paqueras insistentes” e “galanteios”.

A declaração foi dada como resposta à cerimônia do Globo de Ouro, que serviu de palco para manifestações contra o assédio sexual. Para a escritora Danuza Leão, as francesas estão certas: “o Globo de Ouro pareceu um grande funeral”, disse ela.

Depoimento de Danuza ao GLOBO:

"O que não está claro para mim é o conceito de assédio. É uma paquera? Avanços sexuais entre homens e mulheres começam sempre de um lado. Às vezes, o outro lado não quer, e isso é normal. Como definir?

Espero que essa moda de denúncia contra assédio sexual não chegue ao Brasil. O que aconteceu no Globo de Ouro me pareceu um grande funeral. Apesar dos vestidos lindíssimos, acho que aquelas mulheres (que foram à cerimônia de preto) foram muito pouco paqueradas e voltaram sozinhas para casa.

Não acho que as denúncias de assédio possam gerar uma ‘caça às bruxas’ porque são uma coisa ridícula, para começo de história. É doloroso saber que uma mulher pode fazer uma acusação e tirar o emprego de um homem. É algo pecaminoso. Mas isso é coisa de americano. Lá eles não têm noção de sexo. É ótimo passar em frente a uma obra e receber um elogio. Sou desse tempo. Acho que toda mulher deveria ser assediada pelo menos três vezes por semana para ser feliz. Viva os homens."

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271 profere o discurso, denota-se a autoridade e a superioridade do Nós. O conhecimento do nome produz esse efeito: jornalista e escritora, consequentemente alfabetizada, com curso superior ao da média brasileira, Danuza integra a elite simbólica.

A referência à cerimônia apresenta também uma metáfora (“um grande funeral”), figura retórica que serve como estratégia de manipulação para enfatizar aspectos negativos do evento, uma vez que se coloca o Globo de Ouro e a sua comparação com um funeral, cerimônia fúnebre, marcada pela dor e pela cor preta, geralmente, representativa do luto, no mesmo patamar.

A manchete, portanto, resume o pensamento da jornalista, que considera o evento algo pesaroso e triste não pelo fato de ter sido marcado por uma manifestação sobre algo ruim na sociedade, o assédio sexual; mas, ao contrário, o depoimento lamenta a atitude das atrizes que compareceram de trajes pretos pela causa e foram responsáveis por tornar um evento tipicamente festivo em uma cerimônia aparentemente fúnebre. Podemos dizer, então, que essa manchete tem por objetivo manipular o leitor, pois a comparação entre os dois tipos de cerimônia por meio da metáfora deslegitima o movimento “Time’s Up”, presente no Globo de Ouro através da manifestação.

O lead, por sua vez, traz uma seleção lexical importante para que a manipulação seja pertinente aos olhos do leitor: “questiona”, “limites”, “critica”, “onda de denúncias”. No âmbito da manipulação, trata-se de uma seleção negativa para o Outro, isto é, para os adeptos do movimento/manifestação, caracterizando o que Van Dijk (2015) denomina de “outro-apresentação negativa”. Essa construção permeia todo o discurso de Danuza Leão, ao passo que a apresentação do enunciador do discurso é sempre positiva, ou seja, há uma “autoapresentação positiva”.

A matéria do site apresenta o depoimento com dois parágrafos. O primeiro, após o dêitico que demarca o local de apresentação da reportagem, Rio de Janeiro, contextualiza o sujeito leitor, e o segundo, após os hiperlinks do texto que direcionam o leitor para outras matérias, introduz o pensamento da autora do depoimento.

Nessa matéria, o jornal “O Globo”, apesar de possuir voz ativa nos dois primeiros parágrafos, procura manter distanciamento tanto da opinião do grupo francês quanto do depoimento de Danuza, ali reproduzido, embora não seja possível ser ideologicamente neutro, pela perspectiva da AD, uma vez que assumir-se neutro dentro de um discurso é assumir também uma posição. Esse distanciamento almejado pelo jornal pode ser notado por meio das aspas, uma forma de heterogeneidade mostrada e

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272 marcada, de acordo com Authier-Revuz (2004), ou seja, a fala do outro é marcada no enunciado.

Além disso, o jornal, seja impresso ou online, é um meio de comunicação de massa, um meio que reproduz o discurso das elites, conforme já apontado. Assim, tanto por meio da AD como por meio da perspectiva adotada por Van Dijk (2015), a questão ideológica faz-se presente, não sendo possível, portanto, desconsiderá-la da análise. Desse modo, notamos que a expressão “serviu de palco”, embora seja corrente no meio jornalístico, associa-se ao contexto da matéria, isto é, à cerimônia do Globo de Ouro, ao cinema, às artes, portanto “palco” indica, também, o teatro, podendo sugerir que a manifestação foi aparente, ou seja, o apoio à causa do movimento “Time’s Up” pelos artistas teria sido um teatro, um jogo de marketing, uma autoapresentação positiva dos artistas, para conferir uma imagem positiva a eles próprios. Por fim, nesse trecho, é possível dizer que a repetição da fala de Danuza na manchete e na introdução da matéria reforça a manipulação do leitor, visto que a contextualização das manifestações no Globo de Ouro é bastante breve e vaga, ocultando detalhes.

No excerto, a delimitação do discurso de Danuza ocorre por meio do itálico, outra forma de heterogeneidade mostrada e marcada (AUTHIER-REVUZ, 2004). Por outro lado, no primeiro parágrafo do depoimento, a voz ativa do locutor apresenta novamente uma autoapresentação positiva, por meio do tom questionador porém diplomático e até mesmo empático, ao relativizar dois pontos de vista acerca do que seria considerado assédio, e também por revelar uma possível humildade por parte do locutor, ao reconhecer que algo não está claro para ele, a fim de levar o interlocutor a simpatizar-se com a imagem criada ou a reconhecer-se nela.

Já no segundo parágrafo, a aparente diplomacia é deixada de lado para caracterizar negativamente o Outro, ao mesmo tempo que enaltece valores machistas e/ou conservadores da sociedade. Primeiramente, ao tratar como moda as denúncias contra o assédio sexual, o discurso manipulador também deslegitima o movimento e não reconhece a urgência de seu debate e a importância da denúncia desse tipo de agressão, limitando-o, de certa forma, apenas ao território americano, cuja indústria cinematográfica é uma das mais representativas e poderosas do mundo, e, por conseguinte, exporta tendências (“Espero que essa moda de denúncia contra assédio sexual não chegue ao Brasil”).

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273 Apesar de elogiar os “vestidos lindíssimos” (termos que colaboram para que o estigma de superficialidade da mulher e a objetificação feminina sejam cristalizados) que circularam pela cerimônia, o texto enfatiza o pensamento machista de que a mulher deve estar sempre acompanhada (por um homem), pois, nesse ponto de vista, subentende-se que a figura feminina é o sexo frágil, dependente da figura masculina. Além disso, o texto reproduz o discurso que culpa a vítima pelo assédio por ela sofrido, pois, segundo Van Dijk, (2015, p. 245),

Culpar a vítima é uma das formas de manipulação por meio das quais grupos ou instituições dominantes discursivamente influenciam os modelos mentais dos receptores, como, por exemplo, na reatribuição da responsabilidade das ações segundo seus interesses próprios.

Nesse caso, a manipulação restringe a interpretação que o interlocutor possa ter do discurso, por meio da ativação de modelos mentais desejados pelos manipuladores em relação aos receptores. Assim, culpa-se a vítima, nesse excerto, pelas denúncias feitas por elas, pois provavelmente teriam sido “muito pouco paqueradas e voltaram sozinhas para casa”, ou seja, acusa-se essas mulheres de dramatizar um fato banal sob o ponto de vista do manipulador, um ato de assédio camuflado como simples “paquera”.

Por sua vez, o terceiro e último parágrafo dialoga diretamente com o texto publicado no jornal “Le Monde”, cuja referência à “caça às bruxas” é negada por Danuza não pelo fato de não concordar com a publicação francesa, mas por ridicularizar os assédios divulgados pela mídia americana, o que reforça a deslegitimação do movimento “Time’s Up” e dos discursos proferidos no evento.

No enunciado seguinte, “É doloroso saber que uma mulher pode fazer uma acusação e tirar o emprego de um homem”, o discurso antifeminista é reforçado e condenado (“É algo pecaminoso”), e os frames que possivelmente são ativados na mente do interlocutor são referentes à dominação masculina. A ideia do homem provedor, do patriarcalismo, é bastante evidente nesse trecho, e a sua defesa pode ser interpretada como uma defesa das elites dominantes, que possuem acesso privilegiado ao discurso público e que, portanto, têm em mãos as principais ferramentas para manipular a população.

O fato de uma mulher denunciar os assédios sexuais publicamente compromete a dominação das elites, e, uma vez que elas são compostas pela maioria masculina, como no caso da esfera política e de outras cujos cargos de poder são ocupados por homens,

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274 seria inconveniente para os manipuladores defenderem esses assédios. Há, portanto, estratégias utilizadas para manipular as mentes dos interlocutores, como o apelo sentimental (“É doloroso”) e a ocultação de dados relevantes para confirmar e legitimar as acusações de assédio, a fim de enfatizar o lado que seja vantajoso para o manipulador.

De acordo com a Organização Internacional do Trabalho (OIT, 2010, p. 92), além de as mulheres terem salários bem inferiores aos dos homens, “As mulheres são o grupo mais vulnerável ao assédio moral e sexual. O assédio sexual no ambiente de trabalho é considerado um ato de poder, sendo o assediador um superior hierárquico da pessoa assediada”, e, tendo em vista que, segundo a mesma fonte, “as mulheres já compõem significativamente a demografia das corporações, mas ainda estão longe de equiparar, numericamente, os homens nos cargos de chefia e liderança” (OIT, 2010, p. 178), é notável que as denúncias de assédio sexual são realizadas majoritariamente por mulheres, como no caso das artistas e funcionárias que denunciaram Weinstein, ressaltando-se também a relação profissional existente entre eles. Além disso, muitas delas têm suas carreiras prejudicadas por denunciarem o assediador, porém o discurso manipulador omite essas informações para assegurar o efeito desejado.

Mais uma vez, verificamos a polarização entre Nós e os Outros, em “Mas isso é coisa de americano. Lá eles não têm noção de sexo”, generalizando determinadas ações (como, por exemplo, o fato de os Estados Unidos serem considerados o berço do capitalismo e por terem, muitas vezes, o estereótipo de workaholic, influenciaria nas questões sociais, incluindo a temática sexual) e atribuindo palavras negativas a eles, enquanto o Nós recebe características positivas.

Em “É ótimo passar em frente a uma obra e receber um elogio. Sou desse tempo”, denota-se um pensamento retrógrado sobre as famosas “cantadas”, implícitas pela referência à “obra” (=”construção”), sendo, no Brasil, um espaço culturalmente dominado pela figura masculina. Soma-se a isso a afirmação de que toda mulher deveria ser assediada para ser feliz, fato que ironiza as denúncias e o movimento contra o assédio sexual, colocando-o no patamar do elogio, ou seja, não deixa transparecer no discurso a gravidade do tema, pois isso implicaria em uma série de questões que prejudicariam a manutenção do poder da elite.

Por fim, “Viva os homens” enaltece, mais uma vez, a dominação masculina na sociedade, desconsiderando que a desigualdade de gêneros é prejudicial à própria

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275 mulher (lembramos aqui que o depoimento foi escrito por uma mulher). O enunciado mostra, assim, o poder da figura masculina, tendo sido apresentados apenas os pontos positivos dessa esfera social, sem demonstrar os atos e fatos negativos que provêm dessa desigualdade.

Algumas considerações

A partir das pesquisas e dos textos utilizados como referência, foi possível averiguar que a manipulação do discurso feminista na matéria selecionada para a análise ocorreu por meio de estratégias já esperadas, conforme o exposto por Van Dijk (2015). Tais estratégias discursivas não são de uso exclusivo para manipular as mentes dos interlocutores, sendo eficazes também em outras formas legítimas de comunicação.

Outro aspecto relevante observado na análise do depoimento é a importância do contexto, uma vez que, sem ele, a reportagem poderia ser interpretada como irônica, subvertendo o que foi dito e o que de fato se pretendeu dizer no enunciado. No entanto, por conta do contexto, foi possível notar que o depoimento não se valeu da ironia, pelo contrário, dialogou diretamente com outra reportagem, concordando com ela e enaltecendo pontos negativos do movimento feminista e das denúncias de assédio sexual.

A cognição é de extrema importância para que a manipulação possa ocorrer, pois o foco não são os modelos mentais pessoais, ou seja, o foco não é o indivíduo, e sim o coletivo e o social, portanto as representações sociais são relevantes para a efetivação desse processo. Desse modo, de acordo com Van Dijk (2015, p. 247), “É também neste sentido que a manipulação é uma prática discursiva que envolve tanto as dimensões cognitivas quanto as sociais”.

Por fim, as mídias jornalísticas são responsáveis pela propagação e reprodução dos mais variados discursos, tendo, assim, um papel importante para o compartilhamento de crenças sociais, entrelaçando questões ideológicas às questões de poder e de manipulação.

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276 AUTHIER-REVUZ, Jacqueline. Entre a transparência e a opacidade: um estudo enunciativo do sentido. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2004.

CHARAUDEAU, Patrick. A conquista da opinião pública: como o discurso manipula as escolhas políticas. Tradução: Angela M. S. Corrêa. São Paulo: Contexto, 2016. CHAUI, Marilena. O que é ideologia. São Paulo: Brasiliense, 2006.

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