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Vigilância eletrônica no direito processual penal Uma reflexão a partir de Michel Foucault

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Academic year: 2018

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Aldo Botana Menezes

Vigilância eletrônica no direito processual penal

Uma reflexão a partir de Michel Foucault

Mestrado em Filosofia

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Aldo Botana Menezes

Vigilância eletrônica no direito processual penal

Uma reflexão a partir de Michel Foucault

Mestrado em Filosofia

Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para a obtenção do título de Mestre em Filosofia, sob a orientação do Professor Doutor Márcio Alves da Fonseca.

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BANCA EXAMINADORA

_______________________________

_______________________________

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Ao Professor Doutor Márcio Alves da Fonseca, pela rigorosa e segura orientação.

À Banca Examinadora de Qualificação, composta pelas Professoras Doutoras Luci Mendes Bonini e Yolanda Gloria Gamboa Muñoz, pelas valorosas contribuições para o encaminhamento da pesquisa.

Ao ilustre Professor Doutor Edelcio Gonçalves de Souza, Coordenador do Programa de Pós-Graduação em Filosofia.

À competente e dedicada Siméia de Mello Araújo, Secretária do Programa de Pós-Graduação em Filosofia.

Ao saudoso Munir Jorge, por facilitar o cumprimento parcial dos créditos.

À amiga Tatiana Platzer do Amaral, pela atenção e fornecimento de material para a construção do trabalho.

Ao amigo e chefe Vitor Monacelli Fachinetti Bolla Júnior, pelo incentivo e apoio.

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Menezes, Aldo Botana. Vigilância eletrônica no direito processual penal: uma reflexão a partir de Michel Foucault. São Paulo. 2010. (Dissertação de Mestrado em Filosofia). Programa de Estudos Pós-graduados em Filosofia da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.

O trabalho analisa a vigilância eletrônica de indivíduos-condenados, precisamente no âmbito do direito processual penal, a partir da leitura de alguns escritos de Michel Foucault e Gilles Deleuze. A vigilância eletrônica sugere um singular interesse filosófico que gravita em torno da análise de temas referentes ao poder, à prisão, à lei, à norma, à sociedade da disciplina e à sociedade de controle. A analítica do poder em Foucault constitui o fio condutor desta pesquisa, na medida em que permite investigar os procedimentos vinculados à vigilância eletrônica que incidem sobre a conduta de cada indivíduo condenado pelo Estado. A análise do tema reporta-se à moderna atividade administrativa penitenciária, cuja forma de reprimenda penal conta com uma significativa transformação: o cumprimento da pena criminal pode se efetivar à distância, isto é, fora do ambiente da prisão. A partir das aludidas incursões filosóficas, reconhece-se que a vigilância eletrônica consiste numa forma disciplinar de exercício do poder, em que os efeitos de suas relações recaem sobre o corpo de cada condenado e se estendem para além da população carcerária. A existência de uma sociedade de controle sugere que os mecanismos disciplinares sejam ampliados, de maneira que se encontra inacabada a constituição dessa nova sociedade, desse novo quadro social que valoriza o “avanço” da tecnologia.

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Menezes, Aldo Botana. Eletronic monitoring in criminal case: a reflection based on Michel Foucault thoughts. São Paulo. 2010. (Maters Dissertation in Philosophy). Graduate Studies Program in Philosophy of the Pontifícia Universidade Católica of São Paulo.

From Michel Foucault and Gilles Deleuze ideas, this research analyzes the electronic individuals monitoring. People sentenced precisely under the law of criminal procedure. The electronic surveillance suggests a natural philosophical interest that revolves around the analysis of issues relating to power, prison, law, the society of discipline and control. Foucault critical texts about power are the guiding track of this research, in order that it allows investigating the procedures related to electronic surveillance that focus on the conduct of individuals sentenced by the State. The analysis of this subject relates to the modern prison management activity, whose way of criminal sanction counts on a significant transformation: the enforcement of criminal punishment can be effective even in distance, that is, outside the prison environment. From this philosophical pathway we recognize that the electronic surveillance is a form of exercise of disciplinary power, where the effects of their relationship fall onto the body of each condemned and extends beyond the prison population. The existence of a society of control suggests that disciplinary mechanisms are expanded in order that we can find an unfinished constitution of the new society, this new social overview that values the progress of technology.

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INTRODUÇÃO ... 1

CAPÍTULO 1 ANALÍTICA DO PODER EM MICHEL FOUCAULT.... 11

1.1 Para situar o poder... 11

1.2 Efeitos negativo e positivo do poder... 15

1.3 Saber, poder e verdade... 17

1.4 Poder e resistência... 21

1.5 Considerações gerais sobre os modelos de poder... 23

1.5.1 O modelo da soberania... 23

1.5.2 O modelo da disciplina... 30

1.5.3 O modelo do biopoder... 36

CAPÍTULO 2 EXERCÍCIO DO PODER DISCIPLINAR... 38

2.1 A Sociedade disciplinar... 38

2.1.1 Surgimento e funcionamento poder disciplinar... 40

2.1.1.1 Funções disciplinares... 45

2.1.1.2 Técnicas disciplinares... 47

2.1.2 O panótico de Bentham... 49

2.1.2.1 Uma interpretação de Foucault... 51

2.1.3 Instituições disciplinares... 57

2.1.4 A prisão... 61

CAPÍTULO 3 O SIGNIFICADO DA VIGILÂNCIA ELETRÔNICA... 67

3.1 Contexto... 67

3.1.1 Disposição legal da vigilância eletrônica... 75

3.1.1.1 Introdução... 75

3.1.1.2 Objetividade jurídica... 78

3.1.1.3 Hipóteses de utilização... 78

3.1.1.4 Aplicação obrigatória... 81

3.1.1.5 Implantação... 82

3.1.1.6 Perspectivas legislativas... 84

3.2 Análise... 85

3.2.1 Retomada das tecnologias de poder... 85

3.2.2 O modelo do controle... 88

3.2.3 O papel da resistência... 93

CONCLUSÃO ... 96

REFERÊNCIAS ... 100

ANEXO I Lei Federal nº 12.258, de 15 de junho de 2010... 104

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INTRODUÇÃO

Esta pesquisa tem por objetivo analisar a vigilância ou monitoramento eletrônico de indivíduos-condenados, instituto situado no domínio do direito processual penal, a partir da leitura de alguns escritos de Michel Foucault (1926-1984), pensador polêmico, produtivo e complexo, que se dedica à abordagem de diversificados temas que atravessam, por exemplo, as áreas do Direito e da Filosofia.

O tema apresenta articulações com o pensamento do filósofo Gilles Deleuze (1925-1995), na medida em que a referência a este pensador permite a discussão e, até mesmo, a ampliação da problemática deste trabalho relativamente ao exercício das tecnologias de poder analisadas.

Dessa forma, o estudo da vigilância eletrônica como medida jurídico-penal sugere um singular interesse filosófico que gravita em torno da análise de temas referentes aopoder, à prisão, à lei, à norma (norma segundo a perspectiva foucaultiana, e não em um sentido estritamente jurídico), à sociedade da disciplina, à sociedade de controle, o que acena para a construção de um autêntico trabalho de Filosofia do Direito.

Para tanto, o trabalho concentra-se no exame do livro Vigiar e

punir1, sem prejuízo de referência a outros textos, conferências e cursos do pensador e de outros autores, inclusive.

As incursões filosóficas de Foucault, no aspecto das demarcações temporais, situam-se nos períodos considerados como Renascimento (século XVI), Idade Clássica (séculos XVII e XVIII) e Idade Moderna (séculos XIX e XX). Sua demarcação geográfico-espacial refere-se ao Ocidente.

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É de se registrar que Foucault não identifica na história uma relação de continuidade ou progressividade dos saberes e das práticas sociais. A história é marcada por transformações que caracterizam cada momento. A constituição de um saber jurídico, por exemplo, é determinada por um conjunto de condições de possibilidades atinentes a cada época, ou seja, a constituição de um novo saber não sugere oreconhecimento de sua evolução histórica.

O eixo central das investigações de Foucault remete, de certa forma, ao problema da constituição do sujeito, de modo que seus estudiosos reconhecem, com certo consenso, que a trajetória filosófica por ele percorrida apresenta fases, momentos ou ênfases metodológicas, a saber: a ênfase da arqueologia (o sujeito tematizado na relação com o saber); a ênfase da genealogia (o sujeito tematizado na relação com o poder); e, por fim, a ênfase da ética (o sujeito tematizado na relação consigo mesmo).

A ênfase arqueológica analisa as condições de surgimento, mudança e desaparecimento de determinada episteme2. O procedimento arqueológico procura identificar o solo, a positividade de um saber, numa determinada época. Noutras palavras, assegura Muchail que no campo arqueológico pretende-se: buscar não sua origem ou seu sentido secreto, mas as condições de sua emergência, as regras que presidem seu

surgimento, seu funcionamento, suas mudanças, seu desaparecimento”3. A arqueologia de Foucault, portanto, estaria marcada pelas preocupações atreladas a um procedimento arqueológico que teria por objetivo escavar, verticalmente, as camadas descontínuas de discursos, a fim de verificar como se dá o surgimento e o desaparecimento de determinados saberes.

2 Entende-se por “episteme” um conjunto especificamente discursivo que se encontra em vigor em cada momento histórico. Trata-se de um solo histórico pertencente a cada época.

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A ênfase genealógica, por sua vez, identifica as condições que permitem a constituição de certos saberes e as relaciona com os mecanismos de poder que atuam em seu engendramento, em sua constituição. Em resumo, observa Muchail: “Poder-se-ia dizer que a arqueologia é como que

englobada e ampliada na genealogia”4. Neste momento, Foucault enfatiza formas de intervenção dos mecanismos de poder, certo que o marco inaugural de sua genealogia é identificado por Vigiar e punir, permitindo-lhe desenvolver o conceito de dispositivo5, expressão de conteúdo mais abrangente do que a noção de episteme, analisada na história arqueológica.

Por fim, a ênfase ética refere-se, num certo sentido, à análise da constituição do sujeito, o que, aliás, caracteriza uma preocupação, por vezes de forma velada, que acompanha Foucault em sua trajetória filosófica. Considera-se que o sujeito é constituído historicamente. É histórico, e não algo dado, preestabelecido, universal, visão que rompe com os pressupostos ligados à tradição filosófica de um sujeito como princípio de unidade. O domínio da ética, para Foucault, não é pautado por um conjunto de princípios, preceitos, valores ou normas capazes de dirigir a conduta de indivíduos no interior de uma sociedade. Ao contrário, a ética diz respeito ao campo das relações que o indivíduo estabelece consigo mesmo, isto é, a uma

“genealogia da relação consigo mesmo, e não uma genealogia dos códigos

morais ou dos atos”6.

Cabe registrar, todavia, que as ênfases das pesquisas foucaultianas possuem aproximações e distanciamentos, uma vez que tratam de movimentos que privilegiam algumas preocupações mediante certas abordagens às quais são submetidas.

4 MUCHAIL, S.T. Foucault, simplesmente. São Paulo: Loyola, 2004, p. 15.

5 A noção de “dispositivo” refere-se a uma rede que se pode estabelecer entre alguns elementos relacionados a discursos, práticas, instituições, decisões e diversas proposições. O termo é melhor desenvolvido no item 2.1.1, p. 41.

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Diante da fecundidade de temas ou preocupações que o pensamento de Foucault oferece, há que se impor certa demarcação relativa ao objeto desta pesquisa.

A pesquisa concentra-se nos estudos da ênfase genealógica, já que o tema do poder é recorrente e permite a investigação de mecanismos de poder relacionados à vigilância eletrônica.

Vale lembrar que o tema do poder relativamente ao conjunto dos trabalhos de Michel Foucault não é tratado com vistas à elaboração de uma teoria geral do poder.

A proposta de elaborar uma teoria do poder aponta para a existência de um objeto, passível de nomeação, apropriação, localização ou manipulação, o que é incompatível com a proposta foucaultiana.

Para Foucault, o poder é analisado como elemento capaz de explicitar a produção de saberes e a constituição de indivíduos na relação saber-poder. Dessa forma, fala-se em “analítica do poder”, e não teoria do poder. É, pois, o que se pode aquilatar da seguinte passagem que melhor detalha essa diferença:

A analítica do poder em Foucault não representa a elaboração de uma teoria sobre o poder, nem se constrói em apenas um de seus trabalhos. A diferença entre uma „teoria‟ e uma „analítica do poder‟ é aqui fundamental. Uma teoria do poder supõe, de algum modo, a identificação de um objeto. Seu ponto de partida seria a determinação de algo como o „ser‟ do poder, a partir do que, seria possível uma série de descrições de sua estrutura, suas regras de funcionamento, seus efeitos. Uma analítica do poder, por outro lado, não parte da pressuposição de uma essência, não procura definir „o‟ poder, mas se limita a perceber diferentes situações estratégicas a que se chama „poder‟7.

Portanto, a temática do poder segundo a abordagem realizada por Foucault mostra-se contrária às teorias clássicas do poder, já que sua

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analítica, em apertada síntese, mostra que: de um lado, destitui-se da figura do Estado o centro e a propriedade do poder; de outro lado, localiza-se o exercício do poder como relações de forças em todas as relações humanas, intensificadas em espaços institucionais.

O pensamento foucaultiano sobre o poder, então, corresponde a uma situação estratégica relacionada à vida cotidiana dos indivíduos.

Vê-se, assim, que as relações humanas são permeadas por relações de poder. É o que se identifica no interior de algumas instituições como a família (relação entre pais e filho), a escola (relação entre professor e aluno), a empresa (relação entre empregador e empregado) e a prisão (relação entre Estado e preso). Logo, o poder não é uma coisa. Não representa algo, uma pessoa, uma instituição ou órgão público. Trata-se de um nome dado a uma situação estratégica observada nas relações sociais.

Cabe agora indicar a organização dos principais elementos deste trabalho.

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O tema reporta-se à moderna atividade administrativa penitenciária, cuja forma de reprimenda penal conta com uma significativa transformação: o cumprimento da pena criminal pode se efetivar à distância, isto é, fora do ambiente da prisão, garantindo-se ao sentenciado as devidas condições para sua integração social, nos termos contemplados pela Lei de Execução Penal (Lei Federal nº 7.210/84)8.

Nessa vereda, o trabalho procura situar a vigilância eletrônica de indivíduos-condenados, instrumento que viabiliza o cumprimento das condições impostas por uma decisão judicial irrecorrível, a teor da Lei Federal nº 12.258, datada de 15.6.2010 e da Lei Paulista nº 12.906, datada de 14.04.2008, como se pode visualizar pelos Anexos I e II, respectivamente.

Os problemas da pesquisa são identificados com as seguintes indagações: a vigilância eletrônica de indivíduos constitui um instituto privilegiado para análise das relações, mecanismos e instrumentos de exercício de poder na atualidade, segundo os critérios da analítica do poder desenvolvida por Michel Foucault? O exercício do poder esgota-se nos órgãos públicos subordinados ao Estado? O exercício do poder atua, exclusivamente, por meio da violência? Diante das novas tecnologias de controle social, é possível pensar na articulação entre os mecanismos disciplinares e outras técnicas de poder? É possível reconhecer a substituição da sociedade da disciplina pela sociedade de controle? Em última análise, a pesquisa procura identificar a forma de exercício do poder manifestado pelo instituto jurídico da vigilância de indivíduos-condenados e analisar o funcionamento que ele assume no interior da atual sociedade.

As hipóteses do trabalho guardam sintonia com as questões formuladas, de maneira que são consideradas, a priori, as seguintes afirmativas: é possível discutir a vigilância eletrônica de indivíduos a partir

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do pensamento de Michel Foucault. A vigilância eletrônica consiste numa forma disciplinar de exercício do poder, em que os efeitos de suas relações recaem sobre o corpo de cada condenado e se estendem para além da população carcerária; o exercício do poder circula sobre o tecido social, não se vinculando apenas aos órgãos estatais, o que dá ensejo à formação de uma rede de poder normalizador; Foucault constata a efetividade da ideia de relações de forças que produzem determinados saberes, o que não limita a noção de poder a um aparelho que apenas interdita, domina, reprime. Há novas formas de controle social, novas configurações tecnológicas de controle que permitem a ampliação de efeitos decorrentes dos mecanismos disciplinares. Acredita-se, segundo o pensamento de Deleuze, na existência de uma sociedade de controle em que os mecanismos disciplinares são ampliados, de maneira que se encontra inacabada a constituição dessa nova sociedade, desse novo quadro social que valoriza o “avanço” da tecnologia.

A cada problema enunciado apresenta-se uma resposta possível, devidamente examinada no corpo do texto.

A justificativa do tema deve-se ao interesse no estudo sobre uma série de implicações entre o exercício do poder disciplinar, a sociedade de controle e o atual instituto da vigilância eletrônica de indivíduos, especialmente no âmbito do direito processual penal.

É manifesta a atualidade da vigilância eletrônica ante a recente edição da legislação mencionada, cuja regulamentação se encontra iminente.

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vítimas, testemunhas, co-autores, peritos, dentre outros sujeitos do processo, a fim de que se assegure a colheita de provas com melhores condições de segurança, impessoalidade e utilidade do teor probatório.

Diante disso, o novo instituto da vigilância autoriza que o indivíduo condenado definitivamente pela prática de uma infração penal possa cumprir a pena fora da instituição-prisão. Para tanto, o sistema garante o seu controle por intermédio da telemática, empregando-se o uso de tornozeleiras e pulseiras eletrônicas, dentre outros recursos devidamente fixados ao corpo do sentenciado, tudo de conformidade com a respectiva regulamentação jurídica.

O objetivo geral da dissertação consiste na proposta de analisar a vigilância eletrônica segundo uma forma disciplinar de poder e identificar a implicação que se estabelece aí com a sociedade de controle. Os objetivos específicos são: demonstrar como o exercício do poder disciplinar estabelece parâmetros para reconhecer que a vigilância eletrônica constitui um procedimento relacionado à sociedade de controle; examinar a constituição da sociedade disciplinar e o aparecimento da sociedade de controle; identificar a prisão como instituição de sequestro; constatar de que modo os efeitos de poder recaem sobre os corpos de cada condenado e se estendem para além da população carcerária; examinar a disposição legal relativa à vigilância eletrônica; por último, identificar a implicação entre as tecnologias de poder e estabelecer o significado da vigilância eletrônica no âmbito jurídico processual penal.

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Por arremate, indica-se a forma de desenvolvimento do trabalho, com a divisão de alguns assuntos, como segue.

No capítulo I - Analítica do poder em Michel Foucault -, apresentam-se algumas noções para melhor situar a temática do poder. Destacam-apresentam-se alguns pressupostos tradicionais refutados por Foucault. Identificam-se efeitos positivos e negativos decorrentes das relações de poder. Examinam-se temas pertinentes ao saber, ao poder e à verdade, promovendo-se suas devidas articulações. Identifica-se o papel da resistência nas relações de poder. Analisam-se as formas de exercício do poder, quais sejam: a soberania, a disciplina e o biopoder.

O capítulo II - O exercício do poder disciplinar - trata da identificação, características e funcionamento do poder disciplinar. Propõe-se, ainda, o exame da sociedade disciplinar e da prisão, instituição que ilustra a forma e o exercício dos mecanismos disciplinares de poder no ambiente prisional.

O capítulo III - O significado da vigilância eletrônica - é dividido em duas partes: contexto e análise.

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jurídica, os pressupostos, as hipóteses de aplicação obrigatória, a implantação e, por último, as perspectivas legislativas.

A segunda parte retoma, abreviadamente, as formas de exercício do poder: a soberania, a disciplina e o biopoder, com destaque para as noções de disciplina, norma e normalização. Compreende-se como se dá a formação da sociedade de controle e, por fim, identifica-se o contexto da vigilância eletrônica de indivíduos-condenados, a partir da noção de sociedade de controle, estabelecendo-se a implicação entre o tema da vigilância eletrônica, a forma disciplinar de exercício do poder e a temática da sociedade de controle.

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CAPÍTULO 1. ANALÍTICA DO PODER EM MICHEL FOUCAULT

1.1 Para situar o poder

Afigura-se oportuno assentar, desde logo, que a temática do poder na concepção de Foucault é abordada de um modo singular nos textos que integram a ênfase genealógica9.

A proposta de indicar uma introdução sobre a noção geral do poder seguramente pode reduzir ou, até mesmo, comprometer a riqueza do conteúdo dos escritos de Michel Foucault. Assim, a análise deste item pretende, ao menos, acentuar algumas considerações para melhor situar o estudo do poder.

É de rigor, inicialmente, identificar o significado das expressões teoria e analítica do poder.

A formulação de uma teoria do poder pressupõe, de algum modo, um objeto ou noção definidos, ao passo que a analítica do poder não procura

definir “o” poder, mas reconhecer diferentes situações estratégicas a que se chama poder. Foucault, assim, desenvolve uma analítica do poder, haja vista que não pretende elaborar uma teoria do poder. Interessam-lhe, isto sim, as práticas ou relações de poder constituídas historicamente de forma difusa, pulverizada, no interior da estrutura social.

Aliás, para Foucault, o “poder não existe”10. Há relações de força,

relações de poder. Trata-se de algo que se exerce e que irradia efeitos por toda a sociedade, uma vez que toda relação humana é pautada por relações

9 Adota-se o livro Vigiar e punir como referência principal e objeto de estudo ao longo dos capítulos I e II, especialmente.

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de poder. Ele considera, então, que as sociedades modernas apresentam

uma nova concepção de poder caracterizada por relações e efeitos não reconhecidos pelas tradicionais doutrinas. Analisa-se, pois, o

poder em suas estratégias, em seus mecanismos a que a todos sujeita. Neste percurso, ele assinala que:

De uma maneira geral, os mecanismos de poder nunca foram muito estudados na história. Estudaram-se as pessoas que detiveram o poder. Era a história anedótica dos reis, dos generais (...) Ora, o poder em suas estratégias, ao mesmo tempo gerais e sutis, em seus mecanismos, nunca foi muito estudado11.

A analítica do poder em Foucault privilegia o exame dos mecanismos de exercício do poder, afastando-se a proposta de uma compreensão teórica ou de uma ideia definitiva sobre a noção de poder.

Cabe, neste momento, apontar algumas noções tradicionais que foram abandonadas por Foucault.

A primeira noção a ser desconstruída relaciona-se à localização do poder no aparelho de Estado.

Foucault analisa o poder de uma maneira que recusa a ideia de localização, característica imanente ao modelo clássico de poder localizado na figura do Estado, do rei, ou de alguma classe social. Ele, aliás, constata que o poder aparece em vários lugares intimamente ligados a seus mecanismos de difusão.

O poder, dessa forma, não constitui privilégio de uma classe ou instituição, ao contrário do discurso filosófico marxista, que visualiza a ideia de poder concentrado nas mãos da classe dominante. A analítica foucaultiana não rejeita a constatação de classes sociais, especialmente a classe dominante. É o que indica o autor:

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Uma classe dominante não é uma abstração, mas também não é um dado prévio. Que uma classe se torne dominante, que ela assegure sua dominação e que esta dominação se reproduza, esses são efeitos de um certo número de táticas eficazes, sistemáticas, que funcionam no interior de grandes estratégias que asseguram essa dominação12.

Entretanto, o interesse não se limita a essa constatação, mas, sim, identifica o emprego e o funcionamento de algumas estratégias utilizadas nas relações de poder, isto é, examinam-se as múltiplas e difusas formas pelas quais o poder se exerce sobre os corpos dos sujeitos de cada relação.

Não há, por isso, uma localização privilegiada do poder. É o que se pode notar em Vigiar e punir. Nele, o exercício do poder atravessa todos os setores sociais, incluindo os próprios aparelhos de Estado. Logo, a forma disciplinar do poder, característica da sociedade disciplinar, não está localizada numa instituição ou num aparelho de Estado. Ela se exerce em rede na sociedade. Segue, nessa linha, a sintetização:

não tomar o poder como um fenômeno de dominação maciço e homogêneo de um indivíduo sobre os outros, de um grupo sobre os outros, de uma classe sobre as outras (...). O poder deve ser analisado como algo que circula, ou melhor, como algo que só funciona em cadeia. Nunca está localizado aqui ou ali, nunca está nas mãos de alguns, nunca é apropriado como uma riqueza ou um bem. O poder funciona e se exerce em rede. Nas suas malhas os indivíduos não só circulam, mas estão sempre em posição de exercer esse poder e de sofrer sua ação, nunca são o alvo inerte ou consentido do poder, são sempre centros de transmissão13.

O poder, em virtude disso, não é localizado e reconhecido pela via do Estado, capaz de operar efeitos gerais. Pelo contrário, localiza-se em todos os lugares da sociedade, não porque englobe tudo e sim porque provém de todos os lugares14. Esparrama-se pelo tecido social. É identificado

12 FOUCAULT, M. Sobre a história da sexualidade. In Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1979, p. 252.

13 Idem, ibid, p.183.

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a partir do exercício de mecanismos de poder relacionados à produção de saberes.

Todavia, muito embora se reconheça que o poder não seja localizável, já que se encontra em todos os lugares, é de se reconhecer que ele possui uma atuação local, pontual, precisa, e não global, universal, geral. A atuação do poder se dá em cada ponto da malha que recobre o tecido social, formado pelas relações e mecanismos que veiculam autênticas estratégias de poder.

A noção de propriedade ou titularidade do poder é igualmente repudiada. Foucault considera o poder menos como propriedade e mais como estratégia, afastando-o, peremptoriamente, como objeto, propriedade. Como ressalta Deleuze a respeito do poder: “ele é menos uma propriedade que uma estratégia, e seus efeitos não são atribuíveis a uma apropriação, mas a disposições, a manobras, táticas, técnicas, funcionamento15. Há, pois, a

recusa de um onthos. O poder não é uma coisa, que se possui e que pode ser objeto de um pacto, visto que não possui essência, nem tampouco uma característica. Com efeito, significa dizer que o poder é relação. Há relações de poder, relações de forças dominantes e dominadas, segundo posições estratégicas de poder. Nessa vereda, Fonseca analisa a concepção de poder nos seguintes termos:

Ora, é a partir desse ponto que a concepção de poder que Foucault desenvolve se diferencia de uma idéia de poder como um objeto definido e possível de ser identificado, localizado, manipulado e, por fim, nomeado. Segundo essa última concepção, seria possível calcular a presença e a ausência de poder, de tal forma que a parcela do mesmo que falte a um ponto em que se constate a sua aplicação abunde em outro, pois a sua existência como um onthos

definido permitiria esse tratamento. É a essa concepção ontológica de poder que Foucault opõe a idéia de relações de forças. O poder

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em si não existiria, mas sim feixes de relações de poder, de relações de forças16.

Foucault realiza, assim, uma investigação microfísica do poder e verifica os efeitos decorrentes de técnicas minudentes que incidem sobre o corpo do indivíduo e que se estendem ao organismo social.

1.2 Efeitos negativo e positivo do poder

Foucault pretende mapear como o exercício do poder não é garantido, exclusivamente, pelo emprego da repressão.

O poder não é algo que apenas proíbe, que impõe limites ou que, até mesmo, castiga. Não se trata de uma forma geral de poder identificada no domínio jurídico que indica uma proibição pelo veículo da lei ou de outra espécie normativa, estabelecendo-se o que é lícito ou ilícito, legal ou ilegal, permitido ou proibido. Nesse contexto, Fonseca retrata a forma geral do poder segundo o modelo jurídico:

Em todas as instâncias (do Estado à família, do príncipe ao pai, do tribunal à quinquilharia das punições cotidianas, das instâncias da dominação social às estruturas constitutivas do próprio sujeito) a forma geral do poder seria a forma do direito, uma vez que aquele se definiria entre o lícito e o ilícito17.

Recusa-se, com efeito, uma concepção apenas negativa do poder que o identifique com o Estado (aparelho eminentemente repressivo) e que se exerce sobre cada indivíduo por meio de violência física ou moral.

É, precisamente, o que Foucault pretende rejeitar: “É preciso parar

de sempre descrever os efeitos do poder em termos negativos: ele „exclui‟, ele „reprime‟, ele „recalca‟, ele „censura‟, ele „abstrai‟, ele „mascara‟, ele

„esconde‟”18.

16 FONSECA, M. A. Michel Foucault e a constituição do sujeito. São Paulo: Educ, 2003, p. 31. 17 FONSECA, M. A. Michel Foucault e o direito. São Paulo: Max Limonad, 2002, p. 98.

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Além disso, o poder apresenta uma dimensão positiva, produtiva, de sorte que as relações de poder produzem efeitos que atuam sobre a conduta dos indivíduos de maneira diferenciada, já que se exerce um aprimoramento do corpo. Assim, Machado afirma que O poder possui uma eficácia produtiva (...) uma positividade. E é justamente esse a aspecto que explica o fato de que tem alvo o corpo humano, não para supliciá-lo, mutilá-lo, mas para aprimorá-lo, adestrá-lo19.

Revelam-se, então, efeitos positivos de poder que se caracterizam pela produção de comportamentos. Efeitos de poder que produzem indivíduos politicamente obedientes, de maneira calculada e organizada, com a função de tornar o corpo tanto mais obediente quanto mais útil.

Em termos de utilidade, o corpo desenvolve diversas e melhores aptidões e atinge, com isso, ao mesmo tempo, uma maior capacidade produtiva. De outro lado, em termos políticos, a força empregada é conduzida para fins de sujeição e obediência do indivíduo.

Trata-se de uma microfísica do poder que constitui relações sociais e garante o seu funcionamento no interior de instituições modernas por meio de instrumentos de vigilância (que submetem o indivíduo a uma visibilidade contínua) e técnicas de utilização do corpo, divisão do espaço e aproveitamento do tempo.

Foucault, em Vigiar e punir, descreve a história das prisões no Ocidente e revela o nascimento de uma sociedade disciplinar. Ele analisa as disciplinas como técnicas de controle e adestramento de indivíduos que a partir do século XVIII começam a proliferar no asilo, no exército, na escola e nas prisões, todas voltadas a promover especialmente a correção dos

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indivíduos, segundo determinado comportamento que a sociedade da época passou a julgar certo ou errado em função de suas conveniências.

Inaugura-se, portanto, uma nova economia de poder que se caracteriza muito mais por produzir, educar e adestrar o indivíduo do que apenas reprimi-lo.

1.3 Saber, poder e verdade

Os temas relacionados ao saber, poder e verdade podem ser identificados pelas ênfases metodológicas relacionadas à abordagem foucaultiana, como já assinalado na introdução.

O primeiro eixo (arqueológico) trata da constituição histórica de saberes qualificados como verdadeiros e a desqualificação de outros. Daí, portanto, falar-se em eixo da verdade. As descrições de Foucault se dirigem a discursos que constituem saberes em determinados períodos históricos, em determinadas sociedades. Investiga-se o conjunto de regras que presidem a produção de conhecimentos verdadeiros.

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instituições (nível extradiscursivo). É, nessa linha, a abordagem que se realiza em Vigiar e punir quanto à produção de saberes considerados jurídicos.

Por fim, o terceiro eixo refere-se à dimensão ética. Fala-se aqui em eixo do sujeito. Discutem-se os procedimentos que concorrem para a constituição do sujeito. Verifica-se a forma de constituição do indivíduo moderno como objeto dócil e útil, a partir de mecanismos disciplinares de poder.

Vê-se como os deslocamentos do pensamento de Foucault, marca da mobilidade do estilo estratégico que o caracteriza, acentuam temas relacionados ao saber, ao poder e à verdade. Cabe analisar, contudo, de maneira mais detida, a implicação entre esses elementos.

Tradicionalmente, o tema da verdade fundamenta-se na adoção de categorias lógicas e universais para explicação de alguns fenômenos. Foucault, não obstante, analisa-o de um ângulo peculiar. Não há preocupação acerca da essência ou origem da verdade. O problema da verdade, entretanto, representa um eixo de suas preocupações. A verdade é sempre

“produzida” historicamente, de maneira que há verdades diferentes em diferentes momentos históricos de cada sociedade. Há, portanto, alguns regimes que conservam o que é ou não é verdadeiro. Assim, não há como dissociar a preocupação da verdade com a história.

A questão da verdade, associada aos saberes produzidos no domínio do direito, merece certo destaque. As cinco conferências proferidas por Michel Foucault, na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, entre os dias 23 e 25 de maio de 1973, transformadas no livro A verdade e as

formas jurídicas20, discutem os parâmetros históricos de aferição da verdade

em processos judiciais, demonstrando a forma de julgamento dos homens à luz dos atos praticados, como sucederam diversas formas de subjetividade,

(26)

mecanismos de poder e diversos saberes ao longo da história, com destaque de suas singularidades.

As diferentes formas de saber, com efeito, estão vinculadas às diferentes condições de possibilidade de cada momento. O saber, portanto, está disposto à mobilidade. É produzido no contexto do exercício do poder. Logo, poder e saber estão intimamente ligados. Assim, a produção de saberes necessariamente se relaciona com o exercício do poder.

Vale lembrar, nesse contexto, a necessária articulação entre poder e saber:

existe, e tentei fazê-la aparecer, uma perpétua articulação do poder com o saber e do saber com o poder. Não nos podemos contentar em dizer que o poder tem necessidade de tal ou tal descoberta, desta ou daquela forma de saber, mas que exercer o poder cria objetos de saber, os faz emergir, acumula informações e as utiliza. Não se pode compreender nada sobre o saber econômico se não se sabe como se exercia, quotidianamente, o poder, e o poder econômico. O exercício do poder cria perpetuamente saber e, inversamente, o saber acarreta efeito de poder. (...) O humanismo moderno se engana, assim, ao estabelecer a separação entre saber e poder. Eles estão integrados, e não se trata de sonhar com um momento em que o saber não dependeria mais de poder, o que seria uma maneira de reproduzir, sob a forma utópica, o mesmo humanismo. Não é possível que o poder se exerça sem saber, não é possível que o saber não engendre poder21.

Por isso, os saberes (e não o conhecimento ou a ciência) nunca estão desarticulados das relações de poder. Não há, portanto, relação humana dissociada da relação saber-poder.

O tema da verdade, por sua vez, não existe distanciado do tema do poder. A verdade, isto sim, sofre implicações de poder contidas nos mecanismos da sociedade que a produziu. Deleuze, nesse sentido, afirma

(27)

que “A verdade não supõe um método para ser descoberta, mas procedimentos, mecanismos e processos”22.

A propósito, noutra passagem, Foucault analisa a produção da verdade dando conta de seu caráter histórico e temporal: Cada sociedade tem seu regime de verdade, sua política geralde verdade: isto é, os tipos de discursos que ela acolhe e faz funcionar como verdadeiros”23. Constata-se,

dessa forma, como a verdade circula em cada sociedade, sempre produzida como efeitodepoder, elaborando discursos reconhecidos como verdadeiros.

A concepção foucaultiana de verdade recusa categorias tradicionais que se fundam numa verdade universal. Não há que se perquirir sobre a

procura “da” verdade. Há, de fato, diferentes modos de produção da verdade que são históricos, de modo que todo discurso considerado verdadeiro ou falso é produzido de acordo com o contexto social e possui em sua história a marca do exercício do poder. Daí a tarefa da genealogia tendente a analisar os regimes de produção da verdade em cada momento histórico, levando-se em conta determinados regimes de poder, a fim de combater a ideia de um discurso único e universal.

O procedimento genealógico não pretende apenas analisar os discursos, mas, sim, representa uma forma de ativar saberes que serão utilizados para contrapor a noção de um discurso único considerado verdadeiro, desconstruindo a ideia de verdade absoluta e a-histórica. Nesse sentido, Foucault destaca que a genealogia é a tática que, a partir da discursividade local assim descrita, ativa os saberes libertos da sujeição que emergem desta discursividade24.

22 DELEUZE, G. Conversações: 1972- 1990. Um retrato de Foucault. Rio de Janeiro: Vozes, 2010, p. 149.

(28)

Em suma, a verdade não possui uma essência. Toda verdade é histórica e o poder atua de forma marcante na constituição de um saber e de um regime de verdade de cada época.

1.4 Poder e resistência

A analítica de Foucault volta-se a uma economia de poder que privilegia a análise de relações de poder sob o ponto de vista da empiricidade, isto é, algo que faça parte da experiência, da observação da própria vida. Cuida-se de uma discussão relacionada à vida, e não simplesmente atrelada ao domínio teórico ou científico.

As relações de poder, de força, em Foucault, ocupam um lugar de destaque em seu pensamento, na medida em que pulveriza o poder e, ao

mesmo tempo, estabelece diversas formas de resistência. Deleuze assinala que o pensamento foucaultiano “pôs a nu todas as relações de poder, em toda parte onde se exerciam, isto é, em toda parte. Antes Foucault tinha analisado sobretudo as formas, agora ele passa às relações de força subjacentes às formas”25, o que leva Foucault a ingressar na análise do

elemento conceitual chamado microfísico26.

Para Foucault, há relações de poder em toda a vida social. Por sua vez, todas as relações de poder operam efeitos sobre a ação dos próprios sujeitos a ela submetidos. O poder não se limita à violência, ou melhor, às relações de força com um ser ou objeto. O poder, ao contrário, trata de relações de força com outras forças que se encontram afetadas a ele. Nessa linha, Deleuze afirma que as “relações de força não se reduzem à violência, mas constituem ações sobre ações, ou seja, atos, tais como “incitar, induzir,

25 DELEUZE, G. Conversações: 1972- 1990. Um retrato de Foucault. Rio de Janeiro: Vozes, 2010, p. 134.

(29)

desviar, facilitar ou dificultar, ampliar ou limitar, tornar mais ou menos

provável”27.

As relações de poder (relações de forças, relações de luta, relações de resistência) se estabelecem entre o corpo do poder e os corpos sobre os quais ele investe, de maneira que cada modalidade de poder responde a um tipo de resistência, com indicação de transformações, mudanças. É de se invocar, assim, situações de resistência como contraponto às relações de poder.

Conclui-se que a resistência é coexistente ao exercício do poder. Poder e resistência se interagem. Portanto, onde há poder, há resistência, há relações de força. O poder, dessa forma, é imanente à resistência.

É de se consignar que a expressão resistência não implica substância. É o que afirma Foucault: “Não coloco uma substância da resistência face a uma substância do poder. Digo simplesmente: a partir do momento em que há uma relação de poder, há uma possibilidade de resistência28.

Cabe observar que nos investimentos do poder sobre o corpo há espaço para a criação de resistência, combates, lutas, reivindicações, já que o exercício do poder não permite um aprisionamento e “podemos sempre modificar sua dominação em condições determinadas e segundo estratégia

precisa”29.

Trata-se, pois, de pensar nas relações de poder a partir do confronto das estratégias de poder/resistência, de modo que o exercício do poder encontra-se microfisicamente difundido em diversas formas, por intermédio de uma rede de relações múltiplas de forças.

27 DELEUZE, G. Conversações: 1972- 1990. A vida como obra de arte. Rio de Janeiro: Vozes, 2010, p. 124.

(30)

Há, enfim, oposições de forças entre poder e resistência que não

incidem exclusivamente sobre uma instituição ou uma classe social, mas recaem sob uma forma de exercício sobre a vida cotidiana de cada indivíduo.

Diante disso, o estudo das relações de luta relaciona-se, ainda que indiretamente, a processos que incidem sobre o indivíduo e que, de algum modo, atuam em sua constituição.

Vê-se, então, a importância das relações de forças no âmbito da analítica do poder, uma vez que atuariam por meio de mecanismos disciplinares e culminariam na produção do indivíduo e, por conseguinte, na constituição da sociedade moderna.

Assim, a partir da analítica de Foucault, o poder deve ser pensado como confronto das estratégias de poder/resistência. Entende-se que as relações de força ampliam-se para além dos aparelhos de Estado e atuam de forma multidirecional, difusa, garantindo-se uma capilaridade suficiente para atingir todos os indivíduos.

1.5 Considerações gerais sobre os modelos de poder

À luz das considerações realizadas, importa analisar em linhas gerais como sucede o exercício do poder e seus mecanismos, segundo a concepção foucaultiana. Examinam-se, pois, o poder de soberania, o poder disciplinar e o modelo do biopoder.

1.5.1 O modelo da soberania

(31)

Identifica-se o poder soberano pela marca visível do rei, autoridade dotada de prerrogativas absolutas de governo, com isenção do dever de prestação de contas à população, inclusive.

A soberania do monarca veiculava um discurso do direito, intimamente ligado aos termos da lei, que estabelecia uma regra enquanto efeito da vontade soberana incontestável. O soberano era o elemento central que garantia a manutenção e a aplicação do sistema jurídico, certo que suas ações não se submetiam a instâncias de controle interno ou externo.

Atribuía-se ao soberano, por exemplo, o exercício regular do direito de matar, garantindo-se o “direito de espada, desse poder absoluto de vida ou morte de que trata o direito romano ao se referir ao merum imperium, direito em virtude do qual o príncipe faz executar sua lei ordenando a punição do

crime”30. O direito de vida ou morte podia ser representado pela utilização da técnica do suplício.

A prática do suplício, forma de punição elementar do modelo soberano, imposta aos corpos dos condenados, caracterizou-se por toda a idade clássica como sinônimo de direito monárquico, fundamento para a aplicação da lei naquele período.

A punição se concretizava de maneira pública. Entretanto, o processo que lastreava a condenação mantinha-se sob sigilo. O direito de acesso aos documentos era negado. Desconhecia-se a qualificação dos denunciantes. A colheita de provas se desenvolvia sem o conhecimento do acusado. Negava-se a possibilidade de constituição de um advogado.

De outro lado, o anonimato das denúncias era garantido. O teor da acusação era reservado apenas ao magistrado. A prática da tortura garantia a confissão, meio de prova de validade induvidosa. O rei, portanto, detinha o

(32)

poder absoluto de julgar. Era nítida, em suma, a restrição de direitos e garantias dos súditos.

A imposição do suplício, ostensivo e suntuoso, veiculava a pretensão de trazer à luz a verdade do crime”31 e reconstruir a dignidade do rei atingida pelo súdito rebelde e infrator da lei. Dessa forma, o corpo do condenado, objeto do suplício, constituía-se numa “coisa do rei, sobre a qual

o soberano imprimia sua marca e deixava cair os efeitos de seu poder”32.

A infração da lei transformava o indivíduo em inimigo do sistema jurídico, o que justificava o cumprimento rigoroso da reprimenda. A imposição de castigos, com requintes de crueldade, por vezes, contava com a participação do povo, muito embora se atribuísse a titularidade do poder de punir ao soberano. Assim Foucault descreve esse mecanismo da seguinte forma:

O condenado, depois de ter andado muito tempo, exposto, humilhado, várias vezes lembrando do horror de seu crime, é oferecido aos insultos, às vezes aos ataques dos espectadores. Na vingança do soberano, a do povo era chamada a se insinuar. Não que este seja o fundamento daquela e que o rei deva à sua maneira reduzir a vindita do povo; é antes o povo que deve trazer sua participação ao rei quando este se „vingar de seus inimigos‟, até e principalmente quando esses inimigos estão no meio do povo33. Com efeito, a participação popular no suplício contava com a oposição de limites do soberano, indicando-o como exclusiva fonte do direito e da justiça. Todavia, Foucault destacou os efeitos de poder dessa medida e estabeleceu a advertência de que o suplício, em última análise, não restabelecia a justiça; reativava o poder34.

No suplício, o exercício do poder recaía diretamente sobre o corpo do condenado, de maneira que o intenso sofrimento e a exposição pública

31 FOUCAULT, M. Vigiar e punir. Rio de Janeiro: Vozes, 1997, p. 32. 32 Idem, ibid, p. 92.

(33)

caracterizavam a reprimenda como autêntica prática da justiça, uma vez que

“o corpo várias vezes supliciado sintetiza a realidade dos fatos e a verdade da informação, dos atos do processo e do discurso do criminoso, do crime e da punição 35.

O sentimento de vingança pública, validado pelo suplício, foi disseminado por vários países. No Brasil, as condutas infracionais e as respectivas sanções estavam contempladas nas Ordenações do Reino36,

quase sempre primadas pelos objetivos de “intimidar a população e reafirmar o poder soberano”37. A título de exemplo, indica-se a condenação de Joaquim

José da Silva Xavier, o Tiradentes, datada de 19 de abril de 1792, pela prática do crime de lesa-majestade (traição contra a pessoa do rei), definido nas Ordenações Filipinas, Livro V, Título 6, sujeitando-o à pena de morte.

Por sua vez, os procedimentos jurídicos apenas tinham o condão de evidenciar a legitimidade do poder soberano. A função da justiça penal, basicamente, atuava como uma pretensão punitiva qualificada pela sujeição dos súditos e indicação da força do rei, inexistindo qualquer interesse de corrigir o condenado, haja vista a predominância da pena de morte.

Assim, o problema do direito penal na época clássica dizia respeito ao regime imposto pelo modelo soberano. É, aliás, o que foi identificado por Foucault: “a teoria do direito, da Idade Média em diante, tem essencialmente o papel de fixar a legitimidade do poder; isto é, o problema maior em torno do qual se organiza toda a teoria do direito é o da soberania38.

35 FOUCAULT, M. Vigiar e punir. Rio de Janeiro: Vozes, 1997, p. 45.

36 O termo “Ordenações do Reino” ou “Era das Ordenações” significava a coletânea de preceitos jurídicos oficiais que vigoraram no direito português e espanhol. Tais Ordenações tinham a seguinte composição: Ordenações Afonsinas (1446), Ordenações Manuelinas (1505) e Ordenações Filipinas (1603).

37 MARQUES, Oswaldo Henrique Duek. Fundamentos da pena. Rio de Janeiro: Vozes, 1997, p.73. 38 FOUCAULT, M. Soberania e disciplina. In Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1979, p.

(34)

Todavia, a marca visível da arbitrariedade mostrou-se inaceitável por parte da população. Por volta da segunda metade do século XVII, o sistema jurídico-penal, pautado pelo sofrimento e morte de condenados, acabou por enfraquecer notadamente pelos seguintes fatores: aumento da criminalidade, malgrado o cruel e vigoroso sistema de punição; diminuição de mão-de-obra para o pólo industrial; e resistência à manutenção de privilégios concedidos à nobreza e ao rei.

O bárbaro sistema punitivo do absolutismo, gradativamente, é resistido pelo povo. No afã de melhor retratar esse momento histórico, cabe registrar a passagem em que Foucault descreve um episódio ocorrido no fim do século XVII, em Avignon, em que o assassino Pierre du Fort recusou-se ao enforcamento, como segue:

Vendo isso o carrasco lhe cobriu o rosto com seu gibão e lhe batia por baixo do joelho, sobre o estômago e a barriga. Vendo o povo que ele o fazia sofrer demais e pensando mesmo que o degolava com sua baioneta – tomando de compaixão pelo paciente e de fúria contra o carrasco, jogou pedras contra ele; enquanto isso, o carrasco abriu as duas escadas e jogou a vítima para baixo, saltando-lhe sobre os ombros e pisando-a enquanto a mulher do dito carrasco o puxava pelos pés por baixo da forca. Fizeram-lhe sair sangue da boca. Mas a chuva de pedras contra ele aumentou (...). E a multidão se lançou sobre ele. Este se levantou com uma baioneta na mão, ameaçando matar quem se aproximasse; mas, depois de cair e se levantar várias vezes, apanhou muito do povo que o emporcalhou e o afogou no riacho, arrastando-o em seguida com grande paixão e fúria até a Universidade e de lá até o cemitério dos Cordeliers39.

As tensões sociais aumentaram e o espetáculo punitivo desapareceu. As punições passaram a ser perpetradas de forma velada. Aos poucos, o sentimento declarado de vingança pública enfraquecia. Apregoava-se a ideia de que a pena devesse prestigiar a recuperação do criminoso e se reforçava o interesse econômico tendente a explorar a mão-de-obra do condenado, o que tornou mais freqüente o cumprimento da pena por meio de trabalhos forçados.

(35)

Por volta da segunda metade do século XVIII, intensificaram-se movimentos políticos de combate ao sistema repressivo da época, e é no Iluminismo que ocorre uma redefinição das relações entre indivíduos e Estado.

De outra parte, o direito penal propôs a revisão da legislação caracterizada pela crueldade e sugeriu um tratamento mais humanitário aos condenados, atendendo-se aos princípios da legalidade, proporcionalidade e humanização das penas. Destacaram-se alguns expoentes desse movimento de reforma, como Cesare Bonesana40 (1738-1774) e Jeremy Bentham41

(1748-1832), autores que contribuíram particularmente para o estudo da instituição-prisão.

A reforma do direito penal garantiu práticas punitivas menos exageradas e visivelmente cruéis, reduziu os custos econômicos das antigas práticas supliciais e adotou uma execução punitiva razoável, sutil e não menos eficiente.

Daí, pois, as novas tarefas do direito penal: diminuir as penas corporais e difundir a ideia de prisão acompanhada de trabalho, a fim de cumprir os ideais mercantilistas da época. A via para o cumprimento dos objetivos seria a adoção de uma nova forma de poder: a disciplina. Uma nova tecnologia de poder localizada no interior de instituições prisionais capaz de realizar uma adequação, uma conformação no corpo do recluso, sujeitando-o a uma disciplina, a uma normalização.

Dá-se uma nova redistribuição do poder, um novo poder específico de gestão da pena. É a noção de “não punir menos, mas punir melhor; punir talvez com uma severidade atenuada, mas para punir com mais

40 BONESANA, Cesare. Dos delitos e das penas. São Paulo: Vozes, Hemus, 1998.

(36)

universalidade e necessidade; inserir mais profundamente no corpo social o

poder de punir”42.

Trata-se de uma nova tecnologia muito mais minuciosa, capciosa e astuta relativamente àquela vinculada à concepção de Estado soberano. Um novo poder que se mantém em funcionamento, de certo modo, no plano da invisibilidade, já que elide a figura centralizada e personificada do soberano, o que garantia maior controle e eficiência sobre os que a ela se sujeitavam.

Estabelecem-se, portanto, novas relações de poder formadas por um quadro de elementos históricos, sociais e econômicos caracterizados por constituir, educar, adestrar e treinar os corpos dos homens. É o que Foucault identifica:

No projeto dos juristas reformadores, a punição é um processo para requalificar os indivíduos como sujeitos de direito; utiliza, não marcas, mas sinais, conjuntos codificados de representações, cuja circulação deve ser realizada o mais rapidamente possível. Enfim no projeto de instituição carcerária que se elabora, a punição é uma técnica de coerção dos indivíduos; ela utiliza processos de treinamento do corpo – não sinais – com os traços que deixa, sob os hábitos, no comportamento; e ela supõe a implantação de um poder específico de gestão da pena43.

O exercício do poder não se caracteriza apenas por um dever de obediência, um modo de exclusivamente reprimir, “um poder muito oneroso e

com poucos resultados”44, mas um poder que pretendia tornar os corpos mais

dóceis, maleáveis e, sobretudo, economicamente produtivos.

A descrição do mecanismo disciplinar de poder sobre o corpo humano é realizada por Foucault nos seguintes termos:

O corpo humano entra numa maquinaria de poder que o esquadrinha, o desarticula e o recompõe. Uma “anatomia política”, que é também igualmente uma “mecânica do poder”, está nascendo;

42 FOUCAULT, M. Vigiar e punir. Rio de Janeiro: Vozes, 1997, p 70. 43 Idem, ibid, p. 108.

(37)

ela define como se pode ter domínio sobre o corpo dos outros, não simplesmente para que façam o que se quer, mas para que operem como se quer, com as técnicas, segundo a rapidez e a eficácia que se determina. A disciplina fabrica assim corpos submissos exercitados, corpos “dóceis”. A disciplina aumenta as forças do corpo (em termos econômicos de utilidade) e diminui essas mesmas forças (em termos políticos de obediência)45.

O corpo dos indivíduos, pois, submetia-se a relações de poder que se intensificavam em espaços institucionais, com o propósito de que seja repartido em circuitos homogêneos que possam ser exercidos em toda parte, de maneira contínua e até o mais fino grão do corpo social46, garantindo-se

uma maior extensão dos efeitos disciplinares por toda a sociedade.

A tecnologia disciplinar e seus efeitos fazem parte do conteúdo tratado no item subsequente.

1.5.2 O modelo da disciplina

Foucault identifica no decorrer dos séculos XVII e XVIII algumas transformações relativas às relações de poder e constata particularmente a multiplicação de instituições por todo o corpo social.

Reconhece-se, no interior de instituições sociais como a prisão, a escola, a fábrica, o exército e o hospital, a presença de uma técnica específica de poder comum a todas elas: a tecnologia da disciplina ou poder disciplinar.

Foucault pretende demonstrar como as instituições não representam apenas organismos administrativos neutros. Ao contrário, procura identificá-las como espaços institucionais organizados por instrumentos disciplinares sustentados por relações de saber-poder que teriam por finalidade a correção de indivíduos.

(38)

O poder disciplinar atua no interior de instituições modernas, constituindo relações específicas de poder em cada uma delas. É o que se vê, por exemplo, nas instituições penitenciárias onde o corpo do indivíduo é submetido a uma vigilância e coerção ininterruptas, a fim de mantê-lo em funcionamento normal, de acordo com um código pautado pela normalização, e não pela lei, capaz de atingir seus comportamentos, gestos e atitudes, com influência na rapidez e na eficiência da execução de tarefas. Nessas instituições, as disciplinas são caracterizadas pela obediência, coerção e utilidade.

No regime disciplinar, a arte de punir não pretende nem a expiação nem tampouco a repressão. Para Foucault, “A penalidade perpétua que

atravessa todos os pontos e controla todos os instantes das instituições disciplinares compara, diferencia, hierarquiza, exclui. Em uma palavra, ela normaliza47.

Inaugura-se, com o surgimento da tecnologia disciplinar, o exercício do poder da norma48, que substitui o papel que a lei desempenhava na

concepção do modelo da soberania. A tecnologia da disciplina é, de certo modo, veiculada por um discurso estranho ao da lei e que estabelece uma regra, uma norma, um código de normalização de conduta.

A norma, segundo a tecnologia disciplinar, mostra-se mais ampla do que o sentido da lei. A norma define um padrão aceitável de conduta marcado pela docilidade e utilidade. Portanto, normalizar é investir para que o indivíduo se conforme a um padrão preestabelecido, a uma norma preconcebida. Normalizar o indivíduo é adequá-lo a um padrão, a uma norma de conteúdo disciplinar. Foucault esclarece que:

47 FOUCAULT, M. Vigiar e punir. Rio de Janeiro: Vozes, 1997, p.153.

(39)

As disciplinas são portadoras de um discurso que não pode ser o do direito; o discurso da disciplina é alheio ao da lei e da regra enquanto efeito da vontade soberana. As disciplinas veicularão um discurso que será o da regra, não da regra jurídica derivada da soberania, mas o da regra “natural”, quer dizer, da norma; definirão um código que não será o da lei, mas o da normalização49.

A normalização concretiza-se por meio de um controle minudente sobre o corpo do indivíduo, atribuindo-se a ele uma série de competências e habilidades tendentes ao pleno desenvolvimento do trabalho e da produção. É o quanto destaca Foucault: “Já nas instâncias de controle que surgem a partir do século XIX, o corpo adquire uma significação totalmente diferente; ele não é mais o que deve ser supliciado, mas o que deve adquirir aptidões, receber certo número de qualidades, qualificar-se como capaz de trabalhar”50.

Pode-se dizer que a normalização é o núcleo de um mecanismo caracterizado por diagnósticos e julgamentos concernentes à formação e cumprimento da norma disciplinar pelos indivíduos. A normalização fabrica indivíduos e os fixa a um aparelho de controle e produção.

Assim, a instituição-prisão, como mecanismo operador de adestramento, ilustra a normalização que ela desempenha e permite a produção de saberes sobre o comportamento do indivíduo no ambiente prisional.

A disciplina, portanto, representa um tipo de poder cujo domínio é o da materialidade dos corpos com o objetivo direcionado à normalização. Por sua vez, o domínio do direito não escapa ao modelo disciplinar-normalizador. É, pois, o que levou Fonseca a identificar a imagem do direito associado à normalização, nos seguintes termos:

a disciplina não pode ser identificada como uma instituição, ou mesmo com um tipo de instituição, ela é mais precisamente um

49 FOUCAULT, M. Soberania e Disciplina. In Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1979, p. 189.

(40)

mecanismo de poder, uma modalidade de seu exercício, que pode ser sintetizada pela palavra “normalização”. A disciplina é uma modalidade de poder que normaliza. Ela é a primeira forma de normalização descrita por Foucault. Seu domínio é aquele da materialidade dos corpos e da organicidade das instituições. E a não-independência desse poder disciplinar-normalizador em relação às estruturas jurídicas, em relação às práticas e aos saberes ditos jurídicos é que permite a caracterização da segunda imagem do direito presente em seu pensamento, a imagem de um direito normalizado-normalizador (...) Normalizado, porque investido, penetrado pelas práticas da norma e, ao mesmo tempo, normalizador, porque agente e vetor da normalização51.

Os indivíduos submetidos à tecnologia disciplinar se transformam em agentes de normalização que passam a exigir, para si e para os outros, uma adequação às normas disciplinares. Dá-se a transformação, a conformação, em agentes da relação poder-saber que os constitui como indivíduos normais. É assim que o poder perpassa o corpo, o comportamento e os sentimentos dos indivíduos.

Na tecnologia da disciplina não há um centro único de relações de poder. A disciplina é qualificada como um poder individualizante, uma vez que ela se exerce sobre o corpo de cada indivíduo, de modo que os efeitos de poder são pulverizados, distribuídos, multiplicados e materializados nos corpos dos indivíduos a ele sujeitados, mediante técnicas disciplinares capazes de, sobretudo, formarem uma relação que os torne mais obedientes e mais úteis. Segundo Foucault:

O momento histórico das disciplinas é o momento em que nasce uma arte do corpo humano, que visa não unicamente o aumento de suas habilidades, nem tampouco aprofundar sua sujeição, mas a formação de uma relação que no mesmo mecanismo o torna tanto mais obediente quanto é mais útil, e inversamente. Forma-se então uma política das coerções que são um trabalho sobre o corpo, uma manipulação calculada de seus elementos, de seus gestos, de seus comportamentos52.

(41)

O surgimento da disciplina, como a descoberta do corpo enquanto objeto e alvo de exercício do poder, é ilustrado por intermédio da figura do soldado descrita nos séculos XVII e XVIII, como segue:

Eis como ainda no início do século XVII se descrevia a figura ideal do soldado. O soldado é antes de tudo alguém que se reconhece de longe, que leva os sinais naturais de seu vigor e coragem, as marcas também de seu orgulho; seu corpo é o brasão de sua força e de sua valentia; e se é verdade que deve aprender aos poucos os ofícios das armas – essencialmente lutando – as manobras como a marcha, as atitudes como o porte da cabeça se originam, em boa parte de uma retórica corporal da honra53.

Foucault identifica, na segunda metade do século XVIII, a transformação operada pela tecnologia disciplinar e sinaliza que:

o soldado tornou-se algo que se fabrica; de uma massa informe, de um corpo inapto, faz-se a máquina de que se precisa, corrigiram-se aos poucos as posturas; lentamente uma coação calculada percorre cada parte do corpo, se assenhoreia dele, dobra o conjunto, torna-o perpetuamente disponível, e se prolonga, em silêncio, no automatismo dos hábitos; em resumo, foi „expulso o camponês‟ e lhe foi dada a „fisionomia de soldado‟54.

A especificidade dos efeitos de poder, numa dimensão produtiva, é visível porque incide sobre o corpo do indivíduo, alvo e objeto de correção, treinamento, moldura e produção de novas aptidões.

É de se registrar, ainda, que a presença dessas novas relações de poder também não se deu apenas como produto de uma pesquisa realizada no contexto da história da penalidade. Nessa pesquisa, destacou Machado:

Apareceu então para ele o problema de uma relação específica de poder sobre os indivíduos enclausurados que incidia sobre seus corpos e utilizava uma tecnologia própria de controle. E essa tecnologia não era exclusiva da prisão; encontrava-se também em

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