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CARL GUSTAV JUNG Vida, Obra e Correlações

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Academic year: 2022

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CARL GUSTAV JUNG – Vida, Obra e Correlações

Waldemar Magaldi Filho

"... A minha vida é a história de um inconsciente que se realizou.

Tudo o que nele repousa aspira a tornar-se acontecimento e, a personalidade, por seu lado, quer evoluir a partir de suas condições inconscientes e experimentar-se como totalidade. ‘ A fim de descrever esse desenvolvimento, tal como se expressou em mim, não posso servir- me da linguagem científica; não posso me experimentar como um problema científico. O que se é mediante uma intuição interior e o que o homem parece ser expresso através de um mito. Este último é mais individual e exprime a vida mais exatamente do que o faz a ciência, que trabalha com noções médicas, genéricas demais para uma idéia justa da riqueza múltipla e subjetiva de uma vida individual...”. 1

Esta frase nos mostra quanto que a obra e a vida de Jung são extremamente ecológicas, sem frases de efeito e sem invenções que atendam ao consumismo materialista da nossa condição pós-moderna, que tanto nos afasta da realidade, por impedir a plenitude da vida natural, buscando um modelo de perfeição que fragmenta o todo de maneira racional e, desta forma, unilateral. Por isso, sua obra não é um manual de definições nem um mapa que nos afasta da troca e da dinâmica singular que surge em todas as relações humanas.

Suas produções são registros fiéis da sua vida e de suas experiências clínicas, tendo como base o processo empírico continuamente correlacionando aspectos teóricos e práticos. Desta forma, este universo teórico não pode ser partido sem que todo "ecossistema" se modifique, devendo ser visto e percebido por inteiro e cronologicamente, para não corrermos o risco de usarmos distorcida ou levianamente suas contribuições, ainda hoje muito ousadas, questionadoras e implicativas. Jung sempre reconheceu o homem de forma integral, do mais denso e físico ao mais sutil e espiritual. Mesmo assim, ele continuamente tentou conceituar, sem se ocupar em chegar a definições absolutas, com coerência e muita consistência, atendendo, ainda hoje, à todas as necessidades do mundo moderno, inclusive das situações extremas e emergenciais.

1 JUNG, C. G. Memórias Sonhos e Reflexões pg. 19.

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Para Jung o processo de individuação2 vai contribuir para que tu te tornes aquilo que tu és. Porém, a persona3 científica, vestida com as roupas da arrogância do

2 Individuação é o processo teleológico – a existência de uma lógica, com sentido e significado existencial, que na maioria das vezes está inconsciente e distante da realidade cotidiana – com potencialidade de realização, que está imanente nas profundezas do inconsciente de todo ser humano. É a capacidade que todo indivíduo tem, por meio do caminho de diferenciação, separação e integração, sair da uniformidade rasa e alienante da normose coletiva em direção e uma busca simultânea de profundidade e expansão evolutiva. Esse processo começa com a disposição para o conhecimento de si mesmo, representado pelo eu ou ego pessoal, por meio da relação com o outro de si mesmo que, invariavelmente estará num tu exterior, até desembocar no eu – representado pelos aspectos sociais e culturais. Só assim poderá acontecer a verdadeira diferenciação e integração consciente rumo ao grande abraço integral que é a meta do processo de individuação, onde cada ser humano poderá valorizar a sua singularidade na pluralidade e diversidade, reconhecendo simultaneamente o Todo nas partes e as partes no Todo.

Compreendendo que ser diferente não é sinônimo de ser desigual. Só assim poderá alcançar a condição ideal da felicidade, advinda de sentimentos egocêntricos e altruístas. Ou seja, o egocentrismo necessário para manter os sentimentos de boa auto-estima, segurança e fé e o altruísmo para poder servir a humanidade, porque o inseguro acaba sendo egoísta e dependente de coisas externas que são facilmente perdidas, tomadas e finitas, gerando mais medo e insegurança. Desta forma, quem está comprometido com o processo de individuação sempre terá mais consciência da sua presença, do seu trajeto e do seu entorno relacional, com mais poder na sua ambiência, protegido do contágio nocivo que ela pode fazer e até interferindo positivamente nela! Por isso, atualmente, meu maior objetivo é o de fazer com que as pessoas, sejam elas quem forem e aonde estiverem, saiam da inércia e da atitude do escravo, que trabalha apenas pelo chicote ou pela necessidade de ganhar dinheiro para garantir sua sobrevivência, acumular bens ou desfrutar dos efêmeros prazeres carnais, pois acredito e sei, da existência do processo de individuação e a função transcendente, que todo ser humano é uma pedra bruta que precisa ser polida para deixar que a luz de seu espírito interior possa brilhar e orientar o seu caminho exterior que, inevitavelmente, será o de servir à própria humanidade.

3 O termo “persona” significa na abordagem da psicologia junguiana, os aspectos do “eu” que apresentamos ao mundo exterior. É a máscara social e ideal de nós mesmos. É um arquétipo funcional que é extremamente necessário, em função das necessidades adaptativas. Jung (1984, Vol. VII/2: § 245) amplia o termo: “Ela é, como o nome indica, apenas a máscara da psique coletiva, uma máscara que ‘finge individualidade’, fazendo com que nós e os outros acreditemos que somos indivíduos, embora estejamos, simplesmente, desempenhando um papel através do qual a psique coletiva se exprime (...). Quando analisamos a persona, despimos a máscara e descobrimos que aquilo que parecia ser individual é, no fundo, coletivo; em outras palavras, que a persona era apenas uma máscara da psique coletiva. Fundamentalmente a persona nada tem de real: não passa de um acordo entre o indivíduo e a sociedade sobre aquilo que um homem deveria parecer ser. Ele adota um nome, ganha um título, desempenha uma função, é isto ou aquilo. Em certo sentido, tudo isto é real; contudo, em relação à individualidade essencial de uma determinada pessoa, é apenas uma realidade secundária, uma formação de compromisso, fato nos quais as demais pessoas muitas vezes têm uma parte maior do que a própria pessoa”.

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saber, nos afasta deste processo, projetando uma enorme sombra4, que se expressa através do capitalismo selvagem. Esta persona contemporânea, que visa muito mais a adaptação ao mundo externo, acaba estimulando a negação do si mesmo, nos induzindo ao consumo desenfreado, fazendo-nos preocuparmos muito mais com a quantidade acumulada de bens, do que com a qualidade potencial de vida. Com isso, acabamos substituindo a beleza da natureza, que é dinâmica, viva, assimétrica e diversificada, pela busca de um padrão de perfeição, que só a tecnologia da imagem possibilita, criando assim um novo reino que podemos chamar de reino virtual ou do simulacro. Mas, neste reino, nada é vivo só é esteticamente perfeito, plástico e impermeável, por negar o sentido da ética e do humano, advindo das trocas e dos vínculos. Sem estabelecer troca esse reino fica inerte e, consequentemente, inviabiliza a formação de vínculos, deixando tudo e todos descartáveis.

O que Jung busca, com o conceito de individuação não é a perfeição, mas a realização do ser e a sua plenitude, permitindo o reconhecimento das antinomias (os pares de opostos) e da sombra, que fazem parte da natureza humana, contribuindo para que a vida se torne mais harmoniosa. Por isso Jung tem demonstrado, ao longo de sua obra, o quanto que é humanista, não essencialista e determinista, sempre acreditando no potencial da criatividade humana e no caráter compensatório e auto-regulador do Self. Com isso, ele é um empirista, não dogmático, mas extremamente coerente e fiel com seus princípios, idéias, paradigmas e doxas.

Jung, apesar de trabalhar com os aspectos retrospectivos e causais do passado, volta seu pensamento na direção prospectiva sintética, buscando o sentido e o significado das manifestações humanas. Sendo assim, ele é muito mais finalista

4 Sombra significa os aspectos ocultos e inconscientes do si mesmo, são conteúdos reprimidos, negados ou jamais reconhecidos pelo ego, que é o representante da consciência. Na sombra encontramos além dos conteúdos dos quais não nos orgulhamos, fantasias, ressentimentos, potencialidades, instintos, habilidades e qualidades. Desta forma, o confronto com a sombra, permite um alargamento da consciência, um acordo com o outro de nós mesmos, uma vida mais saudável e harmoniosa. Em 1945, Jung deu uma definição mais direta e clara da sombra: "a coisa que uma pessoa não tem desejo de ser" (1987 Vol. XVI/2: §470). Com isso, a sombra não é dotada de juízo de valor, maniqueísmos ou posições absolutas de boa ou ruim, bem ou mal, pois ela é apenas o contraponto compensatório da consciência do ego, ou seja, da consciência que o indivíduo tem de si mesmo. Nesta gravura podemos inferir que a sombra do suicida se agarra à vida, apesar disso não podemos dizer se ela é boa ou má, pois até o ato suicida é relativo e muitas vezes necessário e importante para o processo de individuação ou salvação.

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do que os mecanicistas que procuram causas passadas para explicarem os sintomas, iludidos no pseudo "poder" de explicarem tudo, muitas vezes sem compreenderem nada da realidade humana. Por isso, Jung sempre valorizou a força do diálogo, advindo da arte da hermenêutica, deixando de ser apenas um hábil ouvinte, como os psicanalistas, porque convidava seus clientes para serem parceiros ativos em todo o processo terapêutico. Ele ressaltava que um bom analista deve ter muito conhecimento teórico e cultural, mas no momento do encontro analítico deveria deixar tudo de lado e trazer à tona sua alma, que é o elemento mais importante para o processo psicoterapêutico do autoconhecimento.

Conhecer a obra junguiana, de forma inteira e profunda, permite perceber que se trata de uma produção extremamente atual e viável, não sendo necessário buscar nada "novo" para substituí-la, apenas complementá-la com os avanços advindos da própria experiência dos analistas. Além disso, muitas contribuições científicas da atualidade acabaram dando respaldo científico e teórico para várias intuições precoces e visionárias de Jung, como o conceito de sincronicidade, que pode ser fundamentado nos subsídios da mecânica quântica, e nas teorias de campo morfogenético, dos fractais e do caos. Mas, infelizmente, como existem muitos "junguianos" que não conhecem bem o

"velho", mas precisam de resultados imediatos em suas práticas diárias, ao invés de reverenciarem-se ao mestre, percebendo quanto ainda existe para aprender, buscam informações superficiais, imediatistas ou mágicas, denegrindo e distorcendo sua obra que ainda é eficaz, coerente e ecológica.

Jung sabia que, em todas as pessoas, existem mecanismos criativos contribuindo para que as transformações aconteçam, chamando essa capacidade psíquica de função transcendente. Afirmando que os seres humanos têm cinco instintos básicos:

1- Fome, para garantir a sobrevivência.

2- Labor, para dar proteção e possibilitar o crescimento.

3- Sexualidade, permitindo a transmissão do estoque genético para a perpetuação da espécie.

4- Reflexão, gerador de angústia ao exigir contínua atitude de indagação sobre tudo e todos, inclusive sobre nós mesmos.

5- Criatividade, estimulando a busca da superação e a transformação frente à angústia existencial, responsável por toda produção científica, artística e religiosa da humanidade.

Justificando assim, o porquê ninguém consegue ficar satisfeito com uma atitude simplista de manutenção da vida, apenas esperando a morte chegar. Porque, em função destes instintos, buscamos novos desafios e, inevitavelmente e consequentemente, nos deparamos com adversidades e crises, que possibilitam nosso crescimento evolutivo, apesar de que:

“... O segredo do mistério criador, assim como o do livre-arbítrio, é

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um problema transcendente e não compete à psicologia respondê-lo. Ela pode apenas descrevê-lo. Do mesmo modo, o homem criador também constitui um enigma, cuja solução pode ser proposta de várias maneiras, mas sempre em vão”. 5

Nesta frase, fica comprovado o quanto que o pensamento de Jung é coerente, primeiro, por aceitar a criatividade humana, demonstrando que não existe um determinismo, sendo assim um humanista. Depois, ao citar a possibilidade de termos vontades livres, conferindo valor aos impulsos e movimentos que estão à serviço dos desejos do si mesmo (Self). Além disso, ao afirmar sua incapacidade de responder, dentro do método reducionista mecânico causal, apesar de empiricamente poder vivenciar e descrever os fenômenos criativos e a vontade, demonstra aceitar acontecimentos transcendentes e a ocorrência de mistérios no caminho evolutivo da existência humana. Com este posicionamento Jung diverge do essencialismo aristotélico e do cientificismo baseado em evidências comprováveis e reproduzíveis em laboratórios, como infelizmente nossa atual medicina vem agindo.

Através de suas constatações empíricas, Jung adquiriu a certeza e o conhecimento de que existe um sentido maior para a vida. Algo mais que nos remete para as antinomias, os opostos, e que permite o surgimento da transcendência, do calor angustiante que alimenta a alma e a dimensão do sagrado, valorizando a necessidade da busca de espiritualidade, independente de religião6. Por isso Jung gera controvérsias, perguntas como: É um místico ou um cientista? Um psicótico que delira com suas visões ou um pesquisador da alma? Um embusteiro que transforma as coisas "ruins" em experiências, criando filosofia e psicologia com a intenção de ajudar?

Vale lembrar que Jung afirmava que os mitos e as manifestações psicóticas se desenvolvem da mesma forma, ou seja, através de processos inconscientes.

5 JUNG, C. G. O Espírito na Arte e na Ciência § 155.

6 Existem uma infinidade de religiões, mas aespiritualidade é apenas uma e a mesma para todo mundo. As religiões, via de regra, são constituídas por um conjunto de práticas ritualísticas, fundamentadas em mitos dogmáticos, para os adeptos que não questionam a vida, enquanto a espiritualidade é para quem está desperto em busca de sentido e significado existencial, advindo das experiências e reflexões advindas da relação entre o mundo interior e o mundo exterior. As religiões dominam e reprimem a criatividade infringindo medo, vergonha, culpa e castigo da danação apontando para perda do paraíso enquanto a espiritualidade possibilita a paz Interior, ou seja, confiança e fé no Self – que é representado pela imagem de Deus – instancia arquetípica que habita o íntimo de todos os seres humanos. As religiões causam divisões, disputas e conflitos em busca do poder exterior, enquanto a espiritualidade possibilita a união de todos, pois todos somos um no Uno divino. Por isso, as religiões seguem os preceitos dos seus livros sagrados e a espiritualidade busca o sagrado em tudo e em todos, independente da aparência, origem, credo, raça, condição social, econômica ou cultual.

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Jung não era louco, pois sua obra valoriza o ego7, que é, simultaneamente, o centro e a periferia da consciência, afirmando que quanto mais saudável o ego estiver, por ser estruturante, mais potencialidade e possibilidade o indivíduo terá para se desenvolver e crescer criativamente, livre das imposições normóticas, puramente adaptativas, mesmo em nossa sociedade extremamente doente.

Para Jung, o ego, administrador da consciência, é muito importante. Sem ele não pode haver crescimento do si mesmo (Self), a discriminação dos opostos e o processo de individuação. Um ego fraco, inevitavelmente, irá projetar os conteúdos sombrios do inconsciente, gerando as neuroses, as doenças e as paralisias, pois não poderá dar significado simbólico aos desafios que vão surgindo no transcorrer da vida. Desta forma, quanto mais for desenvolvido o psiquismo, possuindo um ego estruturante, e não desestruturado ou estruturado e rígido, mais dinâmica e plena será a personalidade.

Jung, mesmo desprendido do rigor cartesiano concreto, era um grande pesquisador, sem jamais abandonar o respeito pela ciência e pela alma humana, lembrando que as ideias de consciente e de inconsciente nasceram juntas. Onde a consciência pensa e percebe o inconsciente, mas sem ele não existiria. Com isso, não pode haver hierarquia entre as partes que são apenas a divisão de um todo. Em função desta ideia, valorizamos a relação das partes. Uma depende da outra. Se uma não se realizar a outra também não se realizará, apesar de que é o ego o responsável pela consecução do processo de individuação.

Dentre as várias contribuições inovadoras introduzidas por C. G. Jung para compreendermos e aliviarmos a angústia e curarmos as doenças, físicas e ou psíquicas, que afligem os seres humanos, provocando repercussões sociais, culturais, familiares, profissionais, religiosas e econômicas temos:

O processo de individuação (1), como uma realidade teleológica8 (2) inconsciente que direciona o ego a se dedicar no sentido de propiciar a evolução da psique ou alma. Porém, para que isso possa acontecer a consciência egóica

7 O termo “Ego” é o resultado de um complexo que, por sua vez é formado por um conjunto de arquétipos, representando o centro organizador da consciência. O ego é uma diferenciação do si mesmo que, ao longo da vida, precisa se confrontar com ele para permitir a realização da alma. Um ego saudável é flexível e lida simbolicamente com os conteúdos desconhecidos que surgem no transcorrer da vida. Um ego patológico fica inflexível e nega, neuroticamente, os conteúdos do inconsciente, tornando-se impermeável e incapaz de trocar.

8 No dicionário Houaiss temos: Teleologia – 1) qualquer doutrina que identifica a presença de metas, fins ou objetivos últimos guiando a natureza e a humanidade, considerando a finalidade como o princípio explicativo fundamental na organização e nas transformações de todos os seres da realidade; aproxima-se dos conceitos de teleologismo e finalismo. 2) doutrina inerente ao aristotelismo e a seus desdobramentos, fundamentada na ideia de que tanto os múltiplos seres existentes, quanto o universo como um todo direcionam-se em última instância a uma finalidade que, por transcender a realidade material, é inalcançável de maneira plena ou permanente. 3) teoria característica do hegelianismo e seus epígonos, segundo a qual o processo histórico da humanidade - assim como o movimento de cada realidade particular - é explicável como um trajeto em direção a uma finalidade que, em última instância, é a realização plena e exequível do espírito humano.

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tem que se libertar da identificação corporal, do fascínio com a persona ou da possessão dos complexos, que paralisam, dominam e impedem que a percepção da totalidade aconteça. Sem isso, o processo de individuação deixa de acontecer e o indivíduo passa a viver uma vida alienada do si mesmo, sem sentido e significado, mantendo-se enredado numa rotina automatizada e repetitiva voltada apenas para a biosobrevivência e para o alívio dos medos e da angústia ou reparação da mágoa e da culpa. Porém, como o Self, ou o si mesmo, tem como meta o objetivo de fazer com que o ego contribua com o processo evolutivo da psique, ele tentará criar condições para que aconteça algum fenômeno “arrebatador” que possibilite ou provoque a mudança do estado de consciência egóica, no sentido do processo de individuação. Ou, em outras palavras, irá provocar situações críticas fazendo com que o ego passe a ser submisso (no sentido de estar missionário) com a necessidade evolutiva da alma, ou psique, que aspira realização.

Neste sentido, os fenômenos que surgem para possibilitar a mudança do estado de consciência, para que o indivíduo integral possa mudar seu estágio evolutivo são:

• A sincronicidade (3), advinda da inter-relação do inconsciente pessoal e coletivo com o ego, representada por coincidências significativas, sem correlação de tempo e espaço, que sempre nos remetem para a possibilidade da integração dos opostos por meio do surgimento dos símbolos (4), transdutores energéticos que são capazes de ativar a função transcendente (5).

• Os sonhos (6), pois para Jung eles também são manifestações conscientes advindas do inconsciente, pessoal e coletivo, atemporais e acausais, igualmente repletos de conteúdos simbólicos, ao trazerem os dinamismos arquetípicos, e suas respectivas imagens, que possibilitam ampliação e mudança do estado de consciência.

• Todos os tipos e formas de crises geradoras de sintomas físicos, relacionais ou psíquicos, individuais ou coletivos, que nos remetem para a bipolaridade (7), ou pares de opostos (antinomias), igualmente com forte carga simbólica e possibilidades de transformações criativas e evolutivas rumo ao processo de individuação. Porque possibilitam o reconhecimento da existência dos complexos (8), incluindo o do ego, da realidade exterior dotada de materialidade, da alma e do espírito (soma, psique e pneuma corpo, alma e espírito). Reconhecer os complexos, por sua vez, possibilita que o ego compreenda toda a dimensão arquetípica (9), as temáticas universais, presente no inconsciente coletivo, com suas respectivas imagens advindas da consciência e do inconsciente pessoal, incluindo as imagens dos arquétipos da sombra e da anima ou animus.

• Todas as produções criativas expressas na forma de arte, ciência, religião ou produção tecnológica. Apesar de que, na maioria das vezes, a produção artística transcende o artista que, muitas vezes, não consegue beneficiar-se da sua criação, entregando-se conscientemente ao processo de individuação, livrando-se da supremacia dos complexos e de sua identificação egóica com a persona (principalmente quando fica

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famoso) e de sua experiência corporal, a qual encanta por possibilitar sensações prazerosas imediatas, apesar de ser finita e, por isso mesmo, assustadora.

Além disso, também temos as contribuições da teoria dos tipos e funções psíquicas (10), que nos permitem compreender as várias formas de personalidades atuantes na humanidade, fazendo julgamentos e assumindo comportamentos distintos, interferindo diretamente nas produções criativas, advindas da necessidade de adaptação, possibilitando 64 combinações entre tipos e funções, reforçando nossa diversidade de atitudes perante o mesmo afeto (fenômeno/input) 11), e nos mecanismos compensatórios (12) presentes em todos os seres humanos. Estas são as razões que me fazem acreditar que esses conceitos, acrescidos da mandala (13), como expressão espontânea do Self em busca de integração harmoniosa e da imaginação ativa (14), como método não invasivo, para facilitar a relação do eu com o inconsciente, fazendo uma interface entre o potencial criativo e o mundo onírico, são importantes avanços que contribuíram, e ainda contribuem, para a evolução da consciência humana, por meio do autoconhecimento! Por fim, a alteridade (15), como exercício preponderante para fomentar a relação harmoniosa e amorosa entre os seres humanos, integrando e transcendendo o complexo materno com o paterno, rumo ao caminho evolutivo do processo de individuação.

Com isso, para mim, esses quinze conceitos teóricos é que sustentam a obra de Jung, transformando as demais ideias trabalhadas por ele como meros desdobramentos. Desta forma, esse conhecimento é uma excelente base para compreendermos o surgimento dos sintomas e de todos os fenômenos provocadores de crises, mudança do estado de consciência e tentativa de conduzir o ego para engajar-se conscientemente ao processo de individuação, único meio para a verdadeira cura da humanidade. Por isso listo-os novamente abaixo:

1- Individuação

2- Teleologia ou finalidade existencial 3- Sincronicidade

4- Símbolos

5- Função transcendente 6- Sonhos

7- Bipolaridade, antinomia ou pares de opostos 8- Complexos

9- Arquétipos

10- Tipos e funções psíquicas 11- Adaptação

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12- Compensação 13- Mandala

14- Imaginação ativa 15- Alteridade

Sendo que os meios que o Self possui para que o ego possa sair da sua condição inercial de automatismo, repetição, anestesia, negação ou repressão do Self e da alma são:

• SINCRONICIDADE

• SONHOS

• CRIATIVIDADE:

▪ ARTE

▪ CIÊNCIA

▪ MITOS/RELIGIÕES

▪ PRODUÇÕES INTELECTUAIS OU TECNOLÓGICAS

• SINTOMAS:

▪ FÍSICOS

▪ PSÍQUICOS

▪ RELACIONAIS

Por isso necessitamos ferramentas para lidarmos com essas produções que tem o mesmo objetivo que é o de provocar mudanças tanto na atitude quanto nas crenças e desejos do ego, fazendo que ele estabeleça uma relação saudável com o Self e passe a se comprometer com a necessidade evolutiva da alma ou psique, equivalente ao processo de individuação, muito parecido com os caminhos de iluminação ou de salvação.

Ainda a meu ver, no século XX, além de Carl Gustav Jung, também temos mais três pensadores ocidentais: George Ivanovich Gurdjieff, Rudolf Steiner e Teilhard de Chardin, enquanto que no oriente: Paramahansa Yogananda, Sri Aurobindo, Jiddu Krishnamurti e Daisetz Teitaro Suzuki, cada um com suas terminologias e construções teóricas, acabaram desembocando em caminhos muito semelhantes, ao afirmarem que o autoconhecimento é a base para que o indivíduo atinja a plenitude do seu ser, com realização existencial. Ou seja, o autoconhecimento faz com que as pessoas se tornem mais seguras, simultaneamente auto-centradas ou ego-centradas e altruístas, podendo servir a humanidade como um todo. O interessante é que esse conceito já era defendido por Hipócrates (460 – 377 a.C. - Grécia), o pai da medicina, que em

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seu principal aforismo afirmava: “Homem conheça-te a ti mesmo, e só então poderás conhecer os deuses e, conseqüentemente, o deus que habita em ti”.

Para Jung existe uma espécie de gênio ou daimon no íntimo de cada um de nós.

Mas, infelizmente, para a maioria das pessoas, esse guia interior não está acessível, deixando-nos muito “perdidos” para o “chamado” da nossa vocação, equivalente à realização do mais alto fim existencial. Essa idéia foi utilizada por Samuel Hahnemann, idealizador da homeopatia, ao comentar que toda doença nada mais é do que o desvio equivocado desse chamado ou meta existencial.

Ou seja, a doença é a possibilidade que o indivíduo tem de parar e repensar a própria vida. Por isso, os princípios de Jung convergem com os da homeopatia.

Carl Gustav Jung nasceu a 26 de Julho de 1875, em Kesswil, aldeia no cantão da Turcóvia, Suíça. Seu pai, Paul Achiles Jung, exercia a função de pastor protestante. Aos quatro anos foi transferido para Klein nos arredores da Basiléia, local onde fez todos os seus estudos, inclusive o curso de medicina. Este local, na época, era um dos maiores centros culturais da Europa. Seu avô C. G. Jung foi o grande reformador da Faculdade de Medicina da Basiléia e dizia ser filho ilegítimo de Goethe, autor do Fausto, porém nada ficou provado, apesar de que Jung demonstrava prazer nesta possibilidade.

Jung foi filho único por nove anos, brigava muito com seu pai, devido a conflitos teológicos. Tinha uma relação extremamente afetiva com sua mãe. Ele herdou de seus avós paternos conhecimentos fabulosos, pois seu avô era reitor da Universidade de Basiléia além de Grão mestre da loja Suíça de francos-mações, casado com Sophie Frey, filha do prefeito de Basiléia e 18 anos mais jovem que ele. Seu pai, Paul Jung, era reverendo protestante, doutorado em línguas orientais, além de ser poliglota e líder maçom. Sua mãe, Emilie Jung-Priswerk, filha de pastor, muito enérgica e muito dinâmica, apesar de extremamente calma, era ligada ao ocultismo espiritualista além de ser muito inteligente.

O próprio Jung conta que a atmosfera do seu lar era "irrespirável". Porque seu pai tinha um humor melancólico, frustrando-se após terminar a versão Árabe do Cântico dos Cânticos, como tese doutoral, e ter de se decidir pela carreira de pastor em uma cidadezinha rural. Para Jung, seu pai sofria de uma crise espiritual, sacrificando o intelecto na vã esperança de dar um apoio a sua piedade vacilante. Nesta época, a saúde de Jung era delicada. Fato posteriormente relacionado aos aborrecimentos domésticos.

Desde pequeno sempre se sentiu dividido em duas personalidades9. A número um, de um menino solitário, introvertido, que sentia uma enorme ansiedade por não se adaptar ao ambiente familiar e as ideias vigentes. E a número dois, de um ser muito velho e muito sábio, digno de todo respeito. Esta divisão perdurou por muitos anos. Também percebeu esta divisão em sua mãe. Onde, geralmente, agia como uma mulher extremamente boa, de um enorme calor animal, corpulenta, simpática, com grandes dons literários, bom gosto, profundidade e afeita ao diálogo. Porém, repentinamente surgia uma personalidade inconsciente e de um poder imprevisto, com um aspecto sombrio,

9 JUNG, C. G, Memórias Sonhos e Reflexões, pg. 32.

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imponente, dotada de autoridade e intangível. Desta forma, Jung conclui que sua mãe também possuía duas personalidades uma humana e outra, pelo contrário, temível. Quanto a seu pai, nunca conseguiu se comunicar profundamente com ele. Percebia que suas perguntas o entristeciam, vendo-o como um homem solitário e ressentido.

Muito cedo, ainda criança, Jung entrou em contato com o mundo onírico. Com apenas quatro anos teve o seu primeiro grande sonho e, a partir deste, a cada grande sonho guardava sentimentos e imagens que iriam marcá-lo profundamente. Desde muito jovem demonstrou um caráter contestador, com muitos pensamentos e uma enorme capacidade para a reflexão. Relata que, por volta dos nove anos, ainda na solidão de filho único, desenvolvia este tipo de brincadeira/pensamento/solilóquio:

“... Em frente desta parede havia uma encosta na qual ficava cravada uma pedra um pouco saliente - minha pedra. Às vezes, quando estava só, sentava-me nela e então começava um jogo de pensamentos que seguia mais ou menos este curso: ‘Eu estou sentado nesta pedra. Eu, em cima, ela embaixo’. Mas a pedra também poderia dizer ‘Eu’ e pensar:

‘Eu estou aqui, neste declive e ele está sentado em cima de mim’. – surgia então a pergunta: ‘Sou aquele que está sentado na pedra, ou sou a pedra na qual ele está sentado’? – Esta pergunta sempre me perturbava: eu me erguia, duvidava de mim mesmo, meditando a cerca de ‘quem seria o quê’? Isto não esclarecia e minha incerteza era acompanhada pelo sentido de uma obscuridade estranha e fascinante. O fato indubitável era que essa pedra tinha uma singular relação comigo. Eu podia ficar sentado nela horas inteiras, enfeitiçado pelo enigma que ela me propunha”. 10 Este relato já aponta, desde muito cedo, que a personalidade de Jung era voltada para a introspecção, com total disposição ao solilóquio reflexivo e para a alteridade, pois nesta passagem específica fica evidente sua capacidade de sair de si para se deixar ver com os “olhos” do outro, mesmo que este outro seja uma pedra. Mais adiante, em sua teoria, vemos que o desenvolvimento da capacidade de alteridade é primordial para o confronto com a sombra e o início do processo de individuação.

Jung relata que, aos 12 anos de idade, após um incidente, em que levou um soco de outro menino e ficou atordoado, começou a sofrer uma síncope toda vez que tentava lidar com as coisas da escola. Ficou em uma atitude de isolamento e total subversão frente ao mundo e à vida. Percebia-se como um rapaz tímido, ansioso, desconfiado, pálido, magro e de uma saúde aparentemente instável, com freqüentes desmaios, ficando envolto e inebriado com as suas inquietantes reflexões. Ou seja, sua personalidade número um estava totalmente constelada.

Seus pais o levaram a vários médicos. Nada mudou até certo dia que Jung escutou seu pai conversando com um amigo. Ele comentava que os médicos ignoravam o que seu filho tinha e o que mais temia era a possibilidade de ser algo incurável. Questionava: o que será de meu filho? Será que ele terá

10 Ib. pg. 32.

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capacidade de ganhar a vida? Neste instante Jung entrou em contato com a realidade: teria de ganhar o seu sustento, um dia. A partir desse momento, intuitivamente, foi para o escritório do pai e procurou concentrar-se nos livros.

Primeiramente conseguiu dez minutos e sofreu um desmaio, depois quinze... E mais trinta... E mais trinta... Até que não sobreveio mais nenhum desmaio.

Assim, livrou-se de seu estado mórbido, passou a dedicar-se, diariamente, em várias horas de leitura e estudos na biblioteca de seu pai. Lia tudo o que encontrava: literatura, filosofia, história das religiões, etc. Tornou-se então mais seguro, sentindo um grande apetite sob todos os aspectos. Ou seja, a personalidade número dois assumiu o posto de seu ego/consciência, transformando imediatamente sua persona.

Jung percorreu autores dos séculos XVII até o séc. XX. Seu pensamento permeia todos esses conceitos. Sua metodologia está livre da produção ficcional de conceitos do neoliberalismo contemporâneo. Estes, só servem ao interesse da indústria da cultura que superficializa e banaliza os pensamentos. A super valorização do novo nos desvia da filosofia perene, da realidade e do presente.

Por isso, Jung, sempre propôs uma revolução científica, incentivando a transdisciplinaridade, por perceber que as soluções dos problemas se encontram, geralmente, não no cerne daquela ciência, mas nas ciências afins.

Só com a mudança do estado de consciência é que podemos superar os problemas.

Aos 16 anos Jung começou os grandes estudos, onde percebeu que seu dilema ia se dissipando lentamente, entrou em contato com a escolástica cristã, o intelectualismo Aristotélico de São Tomás, a filosofia de Shopenhauer onde, pela primeira vez, ouviu falar dos sofrimentos do mundo de uma maneira que aquietava seus pensamentos. Esta evolução filosófica prolongou-se praticamente até o final de sua vida, principalmente quando entrou em contato com a obra de Kant e Nietzche.

Em 1900 obtém o título de médico, cuja carreira evoluiu rapidamente. Sua tese de doutoramento foi sobre fenômenos paranormais. Em 1902, já formado em medicina e atuando como psiquiatra, apresenta uma tese de doutoramento:

Sobre a Psicologia e Patologia dos Denominados Fenômenos Ocultos. Em 1903 passa a ser o primeiro assistente em Burgholzli, Manicômio Cantonal e Clínica Psiquiátrica da Universidade de Zurique, neste mesmo ano casa-se com Emma Rauschenbach, com quem teve cinco filhos. Fez vários estudos sobre a demência precoce chamada, atualmente de esquizofrenia. Trabalhou com associações verbais normais e patológicas, o que originou o teste de associação de palavras e lhe conferiu o título de cidadão “honor is causas” da Basiléia.

Posteriormente, ele e Freud adaptaram esse estudo para associação livre e, a partir desse mesmo estudo Jung desenvolveu a teoria dos complexos, que possuem núcleos afetivos e podem tomar a consciência de assalto.

Em 1906 estuda as obras de Freud e, no ano seguinte encontrou-se com ele, em Viena. Neste primeiro encontro ficaram conversando ininterruptamente por 14 horas. Mas, desde o início, ficou clara a divergência de idéias que existia entre eles. Entre alguns conflitos podemos citar: Libido Sexual X Energia Psíquica;

Religião X Razão; Inconsciente, como subproduto da consciência X Consciência, como evolução do inconsciente; Adaptação X Individuação. Mesmo assim, Jung

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foi nomeado o 1o Presidente da Sociedade Psicanalítica. Freud e Jung tiveram um intenso relacionamento por apenas seis anos (1907 a 1913). Ficando evidente que suas bases filosóficas e religiosas eram totalmente antagônicas.

Por isso, é um grande engano colocar Jung como aluno de Freud, porque o próprio Freud o situava como um parceiro respeitado e muito valioso, pois deu sustentação teórica a muitas de suas ideias.

A grande ruptura entre os dois autores se deu em função do lançamento do livro de Jung: Símbolos da Transformação da Libido, no qual Jung se distancia definitivamente do conceito freudiano de libido, como uma pulsão exclusivamente de caráter sexual. Para Jung, a libido, ou energia psíquica, se manifesta em várias instâncias do humano, indo do mais denso ao mais sutil, ou seja, do corpo à espiritualidade. Além disso, Freud via o mito no mesmo complexo nuclear da neurose e Jung, ao contrário, como funções sadias e positivas da psique, sem se ligarem, necessariamente, a impulsos sexuais ou neuróticos. Por isso, Freud afirmava que os símbolos são restos reprimidos do passado e Jung que eles são os grandes transformadores ou transdutores da energia psíquica, contribuindo com a capacidade criativa e curativa do homem.

Para Freud, o sentido da vida é a aquisição de conhecimento em busca da perfeição. Para Jung, é a realização do si mesmo, que traz um sentimento de plenitude, que leva à transcendência, apesar das diferenças, assimetrias e imperfeições humanas. Por isso, Freud via a religião como resultante do complexo de Édipo, paterno ou materno, produzindo a sublimação do instinto sexual. Desta forma, a razão poderia afastar totalmente o sagrado11. Enquanto Jung via a busca espiritual, na maioria das vezes manifestada nas tradições religiosas, como um fenômeno universal, inerente à psique, equivalente a grandes sistemas psicoterapêuticos, por favorecem a religação com o arquétipo12 central, ou si mesmo.

Freud não aceitou as categorias junguianas de inconsciente coletivo, arquétipos, função transcendente, sincronicidade, capacidade simbólica e criativa da psique,

11 Isso fica muito claro neste excerto: “... seu anseio por um pai constitui um motivo idêntico à sua necessidade de proteção contra as consequências de sua debilidade humana. É a defesa contra o desamparo infantil que empresta suas feições características à reação do adulto ao desamparo que ele tem de reconhecer – reação que é, exatamente, a formação da religião”. (FREUD, S. O Futuro de uma Ilusão O Mal-Estar na Civilização, pg. 36).

12 O conceito de “Arquétipo” significa o repositório de consciência coletiva que está presente em cada pessoa, e do qual se diz que é o arquivo dos vestígios de memória de todas as experiências passadas, tanto de si mesmo quanto de outras pessoas. Com isso, ele é transpessoal abarcando todos os seres sencientes. Jung (1984 VIII/2: §415) amplia: “Psicologicamente... o arquétipo, como uma imagem do instinto, é uma meta espiritual em direção à qual tente toda a natureza do homem; ele é o oceano ao qual se encaminham todos os rios, o prêmio que o herói arrebata na luta contra o dragão”. Concluímos que os arquétipos são potencialidades psíquicas herdadas que se manifestam por meio de imagens. Pertencem ao inconsciente coletivo, representam as memórias ancestrais vivenciadas e registradas ao longo da evolução humana. Por isso, são universais e atuantes ao longo de nossa existência. Os arquétipos são contextos universais representados por continentes temáticos e as imagens arquetípicas os conteúdos advindos das experiências existenciais que preenchem esses continentes que por sua vez são oriundas tanto do inconsciente coletivo quanto do inconsciente pessoal e das experiências conscientes de cada ser humano.

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entre outras. Porque Jung tinha um enfoque muito mais voltado para o pensamento prospectivo sintético, sem desconsiderar o conhecimento redutivo causal, que era à base da análise de Freud, que pesquisava apenas a origem do trauma. Além disso, Freud era um homem sem laços com a história, julgando-se inventor de conceitos. E, apesar de possuir inteligência extrema, negava o conhecimento filosófico, preferindo ficar só, na sua ilha, para não correr o risco de se "contaminar" com outros pensamentos e ter a certeza de que toda produção era de sua lavra. Sempre com o intuito de impor, sob a forma de dogmas, sua teoria, desconsiderando a antropologia, sociologia, história, religiões e todo pensamento holístico e integral, pois nunca abandonou sua origem de neurocientista.

Jung, ao descrever a Freud um sonho13 que havia tido, sobre uma casa com escadas em caracol em que ele descia para ambientes e épocas cada vez mais antigas, até chegar numa caverna com ossos, constatou que suas diferenças com Freud ficaram muito mais evidentes. A interpretação feita por Freud contribuiu, significativamente, para que a separação acontecesse. Mas, posteriormente, este mesmo sonho lhe possibilitou o entendimento da psique além de reativar seus interesses pela arqueologia, porque permitiu a formulação da teoria do inconsciente coletivo e o conceito dos arquétipos.

Em 1913 Jung começou a estudar tudo sobre a alquimia, o que lhe abriu um campo extremamente fecundo e grande, acrescentando ao Inconsciente Pessoal a idéia de Inconsciente Coletivo. Em 1920 escreveu os Tipos Psicológicos, onde popularizou termos como a extroversão e a introversão. Sua paixão em conhecer a alma humana não parou, chegou a conclusões que o levariam, cada vez mais, para o pensamento oriental, para os mecanismos auto-reguladores do Self (homeostase psíquica), saindo do pensamento linear e aproximando-se das ciências naturais e empíricas, substituindo os estudos metódicos e laboratoriais pela observação direta dos fatos reais (empirismo). Concluindo que a:

“...A teoria representa, inegavelmente, o melhor escudo para proteger a insuficiência experimental ou a ignorância. As consequências,

13JUNG, C. G. Memória Sonhos e Reflexões, pg. 143. Abaixo imagem representativa do sonho:

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porém, são lamentáveis: mesquinhez, superficialidade e sectarismo científico... Então, pretender rotular os germes polivalentes da criança com a terminologia tirada do estágio de desenvolvimento pleno da sexualidade será, certamente, empreendimento muito duvidoso. Este proceder levará a estender a interpretação sexual a todas as outras disposições infantis; deste modo, o conceito de sexualidade se tornará demasiadamente inflado e nebuloso, enquanto que os fatores espirituais aparecerão apenas como meras deformações do espírito...”. 14

Em 1921 passou um grande período na África depois foi visitar os índios pueblos no Arizona e Novo México. Volta à África, em 1926, para viver entre os nativos das vertentes do monte Elgon, no Quênia. Visitou a Índia além de vários países Europeus e os Estados Unidos. Em 1922 comprou um terreno em Bollingen, e constrói uma casa de dois andares, que vai sendo reformada e arquitetada, ao longo de sua vida, conforme as suas necessidades internas. Em sua torre de Bollingen, Jung se sentia mais autenticamente ele mesmo, lá Jung dizia ser o filho "arquivo" de sua mãe, o filho do inconsciente materno, o arquivelho que habitava seu ser quando criança, o arquivo do inconsciente da humanidade. A casa de Bollingen tomou sua forma definitiva em 1955, após vários estágios de transformações.

Quando Jung estava com 45 anos, bem envolvido com as questões da sua metanóia, onde conclui:

"... tornou-se claro para mim que a meta do desenvolvimento psíquico é o si mesmo. A aproximação em direção a este não é linear, mas circular... Compreender isso me deu firmeza e progressividade, restabeleceu-se a paz interior. Atingira com a mandala, expressão do si mesmo, a descoberta última a que poderia chegar. Alguém poderá ir além eu não". 15

A partir deste momento toda a sua vida se resumiu em elaborar tudo o que surgira durante estes anos, suas vivências internas, estudos, pesquisas, viagens, enfim, o sentido era dar forma ao conteúdo que habitava no seu íntimo.

Foi ao encontro com suas raízes históricas onde os estudos da alquimia foram decisivos. Em 1928 é publicado o livro: Dialética do eu e do Inconsciente, e em 1929 em colaboração com R. Wilhelm, o livro: O Segredo da Flor de Ouro. Nesta época, Jung já está com 55 anos e em plena produção científica, suas obras vão surgindo: A Energia da Alma; Psicologia e Religião, entre outros.

No início de 1944, próximo dos 69 anos, fratura um pé e logo depois tem um enfarte. Durante a doença passou muito tempo acamado e teve vários sonhos e visões que contribuíram para mais transformações em sua vida. Seu pensamento fluía, Jung disse que após a doença ele estabeleceu uma relação de "sim" incondicional ao que é, sem objeções subjetivas, aceitando as condições da existência, como as via e compreendia, acolhendo tanto a

14 JUNG, C. G. O Desenvolvimento da Personalidade, pg. 10.

15 Ib. pg. 174.

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simplicidade quanto a complexidade do inconsciente, com a sombra e as manifestações da alma, escrevendo:

“... Quando seguimos o caminho da individuação, quando vivemos nossa vida; é preciso também aceitar o erro, sem o qual a vida não será completa: nada nos garante – em nenhum instante – que não possamos cair em erro mortal. Pensamos talvez que haja um caminho seguro. Ora, esse seria o caminho dos mortos. Então nada mais acontece e em caso algum acontece o que é exato. Quem segue o caminho seguro está tão bem como quem está morto...”. 16

Jung afirma que a doença nos leva a fatos e que a psicoterapia, ao encontrar o símbolo, que é o bônus da doença, propicia o: conheça-te a ti mesmo, que inevitavelmente trará o sentido e o significado existencial de cada indivíduo. Os cristãos poderiam falar: reconhecer e carregar a sua própria cruz é o que dará sentido, libertação, alegria e salvação.

Em 1944 publica os livros Psicologia e Alquimia; e Resposta a Jó; em 1946, A Psicologia da Transferência, em 1951 retoma a problemática de Cristo com o livro: Aion, em busca do Simbolismo de si mesmo; em 1956 o livro: Mysterium Conjunctionis. Com isso, Jung conclui que suas obras são estações de sua vida, constituindo a expressão do seu desenvolvimento interior, e que sua vida é a sua ação e seu trabalho é consagrado ao espírito, sendo impossível separar um do outro.

Jung foi um viajante que se aprofundou num terreno insólito e aterrorizador, que é o inconsciente e, apesar de ter passado pela primeira e segunda guerra mundial, dedicou-se continuamente na elaboração das suas vivências internas e suas experiências, com estudos, pesquisas e viagens, para cumprir a missão a que se sentia predestinado escrevendo:

“...Pressentira desde o início a singularidade do meu destino; o sentido de minha vida seria cumpri-lo. Isso me dava uma segurança interior que nunca pude provar a mim mesmo, mas que me era provada.

Ninguém conseguiu demover-me da certeza de que estava no mundo para fazer o que Deus queria, e não o que eu queria. Em todas as circunstâncias decisivas isso sempre me deu a impressão de não estar entre os homens, mas de estar a sós com Deus...”. 17

E explica como inseriu o universo mítico em sua obra:

"... Ao descrever os processos vivos da psique, deliberada e conscientemente dou preferência a um modo de pensar e de falar dramático e mitológico, porque isso não só é mais expressivo como também mais exato do que uma terminologia científica abstrata, que está acostumada a se entreter com

16 JUNG, C. G. Memória Sonhos e Reflexões, pg. 259.

17 Ib. pg. 54.

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a noção de que suas formulações teóricas que poderão um belo dia ser determinadas por equações algébricas...". 18

Também tece uma crítica para a atitude racionalista do homem contemporâneo, dizendo que ao negarmos o Sagrado e os deuses, passamos a ter uma atitude unilateral onde cultuamos e adoramos, monoteístamente, apenas a deusa razão, denunciando que:

"... Para sustentar esta sua crença, no entanto, o homem contemporâneo paga o preço de uma incrível falta de introspecção. Não consegue perceber que, apesar de toda a sua racionalização e toda a sua eficiência, continua possuído por "forças" fora do seu controle. Seus deuses e demônios absolutamente não desapareceram; têm, apenas, novos nomes. E o conservam em contato íntimo com a inquietude, com apreensões vagas, com complicações psicológicas, com uma insaciável necessidade de pílulas, álcool, fumo, alimento e, acima de tudo, com uma enorme coleção de neuroses...". 19

Jung sempre encorajava seus alunos em abordar cada caso com um mínimo de suposições preconcebidas. Dizia, apesar de saber ser utópico e impossível, que o ideal seria não ter nenhuma suposição, e que cada analista encontre os seus próprios caminhos, dizendo:

“...Só espero e desejo que ninguém se torne 'junguiano'. Eu não represento nenhuma doutrina, mas descrevo fatos e apresento certos pontos de vista que julgo merecedores de discussão. Critico na psicologia freudiana certa estreiteza e preconceito, e nos "freudianos"

certo espírito rígido e sectário de intolerância e fanatismo. Não advogo nenhuma doutrina pronta e fechada e abomino 'partidários cegos'. Deixo a cada um a liberdade de lidar a seu modo com os fatos, pois eu também tomo esta liberdade para mim...”. 20

Nestas frases percebemos o sentido liberal e teleológico que Jung alimenta sobre a alma humana, sua dinâmica e seus fins. É interessante ressaltarmos que ao longo da sua vida Jung teve três situações de crise psíquica, onde em cada uma delas ficou por volta de um ano em conflito e com seus conteúdos inconscientes mais aflorados. Aos doze anos, quando sua personalidade número dois ganha autonomia, por volta dos 40 anos, quando começa a elaborar o Livro Vermelho e vivencia muitos episódios de imaginação ativa, estabelecendo contato com personagens intrapsíquicos que vão surgindo na forma das representações arquetípicas do Herói, nas imagens arquetípicas de Sigfrido e da serpente negra, da Sombra, na imagem do próprio Eu como complexo, do Velho Sábio, nas imagens de Elías, Filemón, e o Ka egípcio e da Anima pela imagem

18 JUNG, C. G., § Aion 25.

19 JUNG, C. G., O Homem e Seus Símbolos. pg. 78.

20 JUNG, C. G., Cartas, 1946-1955, pág 9 (Em uma carta datada de 1946 e endereçada ao Dr.

Van der Hoop, de Amsterdã, comentando fundação do “Instituto de ensino de Psicoterapia” em 1938.).

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de Salomé. Nesta mesma época chega à figura da mandala em seus desenhos estruturantes e reconhece-a como a imagem do Self. Por fim, seu terceiro e último embate com o inconsciente se deu por volta dos 65 anos, depois de quebrar o pé e ter um enfarto, na sua terceira tentativa frustrada de visitar o Vaticano, quando sai desta crise ao ter um sonho de que deveria cuidar de seu cuidador.

Em 1957, Jung estava com 82 anos, e iniciou a elaboração de sua última contribuição literária, o livro: “Memórias, Sonhos e Reflexões”, que foi compilado e prefaciado por Aniela Jaffé. Em 1959, em sua casa de campo em Bollingen, desenvolvia o capítulo “Sobre a Vida depois da Morte” disse: “Algo em mim foi atingido. Formou-se um declive pelo qual me vejo forçado a descer”.

Na primavera do dia 6 de junho de 1961, com quase 86 anos, em sua casa/torre de Bollingen morreu tranqüilamente. É significativo citar que na entrada de sua casa Jung colocou em latim os seguintes dizeres: “Chamado ou não chamado, Deus está presente”.

JUNG NO BRASIL

Como já foi citado, Jung foi o expoente mais promissor da psicanálise, reconhecido por Sigmund Freud como seu principal legatário. Porém, devido a desarmonias ideológicas, foi divergindo de muitos conceitos constitucionais da psicanálise freudiana, afastando-se e criando uma teoria original que buscava uma melhor compreensão sobre a psique e as atitudes humanas. Jung teve a coragem – ação do coração – de submergir no seu inconsciente e reconhecer que a vida é uma expressão criativa da singularidade individual na pluralidade coletiva.

Seus estudos e principalmente suas experiências e suas vivências, subjetivas e objetivas, foram à pedra angular para a criação da psicologia analítica.

Atualmente, além da escola clássica, que mantêm uma maior fidelidade aos postulados de Jung, temos subsídios de neo-junguianos que criaram as escolas arquetípicas e desenvolvimentistas.

No passado, profissionais de várias partes do mundo se dirigiram para a Suíça em busca da vivência e do conhecimento desta teoria. Ao retornarem a seus países de origem ou imigrando para outros países, foram criando grupos e sociedades para divulgar e formar novos psicoterapeutas.

A psicologia analítica de Carl Gustav Jung no Brasil é muito jovem. Porém, apesar das várias consequências desastrosas da globalização, produzindo mais exclusão social e a perda das referências culturais, um ganho secundário fantástico é a possibilidade da aquisição do conhecimento acessível a todas as pessoas interessadas. Com isso, atualmente, ninguém pode se julgar proprietário do conhecimento, ora dominando ou evitando que outras pessoas tenham acesso a ele, ora fazendo patrulhamentos ideológicos, denegrindo quem obteve o conhecimento por meios e fontes diferentes dos que se julgam proprietários. Porque, o acesso às informações está cada vez mais fácil e

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horizontal. Por isso, na nossa era da informação e das comunicações, quem tiver mais conhecimento terá mais potência – no seu sentido latino: potere = ser capaz. Lembrando que conhecimento implica em relação, diferente da informação que equivale apenas ao acúmulo de dados.

Somente em 1977 que começou a se organizar, aqui no Brasil, a primeira sociedade para estudos e divulgação desta prática e deste conhecimento tão rico e valioso para a humanidade. Nesta época o casal belga, Leon e Jette Bonaventure, criou seminários na cidade de São Paulo, lançando livros de analistas junguianos famosos bem como se iniciou, pela editora Vozes, a publicação das Obras Completas de Jung que, infelizmente, até o início de 2002 ainda não estava totalmente publicada. Logo depois, outros analistas formados em Zurique, se juntaram e criaram uma sociedade para formar analistas junguianos, mas o casal Bonaventure acabou não aderindo seu estatuto formal.

A partir daí os grupos foram surgindo, alguns com credenciamento internacional e outros não.

Anteriormente, no Rio de Janeiro, a Dra. Nise da Silveira, em 1957, foi para a Suíça apresentar para Jung o seu trabalho com pinturas de psicóticos refratários aos tratamentos convencionais, no intuito de comprovar a existência do Inconsciente Coletivo, material que agregou e contribuiu para a validação desta teoria de Jung. Nesta mesma época ela iniciou grupos de estudos junguianos na Casa das Palmeiras.

A obra de Jung foi ganhando espaço e reconhecimento, motivando um número cada vez maior de simpatizantes e estudiosos. A academia também não podia mais ficar omissa a esta crescente demanda e, paulatinamente apesar de acanhadamente, foi incluindo as contribuições de Jung nas aulas de teorias e técnicas psicoterápicas. Atualmente são raros os cursos de psicologia ou de especialização em psiquiatria que não dedicam, pelo menos, um semestre consagrado à teoria junguiana.

Ultimamente temos no Brasil várias sociedades que estudam e divulgam a obra de Jung e dos neo-junguianos. Em quase todas as capitais do país encontramos grupos articulados se aprofundando neste conhecimento tão vasto e enriquecedor. Academicamente existem cursos de pós-graduação titulando especialistas, como o da FACIS, formando especialistas em São Paulo e outras cidades brasileiras desde 1984, onde atuo como coordenador. Além disso, nos programas de mestrado e doutorado já é grande o número de dissertações e teses que fazem de Jung a referência teórica principal. Na realidade, em 1979 comecei a oferecer, de forma facultativa, a cadeira de Psicologia Junguiana numa faculdade de Psicologia e desde então sempre fico alegre em saber que o meio acadêmico está, cada vez mais, aceitando e divulgando o conhecimento junguiano! Isso é importante, pois quanto mais pessoas engajadas, conscientemente, no processo de individuação, mas chances teremos de reverter nosso futuro trágico, devido ao consumo inconsequente, para gerar acúmulo de riqueza a poucos e exclusão e pobreza a muitos.

Com isso, o conhecimento e a prática da psicologia junguiana está se tornando uma base fundante nas práticas psicoterápicas, não podendo ficar restrito a confrarias que de forma sectária, econômica e ou culturalmente, pretendem

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monopolizar esta ciência e está arte. Principalmente porque Jung tinha uma atitude completamente includente e não postulava a formação de partidários cegos, assim como abominava a busca de poder pelo poder, sem amor e sem a entrega irrestrita e abrangente para a vida e seu significado, evitando sempre as exclusões ideológicas e mercantilistas. Por isso, a primeira leva de analistas junguianos é preponderantemente advinda de seus pacientes, seres humanos que se mostraram sensíveis, devido as suas próprias feridas, e capazes de estabelecer a relação de ajuda que essa prática exige.

Coloco abaixo mais algumas citações de Jung, que julgo representativas e emblemáticas para compreendermos sua obra, assim como de alguns dos seus colaboradores que julgo relevantes:

“A humanidade experimentou inúmeras vezes, tanto individualmente quanto como coletividade, que a consciência individual significa separação e inimizade. No indivíduo, o tempo de dissociação é tempo de doença, o mesmo acontecendo na vida dos povos. Não podemos negar que a nossa época é um tempo de dissociação e doença.

As condições políticas e sociais, a fragmentação religiosa e filosófica, a arte e psicologia modernas, tudo dá a entender a mesma coisa... A palavra crise também é expressão médica que sempre designa um clímax perigoso da doença... Com a tomada da consciência, o germe da doença da dissociação plantou-se no espírito da humanidade, sendo o maior bem e o maior mal ao nosso tempo”. 21

“Os deuses tornaram-se doenças. Não procuramos mais os Deuses no Olimpo, nem nos antigos cultos, templos ou estátuas do passado, nem mesmo em seus dramas e narrativas míticas. Em vez disso, os Deuses aparecem em nossas desordens, particulares é claro, mas também públicas”. 22

“A dessacralização de nossa época tão profana é devida ao nosso desconhecimento da psique inconsciente, e ao culto exclusivo da consciência. Nossa verdadeira religião é o monoteísmo da consciência, uma possessão da consciência, que ocasiona uma negação fanática da existência de sistemas parciais autônomos...” 23 “O homem perdeu o temor de Deus e pensa que tudo pode ser julgado de acordo com medidas humanas. Esta hybris, que corresponde a uma estreiteza de consciência, é o caminho mais curto para o asilo de loucos...

...Congratulamo-nos por haver atingido um tal grau de clareza, deixando para trás todos esses deuses fantasmagóricos. Abandonamos, no entanto, apenas os espectros verbais, não os fatos psíquicos responsáveis pelo nascimento dos deuses. Ainda estamos tão possuídos pelos conteúdos psíquicos autônomos, como se estes fossem deuses.

21 JUNG, C. G. Civilização em Transição § 290.

22 JUNG, C.G. in HILLMAN, J. Cidade e Alma, pg. 66.

23 Aqui Jung está se referindo à ideia dos complexos, de núcleo afetivo, que são autônomos e produzem as doenças psíquicas e ou físicas.

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Atualmente eles são chamados: fobias, obsessões, e tornam-se doenças.

Zeus não governa mais o Olimpo, mas o plexo solar e produz espécimes curiosos que visitam o consultório médico; também perturba os miolos dos políticos e jornalistas, que desencadeiam pelo mundo verdadeiras epidemias psíquicas”. 24

“A vida se me afigurou uma planta que extrai sua vitalidade do rizoma. O que se torna visível sobre a terra dura só um verão, depois fenece... Aparição efêmera. Quando se pensa no futuro e no desaparecimento infinito da vida e das culturas, não podemos nos furtar a uma impressão de total futilidade; mas nunca perdi o sentimento da perenidade da vida sob a eterna mudança. O que vemos é a floração – e ela desaparece. Mas o rizoma persiste”. 25

“...Sinto-me contente de que minha vida tenha sido aquilo que foi:

rica e frutífera. Como poderia esperar mais? Ocorreram muitas coisas, impossíveis de serem canceladas. Algumas poderiam ter sido diferentes, se eu mesmo tivesse sido diferente. Assim, pois, as coisas foram o que tinham de ser; pois foram o que foram porque eu sou como sou. Muitas coisas, muitas circunstâncias foram provocadas intencionalmente, mas nem sempre representaram uma vantagem para mim. Em sua maioria dependeram do destino. Lamento muitas tolices, resultantes de minha teimosia, mas se não fossem elas não teriam chegado à minha meta.

Assim, pois, eu me sinto ao mesmo tempo satisfeito e decepcionado.

Decepcionado com os homens, e comigo mesmo. Em contato com os homens vivi ocasiões maravilhosas e trabalhei mais do que eu mesmo esperava de mim. Desisto de chegar a um julgamento definitivo, pois o fenômeno homem e o fenômeno vida são demasiadamente grandes. À medida em que envelhecia, menos me compreendia e me reconhecia, e menos sabia sobre mim mesmo...

...Sinto-me espantado, decepcionado e satisfeito comigo. Sinto-me triste, acabrunhado, entusiasta. Sou tudo isso e não posso chegar a uma soma, a um resultado final. É para mim impossível constatar um valor ou um não-valor definitivos; não posso julgar a vida ou a mim mesmo. Não estou certo de nada. Não tenho mesmo, para dizer a verdade, nenhuma convicção definitiva, a respeito do que quer que seja. Sei apenas que nasci e que existo; experimento o sentimento de ser levado pelas coisas.

Existo à base de algo que não conheço. Apesar de toda a incerteza, sinto a solidez do que existe e a continuidade do meu ser, tal como sou...

“...Chamo certo fato de mau muitas vezes sem plena certeza de que realmente o seja. Algumas coisas me parecem más quando, na verdade, não o são...De onde obtemos essa crença, essa aparente certeza de que sabemos o que é bom e o que é mau? “Sereis como Deus, conhecedores do bem e do mal”; somente os deuses sabem, nós não.

24 Ibid. pg. 50.

25 JUNG, C. G. Memórias, sonhos e reflexões pg. 20.

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Isso é profundamente verdadeiro em psicologia. Se tomarmos a atitude

“isto pode ser muito ruim, mas, por outro lado, pode não ser”, teremos a oportunidade de fazer a coisa certa. [...]

Só conhecemos a superfície das coisas, o modo como aparecem a nós e por isso precisamos ser muito modestos. Com que frequência desejei eliminar o que me parecia uma tendência absolutamente prejudicial num paciente! No entanto, em algum sentido muito profundo, ele estava inteiramente correto em obedecer-lhe. [...]

[...} Sendo assim, em termos do que é bom ou mau, um terapeuta só pode esperar estar compreendendo os fatos – embora jamais consiga ter plena certeza. Como terapeuta, não posso em caso algum lidar com a questão do bem e do mal no plano filosófico ou teológico; só posso abordá-la pelo prisma empírico. Mas, porque assumo uma postura empírica, isso não significa que relativizo o bem e o mal enquanto tais.

Vejo com muita clareza: isto é mal, mas o paradoxo é que, para esta determinada pessoa, nesta situação em particular, neste momento específico de seu desenvolvimento, isto pode ser bom. Por outro lado, o bem no momento errado, no lugar errado, pode ser a pior coisa possível.

Se não fosse assim, tudo seria muito simples, aliás, simples demais...”26 ...O mundo no qual penetramos pelo nascimento é brutal, cruel e, ao mesmo tempo, de uma beleza divina. Achar que a vida tem ou não tem sentido ´e uma questão de temperamento. Se o não-sentido prevalecesse de maneira absoluta, o aspecto racional da vida desapareceria gradualmente com a evolução. Não parece ser isto o que acontece. Como em toda questão metafísica, as duas alternativas são provavelmente verdadeiras: a vida tem e não tem sentido, ou então possui e não possui significado. Espero ansiosamente que o sentido prevaleça e ganhe a batalha...

...Quando Lao-Tse diz: 'Todos os seres são claros, só eu sou turvo', exprime o que sinto em minha idade avançada. Lao-Tse é o exemplo do homem de sabedoria superior que viu e fez a experiência do valor e do não-valor, e que no fim da vida deseja voltar a seu próprio ser, no sentido eterno e incognoscível. O arquétipo do homem idoso que contemplou suficientemente a vida é eternamente verdadeiro; em todos os níveis da inteligência, esse tipo aparece e é idêntico, quer se trate de um velho camponês ou de um grande filósofo como Lao-Tse...

...Assim, a idade avançada é... uma limitação, um estreitamento. E, no entanto, acrescentou em mim tantas coisas: as plantas, os animais, as nuvens, o dia e a noite e o eterno no homem. Quanto mais se acentuou a incerteza em relação a mim mesmo, mais aumentou meu sentimento de parentesco com as coisas. Sim, é como se essa estranheza que há tanto

26 C.G.Jung apud Whitmont, O Retorno da deusa,p.251, 252

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