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O mundo não é tão grande uma etnografia entre viajantes “independentes” de longa duração

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Academic year: 2018

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O mundo não é tão grande

uma etnografia entre viajantes

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Michel Miguel Elias Temer Lulia

Ministro da Educação Rossieli Soares da Silva

Universidade Federal do Ceará – UFC

Reitor

Prof. Henry de Holanda Campos

Vice-Reitor

Prof. Custódio Luís Silva de Almeida

Pró-Reitor de Pesquisa e Pós-Graduação Prof. Antônio Gomes de Souza Filho

Pró-Reitor de Planejamento e Administração

Prof. Almir Bittencourt da Silva

Imprensa Universitária Diretor

Joaquim Melo de Albuquerque

Conselho Editorial Presidente

Prof. Antônio Cláudio Lima Guimarães

Conselheiros

Prof.ª Angela Maria R. Mota Gutiérrez

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O mundo não é tão grande

uma etnografia entre viajantes

“independentes”

de longa duração

Igor Monteiro Silva

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Copyright © 2018 by Igor Monteiro Silva

Todos os direitos reservados

Impresso no BrasIl / prInted In BrazIl

Imprensa Universitária da Universidade Federal do Ceará (UFC)

Av. da Universidade, 2932, fundos – Benfica – Fortaleza – Ceará

Coordenação editorial Ivanaldo Maciel de Lima

Revisão de texto Adriano Santiago

Normalização bibliográfica Luciane Silva das Selvas

Projeto visual Sandro Vasconcellos

Diagramação Victor Alencar

Capa

Heron Cruz

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação Bibliotecária Luciane Silva das Selvas CRB 3/1022 S586m Silva, Igor Monteiro.

O mundo não é tão grande [livro eletrônico] : uma etnografia entre viajantes “independentes” de longa duração / Igor Monteiro Silva. – Fortaleza: Imprensa Universitária, 2018.

2816 Kb : il. color. ; PDF - (Coleção de Humanidades - UFC)

ISBN: 978-85-7485-346-8

1. Viagens ao redor do mundo. 2. Viagens. 3. Etnografia I. Título.

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Apresentação

O

presente livro é expressão de esforços investigativos empreen-didos entre os anos de 2011 e 2015, período em que cursei douto-rado no Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal do Ceará. O que se apresenta aqui, portanto, em grande me-dida, objetiva preservar o “movimento” (“achados” de pesquisa, dis-cussões teóricas, reflexões metodológicas etc.) já representado na tese requisitada por tal programa para obtenção de título. No en-tanto, por se tratar de um “objeto”, por excelência, dinâmico, fluido, constantemente reinventado em seus sentidos e práticas, pequenas modificações – no intuito de atualizar alguns dados ou apresentar outras possíveis discussões – foram efetuadas.

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algumas das disposições que conformaram os objetivos da pes-quisa que deu origem a esta obra.

Mais claramente, o presente livro apresenta uma etnografia de viagens “independentes” de longa duração, considerando, para tanto, o “movimento material”, bem como as “políticas de signifi-cado” (CRESWELL, 2006), empreendidos por seus sujeitos. Por “mo-vimento material” deve-se entender os deslocamentos físicos dos viajantes, a maneira “crua”, como define Creswell (2006), de atingir um ponto partindo de outro. Já no que concerne às “políticas de significado”, tem-se como horizonte de reflexão tanto as represen-tações partilhadas pelos sujeitos no que se refere às suas jornadas quanto à prática das mesmas, a experiência do movimento sendo incorporada e valorada individualmente. O que aqui figura, des-tarte, é a expressão de um exercício de pesquisa socioantropológica cuja construção teve como matéria empírica privilegiada as situa-ções concretas de interação, as configurasitua-ções de relasitua-ções de troca, de tensão, de conflito e, igualmente, os momentos de invenção, de criação e de elaboração de discursos presentes em uma – alegada – maneira singular de viajar.

Por fim, especificamente sobre aspectos estruturais desta obra, optei por preservar algumas referências ou termos diretamente vinculados ao processo de pesquisa mencionado. Assim sendo, in-tento apresentar um livro que também considera, como elemento relevante para apreciação de seus leitores, as dimensões de “basti-dores” ou o caráter de “oficina”, para me servir de uma expressão de P. Bourdieu (2005), próprio de qualquer empreendimento de pes-quisa. Desse modo, reside aqui certa preocupação em cotejar o ideal de representação de “resultados”, o livro em si, com os percursos de construção – conflitos, inquietações, dificuldades etc. – de uma in-vestigação. Isto posto, reafirmo o convite para que o leitor – inspi-rado pelas palavras de Kerouac (2011) – empilhe suas “malas no pas-seio” e tome lugar nesta ação de bater a estrada, uma vez que (pelo menos para alguns) a “estrada é a vida”.

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Agradecimentos

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lemos em vosso olhar profundo como os lastros! Mostrai em vosso escrínio essas ricas memórias, Jóias mais raras do que a etérea luz dos astros. Queremos navegar sem bússola e sem vela! Fazei, para que o tédio o ser não nos afronte, passar em nossos corações, qual numa tela, vossas

lem-branças com seus quadros de horizonte. E o que vistes? Dizei.”

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Sumário

INTRODUÇÃO: “CAINDO NA ESTRADA” 15

De que é feita uma jornada:

interpelações e elaboração de objetivos 15

Os primeiros passos e as motivações do pesquisador para permanecer em trânsito por um longo período 20

“A estrada e o mundo”:

deslocamento, contexto e possibilidade de compreensão 25

Estratégias para “bater a estrada”:

notas metodológicas sobre a pesquisa 30

Um dentre tantos “roteiros” possíveis: apresentação da estrutura da pesquisa 41

BACKPACKERS: (DES) CONSTRUINDO UMA CATEGORIA 45

Caracterizando uma prática de viagem 47

A trajetória da categoria backpacker 61

CONTEXTOS E MOTIVAÇÕES 82

Contextos: considerações acerca dos pontos de partida das viagens 89

Motivações: o que leva os sujeitos a “caírem na estrada” 104

DIREÇÕES E RITMOS 134

Criando uma rota 137

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A rota como patchwork 193

Ritmos 195

FRICÇÕES E AUTODENOMINAÇÃO 211

Apresentando um hostel 216

Voltando para casa: razões para o término de uma viagem 260

Sobre as formas de autodenominação 269

CONSIDERAÇÕES FINAIS: NOTAS SOBRE CRÍTICA CULTURAL, ESTILO DE VIDA E MERCANTILIZAÇÃO DA EXPERIÊNCIA 276

BIBLIOGRAFIA 285

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Introdução: “caindo na estrada”

“Hit the road Jack and don’t you

come back no more,

no more, no more, no more

Hit the road Jack and don’t you

come back no more.”

(Hit the road, Ray Charles)

De que é feita uma jornada:

interpelações e elaboração de objetivos

L

ogo no início de sua obra A arte de viajar,1 o filósofo francês

Alain de Botton tece um interessante comentário acerca do “ardor” e do “paradoxo” que residem na maioria de “nossas” experiências de viagem. Embora sejam intensas, reveladoras de possibilidades de compreensão de como seria a vida fora das rotinas ordinárias, afirma o pensador, as viagens parecem não ser tomadas – de forma tão constante – como experiências que suscitam problemas para além do nível prático, para além de sua realização concreta. Ou seja, talvez em seu “ardor”, o caráter intenso ou de “ruptura” do deslocamento abrandaria tentativas de reflexão sobre sua própria intensidade, sobre a experiência de trânsito em si e os “efeitos” desta sobre a vida de seus empreendedores.

Contudo, acredito que a posição de De Botton pode prestar-se a outras leituras, incitando, inclusive, a produção de um quadro de

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discordância: hoje em dia, um considerável número de indivíduos experimenta as mais variadas formas de deslocamento, empreende viagens de distintas “qualidades” ou “naturezas”, com diferentes ob-jetivos ou “procuras” e, sobretudo, busca vivenciá-las, compreendê--las e explicácompreendê--las. Assim, atualmente, para além das atenções dirigidas às questões práticas de uma jornada, parece emergir um rijo plano de visibilidade referente aos esforços reflexivos mobilizados por uma significativa quantidade de viajantes a respeito de seus próprios mo-vimentos, o que – por exemplo – pode ser percebido a partir da ampla difusão de narrativas viáticas situadas não apenas em livros ou peri-ódicos especializados, mas – principalmente – no “mundo virtual”.

Este livro inscreve-se, assim, em um contexto de reconheci-mento dos deslocareconheci-mentos, das experiências de viagens – de forma mais específica –, como práticas que contribuem para o entendi-mento de lógicas sociais e códigos culturais próprios do cenário no qual estão inseridos: o mundo contemporâneo. A ideia de contempo-raneidade a qual esta pesquisa se reporta, que posteriormente será retrabalhada de forma mais detalhada, deriva das reconfigurações institucionais (BAUMAN, 2003; GIDDENS, 1991; MATTELART, 1994; URRY, 2000) que sinalizam uma espécie de descontinuidade em re-lação às experiências – modos de vida, esquemas de percepção, vi-sões de mundo – tradicionais e modernas (RODRIGUES, 1999).

Ora, mas de que práticas de viagem ou ações de deslocamento eu estaria falando? Um breve olhar sobre a “história dos povos” já seria capaz de acenar com a presença recorrente da viagem – seja como metáfora, seja como realidade – na vida dos homens (IANNI, 2000). Peregrinações, expedições científicas, explorações coloniais, diásporas, migrações laborais, exílios políticos... O leque das mobili-dades é amplo, sem considerar os movimentos turísticos que, desde o Grand Tour vitoriano,2 consolidam-se e incrementam-se ano após

2 Durante os séculos XVIII e XIX, jovens europeus – sobretudo ingleses – oriundos de famílias

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ano. Na realidade, o turismo, ou melhor, os deslocamentos turís-ticos, podem ser considerados, em uma perspectiva mais ampla, o terreno sobre o qual este trabalho se estrutura, sendo válido des-tacar que o que me importa é compreender um tipo de turismo espe-cífico que, por vezes, tende até a não ser reconhecido como turismo por seus próprios praticantes; refiro-me aos viajantes “independentes”3

de longa duração, também conhecidos popularmente como mochi-leiros ou backpackers.

Nas últimas duas décadas, as viagens “independentes” vêm crescendo em popularidade, desmobilizando, inclusive, um imagi-nário moral que a desqualificava por ser uma atividade empreendida, unicamente, por hippies ou por outros “desenraizados” (O´REILY, 2006). O desenvolvimento das tecnologias de comunicação e trans-porte, bem como o barateamento das passagens aéreas, contribuiu para o consumo ampliado desse tipo de viagem que, para alguns ana-listas, inclusive, apresenta-se como uma espécie de rito de passagem (NOY; COHEN, 2005) ou oportunidade para aquisição de outras modu-lações de capital, aproveitadas – no limite – no regresso dos viajantes ao assumirem suas carreiras profissionais (TSAUR; YEN; CHEN, 2010).

Desse modo, aqueles que empreendem viagens “independentes” de longa duração – conhecidos como backpackers, notadamente pela indústria turística internacional e como mochileiros, no Brasil – podem ser caracterizados, primeiramente, em relação à qualidade não institu-cionalizada de sua prática (COHEN, 1972). Eles assumem a organização

XIX, tal prática é reconhecida como elemento de impulsão para a evolução de uma indústria turística nascente. O Grand Tour será objeto de maior preocupação em momento ulterior neste mesmo trabalho. No entanto, para uma abordagem mais detalhada ver Towner (1985).

3 Nesse momento de introdução, os citados termos serão tomados como sinônimos. No

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“independente” de sua viagem, evitando, portanto, a compra de “pa-cotes turísticos” ou a mediação das agências turísticas. Ao configurar “independentemente” seus deslocamentos, procuram mobilizar va-lores como autonomia e flexibilidade, o que os permite, inclusive, trocar itinerários, desfazer planos, reformular horários etc.

Tais níveis baixos de planejamento antecipado (O´REILY, 2006), igualmente, possibilitam a extensão de sua permanência em uma dada localidade, o que pode ser motivada pelos encontros vi-vidos em sua trajetória. Ou seja, certa abertura para a casualidade, para as relações que possam vir a ser construídas, mesmo que de forma efêmera, na viagem, também, é tomada como uma espécie de valor estruturante da prática. A natureza desses contatos, é impor-tante destacar, não se faz unicamente em relação a outros viajantes, demais indivíduos em trânsito, mas também no que se refere às ten-tativas de vivenciar um pouco as rotinas dos lugares que se visita, engajando-se nas atividades cotidianas locais (PEARCE, 1990).

Ensaiando aqui uma tentativa preliminar para definir tal prá-tica de viagem, por fim, deve-se mencionar o fato de que o tipo de deslocamento em questão tende a ser contabilizado em meses, às vezes em anos, e não em dias, o que caracterizaria possivelmente um deslocamento restrito aos períodos de férias ou feriados alongados. Se há uma tentativa de estabelecer um contato maior com os locais visitados ou experimentar um período de alegado autodesenvolvi-mento, de aquisição de novas habilidades (ATELJEVIC; DOORNE, 2004), a estadia reduzida seria talvez um óbice para tal forma de viajar. No entanto, a permanência na estrada por tempos alargados (uma permanência de “longa duração”), impele – pelo menos um con-siderável número de viajantes – a adotar algumas restrições orça-mentárias; nesse sentido é que albergues (hostels), campings ou “casas de conhecidos”, apresentam-se como espaços de acomodação privilegiados, bem como a utilização de transportes públicos e/ou de baixo custo (como ônibus, trens e até caronas).

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por entender a atividade desses viajantes como processo e não como dado que a pesquisa em questão se configura. Saber quem, concreta-mente, são os sujeitos4 desses deslocamentos, que posições sociais

assumem em suas sociedades de origem, compreender por quais mo-tivos desejam experimentar períodos tão alargados em trânsito, como atribuem sentido a essa forma específica de viajar, como organizam suas viagens, como vivenciam o retorno a seus países de origem – em linhas gerais –, são disposições que conformaram os objetivos da in-vestigação que deu origem a este livro.

Tentando amalgamar o citado conjunto de questões, com o intuito de produzir um enunciado mais claro, este livro tem por ob-jetivo apresentar uma etnografia de viagens “independentes” de longa duração, considerando para tanto o “movimento material”, bem como as “políticas de significado” (CRESWELL, 2006), empreen-didos por seus sujeitos. Por “movimento material” deve-se entender os deslocamentos físicos dos viajantes, a maneira “crua”, como define Creswell (2006), de atingir um ponto partindo de outro. Já no que concerne às “políticas de significado”, tem-se como horizonte de re-flexão tanto as representações partilhadas pelos sujeitos no que se refere às suas jornadas quanto à prática das mesmas, a experiência do movimento sendo incorporada e valorada individualmente. O que se apresenta aqui, portanto, é uma pesquisa cuja construção teve como matéria empírica privilegiada as situações concretas de inte-ração, as configurações de relações de troca, de tensão, de conflito e, igualmente, os momentos de invenção, de criação e de elaboração de discursos presentes em uma – alegada – maneira singular de viajar.

4 Doravante utilizarei o termo sujeito para designar o viajante “independente” de longa duração.

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A fim de tornar mais claro o explicitado, uma comparação é passível de ser efetuada: se para antropólogos como Agier (2011, p. 37) e Magnani (2002, p. 15), respectivamente, a cidade deve ser pen-sada a partir de uma análise “relacional, local e micrológica” ou abor-dada com a atenção também dirigida às “múltiplas redes, formas de sociabilidade, estilos de vida, deslocamentos, conflito etc.” que a ela atribuem vida, a despeito de grandes categorizações ou classifica-ções, o mesmo talvez possa ser dito sobre a forma de viagem que procuro compreender. Não se trata, pois, de fazer uma pergunta do tipo: “O que é uma viagem ‘independente’ de longa duração?”, mas sim de assumir a seguinte interpelação: “Como se faz esse tipo viagem?”. Nesse sentido, tomar a ideia de “estrada” como um cadinho de experiências empíricas observáveis – observáveis no bojo de suas próprias situações e, por isso, incontornavelmente exigentes da parti-cipação do pesquisador – parece ser um princípio analítico, assim como metodológico, de imenso valor no que concerne ao propósito de fazer, ainda sob inspiração de Agier e Magnani, uma espécie de etnologia da estrada, tributária de um olhar de perto e de dentro.

Os primeiros passos e as motivações do pesquisador

para permanecer em trânsito por um longo período

Aprendi com um de meus interlocutores, um australiano que estava por quase seis meses viajando pelo continente sul-ameri-cano, que toda grande viagem, após iniciada, deve receber uma “re-carga” de estímulos de tempos em tempos. Essa espécie de “re-ener-gização” das motivações iniciais, no decorrer da própria experiência de deslocamento, teria a função, segundo ele, de manter o desejo de viajar “aceso”, não obstante os inúmeros descompassos, impre-vistos e desvios em relação a um “plano inicial”, mesmo que tal plano seja para alguns apenas uma imagem sutilmente contornada, um tanto desbotada.

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apontando as principais motivações que me levaram, também, a aceitar o desafio de “cair” nessa outra espécie de estrada. Próximo da crença do citado viajante australiano, devo dizer, de antemão, que essa “pesquisa-caminhante” não se deu sem imprevistos e desvios, precisando de uma séria carga de “reestímulos” ou novos estímulos durante seu próprio desenvolvimento.

A primeira vez que entrei em contato íntimo com sujeitos que estavam em trânsito por longos períodos foi no ano de 2008. Eu es-tava participando de um programa de cooperação acadêmica, ainda na condição de estudante de mestrado, estabelecido entre a Universidade Federal do Ceará (UFC) e a Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). O referido programa tinha a duração de um mês, representando a oportunidade de estreitar relações com pesquisa-dores e professores da UFRJ que partilhassem comigo o interesse pelo diálogo entre as ciências sociais e as imagens, tema geral sobre o qual desenvolvia minha dissertação.

À época, no mês de novembro daquele ano, a cidade do Rio de Janeiro também sediaria a 13a edição da Mostra Internacional do

Filme Etnográfico, um momento ímpar, inclusive, para a realização de entrevistas com diretores/pesquisadores e demais profissionais que atuassem nas interseções entre cinema e antropologia, mais es-pecificamente. A possibilidade, no entanto, de participar de ativi-dades tão privilegiadas para meus objetivos de pesquisa fez-me “abraçar” esse deslocamento sem um planejamento prévio. Apenas depois da minha primeira semana na cidade dei-me conta de que seria bastante incômodo continuar hospedado na casa de familiares ou amigos e que meu orçamento era demasiadamente reduzido para tentar arcar com as despesas de qualquer quarto de hotel, mesmo buscando as opções menos dispendiosas.

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e ainda não anunciado. Foi justamente em uma dessas “andanças” que me deparei com uma casa branca, de dois andares, com um muro de pedra entrecortado por grades carcomidas, talvez pela maresia, que ostentava em seu portão “preto-enferrujado” uma enorme placa verde com os seguintes dizeres (em cores bem luminosas e letras garrafais, diga-se de passagem): AVAILABLE ROOMS.5

A propaganda chamativa fez efeito: curioso, resolvi tocar a campainha ao pensar que se tratava de uma república para estu-dantes estrangeiros ou mesmo de uma pousada. Em segundos, o portão se abriu, permitindo a visão daquilo que antes era fragmen-tado pela presença das grades; estava, então, diante de um simpá-tico jardim, repleto de bancos e mesas de madeira, em tom escuro, utilizados por um grupo de pessoas que ali fumava e jogava cartas. Com um acanhado aceno de cabeça, cumprimentei a claque de joga-dores e percorri um corredor de paredes brancas, enfeitadas por um sem-número de fotos e quadros, que terminava em uma pequena sala onde se localizava um rústico balcão que compreendi ser uma espécie de recepção.

Com um sorriso largo, em trajes coloridos, uma garota loira, com um marcante penteado dread,6 atendeu-me. As primeiras

pala-vras ensejaram uma situação constrangedora: ela se pronunciava em inglês, ao passo em que eu, surpreso por ter de mobilizar um vocabu-lário até então quase que esquecido por mim, não conseguia articular nada em termos de fala. Notando a natureza confusa da relação, outra garota – essa morena, usando um vestido também de cores vibrantes – aproximou-se e, em claro português, explicou-me que não está-vamos em uma pousada e, tampouco, em uma república de estu-dantes: aquele espaço de hospedagem, na realidade, era um albergue,

5 Tradução: “Quartos disponíveis”.

6 O penteado dread (ou dreadlock) consiste na feitura de espécies de tranças, em formatos

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ou hostel, algo de que tinha muito ouvido falar por meio de filmes e livros, mas com que jamais havia me encontrado pessoalmente.

Pacientemente, as duas garotas – agora, entendidas como re-cepcionistas de um espaço de hospedagem – esforçavam-se para fornecer-me a maior soma de informações sobre o lugar, ao mesmo tempo em que eu – com olhar agitado e mente inquieta – percebia tal atmosfera e fazia minhas próprias comparações: não se tratava de um espaço de acomodação como um hotel, a formalidade no trato entre funcionários e possíveis hóspedes era notoriamente diminuta, não havia nem mesmo um uniforme a ser utilizado pelos funcioná-rios! Os espaços, como o referido jardim, pareciam deliberadamente construídos para serem consumidos coletivamente, facilitando a in-teração entre os hóspedes, o mesmo acontecendo – talvez essa a ca-racterística mais emblemática do lugar – no que tangia aos quartos: todos eram dormitórios coletivos, compostos ora por seis, ora por 12 ou até por 20 camas.

O preço era bom e resolvi ficar; além disso, a “fachada” (GOFFMAN, 2012) delineada pelas duas garotas – englobando também o que faziam no hostel e talvez até o próprio hostel –, de fato, parecia ser merecedora de uma valorização positiva, senão social, pelo menos de minha parte. Sendo aquela a minha primeira experiência em um sistema de hospedagem em tal estilo, pedi para que me acomodassem em um quarto com apenas seis pessoas, um pouco mais caro, mas, se comparado ao preço da diária do número de hotéis consultados, bas-tante razoável. Com seis pessoas, em minha imaginação, o albergue teria mais chances de manter sua “fachada”, reafirmando a “linha”7

consistente anunciada em nosso primeiro encontro.

7 Para Goffman (2012), as pessoas habitam um mundo composto por encontros sociais. Esses

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Com efeito, esse momento de estabelecimento em um dormi-tório coletivo sinalizou a minha “entrada” em um terridormi-tório, em um “universo” até então desconhecido e que, posteriormente, viria a se tornar o “objeto” dessa pesquisa. No dormitório, conheci, ao cair da noite, dois viajantes com os quais travei relação diária por quase um mês. As conversas com eles e com outros tantos que tive a oportuni-dade de conhecer durante minha estadia foram decisivas para a afir-mação das motivações iniciais deste trabalho. As narrativas – e tais sujeitos eram, realmente, “bons narradores”, em um sentido talvez benjaminiano, por deterem um acurado “senso prático”, retirando das experiências, suas e de outros viajantes, aquilo que contar (BENJAMIN, 1992) – despertavam inúmeras perguntas, incitavam a curiosidade, produziam interpelações.

Como disse na primeira sessão desta introdução, o desejo de compreender os sentidos, o porquê desses processos de desloca-mento me mobilizou. Inicialmente, esses viajantes – lidando com um imaginário povoado, sobretudo por personagens literárias – pare-ciam saídos de livros escritos por autores como Jack London ou Jack Kerouac. No entanto, essas impressões se dissipavam na medida em que o estreitamento das relações implicava a “descoberta” de biogra-fias reais, de histórias de sujeitos concretos, encarnados, que, por mais que flertassem com a ficção, não eram por ela produzidos. O reconhecimento dos viajantes enquanto sujeitos informados por ex-periências de “rotas e raízes” (CLIFFORD, 1997) só incrementava a curiosidade, suscitava novas perguntas, em que a explicitação dos sentidos de uma viagem já não era o único fator importante.

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Em suma, foi da partilha das experiências de aventura de su-jeitos em trânsito por longos períodos, localizada inicialmente em um dos espaços “tradicionais” de acomodação desses viajantes (o albergue ou hostel), que o desejo de compreender, de forma com-plexa (os movimentos físicos, as práticas e as representações), a ação de viajar de forma “independente” surgiu. É, portanto, o que fazem esses sujeitos que em sua dinâmica se assemelham à “valsa de pião”, sujeitos “salto de bola”, cuja “curiosidade arrasta e desconsola” – to-mando a liberdade de brincar com algumas palavras do poeta C. Baudelaire8 – a “matéria” privilegiada dessa investigação.

“A estrada e o mundo”:

deslocamento, contexto e possibilidade de compreensão

Se nos fosse dada a oportunidade, nos dias de hoje, de parti-lharmos alguns momentos com o senhor Phileas Fogg9 e este,

moti-vado por qualquer acontecimento, dissesse que seria possível “dar a volta ao mundo” em apenas oitenta dias, certamente expressaríamos espanto. No entanto, seria um espanto de teor totalmente distinto daquele manifestado por seus companheiros de Reform Club: dadas as condições atuais, oitenta dias seria tempo mais que suficiente para visitar os continentes que formam o globo; a surpresa, então, residiria na proposição de um período tão alargado para realizar a empreitada e não na impossibilidade de tal feito, o que, em tempo, não nos levaria a fazer aposta alguma.

8 Trechos do poema Le Voyage, escrito em 1859, que virou epílogo de uma das edições de Flores

do mal. Para mais sobre C. Baudelaire e sua obra, ver Raymond (1997).

9 Phileas Fogg é o personagem principal da obra A volta ao mundo em 80 dias, escrita pelo francês

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A experiência de mudança nos registros do tempo e do espaço, produzindo uma espécie de “avizinhamento” de partes antes re-motas do mundo, definitivamente não é algo novo, produto especí-fico da contemporaneidade.10 O que é interessante perceber, todavia,

é a radicalização deste “estreitamento” do mundo na atualidade, cul-minando na produção de um cenário de “hiperconexão” (CLIFFORD, 1997), de extrema mobilidade, que não mais se restringe às pessoas, mas que engloba, também, produtos, imagens, informações e até desperdícios (URRY, 2000). Tal cenário, como dito, derivado de novas constituições espaçotemporais, apresenta-se como altamente desa-fiador em termos de análises sociais, políticas ou culturais.

Aceitar esse desafio analítico implica reconhecer noções como as de “fluxo”, de “rede” ou de “híbrido” (HANNERZ, 1997; URRY, 2000), como novas “ferramentas” compreensivas, problematizando um histórico, como sinaliza Urry (2000; 2007), das ciências sociais no que concerne ao seu apreço por categorias ou conceitos estabili-zantes. Pessoas, imagens, informações, dinheiro, perigos estão – na expressão do próprio autor – on the move, conformando “processos transnacionais” (SASSEN, 2010) que interpelam a utilização de refe-rências, sejam elas científicas ou políticas, balizadas por valores como os de estabilidade ou fixidez. Essa “virada da mobilidade”11 ou

“virada global”12 demanda, portanto, um esforço para diluir as

opa-cidades de determinados processos sociais, sendo a prática de des-locamentos, de viagens, talvez uma experiência boa para se pensar13

acerca de alguns contornos do mundo contemporâneo.

Considerando o exposto, a etnografia apresentada – embora esta, de modo algum, seja minha pretensão – poderia, ainda que

10 Diversos pensadores já sinalizaram que tal “movimento totalizante” (ORTIZ, 1999) possui uma

história, tendo como raízes, sobretudo, a expansão do capitalismo e o advento e a consoli-dação das sociedades industriais, eventos localizados entre os séculos XV-XIX.

11 Na expressão original de J. Urry (2007), “mobility turn”.

12 “Virada global” ou, no original, “global turn” é a expressão utilizada pelo antropólogo U.

Hannerz para sinalizar processos de interconexão que não são apenas de ordem econômica. Para mais, ver Hannerz (1999).

13 Aqui, faço alusão à frase de Lévi-Strauss (1980) acerca do caráter simbólico do mito, assumindo

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timidamente, contribuir para o entendimento, a partir de materiais empíricos, de algumas questões apontadas por um conjunto de es-tudiosos que toma por tarefa a compreensão da dimensão estrutu-rante dos fluxos, das redes de relações transnacionais, das novas formações sociais, no que tange à contemporaneidade. Uma pri-meira questão, nesse sentido, a ser destacada é a desestabilização da dicotomia global/local ou global/nacional.

Apesar de alguns discursos destacando o contrário, é preciso admitir que os viajantes interlocutores deste trabalho – mesmo aqueles que visam a construir seus trajetos da forma mais “indepen-dente” possível – não estão isentos de participar das dinâmicas de um “mercado”, de um “comércio global” (SASSEN, 2010), que parece se impor aos recônditos mais distantes do globo. A atuação, junto às empreses de aviação, na hora da compra de passagens, a utilização das tecnologias de informação e de comunicação (TIC) no intuito de obter o maior número de recursos, relatos, depoimentos, contatos, para estruturar seu próprio plano de viagem, talvez sejam exemplos de uma flexibilização de escalas: o local, assim, não é o oposto do global; ele é atravessado por fluxos de informações, por redes de comunicação, por uma infraestrutura de transporte, o que o põe em um regime de visibilidade e acessibilidade consideravelmente amplo.

Ainda seguindo esse argumento, ao tornarem-se fisicamente acessíveis, claramente, as dimensões “locais” de qualquer cidade, vila ou povoado passam a ser partícipes de uma relação; elas deixam de ser totalmente “territorializadas” por causa do contato experi-mentado. Essa relação tende a ser mais intensa na medida em que tais lugares assumem uma espécie de “vocação turística”, engen-drando – apropriando-me da expressão cunhada por Appadurai (1997) – um caráter “translocal”. As translocalidades seriam lugares de intensa circulação de pessoas e mercadorias, onde a vivência de novos laços de trabalho, afetivos ou de lazer, por exemplo, impli-caria uma reorganização da vida social local, não mais podendo ser apreendida sob seus traços estritos: relações e conexões anteriores às experiências de contato.

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que são da ordem do global, podem ser observados – no que diz res-peito à prática de viagens “independentes” de longa duração –, sobre-tudo no sudeste asiático. Muitos são os relatos que informam a emer-gência de uma “estrutura receptiva”, repleta de lugares de acomodação e de alimentação, destinada, especificamente, ao turismo backpacker (HOTTOLA, 2005; IAN; MUSA, 2007). Dentre “aspectos translocais”, destacam-se o aumento no número de albergues cujos donos não são moradores locais – possibilitados de lá residir pelo firmamento de laços de casamento, por exemplo, com “nativos” –, e o esforço para que estabelecimentos de acomodação ou alimentação, bem como em-presas que oferecem tours, figurem como indicações de guias fa-mosos, com amplo consumo, tais como Lonely Planet, Let´s Go ou Rough Guides14 (WELK, 2007).

Viajantes “independentes”, como salientado, conformam uma relação de proximidade com as tecnologias da informação e com uma multiplicidade de dispositivos comunicacionais. Embora se pense em um comportamento de viagem por parte desses sujeitos, que privilegia a “abertura” e a não fixação de itinerários, seria um equívoco pensar que seus deslocamentos deixam de considerar os conjuntos de informações disponíveis sobre um destino escolhido ou acerca de uma rota composta por lugares a serem visitados. A intimidade entre os viajantes e as “novas tecnologias de informação e comunicação” (TIC´s), nesse sentido, podem ensejar reflexões acerca de outro constituinte basilar do contexto social contempo-râneo: a “mediatização” da vida social.

Esses viajantes não somente “colhem” imagens, dados, depoi-mentos acerca dos destinos que desejam visitar; eles também narram suas experiências de viagem em espaços virtuais, em redes sociais, servindo igualmente de “plataforma de informações” para outros tantos sujeitos que almejam empreender novos deslocamentos ou transformar seus itinerários a partir de outras informações adqui-ridas. As TIC´s ainda permitem aos sujeitos em trânsito a vivência de uma copresença: a experiência de simultaneidade, mediada pelos

14 Para uma reflexão mais aprofundada sobre guias turísticos e formas de apresentação e

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chats, por exemplo, que possibilitam uma interação face a face com familiares, amigos, companheiros etc. que estão localizados em ou-tras partes do mundo. Além disso, canais de comunicação como e--mails, skype ou facebook autorizam tentativas de parenização de relações – como as estabelecidas durante as próprias viagens; refiro--me aos encontros com outros viajantes ou com demais pessoas ao longo de uma trajetória de deslocamento – que, de outro modo, esta-riam fadadas à efemeridade.

Outro “traço” contemporâneo que poderia ser objeto de apre-ciação, levando ainda em consideração as práticas de viagem aqui estudadas, é a conexão entre pessoas e objetos. De acordo com Urry (2007), pensar o conceito de agência centrado exclusivamente no agir humano é um equívoco; as conexões humanas com as coisas ou objetos tornam-se cada vez mais íntimas, devendo as últimas serem tomadas como, também, fatos sociais. Entre viajantes que buscam efetuar suas jornadas de forma “independente” e alargada, a indis-pensabilidade de mapas, bússolas ou GPS´s (“sistema de posiciona-mento global”, em português), bem como a utilização recorrente de computadores, filmadoras ou máquinas fotográficas, ilustra algumas das várias mútuas interseções entre pessoas e objetos, tornando-os, em determinadas situações, inclusive, algo da ordem do protético.

Haveria, ainda, a meu ver, uma miríade de questões que po-deria ser suscitada pela prática do estilo de viagem em análise no intuito de compreender determinadas singularidades do mundo con-temporâneo.15 No entanto, penso que as já mencionadas fornecem

suporte para a seguinte afirmação: sejam como metáfora, sejam como realidade, as práticas de viagem podem apresentar-se como chaves de leitura de um mundo cada vez mais marcado pela mobilidade. Portanto, se é fato que, empírica e conceitualmente, o social deve ser apreendido como mobilidade (URRY, 2007), a viagem torna-se, de

15 Tais como o declínio da ideia de estado-nação como contentor dos processos sociais (SASSEN,

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forma incontornável, imagem e concretude destacadas para se pensar esse contexto de “estreitamentos” e “avizinhamentos”, de intercone-xões, que dá corpo ao agora.

Dialogando com Barreira (2012), a viagem aqui é tomada como uma “narrativa contemporânea” sobre o mundo atual. Em um debate com Benjamin (1992), a citada autora levanta a hipótese de que a arte narrativa não se arrefece de todo diante da experiência no mundo capitalista contemporâneo; ela, na realidade, se transforma ou se adapta “aos novos” tempos, ganhando novos contornos expressivos ou discursivos, continuando, no entanto, a servir de “apresentação e representação”, “chave de leitura”, para determinados processos so-ciais. O que gostaria aqui, então, é de manter essa posição: ao buscar “traduzir” um conjunto de práticas de viagem, considerando o “ponto de vista nativo” a partir da observação e participação em di-ferentes “contextos de situação” (MALINOWSKI, 1935), deparo-me talvez com uma nova espécie de flâneurie – que se transporta das “passagens” e “galerias” da cidade para as “rotas” ou “veredas” do mundo – mas que não deixa de identificar ou manifestar expressões e impressões acerca da “sociedade” na qual se inscreve.

Estratégias para “bater a estrada”:

notas metodológicas sobre a pesquisa

A intenção de empreender uma pesquisa etnográfica, baseada no trabalho de campo intensivo em uma área limitada espacialmente, parece, hoje, deparar-se com inúmeros desafios (CAIAFA, 2002; CLIFFORD, 2008; MAGNANI, 2002). A constituição de um mundo mais “complexo, integrado e fragmentado”, torneado pelo fluxo incessante dos processos globalizantes (MARCUS, 1994), interpela o modelo tra-dicional de etnografia – calcado na experiência malinowskiana – ao permitir o surgimento de novos temas de investigação.16 Estou, aqui,

16 A experiência etnográfica de B. Malinowski, durante bastante tempo, informou a prática de

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falando de “formas de vida emergentes” (FISCHER, 2011) que não res-peitam velhas dicotomias ou categorizações, impossibilitando, por exemplo, a manutenção de distinções como local e global.17

Esse é o caso das viagens “independentes” de longa duração. Devido à sua extrema mobilidade, ao seu constante cruzamento de fronteiras, a sua prática desterritorializada, o tropos clássico – acima mencionado – exige ser reconfigurado. Como fazer uma pesquisa a partir de uma interação intensa com sujeitos que estão sempre em movimento? Como enfrentar o desafio de lidar com um “grupo” con-siderado por alguns pesquisadores como “não estável” (SORENSEN, 2003)? De que maneira proceder diante de sujeitos que não se esta-belecem, que não habitam lugares limitados espacialmente quando em suas práticas de deslocamento?

A primeira ação diante desse conjunto de impasses no que se refere à escolha de estratégias metodológicas foi procurar atentar para momentos em que o movimento de viagem parecia “cessar”; estou me referindo aos lugares utilizados pelos viajantes para hos-pedarem-se. Durante seus deslocamentos de grande duração, como veremos no decorrer desse trabalho, os sujeitos costumam procurar espaços de acomodação que não onerem muito seu orçamento, bem como desejam ambientes onde possam encontrar outras pessoas em trânsito e que proporcionem certa proximidade com a comunidade na qual se localizam (O´REILLY, 2006; WILSON; RICHARDS, 2004). Nesse sentido, hostels apresentam-se como as principais opções.18

tão decantado modelo, o que implica um esforço no sentido de experimentar outras modali-dades de representação e de refletir acerca da própria”estética operativa” (MARCUS, 2009) do trabalho de campo. Para uma crítica da representação, ver Clifford e Marcus (1986); para uma discussão sobre autoridade, ver Clifford (2008) e Stocking Junior (2000); para uma reflexão acerca de novos experimentos etnográficos, ver Fischer (2009) e Reinoso (2008).

17 As configurações sociais da contemporaneidade – e seu caráter desestabilizador de dicotomias

clássicas – vêm sendo discutidas por grande número de autores. Por exemplo: sobre os limites do “nacionalismo metodológico”, ver Sassen (2010); para uma reflexão acerca da “produção de lugar” para além das noções de global e local, ver Appadurai (1990); para uma discussão sobre mecanismos de desencaixe que promovem interações independentes do lugar, ver Giddens (1991); para os limites do conceito de Estado-nação, assim como para uma crítica acerca do próprio conceito de sociedade, ver Urry (2000).

18 Dialogando com Magnani (2002), pode ser afirmado que os hostels configuram uma das

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Assim, durante seis meses, alojei-me no citado tipo de acomo-dação. A estadia, porém, não foi contínua; organizei-me para passar três períodos de dois meses em diferentes albergues da cidade do Rio de Janeiro.19 A ideia era permanecer nos espaços com o intuito

de fazer contato com os viajantes que por lá se alojavam, assim como buscar uma maior familiaridade com as dinâmicas próprias desse tipo de acomodação. Na realidade, à medida que entendia me-lhor o funcionamento dos albergues, as possibilidades de contato se manifestavam de forma mais clara; quando percebi, por exemplo, que quase todo hostel oferecia atividades ou jogos para que os hós-pedes se conhecessem e interagissem, aproveitei – prontamente – tais oportunidades de aproximação, estabelecendo diálogos que, por vezes, se alongavam por toda a estadia do sujeito no lugar.

No entanto, não importava o quanto permanecesse nos alber-gues, a rotatividade dos viajantes continuava a mesma, ou seja, bas-tante alta. Poucos eram os que se acomodavam por mais de uma se-mana, lembremos que são indivíduos que, via de regra, estão imersos em uma jornada longa, com pretensões de conhecer o máximo de destinos possíveis. Considerando tal particularidade, decidi me pre-parar para acompanhar alguns desses sujeitos em suas movimenta-ções. A partilha de mais momentos, obviamente, sinalizava uma in-teração mais intensa, em que uma comunicação menos “corrida” e caótica poderia talvez tomar forma. “Colocar a mochila nas costas” e seguir os passos de alguns viajantes, desse modo, configurou-se como o segundo momento desse trabalho de campo.20

sentido, o albergue é compreendido não como um simples cenário, um mero lugar de aloja-mento, mas como uma importante parte constitutiva da própria dinâmica viática analisada.

19 A escolha pelo Rio de Janeiro se deve ao fato de essa cidade possuir a maior infraestrutura em

termos de turismo backpacker no Brasil. Embora o país ainda não tenha uma estrutura recep-tiva considerável para tal tipo de turismo, o Rio de Janeiro destaca-se por ser dotado de um significativo número de albergues e de empresas especializadas em turismo mochileiro, além de ser um destino visitado por milhares de pessoas todos os anos.

20 A opção por iniciar meu trabalho de campo a partir da exploração dos lugares de hospedagem

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A primeira dessas experiências de partilha de um “itinerário” ou de “rota” durou um mês e meio, correspondendo à exploração de tre-chos da costa brasileira, uruguaia e argentina. Depois, seguiram-se ou-tras duas, com a duração de cerca de um mês cada uma: a primeira, tendo como espaço de execução a capital do Chile e trechos de sua costa, no sentido de sua fronteira com o Peru; a segunda, situando-se originalmente no continente europeu (começando no norte de Portugal), findando na costa norte-africana, nomeadamente na cidade de Essaouira, no Marrocos.21 O “pontapé inicial” foi, basicamente, o mesmo para

todos: eu hospedava-me em um albergue, optando, normalmente, pelos maiores quartos coletivos para me alojar. Dessa forma, tinha a possibi-lidade de conhecer um maior número de pessoas, algo que era intensifi-cado conforme frequentava as áreas coletivas dos hostels e participava de atividades coletivas organizadas pelo staff (funcionários) dos mesmos. Ao aproximar-me, mostrava-me inicialmente interessado em saber sobre os planos de viagens de meus interlocutores: as próximas localidades a serem visitadas, o tempo imaginado de permanência nos

itinerários, essa feitura conjunta de deslocamentos, oportunizou a emergência do que Magnani chamou de “experiência etnográfica”; a partir de uma experiência permeada por imprevistos, pouco controlada, descontínua, pude deparar-me com expressões “reveladoras” da prática em questão que talvez não tivessem lugar em outra ambiência. Assim, por exemplo, é que diante de uma situação de “partilha na/da estrada” é que conheci narrativas acerca de afetos, intimidades e dramas familiares nos quais meus interlocutores ocupavam os papéis de protagonistas.

21 As duas primeiras rotas tiveram como principal critério de execução a relação de empatia que

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lugares seguintes, a maneira como o deslocamento seria feito, o mon-tante de dinheiro que pensavam destinar às outras fases da jornada; tudo isso era objeto de extrema curiosidade.

Obtendo esse tipo de informação, ia confrontando-as com minha disponibilidade de tempo e, principalmente, com meus re-cursos financeiros. Assim, quando as condições foram favoráveis, dispus-me a acompanhar alguns sujeitos que havia conhecido, como dito, nos albergues. Estar em trânsito com meus interlocutores me revelava uma espécie de “gramática” da prática (BOURDIEU, 1994) que não era possível perceber estando, unicamente, nos albergues, e que tampouco era facilmente verbalizada.22 O que se deveria

consi-derar para escolher um destino, por quais meios os lugares de hos-pedagem eram eleitos e reservados, que tipos de passeio eram bus-cados nos locais visitados, que fontes eram constantemente visitadas no intuito de angariar informações sobre uma rota, uma cidade ou mesmo um país, que “técnicas do corpo” (MAUSS, 2003) – comer, carregar equipamento, dormir – eram mobilizados nos expedientes de viagem de longa duração... Essas foram algumas das “pistas” cujo acesso foi oportunizado por meio das viagens conjuntas.

As viagens “independentes” de longa duração,como argumen-tado,fazem parte de um contexto, estão inseridas em um “universo” que é, igualmente, congregado por outros atores. E foi diante de tal ideia que um terceiro momento de meu trabalho de campo ganhou espaço: durante três meses, inseri-me, como funcionário, em um al-bergue cujo dono, também, era responsável por uma operadora de turismo, especializada em backpackers. A intenção era buscar um

22 Acompanhar os deslocamentos de alguns viajantes, metodologicamente, sinalizou uma

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entendimento mais complexo, o mais relacional possível no que diz respeito ao turismo mochileiro. Se a pesquisa buscava estruturar-se sobre as representações, práticas e movimentosprópriosdessa ma-neira de viajar – que oscilavam entre expressões de crítica a um tu-rismo massivo e processos de institucionalização, de conformação de um mainstream (COHEN, 1973; O´REILLY, 2006; RICHARDS; WILSON, 2004) –, como não considerar as ações desses dois atores fundamentais para a dinâmica viática em análise?

A vivência como funcionário de um albergue permitia-me dar continuidade à investigação junto aos viajantes: pela posição que ocupava dentro do staff – dividindo-me entre as atividades de recep-cionista e barman – era constantemente solicitado, tendo multipli-cadas as condições de conhecer pessoas. Todavia, o mais interes-sante dessa experiência foi ter acesso aos “bastidores” de um hostel. Tive a oportunidade, por exemplo, de notar sob quais lógicas um al-bergue desenvolvia os produtos que oferecia ou como se situava diante de uma concorrência crescente,23 bem como tive a

oportuni-dade de manter relações com um sem-número de pessoas que também ali trabalhavam, tecendo uma valiosa familiaridade com o que acontecia em termos da dinâmica do lugar.24

23 Como frisado, os viajantes “independentes” tendem a escolher seus lugares de hospedagem

não somente pela acessibilidade em termos financeiros, mas também por aquilo que ofe-recem em termos, por exemplo, de experiências. Assim, muitos albergues oportunizam con-tatos com atividades locais, com ações que fazem parte da vida cotidiana de qualquer mo-rador: abrigam rodas de samba, incentivam a prática de esportes na praia, promovem aulas de dança em suas áreas de convivência etc. Alguns, ainda, desenvolvem produtos como cursos de culinária ou de feitura de drinks, com forte apelo local, além de também abrigarem lojinhas de artesanato ou de acessórios de praia. As interações proporcionadas entre os hóspedes, e entre os hóspedes e a “cultura local”, são critérios de avaliação caros entre os mochileiros, que podem, com base nisso, indicar ou “queimar o filme” de algum hostel em meio aos colegas ou em comunidades virtuais de onde são colhidas informações de viagem. Uma boa posição no que diz respeito a tal avaliação, por seu turno, faz com que o albergue ganhe notoriedade, despontando em relação aos demais concorrentes.

24 Como funcionário de um albergue, tive a oportunidade de manter contato, primeiramente,

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A atuação na operadora tinha lugar nos finais de semana, acontecendo de modo concomitante ao meu trabalho no albergue. Assim, pude perceber a íntima relação que se estabelecia entre essas duas grandes “constelações” presentes no “universo” das viagens “independentes” de longa duração: eu participava, na maioria das vezes, como guia ou coordenador de pick-up25 de passeios ou tours

oferecidos pela operadora em questão, mas vendidos – sob um sis-tema de comissões – pelo próprio hostel do qual era funcionário. Novamente, a condição de guia,26 como a de barman ou

recepcio-nista, me colocava em um plano de visibilidade que proporcionava uma enorme interação; eu fazia parte de uma espécie de frontdesk27

ao trabalhar diretamente com os viajantes –, mas com riquíssimos acessos ao que poderia chamar de backstage desta “cena” viática.

É válido ressaltar, ainda, a importância de considerar o cyberes-paço (LEMOS, 2001; RECUERO, 2009)neste experimento etnográfico. Durante todo o processo de pesquisa, visitei inúmeros sites e parti-cipei, mormente, de comunidades, fóruns e chats que tinham como temática principal as práticas de viagem de longa duração.28 Nos

ci-tados espaços virtuais era possível, por exemplo, me deparar com

passava atrás do balcão da recepção, o que incluía relações de afeto, sexuais, conflitos e dis-putas por cargos, questões salariais, manifestação de preconceitos etc.

25 As operadoras turísticas oferecem seus produtos para vários albergues, de modo que, em cada

atividade, hóspedes de distintos hostels são congregados. Para cada uma dessas atividades é preciso organizar um deslocamento, que é feito por meio de vans; a ação de buscar os hós-pedes nos diferentes hostels chama-se pick-up.

26 Na realidade, como um sujeito não morador do Rio de Janeiro, certamente, eu não reunia as

capacidades ideais para fazer o papel de guia. Minha posição, na maioria das vezes, era a de uma espécie de auxiliar, ajudando, sobretudo, em passeios cujo número de turistas era grande. Em algumas oportunidades, no entanto, na falta de um guia, eu me tornava uma espécie de “quebra-galho”, trabalhando exclusivamente em espaços com os quais já detinha algum grau de familiaridade, como nos tours aos estádios de futebol.

27 O frontdesk é o próprio balcão da recepção. Esse espaço é importante porque ali se dá o

pri-meiro contato entre o funcionário e o hóspede; é ali que uma interação futura, de maior inten-sidade, pode se inaugurar. No balcão, também, é que são vendidos os tours ou que são dadas as informações da cidade ao viajante, é sempre um lugar de bastante comunicação, repleto de gente, por vezes, disputado pelos próprios hóspedes. Contudo, estar atrás do balcão é oportu-nidade de participar das dinâmicas internas, tomar conhecimento dos acontecimentos sob uma nova ótica, formulando reflexões a partir de outro ângulo.

28 O site mochileiros.com e o chat contido na página do guia Lonely Planet

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discussões acerca do melhor tipo de mochila a ser utilizado em via-gens específicas, como as de esporte, ou sobre que passeios fazer no estilo off the beaten track29(WELK, 2004) em quase todas as cidades do

mundo. Relatos de viagem, sugestões de roteiros e informações sobre como fazer uma planilha de gastos, também podiam ser acessados.

Como o exercício de “autonomia” (COHEN, 1973; HOTTOLA, 2005; SORENSEN, 2002) no que tange à produção dos deslocamentos é valor capital nas viagens backpackers, a presença frequente nesses fóruns e comunidades virtuais torna-se algo quase que imprescin-dível. Como dito, em tais espaços é possível capitalizar informações, transformando-as em matéria de elaboração de roteiros muito pró-prios, mas a riqueza de tais espaços não fica aí restrita: há a possibi-lidade de se inaugurar relações bastante ativas junto aos demais par-ticipantes, em que uma dinâmica de troca de informações mais direta pode ocorrer. Encontros presenciais, bem como viagens conjuntas, são muito comuns a partir dos contatos estabelecidos.30

Os momentos de estadia prolongada nos albergues, os es-forços para acompanhar determinados sujeitos em seus desloca-mentos, a inserção como funcionário em um hostel e em uma opera-dora de turismo backpacker, bem como a constante presença em espaços virtuais relacionados ao tipo de viagem em questão, con-formam meus esforços para estabelecer uma estratégia de pesquisa de campo que busca negociar com um “objeto” desterritorializado por excelência. Viajantes cruzam fronteiras, apresentam-se sob uma espécie de “estado fluido”, para me apropriar de uma expressão de Bachelard (1996), impossibilitando um projeto etnográfico cons-truído sobre coordenadas fixas, ou a partir de um mapeamento – seja espacial, seja no que diz respeito a relações e contatos – prévio.

29 A expressão off the beaten track diz respeito àquilo que é feito de forma a desviar-se do

ca-minho convencional, conhecido, “batido”. Nesse sentido, viajantes “independentes”, via de regra, procuram atividades que se distanciam dos “caminhos trilhados” pelo turismo de massa, ou seja, atividades off the beaten track.

30 No site mochileiros.com (www.mochileiros.com/), por exemplo, é possível achar uma

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O que procuro aqui apresentar, portanto, é uma forma de in-vestigação, um experimento, como já sinalizado, baseado na ins-crição do pesquisador em uma “paisagem que se move” (MARCUS, 1994), como não poderia ser diferente por se tratar de uma reflexão acerca de uma prática que não se delimita espacialmente, que não reconhece um único território como seu lugar privilegiado. Assim, ocupei-me em dar forma a uma atuação também móvel, pela qual, de fato, partilhasse dos processos de deslocamento que a mim se apre-sentavam, investindo na recusa – desse modo – da assunção de uma posição de observação radicalmente destacada, o que me retiraria o contato com o fluxo dos acontecimentos. Esse empreendimento de pesquisa, dessa forma, busca relacionar-se com aquilo que Marcus (2009, 2004) chamou de trabalho de campo multilocalizado ou mul-tissituado, uma necessidade diante dos “novos arranjos sociais” en-gendrados nas dinâmicas da contemporaneidade.

Outro aspecto que vale ser salientado neste experimento etno-gráfico é sua intenção de se configurar de forma dialógica (TEDLOCK, 1979). Na realidade, a pesquisa ora apreciada busca se afastar da aura documental e de um modelo de representação naturalista (CLIFFORD, 2008) que durante muito tempo pareceu informar inú-meras etnografias. O empreendimento de viagens “independentes” de longa duração, nesse sentido, é composto de sujeitos, por su-jeitos que elaboram suas próprias interpretações acerca de suas prá-ticas, o que em hipótese alguma deve ser desconsiderado. Aqui, a posição de “informante” é problematizada, ganhando espaço uma outra: a de “interlocutor”. Dito de outra maneira, a manutenção de um status único em termos de interpretação é deslizada, abrindo-se a possibilidade de expressão de um trabalho confeccionado de modo colaborativo, ou por meio da cumplicidade (MARCUS, 2009), em que as múltiplas vozes que atravessam o “objeto” também são represen-tadas, dando vazão a sua real polifonia (BAKHTIN, 1986).

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de longa duração, às experiências, encontros ou relações que foram contornados durante os processos de deslocamentos dos sujeitos, bem como a maneira concreta como esses sujeitos organizavam-se para realizar sua prática de mobilidade. Em algumas oportunidades, pelo menos por quatro vezes, pude aproveitar a reunião espontânea (na recepção de um albergue, em um bar ou mesmo em um dormi-tório, por exemplo) de um pequeno número de viajantes e propor uma espécie de “roda de discussão” sobre o tema das viagens “indepen-dentes”; de quatro a sete mochileiros, normalmente, estiveram pre-sentes nessas “sessões”. A dinâmica dessas “rodas” era a seguinte: eu esperava a manifestação de algum dos viajantes reunidos acerca de algo relacionado à sua própria experiência de viagem (a citação de um lugar que gostou de conhecer, a lembrança de uma pessoa com a qual se deparou e partilhou momentos em seu itinerário, um aviso sobre os perigos ou as insatisfações acerca de algum lugar visitado etc.) e, a partir disso, inseria-me na conversa, aos poucos lançando questões como as que foram exploradas nas entrevistas mais formais.

Centenas de conversas informais, sem o uso de gravador – mas, algumas, registradas no diário de campo – foram experienciadas; elas tomaram lugar, em grande parte, nos bares ou cafés dos albergues ou em pontos de encontro à espera de passeios turísticos. Como o tempo dos viajantes nas localidades visitadas tendia a ser curto e com os dias preenchidos por uma série de atividades intensas, tais conversas configuravam-se como valiosas oportunidades de comunicação, exi-gindo – por seu caráter informal – um grande esforço de atenção e memória de minha parte. Após essas conversas, o registro no diário de campo era feito assim que possível, no sentido de causar o mínimo de perda em relação à riqueza de detalhes fornecida e à considerável soma de informações presentes nestes “bate-papos”.31

31 Como bem assinala Magnani (2002, p. 17), “o método etnográfico não se confunde nem se

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Todas as entrevistas formais, bem como algumas das “rodas de conversa”, foram precedidas por uma sucinta apresentação do tra-balho em desenvolvimento e da minha condição como pesquisador. Em alguns casos, a apresentação surtia um efeito interessante: os su-jeitos se mostravam mais interessados nas discussões, perguntavam minhas opiniões, dando forma a um debate muitas vezes bastante vivo. Em outros casos, todavia, o fato de apresentar-me repercutia um pouco mais no sistema de relações estabelecidas; parecia que alguns sujeitos, diante de um pesquisador e não mais de um colega de viagem, preocupavam-se em oferecer apreciações demasiadamente elaboradas sobre sua prática de mobilidade. O contato com vários interlocutores, não obstante a quase impossibilidade de outros encontros presenciais, devido aos seus deslocamentos constantes, pôde ser mantido – como destacado – por meio do cyberespaço. Desse modo, e-mail, facebook e skype, por exemplo, foram instrumentos propícios às tentativas de pe-renizar relações que, por natureza, tendiam a ser efêmeras, frágeis.

Explicitadas essas notas metodológicas, os capítulos que se se-guem são as expressões dessa experiência de campo junto a alguns sujeitos praticantes das viagens “independentes” de longa duração. Para além do que aqui foi apresentado – uma reflexão de caráter, na realidade, quase que “metaetnográfico”, que procurou estabelecer-se sobre os aspectos singulares do estilo de viagem em questão como objeto de investigação e sobre os princípios etnográficos que norte-aram este experimento –, o leitor se deparará, na sequência, com uma tentativa de textualização dos acontecimentos em sua máxima vitali-dade, em observância das dimensões dialógicas do mesmo, enfim, um esforço de “inscrição” da prática viática em seu próprio fluxo.

É ainda necessário apontar que, no intuito de lançar mão de uma reflexão mais detalhada acerca das viagens “independentes” de longa duração, fiz a opção de trabalhar, de maneira mais detida, com as experiências de mobilidade de três interlocutores – um brasileiro,

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uma australiana e um inglês – que realizavam ou tinham realizado, quando os conheci, viagens que ultrapassavam seis meses de du-ração. Ao optar por trabalhar de forma mais próxima com estes “su-jeitos viajantes”, se assim os puder chamar, priorizei a construção de um entendimento sobre seus “percursos de ação situada” (BERTEAUX, 2010), ou seja, busquei compreender suas práticas de viagem, também, em relação aos contextos sociais nos quais se ins-creviam, tomando a feitura de seus deslocamentos como elemento para pensar lógicas e dinâmicas sociais mais amplas. Foi utilizando uma expressão de Berteaux (2010), do “mergulho” nas intensidades das atividades desses sujeitos, que análises acerca da experiência social contemporânea, portanto, puderam ser elaboradas.

A relação de proximidade estabelecida com os viajantes aqui protagonistas – que significou a instauração de um plano de diálogo não vacilante, inclusive, em termos de enfrentamento de questões ín-timas, como sexualidade ou conflitos familiares – propiciou, justa-mente pelo aprofundamento de tais interações, não apenas reflexões acerca dos aspectos regulares do estilo de viajar em pauta, mas igual-mente sobre as singularidades que residiam nos processos de desloca-mento de cada sujeito. Esse cotejadesloca-mento entre o que é da ordem da regularidade e o que se apresenta sob o registro do singular interpela posturas analíticas absolutizantes; embora os sujeitos das viagens “in-dependentes” de longa duração partilhem estratégias para organizar sua viagem ou mesmo as justifiquem enunciando expressões similares (“liberdade”, “aventura” ou “fuga da rotina”, por exemplo), o “teor” de cada jornada parece ser conferido de modo muito próprio, sinalizando, então, uma disposição “poética” ou, como afirma Featherstone (1995), uma tentativa de autoexpressão, de mobilização de uma consciência estilizada de si, individualizada, que não pode figurar em segundo plano no que diz respeito às análises sociais contemporâneas.

Um dentre tantos “roteiros” possíveis:

apresentação da estrutura da pesquisa

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cumpre duas funções: uma de contextualização, que se refere a uma espécie de “história social” das viagens, considerando alguns momentos históricos e suas respectivas práticas de deslocamento; e uma de problematização da categoria backpacker. Como poderá ser notado, em meados dos anos 1990, esse termo foi cunhado no sentido de ocupar-se da popularização das viagens “independentes” de longa duração. Tal categoria estruturou-se sobre uma série de características regulares presentes nesse estilo de viajar e, de uma maneira ampla, informou os estudos acadêmicos emergentes sobre o tema. Contudo, releituras são propostas devido, sobretudo, à va-riabilidade do fenômeno em questão, sendo essa principal preocu-pação do capítulo: não tomar o conceito de backpacker ou mochi-leiro, seu equivalente no Brasil, como algo cego à heterogeneidade de motivações, formas de movimento, ritualidades ou representa-ções associadas a essas viagens.

O segundo capítulo, que tem como título Contexto e Motivações, busca “reconstituir”, primeiramente, o lugar de origem dos três “su-jeitos viajantes” que são protagonistas e principais interlocutores desta pesquisa. O objetivo é perceber como esses sujeitos, no bojo de seus próprios contextos sociais, relacionam-se com a temática da mobilidade, tomando o ato de viajar não como algo estranho a suas biografias, mas como elemento próximo, constituinte – inclusive – de suas histórias familiares. A discussão que se desenvolve a partir disso é concernente à afirmação de Creswell (2006, 2009) de que, na contemporaneidade, embora seja apresentada como um direito, a mobilidade é acessada de forma diferenciada. A segunda parte do capítulo, por seu turno, objetiva compreender as motivações dos su-jeitos para empreenderem suas jornadas alargadas. Vivências de ro-tina, procura por excitações e esforços por aquisição de conheci-mento são algumas das temáticas apresentadas e discutidas a partir das narrativas dos três interlocutores.

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desenvolvimento do turismo) que instituem e legitimam lugares tu-rísticos por parte de uma prática de viagem que visa a consumir, de modo “independente”, o lugar visitado. É dentro dessa perspectiva de afastamento daquilo que é reconhecido como turístico – e, conse-quentemente, acessado de forma ampla pelo denominado “turismo convencional” ou “institucionalizado” – que outras “direções” surgem a partir da “criação” ou “inventividade” desses viajantes. Interpelando a prática turística convencional, a “bolha ambiental” evocada por alguns críticos, também maneiras distintas de se des-locar – utilizando os transportes públicos ou mesmo as caronas – emergem como elementos estruturantes do estilo de viagem em aná-lise, sinalizando uma experiência rítmica mais cadenciada, vagarosa e, por isso, mais propícia ao estabelecimento de contatos próximos com as culturas das localidades visitadas.

O quarto e último capítulo diz respeito, inicialmente, aos eventos de fricção presentes em uma viagem. Em uma primeira acepção, o termo fricção pode ser tomado como as paragens neces-sárias no curso de um deslocamento: a utilização de sistemas de hospedagem ou alojamento. Assim, os albergues ou hostels tornam--se “palco” de reflexão no referido capítulo, uma vez que se estru-turam como os lugares privilegiados de acomodação dos sujeitos das viagens “independentes” de longa duração. Uma outra noção de fricção, também discutida nesse espaço, refere-se àquilo que deter-mina o fim de uma longa jornada. Assim, os eventos apontados pelos interlocutores dessa pesquisa como os finalizadores de suas viagens configuram importante matéria de reflexão no sentido do entendimento de sua prática, assim como apreciações acerca de suas experiências de retorno às comunidades de origem. O modo como se autodenominam é o último tópico desta obra, relacio-nando-se ao que foi discutido, sob uma ótica mais teórica, no pri-meiro capítulo. A ideia, considerando os discursos dos próprios viajantes, é a de que backpacker é uma categoria atualmente bas-tante utilizada pelo mercado turístico, mas que pouco envolve re-conhecimento ou uso êmico.

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precedidos por excertos retrabalhados de meu diário de campo, ex-tratos refletidos de meus cadernos. O objetivo de tais fragmentos é oferecer uma espécie de descrição vívida não apenas de determi-nadas cenas componentes dessa experiência de pesquisa, mas igual-mente de dividir dúvidas e angústias que se interpuseram no curso desse processo investigativo. Assim, para além de uma simples ilus-tração de eventos ou mesmo de um desejo de publicação de “intimi-dades não censuradas” (WEBER, 2009), o que se apresenta é mais uma tentativa de representar a pesquisa em seu fluxo, em suas pró-prias “desarrumações” e “desconcertos” de diversas naturezas. Dito isso, só me resta reafirmar o convite para que o leitor ingresse nessa viagem, feita por múltiplas vozes, interpostas e cruzadas em uma pluralidade de lugares. Como bem sugere a música-tema do filme Easy Rider, apontado por um dos viajantes que conheci como um dos elementos motivadores de sua longa jornada: é hora de ligar o motor e dirigir-se para a estrada em busca de aventura.32

32 Na letra original, composta em 1968 pela banda Steppenwolf: Get your motor running, head

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Backpackers

: (des) construindo

uma categoria

“I know, I know for sure That the life is beautiful around the world I know, I know it´s you You say ‘Hello’, and I say ‘I do’.” (Around the world, Red Hot Chili Peppers)

N

ick, Sarah e eu, descansávamos no terraço após uma bem-suce-dida aventura na cozinha do albergue. Era uma noite de abril, sem nuvens, e um vento agradável soprava, contribuindo para experi-mentarmos um verdadeiro elogio à preguiça. Sarah, uma alemã es-guia de vinte e poucos anos que, de tão loira, parecia ter cabelos brancos, logo tomou conta de duas cadeiras, fazendo uma espécie de maca para deitar de barriga para cima com o pretexto de observar melhor o céu; Nick, um inglês ruivo, já nos seus quarenta anos, de-tentor de um enorme cavanhaque que parecia tentar compensar sua calvície, sentou-se no chão, encostando-se na junção da piscina com o bar, tragando um cigarro artesanal, enquanto eu tomei assento em um castigado banco “manco”, mais perto do parapeito, no sentido de observar o movimento da rua, o vai e vem dos pedestres, das pes-soas já conhecidas ou ainda desconhecidas, que entravam e saíam do nosso lugar de hospedagem.

Imagem

Figura 1 – Roteiro de Marc pelo Havaí
Figura 2 – Roteiro de Marc pela Austrália, Nova Zelândia e  Indonésia
Figura 3 – Países visitados por Ceci no sudeste asiático
Figura 4 – Roteiro de Ceci pela Europa
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Referências

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