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Mahagonny: o fim de um ciclo. Geraldo Martins T. Jr. 1

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Academic year: 2021

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Mahagonny: o fim de um ciclo

Geraldo Martins T. Jr. 1 Resumo: Este artigo analisa a dramaturgia de Bertolt Brecht entre 1927 e 1932, com foco nos trabalhos

colaborativos entre Brecht e músicos colaboradores Kurt Weill e Hanns Eisler. Procura-se compreender a ópera “Ascenção e queda da cidade de Mahagonny” e o texto de Brecht “Notas para Mahagonny” como documentos significativos de um período fértil em experimentações. Analisa-se, em especial, o conflituoso processo criativo de Brecht e Weill, a crítica de Brecht à ópera e o amadurecimento da dra-maturgia épica com relação à separação e articulação dos elementos musicais, poéticos e de encenação.

Palavras-chaves: Brecht, música, ópera, teatro épico.

A ópera Mahagonny vem fazer, conscientemente, justiça ao absurdo, nesse ramo da arte que é a ópera. O absurdo, em ópera, consiste em haver uma utilização de ele-mentos racionais e uma aspiração de expressividade e de realismo que são, simulta-neamente, anulados pela música. Um homem moribundo é real. Mas, se esse homem se puser a cantar, atinge-se a esfera do absurdo. (Brecht, 2005: 29)

Brecht escreveu esta observação ao se referir à ópera Mahagonny (1930) como uma resposta à ópera como gênero, em seu famoso texto Notas sobre Mahagonny (1930). O absurdo ao qual ele se refere se liga à típica apresentação “operística” onde tudo é cantado, onde a música cantada sobrepõe-se à re-presentação de forma a anulá-la ou, pelo menos, a torná-la secundária. Para Brecht, o uso da música com “efeitos bastante reais”, que a ópera consegue, “muitas vezes dá nascimento a um terceiro mundo, a qualquer coisa de muito complexo, de muito real também mas isto se encontra cortado do seu ponto de partida: a realidade utilizada” (Idem, 1967: 57). Dentro do espírito do teatro político e de vanguarda dos anos 20 na Alemanha, Brecht falava da “utilização da realidade” não como temática ou no sentido do naturalismo psicológico, mas como um elemento de uma dramaturgia articulada ao mundo social e aos espectadores.

O fato de o “conteúdo”, de um ponto de vista técnico, se ter tornado — pela re-núncia à ilusão em favor de uma virtualidade polêmica — uma parte integrante au-tônoma, em função da qual o texto, a música e a imagem assumem determinados “comportamentos”, e o fato de o espectador, em vez de gozar da possibilidade de experimentar uma vivência, ter, a bem dizer, de se sintonizar, e, em vez de se imis-cuir na ação, ter de descobrir soluções, deram início a uma transformação que ex-cede, de longe, uma mera questão formal. Principia-se, sobretudo, a conceber a função própria do teatro, a função social. (Idem, 2005: 34)

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Mas Brecht também apresenta algumas defesas de Mahagonny, por ter tentado um “duplo ca-minho”: “Alguma coisa de absurda, de irreal e fútil introduzida judiciosamente, tinha um duplo efeito: colocar-se em evidência e anular-se” (Idem, 1967: 58). Embora Mahagonny tenha se construído mais perto dos modelos operísticos que a Ópera dos três vinténs (1928), ou seja, com o texto quase que in-teiramente cantado, Brecht ainda faz algumas concessões ao valor de Mahagonny como ópera: ela ain-da é uma provocação, na sua paródia ain-da própria ópera em conteúdo e forma, ao adotar o “prazer fútil” como tema e, ao mesmo tempo, utilizar-se de uma apresentação “operística”. Porém, no frigir dos ovos, o texto de Brecht é ácido com relação a Mahagonny, que

não é talvez muito apetitosa, e pode ser mesmo, que por sua má consciência, te-nha a ambição de não sê-lo; no entanto não deixa de ser uma iguaria. Mahagonny não é nada mais do que uma ópera (Ibidem: 59).

Apesar do texto ser claro em seu ataque, e Brecht não poupar Mahagonny, ele é rico ao propor “inovações” para a ópera como gênero, que aparecem em meio a contradições que Brecht mesmo le-vanta. Ao ironizar um trabalho de sua própria autoria, enquanto “culinário”, comercial, voltado para o “prazer como mercadoria”, ele não deixa de lembrar que há um outro lado: os aspectos didáticos e so-ciais do espetáculo, de crítica da realidade e ao espetáculo. “Se tínhamos aceito que o nosso objetivo fosse matéria de prazer, quisemos pelo menos que o prazer fosse a matéria do nosso objetivo” (Ibidem: 58). Por um lado, Mahagonny tinha “uma função de transformação social” por “colocar o culinário em discussão” e atacar “a sociedade que tem necessidade de tais óperas”; por outro lado, o texto sustenta mais fortemente a tese (posteriormente declarada explicitamente no ensaio O uso da música no teatro épico, de 1935) da “impossibilidade da renovação da ópera nos países capitalistas. As inovações intro-duzidas levaram a ópera a destruição” (Ibidem: 85).

Neste momento, devo deixar claro que a ópera “A ascenção e queda da cidade de Mahagonny” foi composta com a colaboração musical de Kurt Weill. Talvez alguém se pergunte ou sinta falta de in-formações mais detalhadas com relação aos músicos colaboradores dos trabalhos de Brecht. Isto se originou nos conflitos e divergências que ocorriam na época entre Brecht e Kurt Weill. Um fato bem pouco divulgado é que Brecht lançou uma segunda versão do texto da ópera, em 1930, e as famosas Notas para Mahagonny estavam anexadas, mas sem nenhuma retificação no aspecto musical. Como afirma Calico:

O texto que Brecht publicou em 1930 em Versuch não é idêntico ao libreto para o qual Weill compôs a partitura, e as “notas” que o acompanhavam, escritas com Peter Suhr-kamp, estão anexadas a este texto no lugar da versão composta [por Weill] (Calico, 2008: 35)

Um dos maiores problemas na análise dos processos criativos dos espetáculos de Brecht no final da década de 20 foram as reedições feitas por Brecht nas quais “a versão literária eram incompatíveis com a música de Weill” (Kowalke, 2006: 252).

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limi-tes. Sendo Mahagonny a terceira ópera composta por Brecht em parceria com Kurt Weill, ela era também mais uma tentativa da parceria de realizar mudanças no gênero. Porém, o que significavam mais exata-mente estas mudanças diferia em objetivo para eles. As reedições de Brecht com Peter Suhrkamp eram também uma estratégia de controle sobre a autoria e formas de encenação. Em 1930, os rumos da colabo-ração entre Brecht e Weill já apresentavam marcas evidentes de conflitos e discordâncias. Enquanto Ma-hagonny era ensaiada, ensaiava-se também A mãe, com a música de Hanns Eisler, no mesmo teatro em Berlim (Theater am Kurflürstendamm). As duas montagens eram financiadas pelo mesmo empresário, Ernst Josef Aufricht, que

embora não tivesse simpatia pelas intenções políticas de A mãe, considerava seu investimento em aceitá-la um preço pequeno a pagar pela ausência de Brecht nos ensaios de Mahagonny, com suas constantes discussões com Kurt Weill que amea-çavam arruinar a produção (Bradley, 2006: 29).

Em dezembro do mesmo ano, após a reclamações de Brecht durante os ensaios de que “tudo es-tava diluído (washed out) pela música” e de que Weill era uma “imitação de Richard Strauss”, os advo-gados ameaçaram parar os ensaios. Para salvar a produção, “Aufricht convenceu Brecht a se afastar” (Kowalke, 2006: 251). Brecht então se volta para a montagem de A mãe (1932) e a parceria com Hanns Eisler, no conturbado final da república de Weimar (1917-1933). Ele deixa prá trás a ópera, e Kurt Weilli. Mas a via negativa aberta, exposta nas Notas para Mahagonny, pediam novas realizações. De fa-to, os princípios ali descritos passariam a ser fundamentais para seu teatro épico, em oposição ao teatro dramático. As notas de Mahagonny “descrevem teoricamente uma estética e uma agenda política para o teatro épico que a ópera, por ela mesma, falhou em encaminhar” (Ibidem: 253).

Para Bornheim, foi “exatamente esse ‘fracasso’, ou essa desistência, que lançou a questão da ó-pera como uma espécie de elemento a priori de toda a dramaturgia brechiana” (Bornheim, 1998). Fun-dado no espírito crítico, pedagógico e observador, Brecht buscava provocar o estranhamento perante o habitual transformando este habitual, provocando novas formas de observação pelas diversas estraté-gias de separação dos elementos de um espetáculo, “distribuindo o espírito crítico, de diversos modos, por todas as dimensões de um espetáculo” (Ibidem). Munido desta perspectiva, ele se opõe à concep-ção wagneriana da “obra de arte total”, à ópera, e, consequentemente, ao uso da música de forma ilus-trativa, incidental, “culinária”. As contraditórias questões em torno do prazer versus instrução, recepção crítica versus recepção indulgente, entre outras, foram sendo testadas e elaboradas em meio às óperas (e especialmente as peças de aprendizagem), entre 1927 e 1932.

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Brecht, aproveitando o momento de transição, lança também as notas sobre A ópera dos três vinténs (1931), escritas no mesmo ano da ruptura com Weill, também se posicionando com relação a Weill. Para Kowalke, elas possuem uma intenção corretiva, pois “várias partes são simplesmente tenta-tivas camufladas de reverter as relações entre texto e música atribuídas no original” (Kowalke, 2006: 253). Os métodos épicos de separação eram então utilizados por Brecht como

um meio bastante simples para se por um fim à gigantesca luta por uma suprema-cia a que se entregam o texto, a música e a representação (e diante da qual nós nos perguntamos sempre qual elemento serve de pretexto para o outro - a música pre-texto para o espetáculo ou o espetáculo prepre-texto para a música, etc.) (Brecht, 1967: 60)

Vemos que a “gigantesca luta” se referia ao trabalho colaborativo com os músicos. O amadure-cimento do trabalho de Brecht encontra, na transição de Weill para Eisler, seu ponto mais importante, ao contrário da visão de que a sua maturidade pós guerra teria trazido equilíbrio e possibilitado a ele escrever sua teoria. Para Kowalke, Brecht encontrou em Eisler o parceiro musical ideal. Depois de ter composto a música para vários poemas de Brecht, Eisler inicia um trabalho mais aprofundado em 1930, com A decisão, em Berlim. Kowalke destaca dois trabalhos em especial: A mãe (Berlim, 1932) e Cabeças redondas e cabeças pontudas (Copenhagen, 1936). Ambos

funcionam como paradigmas para a delicada relação dialética entre texto e música [...]. Com exceção de Schweyk na segunda guerra mundial, nenhum dos outros tra-balhos de Eisler para as peças de Brecht (Terror e miséria do terceiro Reich, 1945; Vida de Galileu, 1947; Os dias da Comuna, 1950) alcançaram este padrão de exce-lência. (Kowalke, 2006: 246)

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A relação entre texto e música não é um tema que aparece com a clareza de um “método” nos escritos de Brecht, e tem sido objeto de análise tanto por pesquisadores da dramaturgia como da musi-cologia. Não é uma análise direta e literal, para “adotar” os escritos de Brecht em escolas, como obser-vações definitivas. Os textos são tratados como extratos de processos criativos onde as reflexões carre-gavam também as contradições encontradas.

Sua crítica à ópera, como vemos em Notas para Mahagonny, foi feita do lado de dentro dela. Ex-perimentando talvez o mesmo amargor do típico personagem operístico que morre e continua cantan-do após a morte, Brecht abancantan-dona a ópera e continua a utilizar a música em seus espetáculos, de forma renovada e em consonância com a dramaturgia que se afirmava em meio à maturidade marxista. Mas agora a bagagem de técnicas épicas e musicais já estava sendo criada com base em uma experiência vivida. Nas notas para a Ópera dos três vinténs, por exemplo, há comentários específicos, como “Da maneira de cantar as canções”, que separa em três planos a “dicção natural, a declamação e o canto”, sem que um seja “um degrau superior” do outro (Brecht, 1967: 73). Também com relação ao conceito de gestus, Kowalke observa que

inicialmente, parece ter servido [a Brecht] primeiramente como um meio de reser-var espaço em meio à canção para sua própria voz poética, e para ditar leituras de seus textos tanto para os compositores quanto para os performers. (Kowalke, 2006: 250)

Ou seja, como uma forma de manter o “controle sobre a leitura de seus poemas”, ao “ajustar o ritmo, acento, a altura, o timbre, as pausas, o fraseado, a dinâmica, o tempos e a entonação de sua poe-sia em uma encenação musical”, evitando o efeito de demapoe-siado envolvimento sobre a platéia que a música oferece (Ibidem: 250).

O que Brecht buscava não era um tratamento polarizado na relação palavra e musicalidade, mas um equilíbrio estético em uma composição interartística envolvendo dramaturgia, poesia e música. A ópera possui um paradoxo quando cria uma “realidade” em cena: tudo pode ser cantado, mesmo a morte de um personagem. “Os personagens no palco comunicam-se cantando”. O problema é que “o efeito disso é frequentemente fazer das palavras, que supostamente comunicam, algo ininteligível” (Dorschel, 2001: 285). Não podemos afirmar que todas as óperas foram e são assim. É, com certeza, uma tendência que configurou a grosso modo o gênero. Henry Purcell (1659-1695), ficou conhecido com o uso da fala em sua ópera. Em uma de suas óperas, Dido e Eneias (1689?), “homens cantavam uma música de vez em quando, ou dançavam uma dança, ocasionalmente; mas eles definitivamente não faziam isto todo o tempo” (Ibidem: 289-290). Porém, Purcell foi uma exceção. “Cantar na ópera não é a exceção para caracterizar personagens excêntricos, mas a regra” (Ibidem: 285). Brecht, ao invés de solapar a forma de apresentação da música no espetáculo, buscou fazer da apresentação do espetáculo uma articulação também musical.

Referências bibliográficas

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Brecht, Bertolt. 1967. Teatro Dialético. Translated by L. C. Maciel. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira.

Brecht, Bertolt. 2005. Estudos sobre teatro. 2ª ed. Rio de Janeiro: Ed. Nova Fronteira.

Bradley, Laura. 2006. Brecht and political theatre - The mother on stage: Oxford University Press. Calico, Joy. 2008. Brecht at the opera. Londres: University of California Press.

Kowalke, Kim H. 2006. Brecht and music: theory and practice. In The Cambridge Companion to Brecht, edited by P. T. a. G. Sacks. New York: Cambridge University Press.

Dorschel, Andreas. 2001. The paradox of opera. The Cambridge Quartely 30 (4):283-306.

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