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CHEFS E COZINHEIRAS: AS MULHERES NA COZINHA PROFISSIONAL

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CHEFS E COZINHEIRAS: AS MULHERES NA COZINHA PROFISSIONAL

Bianca Briguglio1 Resumo: Cozinhar é uma das atividades que compõe o conjunto do trabalho doméstico realizado de forma não remunerada quase que exclusivamente por mulheres. Enquanto trabalho doméstico é invisível, desvalorizado e feminino. Mas quando não se trata da cozinha de casa, quando é uma atividade profissional, elaborada, sofisticada e socialmente valorizada, a cozinha se torna um espaço masculino e masculinizante. Na cozinha de restaurantes e outros estabelecimentos de alimentação, os gestos e movimentos são planejados e programados. Preparar refeições demanda força física.

Para que a cozinha profissional se diferencie da doméstica, ou seja, para que ela mantenha seu status e valor social, ela precisa corresponder ao gênero masculino, se constituir como um espaço

“só para os fortes”. São inúmeros os obstáculos que as mulheres que pretendem ter uma carreira nessa profissão enfrentam: o trabalho físico, o assédio de chefes e colegas, o assédio sexual, as longas jornadas e a cultura masculinizante da cozinha, que pretende exclui-las. Nesse artigo, pretendo explicitar como a divisão sexual do trabalho nas cozinhas profissionais torna esse trabalho

“masculino” e como as mulheres desenvolvem estratégias para resistir e prosperar.

Palavras-chave: cozinhas profissionais; cozinheiras; divisão sexual do trabalho; trabalho feminino.

Introdução

A cozinha é um espaço fundamental da vida social. Há, inclusive, pesquisas antropológicas baseadas em achados arqueológicos que afirmam que cozinhar nos tornou humanos (WRANGHAM, 2010). Indo além dos olhares da Antropologia e da História da Alimentação, esse texto privilegia o trabalho na cozinha a partir de uma visão sociológica que considera o processo histórico para questionar os contornos da divisão sexual do trabalho em cozinhas de restaurante hoje.

Cozinhar é um trabalho complexo que demanda conhecimentos e técnicas. Demanda um tipo de aprendizado que não se realiza apenas através de livros ou teorias, mas principalmente a partir da própria experiência, o tipo de aprendizado empírico que pressupõe que a melhor forma de aprender é fazendo. Na cozinha, é evidente a indissociabilidade entre teoria e prática. É preciso ter conhecimento sobre receitas, ingredientes, técnicas, e também uma habilidade prática: como preparar as receitas, como cortar, picar, dar ponto em uma massa ou calda, entre muitos outros exemplos.

Cozinhar em casa para a família e amigos é diferente de cozinhar para 50, 100, 120 pessoas todos os dias. Mesmo que se prepare a mesma comida, a quantidade é muito maior. Em uma

1 Doutora em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Campinas, Brasil. Email:

biancabrig@gmail.com. Este trabalho baseia-se na pesquisa de doutorado que foi realizada graças a financiamento da Capes.

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cozinha profissional, é necessário saber manusear os instrumentos e saber lidar com os ingredientes, tem que saber ler e executar uma ficha técnica (ou receita), é preciso saber fazê-lo de acordo com determinados critérios e parâmetros, de uma maneira bem estabelecida, dentro de um padrão e em um determinado ritmo.

Danièlle Kergoat (1986) discute o problema da qualificação profissional das mulheres, argumentando contra o discurso de que as mulheres teriam os piores empregos dentro da produção industrial (posições de menor prestígio, realizando trabalhos repetitivos e, consequentemente, com menores salários) em função de sua educação insuficiente ou qualificação não condizente com o posto de trabalho. Ela argumenta que a realidade é justamente o contrário:

(...) elas tem uma formação perfeitamente adaptada aos empregos industriais que se lhes propõem. Dizemos também que elas a adquiriram, inicialmente, através de um aprendizado (na profissão de futura mulher, quando eram meninas), depois mediante uma formação contínua (trabalhos domésticos). As operárias não são operárias não qualificadas ou trabalhadoras manuais porque são malformadas pela escola, mas porque são bem formadas pela totalidade do trabalho reprodutivo (KERGOAT, 1986, p. 84).

No caso do trabalho culinário, os saberes que as mulheres adquirem em casa, nessa formação para a “profissão de futura mulher”, como Kergoat aponta, são desvalorizados e vistos negativamente nas cozinhas profissionais. O que as mulheres aprenderam a fazer em casa é mal visto nos restaurantes, como vícios ou maus hábitos de “dona de casa”. Já os homens são entendidos como capazes de “traduzir” as receitas de família para a cozinha do restaurante, transformando os pratos familiares em haute cuisine ou pratos gourmet.

A cozinha doméstica está inserida no conjunto do trabalho doméstico, junto a lavar e passar roupa, limpar a casa, entre outras tarefas. Por isso ela é considerada uma responsabilidade exclusiva das mulheres e integram seu “domínio”, o que pode ser exemplificado pelas receitas de família, que são passadas de mãe para filha, como um segredo. A cozinha doméstica é feminina, associada à mulher e ao avental, enquanto a cozinha profissional é masculina, associada à figura do homem cozinheiro, de dólmã e chapéu.

Em anos recentes, na medida em que transformações sociais têm operado paulatinamente, principalmente em função do movimento feminista que tem procurado dar visibilidade ao trabalho doméstico enquanto trabalho, mesmo quando não remunerado, tem crescido a pressão para que os homens assumam a parte que lhes cabe nesse conjunto de atividades e tarefas.

Bruschini e Ricoldi (2012) observaram que a contribuição masculina para o trabalho doméstico aparece na forma de “ajuda”, o que denota, por um lado, que esse trabalho continua sendo uma atribuição das mulheres; e, por outro, que os homens realizam as tarefas que sobram, ou

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as que escolhem fazer. Harris e Giuffre (2010) e Roscoe (2012) também observaram como o discurso das mulheres mobiliza o trabalho realizado pelos homens no âmbito doméstico como

“ajuda”, como algo além do que seria a obrigação deles, algo a ser valorizado. Nesse sentido, cozinhar pode ser um trabalho que os homens aceitam assumir, o que tem se expressado, na atualidade, pela emergência de um novo cômodo para realizar esse trabalho, como as “varandas gourmets” e “espaços gourmets” nos condomínios e prédios. Esses novos espaços promovem a integração entre aquele/a que cozinha e os convidados, uma forma de tirar a cozinha do espaço dos bastidores e da esfera de poder feminino, e trazê-la para o centro do convívio.

Esse movimento se expressa, além da arquitetura, nas mídias e na literatura, com o aumento da produção de programas culinários, canais de televisão totalmente dedicados à gastronomia, edição de livros e revistas, surgimento dos chefs estrelas e a proliferação do discurso culinário na internet e redes sociais. A partir do momento que a cozinha vai se tornando gastronomia, e cada vez mais associada a uma arte, a um talento, a um trabalho positivo, mesmo a cozinha doméstica vai se masculinizando. “A presença dos chefs masculinos nas TVs de comida e o aumento do número de livros, revistas e blogs sobre homens cozinhando parecem indicar um crescimento do entusiasmo para cozinhar entre os homens no Ocidente” (SZABO, 2012, p. 623).

Entretanto, ainda que cozinhar possa ser uma das tarefas do trabalho doméstico que os homens aceitem fazer de bom grado, não é sempre. Em tradução livre: “Os homens tendem a cozinhar mais por prazer e lazer e não se preocupam em limpar e arrumar depois (...) mas ainda são poucos os que cuidam da cozinha todos os dias, já que as tarefas domésticas são mais árduas”

(STENGEL, 2018, p. 26-27).

Nas palavras de Nora Buozzoni (2018, p. 23-24),

Mas esse serviço [cozinhar] está longe de ser considerado como um verdadeiro trabalho, é normal cuidar de tudo quando se é mulher. É quase como se tivesse nos nossos genes saber fazer arroz e feijão. Então, para cada mulher cujo trabalho diário de fazer comida é banalizado, para cada mulher culpabilizada quando ela ousa esquentar um prato pronto ou uma comida industrializada, ou quando a sua progenitura está acima do peso, há um homem que é aplaudido domingo, durante o verão, pela proeza de acender uma churrasqueira e assar 12 linguiças.

A cozinha doméstica é palco da “disputa” entre homens e mulheres no seio da família, de tal forma que mesmo nesse espaço, o trabalho culinário masculino é mais valorizado. A comida que o homem (pai/ filho/ irmão) faz é especial, numa ocasião extraordinária, uma comida diferente, algo que ele decidiu que gostaria de fazer. A comida que precisa ser feita todos os dias, que garante a

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manutenção da família, que não requer criatividade, que não tem data especial, essa continua sendo quase que exclusivamente sendo feita pela mulher.

Ainda que haja uma separação clara entre a cozinha doméstica e a profissional, em que a primeira é associada à mulher e a segunda é mais masculina, mais dotada de prestígio, a disputa entre homens e mulheres se dá em ambas. Mas nesse texto analisaremos a constituição da cozinha profissional como um espaço do domínio masculino e como se estruturam obstáculos para as mulheres que procuram ingressar nesse segmento.

A cozinha profissional

Consideramos aqui a cozinha profissional em oposição à cozinha doméstica, ou seja, trata-se das cozinhas em estabelecimentos de alimentação que tem como objetivo servir uma clientela. Tal distinção é muito importante para compreendermos que são espaços que produzem alimentos de maneiras diferentes, com objetivos diferentes e que, portanto, empregam lógicas distintas. Essa separação também está no cerne da noção de profissionalização do trabalho dos cozinheiros.

Na França, entre as décadas de 1800 a 1840, quando os cozinheiros e chefs começaram a se organizar em associações e sindicatos para reivindicar melhores condições de trabalho e salários, seu horizonte era a profissionalização. O reconhecimento do valor de seu trabalho passava pela compreensão de que este era um trabalho profissional, em oposição ao trabalho “não profissional”

que as mulheres cozinheiras realizavam nas casas das famílias burguesas. “Nem ofício nem profissão, a cozinha era nessa época (1800-1840) uma atividade doméstica essencialmente feminina. As famílias burguesas tinham cozinheiras a seu serviço” (DROUARD, 2015, p.35). As mulheres estavam relegadas ao trabalho culinário doméstico ou à cozinha dos não nobres, ou seja, o trabalho culinário sem prestígio e nem visibilidade, na cozinha da própria casa ou de outrem.

Drouard afirma que o mundo dos cozinheiros não escapa à divisão sexual do trabalho. “Às cozinheiras a cozinha burguesa e doméstica. Aos cozinheiros a alta cozinha codificada por Carême no início do século 19” (DROUARD, 2015, p. 36). Ao longo do século 19, havia um consenso de que as mulheres eram capazes apenas de cozinhar em casa, sem jamais atingir o nível da haute cuisine que pertence exclusivamente aos chefs. Em realidade, associar a cozinha às mulheres era uma forma de ofender os cozinheiros homens, de diminuí-los.

Amy Trubek (2000) sustenta a tese de que a disseminação das técnicas e receitas da culinária francesa se espalham pelo mundo e se tornam dominante precisamente porque elas são

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profissionais, porque quem as dissemina são os chefs e cozinheiros, um tipo de culinária associada à esfera pública, e não doméstica.

A palavra escrita ajudou chefs passarem de anônimos domésticos nas casas da nobreza para especialistas para o público porque seu conhecimento podia espalhar-se por qualquer lugar.

Esses conhecimentos culinários, em última instância, definiram as práticas da cozinha profissional no mundo ocidental (TRUBEK, 2000, p. 29).

Foi assim que a cozinha francesa viajou o mundo e causou impacto, via livros, jornais, revistas e chefs franceses. Analisando a emergência das associações profissionais e jornais da categoria dos cozinheiros, partindo de Paris, mas destinadas a cozinheiros franceses no mundo todo, Trubek afirma que dois temas eram recorrentes: preservar e promover o poder e a integridade da haute cuisine francesa e elevar o status da profissão.

O caso francês é importante porque a organização do trabalho nas cozinhas profissionais que ainda está presente em muitos restaurantes (especialmente os de alta gastronomia ou cozinhas de prestígio) no mundo todo segue o modelo francês, que foi implementado por Auguste Escoffier.

Segundo Galvão (2015, p. 46),

A cozinha dos restaurantes é caracterizada como um espaço que mistura ordem e caos, que é orquestrado a partir de disciplinas e hierarquias militares. O trabalho é classificado como árduo, fisicamente e emocionalmente extenuante, com frequência e jornadas intensas e não convencionais, sendo realizado sob muita pressão. Para se sair bem, os cozinheiros precisam adquirir resistência física e emocional e incorporar o gesto, o movimento e o tempo adequados à lógica de organização deste espaço.

Credita-se a Auguste Escoffier a racionalização do trabalho em cozinhas profissionais como a conhecemos hoje (FRANCO, 2010). Por volta de 1889, quando foi chef no Hotel Savoy, na França, ele organizou o trabalho culinário a partir de sua experiência no exército e padronizou o trabalho orientado por praças e a hierarquia da cozinha. Segundo Chelminsky (2007: 104), “Há um óbvio paralelo entre a hierarquia e a disciplina de um exército e de uma cozinha profissional séria – chef, lembre-se, não significa cozinheiro, mas chefe, patrão”.

Roscoe (2012) afirma que a cozinha moderna adota a rígida estrutura militar, uma hierarquia firme em que as habilidades e status são compreendidos a partir de seu papel na cozinha. A associação do trabalho culinário com uma hierarquia militar também está associada à natureza feminina do trabalho e às formas recorrentes de reafirmar masculinidade por parte dos homens. Se cozinhar é uma atividade feminina, os homens que realizam esse trabalho precisam reiterar sua masculinidade constantemente.

Scavone (2007) afirma que, embora no contexto da alta gastronomia a figura do chef seja masculina e imbuída de poder, existiram contextos em que os homens cozinheiros eram vistos como

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inferiores, geralmente em grupos totalmente masculinos, como os tropeiros ou em acampamentos de guerra. “Entre os cangaceiros, por exemplo, o cozinheiro era a pessoa mais medrosa do grupo”

(SCAVONE, 2007. p. 39). A autora afirma que são comuns as brincadeiras acerca da sexualidade dos cozinheiros, com uma desvalorização ou inferiorização de quem executa essa função, curiosamente associada à feminização.

Bourelly (2010) retoma a origem da cozinha profissional nas fileiras dos batalhões do exército, o que está em consonância com a necessidade que esse militar, que não vai para a linha de frente, que não pega em armas, que não enfrenta o inimigo, se equipare aos outros homens, evite ser visto em uma posição inferior ou menos masculina. Isso pode explicar a associação da cozinha a um passado cavernícola de caça e manipulação de grandes pedaços de animais.

Vimos, portanto, que para ser valorizada e aceita como um espaço profissional, a cozinha é ressignificada pelos chefs e cozinheiros homens como um espaço masculino, que se opõe a cozinha doméstica, feminina. Para tanto, eles se organizaram em torno de coibir e dificultar a entrada de mulheres nesse espaço, valorizando seu próprio trabalho em detrimento das cozinheiras. A relação entre a organização do trabalho culinário com a hierarquia militar também corresponde a essa masculinização, que privilegia a força física e uma certa masculinidade onipresente, que contribui para que o ambiente de trabalho se torne mais hostil para as mulheres.

As mulheres na cozinha profissional

Na hierarquia da cozinha, entendida de forma simples como auxiliares na base, cozinheiros/as e, no topo, chefs, este último é a maior autoridade. Em última instância, é o/a chef que toma as decisões e que tem legitimidade para gritar e ser ouvido, para ser obedecido.

Há uma série de empecilhos para as mulheres que pretendem chegar aos cargos de maior responsabilidade e chefia dentro da cozinha. O trabalho de chef é associado a uma figura masculina que tem determinados comportamentos, como falar alto, gritar, dar ordens, entre outros, e que dificulta a ascensão feminina a esses postos. Ter uma mulher no cargo máximo da hierarquia pode precipitar conflitos. O machismo e o racismo podem criar situações em que homens se recusem a receber ordens de uma mulher ou que a equipe se recuse a obedecer uma pessoa negra. Nesse sentido, as mulheres, e especialmente as mulheres negras, precisam criar estratégias para fazerem valer sua autoridade.

Há uma separação das atividades que não são desempenhadas por mulheres, atividades em que elas não se envolvem (ou não são envolvidas). Há uma forte associação da grelha, do fogo e da

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carne com os homens. Também são essas as posições mais valorizadas nas cozinhas, os trabalhos considerados mais nobres. Por outro lado, há atividades que são mais associadas às mulheres, como a confeitaria e a cozinha fria, que demandam um tipo de trabalho associado às características

“naturais” das mulheres, como a delicadeza, a paciência, o cuidado e a atenção aos detalhes.

A cozinha fria, e principalmente a confeitaria, estão associadas ao trabalho feminino por ser considerada uma parte do trabalho que demanda mais atenção aos detalhes, mais rigidez ao seguir instruções e receitas, mais repetição e menos criatividade. Também é a parte do trabalho que tem menos prestígio. Essa categorização de “feminilidade” ligada ao trabalho delicado e monótono está associada às necessidades produtivas, já que toda esta delicadeza atribuída às mulheres que as tornaria incapazes de trabalhos pesados e insalubres desaparece e elas passam a ser consideradas aptas para os mesmos nos momentos em que os setores produtivos o demandam, como aponta Elisabeth Souza-Lobo ([1991] 2011).

Souza-Lobo também questiona os critérios de presença/ausência de força na organização da divisão sexual do trabalho ao reivindicar as comparações intersetoriais, mostrando que, no Brasil, quando se necessita das mulheres como cortadoras de cana, por exemplo, os critérios de delicadeza e trabalho leve somem.

Marie (2018: 34) afirma que, para que as mulheres sejam integradas em uma cozinha, elas precisaram “camuflar”, tanto quanto possível, sua feminilidade, controlando seus comportamentos e procurando mimetizar os homens. Tal esforço se justifica porque uma mulher que não esconde seu corpo pode perturbar a atmosfera de trabalho ou o sentimento de camaradagem entre os homens (FINE, 1987 apud HARRIS e GIUFFRE, 2018, p. 104). Para obter o respeito dos colegas e serem tratadas com alguma igualdade, as mulheres falavam sobre se “desfeminilizar” (de-feminizing), com o objetivo de evitar críticas ou comentários sobre seus corpos. É comum que, para entrar na cozinha, além de usar touca, é solicitado às mulheres não usarem brincos, nem maquiagem, nem esmalte de unha.

Harris e Giuffre (2018), em sua pesquisa com mulheres chefs e cozinheiras nos Estados Unidos, também observaram o fato de que o comportamento de uma mulher no ambiente de trabalho é frequentemente entendido como demonstrativo do que seria o comportamento de todas as mulheres. “Às mulheres, individualmente, eram frequentemente atribuídas tarefas de representar todas as mulheres trabalhando em cozinhas profissionais” (idem, p.102). Tal fato coloca um peso extra sobre a atuação dessas mulheres, porque qualquer erro ou atitude reprovável que elas possam vir a tomar refletiria sobre todas as mulheres. Isso é verdade para a questão de ser “muito atraente”

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e como isso pode atrapalhar o trabalho, mas também para a demonstração de emoções e/ ou fraqueza. As pesquisadoras entrevistaram mulheres chefs que se esconderam no banheiro para ir chorar, longe dos olhos dos colegas. Nesse sentido, muitas mulheres evitam pedir ajuda aos colegas homens para não “comprovarem” que não conseguem fazer determinadas coisas.

Segundo Roscoe (2012), as habilidades mais respeitadas na cozinha são a capacidade de trabalhar por longas horas, sacrificar o tempo pessoal, suportar dor física e competir “com os outros meninos”, características muito associadas à masculinidade. Às mulheres que pretendem sobreviver nesse espaço só lhes resta se tornarem mais fortes, em alguma medida, se masculinizarem, sob pena de sofrerem assédio, pois o assédio assume diversas formas e é naturalizado de distintas maneiras dentro da cozinha.

As mulheres precisam abrir mão do que as diferencia como mulheres para poderem ocupar o lugar do “universal neutro” inexistente, ou seja, se aproximarem dos comportamentos masculinos.

Por outro lado, as mulheres precisam suportar condições mais duras, além das brincadeiras e assédio, como se tivessem que provar, constantemente, que são tão boas quanto os homens, tão merecedoras quanto eles de estarem ali.

Conclusão

Esse texto pretendeu demonstrar como a cozinha profissional de restaurantes se constitui como um espaço masculino em oposição à cozinha doméstica, feminina, e como tal oposição dota a primeira de valor social e prestígio, enquanto invisibiliza a segunda, engolida pela totalidade do trabalho doméstico.

Analisando essa distinção de um ponto de vista histórico, partindo do caso francês, que mais tarde se espalhou pelo mundo, associando à culinária francesa ao requinte e sofisticação, a ideia de um trabalho profissional se baseava muito mais em uma organização militar e masculina do que no trabalho desempenhado há séculos pelas mulheres em suas próprias casas ou nas casas das famílias burguesas.

Elisabeth Souza-Lobo ([1991] 2011, p. 63), em sua pesquisa sobre as mulheres na indústria, observa que há uma relação entre a tarefa e quem realiza a tarefa, “a lógica da divisão sexual do trabalho e de suas implicações não reside exclusivamente no que se faz, mas em quem faz”, o que revela que, para além dos critérios considerados naturais que definem “masculino” e “feminino”,

“as implicações remetem a uma hierarquia que não está contida na diferença dos dois conceitos, mas na relação social neles embutida” (idem, p. 64). Ainda de acordo com a autora, essas

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representações “obedecem a tradições, a hierarquias que fazem parte da cultura de trabalho” (idem, p.65), o que parece muito próximo do que foi observado nas cozinhas profissionais.

Tal afirmação nos ajuda a compreender a desvalorização do trabalho realizado pelas mulheres mesmo dentro das cozinhas profissionais. Aquelas que conseguem chegar e permanecer nessa linha de trabalho tem que passar por uma série de processos para serem aceitas e respeitadas, que passam, inclusive, por se “desfeminilizarem”, ou seja, por ocultarem símbolos e objetos que remetam a sua própria condição de mulher, numa tentativa de se aproximar de uma neutralidade impossível. Esconder os traços da feminilidade, esconder os sentimentos e calar são estratégias que muitas mulheres precisam empregar para se integrarem ao espaço e desempenharem seu trabalho.

Elizabeth Souza-Lobo conclui que a divisão sexual do trabalho está inserida em uma divisão mais ampla, a divisão sexual da sociedade, que cria as convenções em torno do que é considerado masculino e feminino, e chama atenção para o fato de que “A divisão sexual do trabalho mostra que a relação do trabalho é uma relação sexuada porque é uma relação social” (p. 67). Nesse sentido,

“as imagens do masculino e do feminino não só consolidam diferenças, mas contêm hierarquias:

são imagens de poder” (SOUZA-LOBO, 2011 [1991], p. 81-82).

Referências

BOURELLY, Martine. “Cheffe de cuisine: le coût de la transgression”. In: Cahiers du Genre, nº48, 2010.

BOUAZZOUNI, Nora. Fominismo. Quando o machismo senta à mesa. Belo Horizonte: Quintal Edições, 2019.

BRIGUGLIO, Bianca. Cozinha é lugar de mulher? A divisão sexual do trabalho em cozinhas profissionais. Tese apresentada ao Programa de Doutorado em Ciências Sociais do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas em 2020.

BRUSCHINI, Maria Cristina Aranha e RICOLDI, Arlene Martinez. "Revendo estereótipos: o papel dos homens no trabalho doméstico". Revista Estudos Feministas, Florianópolis, 20(1): 344, janeiro- abril/ 2012.

CHELMINSKI, Rudolph. O perfeccionista. Rio de Janeiro: Ed. Record, 2007.

DROUARD, Alain. Histoire des cuisiniers en France. Paris: CNRS Éditions, 2015.

FINE, Gary Alan. Kitchen: The Culture of Restaurant Work. University of California Press:

Berkeley, 1996.

FRANCO, Ariovaldo. De caçador a gourmet: uma história da gastronomia. 5ªed. São Paulo: Ed.

Senac, 2010.

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GALVÃO, Clarissa. Dos ofícios da alimentação à moderna cozinha profissional: reflexões sobre a ocupação de chef de cozinha. Tese de Doutorado apresentada à UFPE no Curso de Doutorado em Sociologia. Recife, 2015.

HARRIS, Deborah A., GIUFFRE, Patti. “The price you pay”: How female professional chefs negotiate work and family. IN: Gender Issues (2010) 27:27-52. Published online: 12 May 2010.

HARRIS, Deborah A., GIUFFRE, Patti. Taking the heat: women chefs and gender inequality in the professional kitchen. New Brunswick, New Jersey, and London: Rutgers University Press, 2015.

KERGOAT, Danièle. “Em defesa de uma sociologia das relações sociais. Da análise crítica das categorias dominantes à elaboração de uma nova conceituação.”. In KARTTCHEVSKY, A. et. al.

(org.) O Sexo do Trabalho. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra, 1986.

ROSCOE, Elizabeth. Stirring the Pot: Women in a Male Dominated Kitchen. In: Verstehen, volume IX, publicado anualmente pela Sociology Student's Association. Disponível em https://mcgillverstehen2012.weebly.com/stirring-the-pot-women-in-a-male-dominated-kitchen.html (Acesso em 18/09/2019).

SCAVONE, Naira. “O Superchef e a Menina Prodígio”: as posições ocupadas pelos gêneros na gastronomia profissional. Artigo apresentado no Encontro Fazendo Gênero "Corpo, Violência e Poder", realizado em Florianópolis/ SC, entre 25 e 28 de agosto de 2008.

SCAVONE, Naira. Discursos da gastronomia brasileira: gêneros e identidade nacional postos à mesa. Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, 2007.

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STENGEL, Kilien (org.) La cuisine a-t-elle un sexe? Femmes-hommes, mode d’emploi du genre en cuisine. Paris: L’Harmattan, 2018.

SZABO, Michelle. Foodwork or Foodplay? Men’s Domestic Cooking, Privilege and Leisure. In:

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TRUBEK, Amy. Haute Cuisine. How the french invented the culinary profession. Philadelphia:

University of Pennsylvania Press, 2000.

WRANGHAM, Richard Pegando fogo: por que cozinhar nos tornou humanos. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Ed., 2010.

Chefs and Cooks: Women in Professional Kitchens

Abstract: Cooking is a part of domestic work, and as such, is unpaid and performed almost exclusively by women. As part of the housework, it is invisible, undervalued and female. But when it is not home cooking, when it is an elaborate, sophisticated and socially valued professional activity, the kitchen becomes a masculine and masculinizing space. In restaurants and other eating establishments’ kitchens, gestures and movements are planned and programmed. Preparing meals requires physical strength. In order for professional cooking to differ from domestic cooking, that is, for it to maintain its status and social value, it must correspond to the male gender, to constitute itself as a “only for the strong” space. There are many obstacles that women who want to have a career in this profession have to face: physical work, harassment of chefs and colleagues, sexual

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harassment, long hours and the masculinizing culture of the kitchen, which wants to exclude them.

In this article, I want to explain how the sexual division of labor in professional kitchens turns this into a “male” job and how women develop strategies to resist and thrive.

Keywords: professional kitchens; cooks; sexual division of labor; female work.

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