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A REPRESENTAÇÃO DA LINGUAGEM EM VIDAS SECAS SOB UM OLHAR BENJAMINIANO

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A REPRESENTAÇÃO DA LINGUAGEM EM VIDAS SECAS SOB UM OLHAR BENJAMINIANO

Bruna da Silva Nunes (doutoranda Letras/UFRGS)

E o homem deu nomes a todos animais domésticos, às aves do céu e a todos os animais selvagens (Gênesis, 2:20).

MIMESE E LINGUAGEM SOB O OLHAR DE WALTER BENJAMIN

Em texto intitulado “Sobre a linguagem em geral e sobre a linguagem humana” (1916), Walter Benjamin afirma que toda a comunicação de conteúdo é linguagem, ou seja, a comunicação não é feita através da linguagem, mas sim na própria linguagem. Tal comunicação de conteúdo pode ser feita de diversas formas, sendo, portanto, a comunicação por meio da palavra apenas uma maneira dentre várias.

[...] linguagem significa o princípio orientado para a comunicação de conteúdos intelectuais, nos referidos domínios: na técnica, na arte, na justiça ou na religião. Numa palavra: toda e qualquer comunicação de conteúdo é linguagem, sendo a comunicação através da palavra apenas um caso particular (BENJAMIN, 1992: 177).

A palavra é subjacente a conteúdos humanos; contudo, para Benjamin, a linguagem não se restringe aos seres humanos porque todas as coisas, sejam animadas ou inanimadas, participam na linguagem, posto que “a todos é essencial a comunicação de seu conteúdo espiritual” (BENJAMIN, 1992: 177). Este conteúdo espiritual ao qual Walter Benjamin se refere diz respeito à natureza do ser, a sua essência e “aquilo que numa essência espiritual é comunicável é a sua linguagem” (BENJAMIN, 1992: 179). Assim sendo, o ser humano comunica sua natureza por intermédio da palavra, pois é dessa forma que sua linguagem se expressa, dado que “o homem comunica, pois, a sua própria essência espiritual [...] denominando todas as outras coisas” (BENJAMIN, 1992: 180). Portanto, existem diversas outras linguagens além da humana, o que não conhecemos é outra linguagem que seja denominadora.

Segundo Benjamin, se o ser humano consegue denominar as coisas, isso significa que as coisas se comunicam ao ser humano, pois, se assim não fosse, ele não conseguiria nomeá-las. Logo, a capacidade que o ser humano possui de nomear

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faz com que sua natureza seja a única passível de ser totalmente comunicável, o que diferencia a sua linguagem da linguagem das coisas.

O nome é aquilo através de que nada mais se comunica e, no qual, a própria linguagem se comunica, em absoluto. No nome, a essência espiritual que se comunica é a linguagem [...] o nome como herança da linguagem humana, garante, pois, que a linguagem pura e simples seja a essência espiritual do homem; e só por essa razão é que de todos os seres espirituais apenas a essência espiritual do ser humano é integralmente comunicável. Este fato fundamenta a diferença entre a linguagem humana e a linguagem das coisas (BENJAMIN, 1992: 182, grifos do autor).

É importante ressaltar que a discussão acerca da linguagem e da nomeação não é uma novidade, visto que já estava presente em Platão, mais precisamente no diálogo Crátilo. Neste diálogo, o autor representa uma conversa entre Crátilo, Hermógenes e Sócrates, na qual as três personagens deliberam sobre a origem dos nomes; para Crátilo, os nomes das coisas provêm de suas naturezas, e não de uma denominação escolhida pelos seres humanos, já na concepção de Hermógenes, os nomes são estabelecidos por uma convenção, e cada um pode chamar as coisas pelo nome que considerar mais apropriado. Diante desses dois posicionamentos, Sócrates agirá como uma espécie de legislador, argumentando que, por trás dos nomes, há um discurso, e que, portanto, o nome é um instrumento. Por isso, os nomes são secundários e nunca são as próprias coisas, o que demonstra a insuficiência que a linguagem tem de dar conta das coisas.

No texto “Doutrina das semelhanças” (1933), Benjamin também trata da questão da linguagem, partindo da faculdade mimética vista sob uma perspectiva mágica, que remeteria a um tempo longínquo em que haveria uma correspondência entre microcosmo e macrocosmo, constituindo uma configuração sensível. Entretanto, o homem moderno não possui mais acesso a essa imediaticidade entre micro e macrocosmos (semelhança sensível), e, então, se utiliza da linguagem como uma forma de acessar a semelhança que, nesse caso, é não sensível. Desse modo,

[...] a linguagem seria a mais alta aplicação da faculdade mimética: um medium em que as faculdades primitivas de percepção do semelhante penetraram tão completamente, que ela se converteu no medium em que as coisas se encontram e se relacionam, não diretamente, como antes, no espírito do vidente ou do sacerdote, mas em suas essências, nas substâncias mais fugazes e delicadas, nos próprios aromas. Em outras palavras: a clarividência confiou, no decorrer da

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história, à escrita e à linguagem as suas antigas forças (BENJAMIN, 2012: 121-122).

Considerando os tópicos abordados até aqui, depreende-se que, para Benjamin, mimese é semelhança, e tal semelhança está originada na linguagem. Partindo dessa constatação, proponho realizar, neste artigo, uma leitura do romance Vidas secas, de Graciliano Ramos, que contemple a visão benjaminiana dirigida para a forma literária. Publicado originalmente em 1938 e narrado em terceira pessoa, Vidas secas trata, resumidamente, de uma pequena parcela da trajetória de uma família de retirantes que tenta escapar da seca. Contudo, o que suscita aqui a leitura do romance sob a perspectiva benjaminiana de linguagem é a tensão proveniente da incapacidade de os personagens conseguirem se comunicar plenamente enquanto seres humanos, tensão esta explorada de maneira intensa no arranjo formal da obra.

A REPRESENTAÇÃO DA LINGUAGEM EM VIDAS SECAS

Fabiano, Sinha Vitória e os dois filhos do casal, acompanhados da cachorra Baleia e de um papagaio, caminhavam encarando a seca do sertão. Dentre várias adversidades, como, por exemplo, o cansaço e a falta de abrigo, a fome parecia ser a mais cruel e a que necessitava ser sanada de maneira mais imediata. Perante este quadro, Sinha Vitória decide matar o papagaio, pois assim a família poderia se alimentar (inclusive Baleia, que come os pés, a cabeça e os ossos do animal); para justificar o ato a si mesma, a mulher conclui que o papagaio era mudo e inútil, logo, tornar-se alimento parece ser a única serventia de um papagaio que não fala.

Retomando o argumento de Walter Benjamin de que tudo comunica, inclusive animais e coisas inanimadas, e que tais seres se comunicam ao ser humano, podemos pensar no que o papagaio comunica. Conhecemos o papagaio como sendo uma ave capaz de imitar sons, inclusive a fala humana; em vista disso, um papagaio que não age conforme nossa expectativa parece não comunicar o seu conteúdo espiritual, a sua essência, e, portanto, torna-se algo não identificável, algo que não conseguimos ler. No caso do papagaio da família de retirantes, ele passou a comunicar, de alguma forma, que era um alimento e que poderia, ao menos por um tempo, retardar a morte dos demais.

No entanto, ao relatar o episódio da morte do papagaio, o narrador faz a seguinte observação: “não podia deixar de ser mudo. Ordinariamente a família falava pouco” (RAMOS, 1977: 12). Durante todo o romance temos exemplos da escassez vocabular das personagens, em vários momentos a comunicação se dá através de

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gestos e grunhidos, tanto que o papagaio aboiava e latia, pois eram os sons disponíveis à imitação. Para Benjamin, o ser humano comunica sua natureza por meio da palavra, mas, se as pessoas representadas no livro pouco se utilizam da palavra, como elas comunicam sua natureza? E qual natureza, qual essência é comunicada?

Em diversas passagens da trama, Fabiano é descrito pelo narrador com características animalescas, e até mesmo de um ser inanimado – “os calcanhares, duros como cascos” (RAMOS, 1977: 12), “movia-se como uma coisa” (RAMOS, 1977: 15). Ele próprio demonstra se considerar um animal, pois, após conseguir um lugar para se abrigar com a família e não passar mais pelos sofrimentos anteriores, pensa em voz alta a seguinte frase: “– Fabiano, você é um homem” (RAMOS, 1977: 19). O ato de proferir esta sentença, mesmo que não tivesse sido exclamada, pode ser lido como uma necessidade de afirmação, ou seja, para ele sua condição não está clara, ser um homem não é algo evidente para Fabiano. Na sequência da fala de Fabiano, o narrador parece interpretar os pensamentos da personagem, em que aparece uma nova reflexão acerca da questão de ser homem ou não.

[...] pensando bem, ele não era homem: era apenas um cabra ocupado em guardar coisas dos outros. Vermelho, queimado, tinha os olhos azuis, a barba e os cabelos ruivos; mas como vivia em terra alheia, cuidava de animais alheios, descobria-se, encolhia-se na presença dos brancos e julgava-se um cabra (RAMOS, 1977: 19).

Fabiano não possuía bens, não tinha sua própria casa ou algo que lhe sustentasse autonomamente; trabalhar para os outros fazia com que ele não se reconhecesse como um ser humano, o que faz com que ele considere sua frase imprudente e a corrija, dessa vez murmurando “– Você é um bicho, Fabiano” (RAMOS, 1977: 19). Contudo, isto não significava rebaixamento, pois, “isto para ele era motivo de orgulho. Sim senhor, um bicho, capaz de vencer dificuldades” (RAMOS, 1977: 20); e Fabiano não se reconhecia apenas como um animal, pois, em mais uma espécie de interpretação dos pensamentos da personagem, o narrador apresenta o seguinte trecho: “aparecera como um bicho, entocara-se como um bicho, mas criara raízes, estava plantado” (RAMOS, 1977: 20). Fabiano se via e era visto como bicho, como vegetal, como coisa; então, sua linguagem será baseada nesse reconhecimento, e não na linguagem humana.

Já instalado com a família na fazenda em que agora prestava serviços, Fabiano se recordava dos dias de caminhada pelo sertão, lembrando-se, inclusive, da morte do papagaio – “na beira do rio haviam comido o papagaio. Necessidade” (RAMOS, 1977: 39) – ao que o narrador acrescenta: “Fabiano também não sabia

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falar”. Sinha Vitória justificou o ato de comer o papagaio pelo fato de ele ser mudo e, portanto, inútil; recuperando o argumento de Benjamin de que a linguagem humana se diferencia pela existência da palavra, podemos nos questionar se um homem como Fabiano, que não sabe falar, também se torna inútil.

Sinha Vitória, por sua vez, também possui carência de linguagem humana, sendo que já no início do romance a descrição de seu comportamento nos dá uma amostra do funcionamento da linguagem na família: “Sinha Vitória estirou o beiço indicando vagamente uma direção e afirmou com alguns sons guturais que estavam perto” (RAMOS, 1977: 10). Assim como Fabiano ela demonstra traços animalescos, o que podemos perceber em uma cena na qual Baleia caça um preá:

Foram despertados por Baleia, que trazia nos dentes um preá. Levantaram-se todos gritando. O menino mais velho esfregou as pálpebras, afastando pedaços de sonho. Sinha Vitória beijava o focinho da Baleia, e como o focinho estava ensanguentado, lambia o sangue e tirava proveito do beijo (RAMOS, 1977: 14).

Entretanto, apesar desse comportamento quase animal, Sinha Vitória é admirada por Fabiano por conta de sua capacidade de elaboração abstrata, tendo como exemplo mais explícito a observação de que as arribações “queriam” matar o gado, entendida a muito custo por Fabiano, que não conseguia transcender o significado literal da frase para compreender que as aves beberiam a pouca água disponível para o gado, que, consequentemente, morreria de sede. Assim, Sinha Vitória é vista por Fabiano como uma pessoa que “tinha ideias”, que “tinha muita coisa no miolo” (RAMOS, 1977: 116). Além disso, a personagem conseguia realizar cálculos, que, na visão de Fabiano eram mais corretos do que os resultados apresentados pelo patrão; isso se dá, principalmente, em função da desconfiança de Fabiano em relação ao mundo da palavra, especialmente no que concerne à escrita, intimamente ligado com a esfera do comércio cujos agentes eram vistos como logradores:

Fabiano percorreu as lojas, escolhendo o pano, regateando um tostão em côvado, receoso de ser enganado. Andava irresoluto, uma longa desconfiança dava-lhe gestos oblíquos. A tarde puxou o dinheiro, meio tentado, e logo se arrependeu, certo de que todos os caixeiros furtavam no preço e na medida: amarrou as notas na ponta do lenço, meteu-as na algibeira, dirigiu-se à bodega de Seu Inácio, onde guardara os picuás (RAMOS, 1977: 28).

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Contudo, ao passo que Sinha Vitória possuiria tal capacidade superior de abstração em relação aos outros membros da família, essa potencialidade não se materializa por meio da palavra de maneira consistente. Desse modo, faz-se necessária a intervenção do narrador, que assume uma postura de “procurador do personagem”, conforme Antonio Candido aponta em “Cinquenta anos de Vidas Secas”. Segundo Candido,

o narrador não quer identificar-se ao personagem, e por isso há na sua voz uma certa objetividade de relator. Mas quer fazer as vezes do personagem, de modo que, sem perder a própria identidade, sugere a dele. Resulta uma realidade honesta, sem subterfúgios nem ilusionismo, mas que funciona como realidade possível (CANDIDO, 2006: 150).

Podemos observar essa posição do narrador no seguinte trecho:

Sinha Vitória andava amedrontada. Seria possível que a água topasse os juazeiros? Se isto acontecesse, a casa seria invadida, os moradores teriam de subir o morro, viver uns dias no morro, como preás.

Suspirava atiçando o fogo com o cabo da quenga de coco. Deus não permitiria que sucedesse tal desgraça.

― An!

A casa era forte. ― An!

Os esteios de aroeira estavam bem fincados no chão duro. Se o rio chegasse ali, derrubaria apenas os torrões que formavam o enchimento das paredes de taipa. Deus protegeria a família. ― An!

As varas estavam bem amarradas com cipós nos esteios de aroeira. O arcabouço da casa resistiria à fúria das águas. E quando elas baixassem, a família regressaria. Sim, viveriam todos no mato como preás. Mas voltariam quando as águas baixassem, tirariam do barreiro terra para vestir o esqueleto da casa.

― An!

Sinha Vitória moveu o abano com força para não ouvir o barulho do rio, que se aproximava. Seria que ele estava com intenção de progredir? O abano zumbia, e o rumor da enchente era um sopro, um sopro que esmorecia para lá dos juazeiros. (RAMOS, 1977: 69-70).

No excerto, o narrador traduz a linguagem monossilábica de Sinha Vitória, linguagem esta que não conseguimos reconhecer como plenamente humana, sem que, com isso, ele subjugue a humanidade da personagem por meio do contraste entre o discurso direto e o discurso do narrador. Dessa maneira, ao colocar a voz de

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Sinha Vitória no discurso direto, o narrador, além de não rebaixá-la, intensifica o efeito de sua elaboração mental, alinhavando de forma mais íntima ambos os discursos.

Tendo isso em vista, por mais que Sinha Vitória consiga formular suas ideias melhor do que Fabiano, na sua relação com os filhos não há abertura para o desenvolvimento da comunicação verbal: quando o menino mais novo tenta comunicar-se com a mãe, puxando sua saia, ela lhe dá um cascudo; já o menino mais velho, que quer descobrir o significado da palavra “inferno”, recebe um cocorote por ser considerado insolente pela mãe ao insistir no questionamento. Portanto, a violência parece ser uma forma de resolver uma comunicação que Sinha Vitória não consegue levar adiante.

Em “Doutrina das semelhanças”, Benjamin afirma que “é o homem que tem a capacidade suprema de produzir semelhanças. Na verdade, talvez não haja nenhuma de suas funções superiores que não seja decisivamente coordenada pela faculdade mimética” (BENJAMIN, 2012: 117); entende-se, pois, que o aprendizado se dá através da produção de semelhanças. Podemos tomar como exemplo a tentativa do menino mais novo de se transfigurar em Fabiano ao buscar emular sua habilidade de montaria, utilizando para isso um bode, que seria também êmulo do cavalo adaptado a sua realidade. “Trepado na ribanceira, o coração aos baques, o menino mais novo esperava que o bode chegasse ao bebedouro. Certamente aquilo era arriscado, mas parecia-lhe que ali em cima tinha crescido e podia virar Fabiano” (RAMOS, 1977: 53). Podemos inferir, então, que as crianças do romance aprendem por meio da mimese de ações, estabelecendo uma relação entre o sentido ontogenético e o filogenético, pois o aprendizado se dá a partir da reprodução de modelos familiares, tradicionais.

Desse modo, os filhos imitam o comportamento dos pais, mas não possuem subsídios para produzir um discurso verbal complexo, visto que não têm acesso a modelos que possibilitem isso. Assim, sua comunicação pouco dispõe da palavra, utilizando-se largamente de recursos gestuais e de sons que não chegam a formar palavras.

Até aqui foram exploradas as dificuldades das personagens de se relacionarem com o mundo da palavra, seja na expressão ou na percepção/compreensão. Retomando “Sobre a linguagem em geral e sobre a linguagem humana”, Benjamin afirma que “a essência linguística do homem é, pois, o fato de ele designar as coisas” (BENJAMIN, 1992: 180) e que o nome é a essência mais íntima da linguagem. Podemos pensar nisso a partir do fato de que os filhos de Fabiano e Sinha Vitória são denominados como menino mais novo e menino mais velho, o que põe em flagrante o quanto a linguagem humana é algo não dominado pelas personagens.

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Um exemplo de como a nomeação é algo estranho para toda a família, mas principalmente para os meninos, é o episódio da festa, em que, diante de diversos objetos que eles não reconheciam, os irmãos se questionam sobre se todas aquelas coisas tinham nomes ou não.

Provavelmente aquelas coisas tinham nomes [...] Sim, com certeza as preciosidades que se exibiam nos altares da igreja e nas prateleiras das lojas tinham nomes. Puseram-se a discutir a questão intricada. Como podiam os homens guardar tantas palavras? (RAMOS, 1977: 88).

É interessante notar como os meninos colocam o “homem” como um outro, um ser ontologicamente distanciado com o qual eles não conseguem estabelecer uma relação identitária, e o que parece causar esta falta de reconhecimento é a dificuldade que eles têm de nomear e de “guardar tantas palavras”. Por extensão, eles não conseguem se adaptar a esse “mundo citadino”, que pressupõe relações interpessoais por meio da palavra, seja escrita ou falada. Como afirma Fernando Juarez de Cardoso na dissertação intitulada De dependentes a pobres diabos: um breve percurso da pobreza na literatura brasileira,

[...] em Vidas secas esse aspecto [a linguagem] será uma grande barreira para Fabiano e sua família, não apenas como uma limitação formal, mas também como um problema incontornável entre estes e a possibilidade de acesso ao mundo no qual esta faculdade se mostra imprescindível (CARDOSO, 2013: 66).

Ironicamente, quem aparece como uma espécie de contraponto a esta escassez comunicativa é a cachorra Baleia, reconhecida pelas demais personagens como um membro da família. Da mesma forma que muitas vezes os humanos são descritos com características animais, a Baleia é imputado um comportamento humano, tendo ela capacidade de refletir, julgar e até mesmo ter “sentimentos revolucionários” (RAMOS, 1977: 42). Em dado momento, a cachorra parece adaptar sua linguagem à capacidade restrita de compreensão do menino mais velho, pois ela “respondia com o rabo, com a língua, com movimentos fáceis de entender” (RAMOS, 1977: 59). Por esses motivos, a natureza que Baleia comunica destoa da expectativa que temos em relação a um cachorro, mas se aproxima do que esperávamos que a família de Fabiano fosse apta a comunicar. Conforme Candido,

[...] a presença da cachorra Baleia institui um parâmetro novo e quebra a hierarquia mental (digamos assim), pois permite ao narrador inventar a interioridade do animal, próxima à da

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criança rústica, próxima por sua vez à do adulto esmagado e sem horizonte. O resultado é uma criação em sentido pleno, como se o narrador fosse, não um intérprete mimético, mas alguém que institui a humanidade de seres que a sociedade põe à margem, empurrando-os para as fronteiras da animalidade (CANDIDO, 2006: 149).

Portanto, podemos vislumbrar em Baleia uma alegoria da posição que Fabiano e sua família ocupam socialmente. À cachorra eram destinados os ossos, os despojos; seja no caso do papagaio, seja no caso do preá que ela própria caçou. Assim como Baleia, para Fabiano só sobravam os “ossos”, “era um desgraçado, era como um cachorro, só recebia ossos. Por que seria que os homens ricos ainda lhe tomavam uma parte dos ossos?” (RAMOS, 1977: 103). Então, o que Fabiano comunica – e por extensão o restante da família – é uma condição sub-humana, de um animal passível de ser explorado, que, por mais que algumas vezes demonstre consciência da injustiça sofrida, não possui alternativa a esse paradigma de trabalho.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

No início do artigo, foi levantado o questionamento de como as personagens do romance comunicam sua natureza e qual natureza é comunicada. Respondendo à primeira parte da questão, penso que a maneira que a natureza é comunicada se baseia nos tipos de linguagens que estão disponíveis a elas, que estão ao seu redor. É a linguagem da natureza, das plantas, dos animais e, também, dos seres humanos, pois, apesar de precariamente, elas também se utilizam da palavra. O que causa essa precariedade é o isolamento da família em relação a outros seres humanos, o que faz com que o contato com seres da natureza seja muito mais próximo e proporcione uma maior possibilidade de identificação, dado que, para sobreviver no ambiente hostil do sertão, eles precisam, em alguma medida, se metamorfosear em diversos animais. Podemos tomar como exemplos as seguintes passagens: “Ele, a mulher e os filhos tinham-se habituado à camarinha escura, pareciam ratos” (RAMOS, 1977: 19, grifo meu); “[os meninos] precisavam ser duros, virar tatus” (RAMOS, 1977: 26, grifo meu).

Em “Doutrina das semelhanças”, Benjamin diz que o homem primitivo possuía um universo perceptível com mais correspondências mágicas do que o do homem moderno, ou seja, este homem antigo estava integrado organicamente à natureza. Acredito que possamos aproximar, com as devidas mediações, a família retratada no romance a esses homens primitivos a quem Benjamin se refere, visto que, por mais que ela faça parte do mundo moderno, sua condição de marginalidade não permite acesso ao capital simbólico desse mundo

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Assim, a natureza comunicada nesta linguagem heterogênea continua sendo a natureza humana, porém, a de um ser humano que vive num paradigma que não nos é familiar. Aceitando a hipótese de que mimese é semelhança e que esta semelhança se origina na linguagem, temos dificuldade em reconhecer que o que está sendo mimetizado em Vidas secas são seres humanos, pois a linguagem apresentada destoa da nossa. Contudo, o narrador, agindo como um tradutor dessa linguagem, desvela a humanidade das personagens, legitimando suas subjetividades.

REFERÊNCIAS

BENJAMIN, Walter. Doutrina das semelhanças. In: _____. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura [8ª ed.]. São Paulo: Brasiliense, 2012.

_______________. Sobre a linguagem em geral e sobre a linguagem humana. In: _____. Sobre arte, técnica, linguagem e política. Lisboa: Antropos, 1992.

CANDIDO, Antonio. Cinquenta anos de Vidas secas. In: ______. Ficção e confissão: ensaios sobre Graciliano Ramos [3ª ed.]. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2006.

CARDOSO, Fernando Juarez de. De dependentes a pobres diabos: um breve percurso da pobreza na literatura brasileira. Porto Alegre: UFRGS, 2013. 112 f. Dissertação (Mestrado) ― Programa de Pós-Graduação em Letras, Instituto de Letras, UFRGS, Porto Alegre. 2013.

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