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D. AMÉLIA: A MÃE DOS POBRES EM CHOVE NOS CAMPOS DE CACHOEIRA DE DALCÍDIO JURANDIR

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D. AMÉLIA: A MÃE DOS POBRES EM CHOVE NOS CAMPOS DE CACHOEIRA DE DALCÍDIO JURANDIR

José Elias Pereira Hage (UFPA) 1. Introdução

Em dez romances, publicados entre 1941 e 1978, o escritor paraense Dalcídio Jurandir (1909-1979) construiu o ciclo Extremo Norte, no qual intentou desvelar a força e o heroísmo dos menos favorecidos da Amazônia. Em Chove nos campos de Cachoeira, primeira obra do ciclo, nos deparamos com a personagem D. Amélia, que no decorrer do romance se envolve com a pobreza que circunda o chalé onde mora.

Natural de Muaná, a personagem foi convidada por Major Alberto para viverem juntos em Cachoeira do Arari, onde ele trabalharia como secretário da intendência. Ela, negra, neta de escravos, trabalhava nos seringais em sua terra natal, mas em Cachoeira chegou como companheira do Major, com quem teve dois filhos: Alfredo e Mariinha. Os quatro, junto com Eutanázio, filho do primeiro casamento do major, habitam um chalé que tem um lugar de destaque tanto na narrativa, quanto na geografia fictícia da obra, e que por conta disso é constantemente visitado pelos moradores desfavorecidos que habitam seu entorno, em busca de algum tipo de auxílio material.

A relação de D. Amélia com os pobres que vivem em torno do chalé é de compartilhamento. O narrador, por meio dessa postura da personagem, permite desvelar as mazelas sociais a que estão submetidos tais miseráveis, bem como nos dá acesso a uma das características mais importantes da personagem: a solidariedade. D. Amélia tinha consciência de que sua família não era rica, no entanto percebia-se em situação menos desfavorável, por conta disso, deu inicio a uma tradição de ajudar a todos, no que fosse possível.

Na prática, ela exerce a função social de “primeira dama”, função esta bem maior que a legalmente ocupada. Primeira dama ou mãe dos pobres, D. Amélia exerce um papel social importante. Dá a mão para quem precisa, sem estabelecer diferenças.

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Mãe, mulher, negra e pobre, D. Amélia sobrevive em uma sociedade que marginaliza essas características e ainda consegue ser solidária com o pouco que dispõe.

Esse trabalho se propõe a uma análise da personagem pobre D. Amélia em Chove nos Campos de Cachoeira, primeira obra do ciclo Extremo Norte, tendo como base o posicionamento da personagem, quanto a realidade que vivenciou antes de tornar-se esposa do secretário da intendência e os possíveis reflexos dessa vivência na sua postura com relação aos menos favorecidos, a partir de uma noção de pobreza que tem como princípios a subsistência e a vida social.

2. D. Amélia: racismo e pobreza

D. Amélia é negra e pobre, características indissociáveis aos olhos de uma sociedade construída a base da exclusão social. A associação da cor da pele à condição socioeconômica tem base histórica, visto que o Brasil desenvolveu-se economicamente subjugando a mão-de-obra da população negra por meio da escravidão.

Introduzidos na Amazônia no final do século XVII, os negros africanos foram trazidos como reforço à política colonizadora da coroa portuguesa, pois a mão-de-obra indígena não se adaptava à organização do colonizador, mantendo-se sempre insubmissa. A ilha do Marajó, terra de um promissor potencial para cultivo e criação, recebeu grandes levas de escravos que, com o claro intuito de desenvolver a região, eram explorados em sua força de trabalho para a obtenção dos mais diversos tipos de serviço.

Dentre as regiões para onde singraram esses filhos das Áfricas diaspóricas, a ilha e o arquipélago marajoaras ganharam expressão por sua posição estratégica e potencialidade de suas terras para a criação e o plantio. Desta forma, espaços de fazendas de gado, engenhos de açúcar, roças de produção da farinha, matas de coletas de frutos nativos, tornaram-se palco de esforços, trabalho e vivencias de negros da África que, juntamente com “negros da terra”, configuraram as faces da mão-de-obra duramente explorada ao longo dos séculos XVIII e XIX. (PACHECO, 1997, p. 26)

Ainda que sob os auspícios recentes da libertação escravista, datada de final do século XIX, a exclusão étnica mantinha-se fortemente, mesmo que de forma velada,

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relegando essa parcela da população ao estigma do subdesenvolvimento. “A Abolição foi uma mudança legal na situação do escravo, quase sem alteração da sua possibilidade social e econômica” (CANDIDO, 2004, p. 238).

A percepção e o entendimento da cor negra da pele como marca de inferioridade, bem como de qualquer gradação de cor que não fosse branca, destinou essa parte da população ao constante e degradante isolamento social. Em Chove nos campos de Cachoeira, várias são as situações nas quais, tendo D. Amélia como figura central, descortina-se um olhar carregado de preconceito, principalmente por seu posicionamento social, incompatível com a sua cor, segundo o entendimento de alguns personagens.

Natural de Muaná, a personagem teve seu destino modificado quando, por convite do viúvo Major Alberto, aceitou mudar-se para Cachoeira do Arari, onde ele ocuparia o cargo de secretário da intendência. Neta de escravos, Amélia trabalhava nos seringais em sua terra natal, onde já experimentara a maternidade, interrompida pelo afogamento do então único filho “levado pelo sucuriju nas ilhas” (JURANDIR, 1997, p. 78).

Major Alberto foi muito criticado pelas três filhas do primeiro casamento que ficaram em Muaná por ter partido com D. Amélia, esta por sua vez não maldizia as enteadas e nem tampouco se sentia inferior às mesmas. A característica negativa de D. Amélia, apontada pelas filhas, revoltadas pelo convite de ‘casamento’ do pai, foi justamente sua cor: “Era uma pretinha. Se ainda fosse pessoa de qualidade... mas uma pretinha de pé no chão! Quem logo! Seu pai estava de cabeça virada para uma negra.” (JURANDIR, 1997, p. 78).

As filhas de Major Alberto consideram tal situação inadmissível. Entendem que é um demérito o envolvimento do pai com uma mulher de cor, e o motivo fica explícito no excerto supracitado: uma preta não é uma pessoa de qualidade. Como Major Alberto é branco, o correto seria estabelecer-se com uma mulher de qualidade, e essa não poderia ser negra. A determinação do padrão de qualidade está vinculada à cor branca da pele. É perceptível, nesse episódio, que a atribuição das qualidades de um indivíduo, começa na sua cor de pele, pouco importando outras características. D. Amélia poderia

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ser a melhor pessoa do mundo, mas como era negra, não podia ter uma relação com o branco Major Alberto, porque ela não era uma ‘pessoa de qualidade’. Um discurso disseminado, com sérias consequências sociais, carregado de preconceito.

Preconceito que, se é odioso nos países cuja população é predominantemente branca, torna-se além disso grotesco no nosso caso, isto é, num país onde grande parte dos brancos tem nas veias parcelas maiores ou menores de sangue africano, que todavia esquecem, rejeitam ou ignoram, sendo que em todos esses casos acabam por comportar-se como opressores dos que são considerados de cor. (CANDIDO, 2004, p. 238)

Por conta desse entendimento de merecimento a partir da cor da pele, a discriminação racial possibilita os mais diversos tipos de atrocidade, ou seja, não tomar consciência da própria natureza genética pode levar o ser humano, a incorrer no erro de segregar pessoas, que tem na sua constituição, a mesma característica basilar: a miscigenação, que independe da natureza da cor da pele. Por conta dessa discriminação, ao negro ficou relegada a falta de oportunidade, bem como lhe foi negada a possibilidade de expansão, tanto no campo econômico, quanto no social.

A falta de oportunidade econômica e social do negro é acompanhada por toda a sorte de consequências morais da maior gravidade, como o sentimento de insegurança que corrói a personalidade e é agravado pelas situações de humilhação. (...) grande parte da população é privada dos meios de viver com dignidade por causa da cor da pele. (CANDIDO, 2004, p.238).

A união com Major Alberto conferiu a D. Amélia uma ascensão, visto que, pelo estigma social lhe imposto pela própria cor, continuaria sem recursos em Muaná até morrer, como a mãe, à míngua. Em Cachoeira, chegou como dona, impondo respeito, pois era a companheira do secretário da intendência, para quem deu dois filhos: Alfredo e Mariinha. No entanto, mesmo sendo um ser humano benevolente, à disposição para ajudar os mais necessitados, sempre que seu nome caía nas rodas de conversas ou no pensamento dos habitantes da cidade, causava incômodo sua cor, principalmente por conta da união com um branco, união essa que se fez ‘sem os laços sagrados do matrimônio’, imperiosamente fundamentais na época, o que aumentou o seu estigma social: além de negra, amásia.

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As cenas que informam o casamento mostram o quanto se agravam as condições de vida de uma mulher pobre e negra. O texto é riquíssimo no pôr a nu, num sentido geral e em relação particular à Amélia (elemento de uma grande cadeia sintagmática), o peso da discriminação que se abate sobre a negra que ousa o enlace com o branco. Dalcídio aprofunda-se na revelação do preconceito de cor, tanto que seus personagens, mesmo os coadjuvantes de Amélia, aparecem absorvendo sutilmente a ideologia da raça pura, da raça superior. (...) Depois, quando Amélia já está instalada no chalé do Major, usufruindo as benesses do acordo (como Dona Amélia), esse fato desperta a ira de outras mulheres não pelo casamento, mas pelo casamento com uma negra. (TUPIASSÚ, 2010/2011, p. 48)

O incômodo com a situação, aparentemente elevada de D. Amélia, estava completamente fundamentado em preconceitos, tanto raciais, quanto sociais. A sociedade cachoeirense entende como inadmissível tal situação, e se inquieta com esse tipo de movimentação social, a assimilação do casal se dá somente por conta da posição política de Major Alberto. Mas é possível identificar também, um perceptível lastro de inveja, pois de qualquer maneira, D. Amélia vivencia uma posição diferenciada na sociedade. O próprio comportamento de compartilhamento com os mais necessitados, aos olhos do povo, é visto como demonstração de poder econômico.

A situação de D. Amélia em Cachoeira é diferente da que vivenciara em Muaná. Como exemplo das mulheres que são obrigadas a praticar serviços pesados para fugir da sobrevivência pela via da prostituição, D. Amélia, após a morte da mãe, teve que entregar-se ao trabalho braçal, justamente para não morrer de fome.

A pobreza material é um estado de fragilidade. O ser humano pobre é frágil, pois não dispõe de requisitos mínimos para suprir as próprias necessidades de sua vida. Oprimido, por questões que o impedem de se expandir como ser humano, ele se fragiliza continuamente, enfraquecendo-se enquanto indivíduo social. A mulher pobre, então, partindo desse ponto de vista, é duplamente fragilizada. “Surge assim uma categoria sexuada, que parece ter características próprias ao reunir duas fragilidades: ser do sexo feminino e ser carente.” (LAVINAS, 1996, p. 464).

Esse resultado não é uma questão de escolha, essa mulher pode ser fruto das instituições e das elites e encontra-se completamente desprovida de recursos mínimos que a beneficiem. Por conta disso, muitas dessas mulheres se veem forçosamente

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empurradas para dispor do próprio corpo, como recurso para obter o mínimo necessário para viver. Como mínimo, entende-se inclusive a troca de favores sexuais, por um prato de comida. D. Amélia entrega-se ao lavor braçal para evitar a via da prostituição com vistas à sobrevivência. A personagem agrega à condição duplamente fragilizada de mulher e pobre, o estigma socialmente inferior da cor, conferindo-lhe uma condição tripla de exclusão social.

A forma como Major Alberto convida D. Amélia para Cachoeira e a maneira que o convite é recebido e entendido expõem a postura de imposição masculina e a limitação da realidade feminina. Major Alberto quer alguém para viajar consigo, e a escolheu por ser “uma pretinha que nunca andava molambenta e azeda” (JURANDIR, 1997, p. 78), não há um enamoramento, mas uma necessidade que, aliada ao fato de ser a única possibilidade de Amélia mudar de vida, soa como imposição, tal a subjugação da mulher ao poder material do homem.

As circunstâncias deixam claros os acordos desse tipo: o propósito está na subserviência e subjugação da mulher, que a partir de então, viverá um contrato de servidão ao seu homem. E isso é muito bem entendido por D. Amélia: “Se vou é para trabalhar para ele. Sou uma pobre. (...) Sou mulher para trabalhar. Se a minha sorte está marcada pra ficar com ele, fico” (JURANDIR, 1997, p. 79).

Analisando as bases desse acordo, é possível depreender que o interesse de Major Alberto na consumação do ato tem como princípio maior o seu próprio bem estar e não aparenta um revolucionário desejo de contrariar ditames sociais secularizados. Podemos pensar que Major Alberto tem por intenção obter os serviços em casa de uma mulher negra, para servi-lo em todos os ‘cômodos’, sem as cobranças legais de um casamento pela sociedade. E faz isso sob a proteção da ausência do matrimônio com D. Amélia, ou seja, para todo e qualquer efeito, ela foi convidada para trabalhar, sem qualquer tipo de pretensão, quase com descaso: “Vais, e se te acostumares...” (JURANDIR, 1997, p. 78).

É possível perceber suas intenções quando decide encontrar uma companheira: “Antes de se mudar definitivamente para Cachoeira, Major refletiu que a sua viuvez devia ser uma viuvez sossegada se achasse uma companheira ilegal para ele”

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(JURANDIR, 1997, p. 78). O pensamento do personagem aproxima dois polos importantes para si: viuvez sossegada e ilegalidade.

Ou seja, o propósito é viver tranquilo uma relação que não desencadeie cobranças por parte da sociedade por ser vista como ilegal. A ilegalidade se mostra na possibilidade de ter como companheira alguém que a sociedade não enxergue como esposa. E dessa situação é possível identificar duas características fundamentais: a cor da pele e o serviço doméstico. O convite feito a D. Amélia traz consigo uma duplicidade de sentido, daí talvez a ausência de namoro. O convite para acompanhá-lo deixa no ar uma relação de concubinato, com a possibilidade de ser apenas um trabalho. Nas palavras do personagem: “- Quero uma pessoa para ir comigo para Cachoeira. Queres ir?” (JURANDIR, 1997, p. 78).

Ao se referir a uma companhia ilegal, em sua reflexão, o personagem Major Alberto expõe o olhar social que buscava para a relação pretendida, bem como mostra que desde o início nunca houve intenção de casar com D. Amélia, pois a sociedade da época não via com bons olhos o casamento entre brancos e negros. Caso o convite fosse feito para alguém de cor branca, o mesmo seria entendido como pretensão matrimonial. Por outro lado, chegar com uma negra como companheira, sugere uma relação de trabalho e não exige maiores explicações, nem atitudes legais, além de estabelecer a possibilidade de uma relação criada nas bases da mecânica do favor.

Existe uma relação particular, na qual é sustentada qualquer tipo de movimentação na sociedade. A manutenção de toda relação social tem por mediação o favor. É ele que movimenta as relações, bem como as mantêm. Esse mecanismo é o meio pelo qual os pobres na obra de Dalcídio Jurandir se deslocam socialmente e atingem seus objetivos.

A relação da sociedade com o favor, retratada pelo autor, demonstra exatamente que é esse mecanismo que possibilita a transitividade social, e que esse tipo de sistema gera um processo de dependência, no qual as camadas sociais estão interligadas e acabam por se alimentar disso mutuamente. Quando a relação se estabelece entre classes, o favor pode levar a um tipo de submissão, que tem como princípio a subserviência do indivíduo.

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A troca de favores em si não tem nada de perverso. É uma relação de prestação e contraprestação em que não entra o dinheiro. Quando é decente, é das coisas boas da vida. Ela fica perversa quando é muito desigual, como entre um proprietário e um desvalido, ou quando é uma cumplicidade antissocial entre ricos, para burlar a lei e levar vantagem. Quando serve à contravenção dos pobres também não é bonita, mas não é o mesmo, pois ajuda os de baixo a contornar a necessidade e a desigualdade. (SCHWARZ, 2012, p. 176).

D. Amélia a partir dessa aliança com Major Alberto diminuiu o abismo de desigualdade que sempre a manteve excluída da sociedade e, ao contrário do que se pode pensar, o fato de ter melhorado social e financeiramente não modificou sua postura diante da vida. Diferente de tomar uma atitude de distanciamento, ou mesmo de adotar uma postura de arrogância por ter alcançado outro patamar social, ela se mantém íntegra em sua personalidade e abraça a todos que solicitam sua nobre ajuda, fazendo do chalé, como diz Major Alberto: “um seio de Abraão”. (JURANDIR, 1997, p. 95).

3. A mãe dos pobres

D. Amélia tem com os pobres que vivem em torno do chalé uma relação de compartilhamento. Ela entende que o fato de possuir um pouco mais lhe coloca em uma situação de provedora dos menos favorecidos, e por conta disso, nunca se nega a dar um pouco do que tem para ajudar o máximo que pode. Por ser de origem pobre, D. Amélia enxerga nesses pedintes diários um reflexo de sua outrora realidade, e por ter convivido com a dor da fome possivelmente se sinta na obrigação de ajudar.

Essa ajuda acontece de diversas maneiras, desde o compartilhamento de carne, quando algum gado é sacrificado, até curar males diversos da vizinhança com sua sabedoria popular, “tinha uma especialidade consigo: sabia curar bem uma garganta” (JURANDIR, 1997, p. 94). D. Amélia não negava nenhum tipo de ajuda. Possivelmente desejava acabar de uma vez com toda aquela pobreza, desejo esse impossível de ser realizado. No entanto, as atitudes da personagem aparentam acreditar na realização do que se mostra impossível.

Muitas noites, saía com o farol na mão, atravessando lama ou na montaria em tempo de inverno, a chamado, para dar uma lavagem,

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aplicar um sinapismo, ajudar D. Maria dos Navegantes num parto difícil, salvar uma criança que já estava com a vela na mão. (JURANDIR, 1997, p. 95).

Alguns desses pedintes, para diminuir um pouco o fato de não poderem pagar em dinheiro a ajuda e as contribuições de D. Amélia, retribuem a caridade com algum agrado, como por exemplo, a preparação de um vinho feito de muruci, fruta muito comum na região, que é entregue às vezes no chalé pelos meninos ‘fedendo a peixe’.

O Major Alberto não simpatizava muito com as atitudes de D. Amélia com relação aos vizinhos pobres, e vivia reclamando: “Não somos ricos, não. Não somos! É preciso acabar com esse seio de Abraão” (JURANDIR, 1997, p. 95). No entanto, é interessante observar que mesmo criticando as atitudes da companheira, o Major se beneficiava dos agrados recebidos por D. Amélia: “Major Alberto bebia com satisfação o vinho de muruci que os moleques, fedendo a peixe, vinham trazer para D. Amélia” (JURANDIR, 1997, p. 96). Ou seja, ele criticava as atitudes da companheira, mas aceitava de bom grado quando alguém da vizinhança tinha uma atitude de retribuição aos préstimos da mesma.

D. Amélia melhorou social e financeiramente e não modificou sua postura diante da realidade da vida. Como sua origem está assentada numa realidade humilde, o seu entendimento, do que há de correto a ser feito, é o compartilhamento de suas melhorias com os mais necessitados.

D. Amélia, (...), aparece-nos, sobretudo como a personalidade local cuja casa se transformou, segundo as palavras do Major, “no seio de Abraão”, tal a presteza com que ora divide a parca fartura do chalé com uma grande leva de pobres, conhecidos seus, ora presta assistência medicinal com seus conhecimentos “caseiros” e para os quais tem mão boa. (FURTADO, 2010, p. 61).

É interessante chamar a atenção para o fato de que D. Amélia mudou de patamar social, mas não tornou-se rica. Sua posição é intermediária, e não se encontra estabelecida em nenhum dos extremos, no entanto não vive um drama pessoal por conta disso. Ao contrário, aceita de bom grado a posição em que se encontra e ainda divide o que tem com os que tem menos que ela.

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Desde que aceitou vir com Major Alberto de Muaná, D. Amélia tinha consciência da vida que levaria: “Se vou é para trabalhar para ele. Sou uma pobre. (...). Não vou atrás de dinheiro dele porque sei que ele não tem.” (JURANDIR, 1997, p. 79), no entanto, por Major Alberto ter um cargo de secretário da intendência de Cachoeira, a população olha para o casal de outra maneira. Tanto Major Alberto, quanto D. Amélia, são pessoas humildes, mas devido ao papel que desempenham na sociedade cachoeirense são tratados como se estivessem num patamar social diferenciado, e em uma condição econômica melhor, do que o resto da população. É interessante observar, ainda, que eles, na prática, exercem funções sociais maiores, do que as que ocupam legalmente.

Se atentarmos bem, notaremos que Major Alberto e d. Amélia, dois humildes, exercem de fato papéis que não lhe são de direito, claro que por inversão de papéis, não por usurpação. Ele é o verdadeiro intendente de Cachoeira, sem os poderes, a glória e o percebimento financeiro daquele; ela, a “preta e limpa”, por sua vez, exerce com a magnanimidade que lhe é própria, mas sem reconhecimento algum, o papel assistencial de uma “primeira dama” (FURTADO, 2010, p. 61). D. Amélia cumpre um papel social importante. Dá a mão para quem precisa, sem estabelecer parâmetros de diferenças. A atitude de D. Amélia, com relação aos pobres, é de entrega, como uma mãe que não mede esforços para sanar os problemas dos filhos. Ter perdido um filho afogado possivelmente desencadeou esse olhar de responsabilidade para com todos. “D. Amélia não tinha jeito de estar negando e a pobreza de junto do chalé comia nem que fosse pra tapar um buraco de dente” (JURANDIR, 1997, p. 94).

Observe-se que a atitude de D. Amélia, com os que lhe rodeiam, pode ser vista como um sentimento heroico, resultado da sua ineficaz tentativa de salvar o primeiro filho de afogamento em Muaná. Ela descreve o fato ao salvar Alfredo quando caiu num poço, situação essa que ampliou o seu poder materno. Claro está que essa situação teve como reforço a disputa do amor do filho com a personagem Lucíola, mas é nítido o desespero da mãe diante da possibilidade de perder outro filho afogado.

Mesmo mantendo-se calma durante a proeza, temia ser condenada como mãe de afogados: “Ficou dominada pelo pressentimento de que todos os filhos podiam morrer

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afogados e que estava condenada a isso” (JURANDIR, 1997, p. 17). Pediu segredo total para Alfredo, pois quis guardar para si aquele momento de redenção, como se aquilo, de alguma forma, diminuísse um pouco a culpa que sentia pela morte do primeiro filho. “(...) era um segredo que queria guardar e o achava tão precioso e tão sagrado porque reabilitava-se a si mesma.” (JURANDIR, 1997, p. 17).

Esse sentimento de reabilitação possivelmente é a matriz de sua solidariedade incondicional com os mais necessitados. O resgate provocou em D. Amélia um sentimento semelhante ao de dar à luz ao menino novamente, parecendo vir junto com ele o primeiro filho afogado, como se a partir daquele momento o menino Alfredo representasse a si mesmo e ao irmão morto.

D. Amélia não deu um grito. Saltou, e foi buscar Alfredo no fundo do poço que era raso. Salvara o filho, e daí em diante parecia mais dela, saindo não somente da sua carne como do seu ressentimento, que ela sempre guardava consigo mesma a respeito do outro filho que morrera afogado. (JURANDIR, 1997, p. 16).

O sentimento de redenção de D. Amélia parece não ter se esgotado no salvamento de Alfredo. Ao observar as suas atitudes com o povo que lhe busca auxílio, identificamos uma postura de disponibilidade espontânea e ao mesmo tempo auto imposta, pois segundo o narrador, não há em nenhum momento uma atitude ou sentimento contrário ao de solidariedade. Ainda que precise atravessar terrenos alagadiços e enlameados, independente do horário, a disposição para ajudar se mostra inabalável (JURANDIR, 1997, p. 95). O esforço para socorrer aos que estão se afogando na alagação da miséria e do abandono social é comparado ao empreendido no resgate do filho Alfredo, feito com serenidade e sem desespero, mas com eficácia. 4. Conclusão

Da atitude de D. Amélia com os mais necessitados é possível depreender que visa a preencher o vazio deixado pela morte do primeiro filho por afogamento, pois o narrador nos leva a crer que esse espaço ficou em aberto na sua maternidade. Na verdade, ao dedicar-se a cuidar dos pobres necessitados, ela parece juntar pedaços dessa maternidade que aparentemente ficou afogada junto com o seu primogênito.

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O propósito não é resgatar em si mesma a perda do filho, mas sim a perda da mãe que não conseguiu salvar o próprio filho. No momento em que salvou a vida de Alfredo iniciou-se o seu processo de redenção, “daí em diante parecia mais dela” (JURANDIR, 1997, p. 16), como se até aquele momento ela não fosse uma mãe completa e oferecesse ao filho apenas uma maternidade parcial.

Empenhada em enterrar definitivamente, o passado que julgara maternalmente relapso, e que lhe causava ressentimento, D. Amélia se desdobra para conseguir atender as demandas do filho, ao mesmo tempo em que faz o mesmo pela população pobre da cidade, desempenhando de fato e de maneira exemplar o papel importante e consciente de mãe dos pobres de Cachoeira.

Referências

CANDIDO, Antonio. O Observador Literário. Rio de Janeiro: Ouro sobre azul, 2004. JURANDIR, Dalcídio. Chove nos campos de Cachoeira. Belém: Cejup/Secult, 1997. FURTADO, Marlí Tereza. Universo derruído e corrosão do herói em Dalcídio Jurandir. Campinas, SP: Mercado das Letras, 2010.

LAVINAS, Lena. As mulheres no universo da pobreza, o caso brasileiro. In: Estudos

Feminista. Nº 2. p. 464-479. In:

www.periodicos.ufsc.br/index.php/ref/article/download/16816/15405. Acesso em

05/07/2015.

PACHECO, Agenor Sarraf. Paisagens Enegrecidas: Linguagens e vivencias afroindígenas em narrativas marajoaras. In: Asas da palavra – revista de letras, V.13 n. 26. Belém: UNAMA, 2010/2011. 248 p.

SCHWARZ, Roberto. Martinha versus Lucrécia. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.

TUPIASSÚ, Amarílis. A Resistência do Feminino em Chove nos campos de Cachoeira. In: Asas da palavra – revista de letras, V.13 n. 26. Belém: UNAMA, 2010/2011. 248 p.

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